Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Quando desempenhou, num momento especialmente dramático da vida nacional, as funções de Ministro das Finanças (1983-85), Ernâni R. Lopes afirmou de um modo claro e simples como era seu timbre: “É preciso valorizar o trabalho e não o golpismo, a honradez e não o oportunismo, o espírito de competição e não o privilégio, o lucro legítimo e não a ganância especuladora ou a caça ao subsídio”. Nestas palavras resume-se o que poderia estar num tratado de cidadania, constituindo um conjunto de objetivos e alertas que deveriam estar presentes no funcionamento de uma sociedade justa e decente. Infelizmente, há um grande esquecimento destas ideias, que de pouco valerão se se limitarem a um conjunto de conselhos bem intencionados. Na boca de quem as proferiu houve uma preocupação de traduzir em exemplos e em experiência tais desígnios. A publicação de “Ernâni Lopes – Vida e Pensamento” (U. Católica, 2025) apresentada há pouco reúne reflexões suas e testemunhos de uma equipa que consigo trabalhou. Ainda jovem confessou desejar ser monge, militar ou professor. De facto, optou pela docência, partindo das qualidades espirituais e de organização. Profundo estudioso e conhecedor da História, e em especial da grande saga dos portugueses nos descobrimentos do mar oceano, teve em mente a afirmação de Duarte Pacheco Pereira, o genial negociador de Tordesilhas e provável navegador dos mares do sul: “a experiência é a madre de todas as cousas”. No fundo, mais do que todas as teorias, importaria ligar o saber e o saber fazer. Por isso, Camões deu especial importância ao “velho de aspeito venerando”, “cum saber só d’experiências feito” – tendo alertado para que a Fama e Glória são nomes “com quem se o povo néscio engana”…
Conheci bem Ernâni Lopes e ainda hoje recordo os seus conselhos essenciais, que basicamente se centravam nas qualidades que mais prezava - o estudo e o trabalho. Sabia como ninguém que os problemas do País exigiam a recusa do improviso. Havia que delinear a ação de modo coerente, definir objetivos e metas com a ponderação rigorosa das condicionantes, sabendo que não há explicações simples e que a economia e a sociedade estão intimamente ligadas. Quando Ernesto Melo Antunes o escolheu para Embaixador na República Federal Alemã, no momento em que a democracia dava os primeiros passos, fê-lo com extraordinária visão de futuro. Havia que preparar a democracia com rigor e conhecimento, em ligação com a melhor experiência europeia, e hoje sabemos que essa foi a estratégia necessária, a pensar na mobilização das qualidades nacionais, na perspetiva da integração europeia. “A decisão de aderirmos à CEE foi a maior mudança no posicionamento estratégico de Portugal e a maior reforma estrutural do país depois da II Guerra Mundial”. Apesar de todas as vicissitudes, esta foi a opção decisiva para a modernização do País. “O Portugal que queremos construir no futuro é uma nação livre e democrática com níveis de bem-estar e de desenvolvimento económico próximos dos países evoluídos do final deste século, integrada no modelo das democracias ocidentais”. Eis o que estava em causa, e daí o forte empenhamento pessoal no delineamento do projeto democrático. “Não vos escondo que a terapêutica será dolorosa”. Lembramo-nos desse momento decisivo, a que a democracia tanto deve.
Foi preciso acontecer Budapeste em 1956, haver as revelações de Kruchtchev sobre o estalinismo e o Arquipélago de Gulag de Alexandre Soljenitsine para obrigar os anti-estalinianos a aprofundar a sua crítica, sem se preocuparem em salvar uma ortodoxia. Continuamos a seguir a análise de Jean-Marie Domenach. Claude Lefort foi um dos primeiros a tomarem consciência, desde antes de 1956, da singularidade monstruosa do fenómeno totalitário e deixam de o identificar como um resíduo do argumento do grande capital. Lefort chegou a uma conclusão semelhante à de Rosanvallon (que era também a de Mounier), e que era a seguinte: o marxismo irmão gémeo do liberalismo traz consigo a lógica bífida do Estado totalitário que leva tanto ao estalinismo como ao fascismo. É por erro que os marxistas fazem do Estado o produto de uma evolução económica e de uma relação de classes: é o Estado que abre o caminho, o símbolo bulímico que absorve a substância inteira da sociedade. Mas por que razão demorou tanto tempo para que abrissem os olhos? Lefort e muitos outros como ele viram-se violentamente contra aqueles que os impediram de ouvir a lição dos grandes liberais, de H. Arendt em particular. Nos dias de hoje, o fenómeno sofre alterações. Mas, no essencial, aumentam os riscos resultantes da lógica iliberal, que põe em causa a democracia.
Mudar a vida não significa mudar de mestre ou de proprietário, mas mudar a relação de si para si e com as coisas; no fundo, delinear aqui e agora uma sociedade alternativa e de pessoas autónomas. A revolução será ontológica ou não será. O que descobrimos, em suma é uma verdade que o fundador da sociologia francesa E. Durkheim já concebera – o elo social mais duradouro é o que tem natureza religiosa. Porém, a religião libertou-se da sociedade e tornou-se uma questão privada. Contudo, realizando-se, o cristianismo regressou à sua autenticidade, depois de ter servido abusivamente de caução a diversos regimes monárquicos e autoritários. Mas não é somente ao distinguir Deus de César que o cristianismo se dissocia das hierarquias políticas, é propagando a ideia de uma igualdade fundamental entre os indivíduos que passam a ser tratados igualmente que se afirma. Livres e iguais, eis a divisa que adotamos no presente. Já a consideração de fraternais é outra questão. A fraternidade determina relações interpessoais mais fortes de confiança mútua e de convivialidade. Ivan Illich disse: “A sobrevivência da raça humana depende da sua redescoberta enquanto força social”. Ao contrário dos hegelianos e dos estruturalistas, Cornelius Castoriadis não pretende o saber absoluto. Para ele esse conceito é absurdo, uma vez que o pensamento não deixa de enquadrar novas realidades. Não aceitamos nem uma progressão linear nem sínteses prematuras, mas a compreensão da hermenêutica (como diria Paul Ricoeur), enquanto reinterpretação a partir de manifestações do ser estratificadas. Assim, celebrar a passagem do homo sapiens para o homo computans oculta a verdadeira questão que temos de assumir, que é: como mudar a nossa relação com o saber e o poder? E Cornelius Castoriadis sublinha o paradoxo das instituições. Estas só se realizam na história, mas uma vez realizadas procuram parar a história. O certo é que uma sociedade consciente de si mesma, apresenta-se simultaneamente como instituída e instituinte. De facto, somos os que têm como lei, fazer as suas próprias leis… E assim define-se o socialismo como “uma organização da sociedade que permite aos homens definirem eles mesmos o sentido que querem dar às suas vidas”. A sociedade produz-se através de conflitos e avança às apalpadelas. E Castoriadis dá como solução a seguinte: com a fragilidade da instituição dessacralizada, esta recupera essa legitimidade através de um dinamismo criador. Instituindo-se a ela mesma, a sociedade concilia a liberdade e o poder, legitimando o que de outro modo se torna injustificável. Se a autoridade resiste a ser revelada enquanto arbitrária, a sociedade autónoma não o receia. Daí a importância do conceito de autoinstituição da sociedade. Descartes dizia que a liberdade é a única qualidade pela qual um homem merece ser estimado, a única pela qual merece ser obedecido e respeitado. Mas onde encontrar uma referência? Ao céu dos valores ou na natureza humana? E donde vem essa energia de futuro? Da língua? Da história? De uma alma coletiva? Colocando-o à frente, atrás ou na base, é preciso um fundamento. Como substituir um Estado produtivista por uma sociedade convivial? O individualismo e o igualitarismo são irmãos gémeos e inimigos, mas só a autonomia como autoinstituição pode respeitar a diferença. Recordar a metáfora de George Orwell em “Mil Novecentos e Oitenta e Quatro” significa, no fundo, valorizar a autonomia e a dignidade humana, como verdadeira marca da liberdade…
Arthur M. Schlesinger Jr. (1917-2007), professor de História na Universidade de Harvard e conselheiro político prestigiado, escreveu em 1949 uma obra fundamental que merece ser lida nos dias de hoje. Poderá parecer estranho falar-se de um texto produzido pouco depois do fim da Grande Guerra, mas o certo é que só lendo-o podemos compreender as suas virtualidades e o perigo de muitas simplificações que se tornaram hoje moeda comum, pondo em causa o legado fundamental de três revoluções – inglesa, americana e francesa. João Carlos Espada lembrou, aliás, oportunamente há pouco, no Estoril Political Forum do Instituto de Estudos Políticos, a importância do tema suscitado pelo ensaísta norte-americano, em nome de uma necessária reflexão serena, centrada nas liberdades civis, nos processos constitucionais, na determinação democrática da economia e da política, em suma, no primado da lei, no Estado de Direito, nas legitimidades do voto e do exercício, bem como no pluralismo. Referimo-nos ao livro “The Vital Center: Politics of Freedom” (Boston: Houghton Miffin).
O “centro vital” para Schlesinger não se confundia, porém, nem com um meio-caminho nem com o centrismo. Significaria, sim, uma rigorosa ponderação dos valores éticos e dos interesses, na defesa intransigente da confiança e da coesão social. Uma sociedade livre deveria, assim, dedicar-se à proteção mesmo das visões impopulares. Por isso, as democracias não poderiam ser “iliberais”. A coerência obrigaria a considerar um compromisso social e institucional entre as forças políticas centrais que garantisse uma verdadeira mediação, em lugar de qualquer tentação providencialista. Quando hoje recordamos as impressões deixadas por Alexis de Tocqueville em “A Democracia na América”, percebemos que a sociedade é livre se fôr participante e responsável. Em linguagem dos nossos dias, estaria em causa uma clara demarcação relativamente ao que Hannah Arendt designou como totalitarismo, fosse de um sistema coletivista, fosse de um modelo fascista. A ideia de “centro vital” corresponderia, assim, à existência de condições de convergência, mas também de alternância política, com ponderação quer da liberdade individual, quer da equidade e regulação da sociedade. Daí a importância da herança política de Theodore e de Franklin D. Roosevelt, que Schlesinger vê continuada nas orientações estratégicas de John F. Kennedy e na política da “Nova Fonteira”, bem evidente na mobilização da sociedade para colocar um homem na Lua no final da década de sessenta. O “centro vital” é a um tempo o compromisso dos membros da sociedade em prol do bem comum, mas igualmente um consenso contra as tentações de pôr em causa a liberdade, a autonomia e a dignidade de todos, mesmo que tal aconteça entre adversários políticos. Além dos interesses próprios de cada comunidade, importa defender os interesses vitais comuns, onde se inserem o progresso partilhado, a justiça e a paz. É a perpetuidade das instituições que está em causa, que os nacionalismos populistas na prática desvalorizam. E, ao contrário do entendimento absurdo que o Presidente Norte-Americano tem advogado, o professor de Harvard foi muito claro na defesa da autonomia académica das Universidades e da Educação em geral, como modo de mobilização dos melhores e de consideração do pensamento, da ciência e da tecnologia, enquanto fatores essenciais de desenvolvimento humano, individual e comunitário.
Pierre Nora (1931-2025) foi um incansável mobilizador de ideias. Com Jacques Le Goff lançou o projeto editorial “Faire l’Histoire” de boa memória, fundou em 1980 a revista “Le Débat” com Marcel Gauchet e foi o grande animador de “Les Lieux de Mémoire” (1984). Todas as iniciativas que animou foram marcantes em vários domínios, no mundo do pensamento, na História, na vida política, na atenção à memória e ao património cultural, como realidades vivas. Foi um grande editor, primeiro na Julliard e fundamentalmente na Gallimard. Quando em 2020 foi anunciado o fecho de “Le Débat”, encerrou-se um ciclo não apenas no mundo das ideias, mas com repercussões na vida cívica. Ficou então um espaço em aberto, num tempo em que há um evidente vazio de valores e de ideais. Pierre Nora, membro da Academia Francesa, foi um cidadão ativo, com um pé nos livros e outro na vida política, um democrata para quem o pensamento e a ação vivem sempre juntos. Preocupou-se, por isso, com a perda de relevância das humanidades e do conhecimento da sociedade. “A História é a reconstrução sempre problemática e incompleta do que já não existe. A memória é um fenómeno sempre atual, um elo vivido com o presente eterno; a história é uma representação do passado. A memória, porque é afetiva e mágica, apenas se acomoda aos pormenores que a confortam; alimenta-se de recordações vagas, distantes, globais ou flutuantes, particulares ou simbólicas, sensíveis a todas as transferências, écrans, censuras e projeções”.
Foi este confronto que suscitou a iniciativa dos “lugares da memória”, como sinal de abertura, como antídoto ao fechamento dos nacionalismos e protecionismos. Assim, o estado da educação preocupava-o intensamente. Uma escola desfalecida, complacente com a fragmentação dos saberes e com a ilusão dos especialistas deveria ser objeto de uma ação capaz de fazer compreender o diálogo entre as raízes da memória e os desafios da mudança. Contra “o fim das humanidades”, importaria considerar a exigência da curiosidade e do conhecimento, para que a civilização da leitura não seja posta em causa e para que o encontro entre as culturas e civilizações não se faça de culpabilidades ou de ressentimentos e de análises anacrónicas, mas com o estudo rigoroso das diferentes circunstâncias históricas, seja na relação com o Islão, seja no colonialismo e na escravatura ou no caso da resistência arménia. Em vez de uma história global desenraizada, importaria considerar a complexidade dos diferentes fenómenos e comunidades. Daí Nora ter lançado a diversos historiadores, como Pierre Chaunu, Georges Duby, Jacques Le Goff e René Rémond, o desafio de se fazerem historiadores deles mesmos, em lugar de se apagarem diante do seu trabalho. Como disse Mário Mesquita, haveria que assegurar a transição entre as grandes narrativas, tantas vezes erigidas na pseudociência, e uma nova perspetiva assente no diálogo efetivo entre história e memória. Longe de uma ciência do passado, havia que considerar a História uma ciência do presente. “A História não deveria ser escrava da atualidade nem escrita sob o efeito de memórias concorrentes”. Em vez de um debate funesto sobre as identidades nacionais, importaria olhar a realidade humana como produto de diversas influências e não de qualquer exclusivismo, consciente das raízes históricas, da identidade e da diferença. “A História pertence a todos e a ninguém, o que lhe concede uma vocação universal”.
Em 21 de maio de 1994, nos Encontros Internacionais de Sintra, promovidos pela SEDES, Timothy Garton Ash falou-nos da “Sombra da História Europeia”, sob a presidência de António Sousa Gomes, com moderação de João Carlos Espada e comentários de Vítor Constâncio e Carlos Gaspar. O tema geral era “A Nova Fronteira de Europa” e estavam em causa os desafios do alargamento comunitário. Havia uma onda de esperança, mas o conferencista britânico lançou pertinentes alertas relativamente às incertezas e contra os excessos de otimismo, uma vez que a história europeia não poderia ser esquecida. O que importava? A ideia de União Económica e Monetária, a moeda única, o Banco Central Europeu, o Sistema Europeu de Bancos Centrais exigiam avanços políticos e institucionais. A moeda única obrigaria a transferências visíveis e inequívocas de soberania dos Estados-membros, o que exigiria abrir-se corajosamente o dossiê da União Política. Acabava o romance, começava a História. Vítor Constâncio falou de três cenários: a fragmentação maligna, a fragmentação benigna e a Europa com unidade e vontade política suficiente para agir na sociedade internacional. O que tivemos foram amostras dos dois primeiros cenários, e hoje ainda por cima uma guerra.
Trinta anos depois, ouvimos Timothy Garton Ash, referindo-se ao facto de estarmos perante um triplo choque: (a) o revanchismo de Putin e o regresso expansionista da velha guerra entre Estados, numa tentativa de reconstruir o império russo; (b) a emergência de um universo pós-ocidental, envolvendo a China, a Índia, a Turquia, o Brasil ou a África do Sul, que contornaram as sanções à Federação Russa, permitindo o crescimento desta, graças à utilização dos recursos de que dispõem; e (c) o choque Trump, com o não apoio á Europa, a atenção à Ásia, tendência para liquidar a Ucrânia, privilegiando tornar os EUA uma potencia transacional em vez da defesa de uma lógica liberal. Eis o pano de fundo, e a resposta necessária tem de corresponder ao conjunto, prevalecendo a dimensão nacional e fragmentária. Donald Trump tornou-se um adversário da Europa, quer no plano político, quer no plano económico, o que não significa ainda que os Estados Unidos e a sua opinião pública se tenham tornado adversários da Europa. Daí as necessidade de construir uma Europa capaz de se defender a si própria, mantendo os elos atlantistas. Precisaremos para T. Garton Ash de uma síntese entre os pensamentos de De Gaulle e de Churchill. Na OTAN, os europeus deverão ter um papel acrescido, em detrimento da quase exclusiva influência americana. Assim, a dissuasão mundial futura obrigará a uma maior consideração franco-britânica no equilíbrio nuclear. Apesar da tragédia do Brexit, há agora uma oportunidade de correção através da integração do Reino Unido nos programas europeus de defesa. Enquanto a Alemanha e a Polónia deverão ter também um papel fundamental. “A grande questão é unir tudo isto, para reduzir os efeitos negativos da fragmentação.” (Le Monde, 23.3.2025). Daí um otimismo moderado do historiador. Investir mais na defesa não é um bem, mas uma necessidade. Precisamos, de facto, de um estímulo keynesiano, que anime a economia e não sacrifique o modelo social. Importa, por isso, investir corajosamente, utilizar os bens russos congelados e contrair créditos mutualizados. A industrialização poderá facilitar a inovação, com benefício para a coesão social. E assim somos chamados à coragem.
Há males que vêm por bem, como diz o povo. O regresso dos fantasmas do protecionismo americano tem precedentes, lembramo-nos da História, cada vez mais esquecida. E temos de recordar, no sentido inverso, Franklin Delano Roosevelt, que em aliança com Winston Churchill, foi o primeiro responsável por um momento decisivo de afirmação da influência americana no mundo. Quando hoje se fala de regressar a um passado glorioso que outra lembrança poderá haver senão a dessa “Pax Americana”? Por isso, a tentativa de destruição dessa herança constitui uma contradição nos termos e um jogo perigoso, de efeitos imprevisíveis. Infelizmente, lê-se muito pouco, mesmo nas mais altas instâncias, e esse desconhecimento não tem apenas a ver com a dimensão histórica, mas também com o reconhecimento científico e cultural da América, como País de acolhimento. Lorde Keynes com as suas análises argutas da realidade económica foi o grande inspirador do “New Deal”. Hoje, pelo contrário, parece prevalecer o método das impressões gerais, que dificilmente pode funcionar. Pode contentar momentaneamente um eleitorado sedento de pão e circo, mas no largo prazo está condenado ao fracasso. Eis o ponto em que nos encontramos. A Europa está confrontada com responsabilidades, que não se traduzem apenas no mercado das armas, mas exigem a adoção de uma nova dissuasão num mundo de polaridades difusas, com recurso ao método das cooperações reforçadas, garantindo que possam avançar os Estados que quiserem e estiverem melhor preparados.
O guarda-chuva protetor americano e a iniciativa Marshall foram importantes na reconstrução do mundo destruído por duas guerras mundiais. Todos beneficiámos. Mas hoje os tempos são outros, importando não voltar aos erros que conduziram ao desastre de há um século. Lembramo-nos da afirmação de Jean Monnet: “sempre pensei que a Europa far-se-ia nas crises e que se construirá pela soma das soluções que encontrarmos para essas crises”. Este é um desses momentos cruciais, sendo necessário mobilizar capacidades para chegar onde se concentram as ameaças, ou seja, a leste, desde a atitude assumida pelo governo russo até à retirada norte-americana. Daí que tenha razão Fareed Zakaria quando diz que “a Europa deve reforçar os seus elos, pôr em prática uma política de defesa e externa mais unificada, fazer crescer as despesas em matéria de segurança. Todos o sabem. Contudo, a única questão que fica por saber é se há vontade política”. E os dirigentes europeus ainda procuram uma receita que lhes permita convencer os seus eleitores de que esse é o caminho da sobrevivência. No entanto, a conjuntura é extremamente difícil. Mudam as circunstâncias e, ao contrário da prática dos últimos cinquenta anos, o sistema internacional passou a ser dominado pelos instintos de um Presidente norte-americano, que não tem uma estratégia, mas segue a tendência dos poderes de facto, que se desenvolvem fora dos quadros do Direito Internacional. Surpreendentemente, Vladimir Putin, que avançou para a invasão da Ucrânia em 2022, no pressuposto errado de uma deposição do governo de Kyiv rápida e imediata, inebriado pelas operações da Chechénia, da Georgia e da Crimeia, passou agora a contar com a cumplicidade de Trump… O impasse reveste-se da maior gravidade. A paz torna-se necessária e a Europa está sob a exigência da recusa da irrelevância. Se houver uma resposta consistente e durável talvez os males venham por bem…
A superioridade da democracia é muitas vezes atribuída ao papel que a discussão, a participação generalizada dos interessados e o confronto de opiniões têm nela. A emoção das grandes decisões e das grandes opiniões dá-lhe muitas vezes o aspecto de um jogo divertido e interessante; e tem ainda por cima a vantagem de, ao contrário do futebol dos Aztecas, não requerer o uso de cabeças humanas. Esta ideia geral sobre a superioridade da democracia coexiste porém com uma noção generalizada, mais sombria, sobre o pouco que se pode esperar de uma discussão e o pouco que as opiniões mudam por causa do confronto de opiniões; e com a noção aparentemente oposta mas porventura ainda mais sombria de que se a participação dos interessados nas decisões fosse total os resultados seriam os melhores para todos.
Pelo contrário, uma vantagem não negligenciável da democracia parece-me antes ser a de não exigir a discussão permanente, a participação generalizada dos interessados, ou o confronto de opiniões; e de os substituir pelo voto periódico. O processo tem inúmeras virtudes. Uma das principais é a de, pelo facto de, salvo em regimes mais duvidosos, o voto não ser obrigatório, as pessoas terem a possibilidade de não votar. E essa é a principal diferença entre a democracia e as variadas formas de tirania: a participação dos interessados nas decisões não é requerida; a falta de interesse não é punida; e ninguém é excluído por não mostrar as virtudes cívicas relevantes. A baixa afluência às urnas lembra-me países que admiro e enche-me quase sempre de alegria – e a alta afluência lembra-me países que não admiro, e enche-me quase sempre de preocupação.
Esta ideia de democracia supõe uma ideia particular de política e de governação. Por exemplo, contraria a ideia de que a política e a governação sejam uma forma de entretenimento, de manipulação, ou dependam demasiado do amor dos governados; diminui a importância que nela têm os grandes desígnios, as epopeias públicas e, sobretudo, as frases memoráveis. Chama, pelo contrário, a atenção para o papel de uma série de actividades baças e, apresso-me acrescentar, completamente legais: decisões técnicas, com certeza, mas também mudanças imperceptíveis em leis e soluções baseadas em compromissos; dilemas que são vividos sem fingir que se conhece a solução, e que são expressos por memorandos de prosa detestável; alterações de opinião sobre assuntos que só quatro seres humanos alguma vez perceberam; momentos de improvisação, segredos e ignorância; e muitas horas passadas cortesmente a falar com pessoas com quem nunca por livre escolha se beberia um café. A isto tudo um autor chamou “governação sem graça.” “A falta de graça”, como ele observou, “deve ser o nosso lema”.
Miguel Tamen Escreve de acordo com a antiga ortografia
Quando Robert Schuman, ministro da França, proferiu em 9 de maio de 1950 a célebre declaração que lançaria as bases da Comunidade Europeia, fê-lo ciente de que seria necessário ir além dos grandes princípios, propondo passos concretos. De facto, a paz mundial apenas poderia ser salvaguardada com um esforço criativo que estivesse à altura dos riscos que espreitavam. Havia que evitar os erros de Versalhes em 1919. “A contribuição que uma Europa organizada e dinâmica pode dar à civilização é indispensável para a manutenção de relações pacíficas”. Contudo, um compromisso europeu não se constrói de uma só vez, nem segundo um plano único. Essa construção far-se-ia através de realizações, capazes de criar “uma solidariedade de facto”. Em vez das “guerras civis” europeias, haveria que promover uma união de nações livres e soberanas, reunidas por um interesse vital comum - a reconstrução de um continente dizimado pela guerra. Hoje, porém, estamos sob a ameaça da irrelevância.
Vivemos até aqui sob a proteção dos Estados Unidos, mas esse tempo chegou ao fim duradouramente. Há setenta e cinco anos, Schuman propôs “subordinar o conjunto da produção franco-alemã de carvão e de aço a uma Alta Autoridade comum, numa organização aberta à participação dos outros países da Europa”. Tal coordenação de produções garantiria o estabelecimento de bases comuns de paz e desenvolvimento, no que seria a primeira etapa de uma federação europeia, “mudando o destino de regiões que há muito se dedicam ao fabrico de armas de guerra e delas têm sido as principais vítimas”. Contudo, a lógica das armas tem de ser instrumental relativamente à coesão social e à lei. E o caminho então seguido foi prometedor. Porém, agora tal sentido sofreu um perigoso abalo, perante uma profunda alteração de circunstâncias, ditada pela paradoxal convergência perversa entre os Estados Unidos e a Federação Russa, fruto do conflito na Ucrânia.
Assim, a declaração de Robert Schuman torna-se inesperadamente atual, uma vez que põe sobre a mesa não só a necessidade de uma visão comum quanto à defesa e segurança da Europa, mas também a exigência de uma nova perspetiva quanto à salvaguarda dos interesses e valores comuns. Para além de boas intenções, importa articular objetivos realistas que coloquem nos dois pratos da balança a dissuasão na defesa militar e estratégica e a coesão económica e social. Desvalorizar a Europa social constituirá um caminho suicida que só agravará a irrelevância. A transição digital e a defesa do meio ambiente, a sustentabilidade e a equidade, o desenvolvimento e o respeito dos direitos humanos obrigam a ações consistentes e continuadas no sentido da afirmação do primado da lei e de uma partilha de responsabilidades no mundo global. Em lugar de um entendimento imperial das relações internacionais ou de uma perigosa lógica de conquista do espaço vital, urge pensar na Europa não como fortaleza ou espaço decadente, mas como um polo regulador e mediador em nome do desenvolvimento humano. A paz mundial apenas poderá ser salvaguardada através de um esforço criativo que esteja à altura dos acontecimentos. A Ucrânia é hoje um símbolo da Europa contemporânea, encruzilhada do ocidente e do oriente e reminiscência de dois impérios. E o renascimento da União Europeia obriga a uma convergência inteligente em que os interesses e os valores éticos comuns prevaleçam.
Em memória do meu amigo Manuel Sérgio, pensador da dignidade humana.
Recebi sempre de Mário Soares as melhores provas de amizade e estima pessoal, num período largo sem sombras e com provas de confiança inexcedíveis. O mesmo devo dizer de Maria de Jesus Barroso, que foi sempre de uma generosidade a toda a prova. Trabalhei de perto com o então Presidente da República na sua Casa Civil na Assessoria Política e fui membro da Comissão Política do MASP em 1985 e 1991 e porta-voz nesta última campanha. Estive na administração da Fundação Mário Soares, a cujos órgãos continuo a pertencer. Foram, assim, quarenta anos de uma relação que jamais esquecerei. Tive oportunidade de recordar em testemunhos pessoais esses tempos, ficando muito por dizer do que usufrui dessa amizade. Em Belém, almoçávamos todas as semanas e devo dizer que havia uma verdadeira partilha de pontos de vista e de ideias. Mário Soares ouvia atentamente, e deixava claro o seu ponto de vista – cuidava da liberdade como o contrário da indiferença e do relativismo. Os valores republicanos ilustravam o culto da liberdade de consciência.
Mário Soares sempre teve uma preocupação com a questão religiosa que envenenara a Primeira República. E lembro a relação saudável que estabeleceu com o Cardeal-Patriarca D. António Ribeiro, crucial para a institucionalização da democracia, aliada ao contacto, vindo da resistência, com D. António Ferreira Gomes, bispo do Porto, sem esquecer a admiração que tinha por D. Alexandre Nascimento, futuro Cardeal de Luanda e a amizade profética com António Alçada Baptista e os democratas católicos. A sua coerência era exemplar, não esquecendo o equilíbrio nas relações institucionais importantes. Sophia de Mello Breyner falava de uma coragem que nos dava ânimo. E as suas casas eram lugares de hospitalidade plena e recordo muitas horas de genuíno encontro, no Campo Grande, em Nafarros ou no Vau. Eram momentos extraordinários. Muito se tem dito sobre Mário Soares, no entanto, salvo o testemunho do meu amigo José Manuel dos Santos, poucas têm sido as referências ao escritor. E a verdade é que estamos perante alguém que viveu sempre a paixão da escrita e da grande literatura. Num passeio pelos alfarrabistas da Rua da Misericórdia ofereceu-me um dia a biografia de Garrett, de Gomes de Amorim, e esse foi motivo para falarmos longamente sobre o dramaturgo e sobre Herculano, à sombra de cujo busto conversávamos em Nafarros. Leiam-se o “Portugal Amordaçado”, as “Incursões Literárias” ou “Um Político Assume-se” – aí se encontra, numa escrita clara e atraente, a demonstração da ligação incindível entre a responsabilidade cívica e a paixão literária. Desde Péricles, Tucídides e Cícero, de Montesquieu, Rousseau, Voltaire, Burke ou Tocqueville, até Tolstoi resulta a ideia de que nada há de mais digno do que o compromisso com a polis na sua expressão mais nobre. Mário Soares foi um grande escritor e o futuro confirmá-lo-á. A proximidade dos acontecimentos não permitiu aferir plenamente essa qualidade, de quem teria gostado de ser romancista. Contudo, a vida cultural e literária encontra grandes políticos que se singularizam na escrita. E o tempo revelará para Soares essa faceta, do mesmo modo que hoje, ao relermos o diálogo entre Garrett e José Estevão sobre o Porto Pireu, temos ecos do mais puro uso da língua como sinal de cidadania.
As lições da História estão sempre envoltas em incerteza e mistério. O impasse que hoje se vive no mundo não constitui exceção e a sabedoria ensina-nos que o mais elementar realismo obriga a considerar as circunstâncias tal como são e não como desejaríamos que fossem. A recente eleição presidencial nos Estados Unidos aponta para um tempo de fragmentação e protecionismo, e não de multilateralismo, com novas responsabilidades para a Europa, que deverá contar mais consigo própria com o fim do equilíbrio herdado da segunda guerra mundial. Por outro lado, os efeitos da queda do império soviético, após os acontecimentos de 1989, deram lugar ao projeto do Presidente Vladimir Putin de reeditar o velho império czarista. Contudo, os fantasmas de Pedro o Grande e de Catarina II voltaram à ribalta, pelas piores razões, porque o véu da ignorância esconde o que ambos procuraram significar no seu tempo, pela afirmação de um Estado respeitado na ordem internacional pelos seus princípios. Como disse Hélène Carrère d’Encausse, Catarina a Grande quis associar a sociedade ao Estado por todos os meios. Hoje, assistimos exatamente à tendência contrária nos impérios remanescentes, que apresentam sinais de decadência e a expressão evidente do cansaço.
Eis que não podemos tirar conclusões precipitadas, porque não há vitórias ou derrotas por antecipação - a verdade é que nos deparamos com uma longa guerra com efeitos sempre devastadores, havendo que lhe pôr termo. As tentativas de renascimento póstumo de velhas soluções são invariavelmente, votadas a poderosos fatores contraditórios que correspondem a uma tendência inexorável de declínio. Também as dúvidas norte-americanas dão sinais de mimetismo e de simetria relativamente aos antagonistas, pelas piores razões, como se de um espelho se tratasse, o que explica surpreendentes solidariedades negativas, que põem em causa os valores fundamentais da razão e do direito. A “realpolitik” de Catarina, nos cerca de trinta e cinco anos de reinado, procurou basear-se na afirmação de uma legitimidade racional, para que a Europa pudesse contar com ela. Mas tal não é entendido pelos sucessores de hoje. Pior para eles. De facto, sabia que era preciso dar tempo ao tempo e sobretudo ponderar bem os fatores que condicionam qualquer ação humana: o caminho, o tempo, o terreno, a liderança e as regras – segundo a velha lição de Sun Zu, o estratega e filósofo do período dos Reinos Combatentes do Império chinês em meados do século V a.C.. O caminho tinha de ser nítido. O tempo devia ser certo. O terreno bem escolhido. A liderança determinada. As regras justas. E a confiança era condição absoluta para o bom governo. Sem confiança até um país rico e bem guardado está fadado à ruína. “Nunca houve uma guerra longa que fosse benéfica para qualquer dos reinos envolvidos”. A czarina construiu o seu governo neste entendimento. Mas hoje há uma grande cegueira. E o milenar império da Ásia oriental espera com enorme paciência.