Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
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Em 21 de maio de 1994, nos Encontros Internacionais de Sintra, promovidos pela SEDES, Timothy Garton Ash falou-nos da “Sombra da História Europeia”, sob a presidência de António Sousa Gomes, com moderação de João Carlos Espada e comentários de Vítor Constâncio e Carlos Gaspar. O tema geral era “A Nova Fronteira de Europa” e estavam em causa os desafios do alargamento comunitário. Havia uma onda de esperança, mas o conferencista britânico lançou pertinentes alertas relativamente às incertezas e contra os excessos de otimismo, uma vez que a história europeia não poderia ser esquecida. O que importava? A ideia de União Económica e Monetária, a moeda única, o Banco Central Europeu, o Sistema Europeu de Bancos Centrais exigiam avanços políticos e institucionais. A moeda única obrigaria a transferências visíveis e inequívocas de soberania dos Estados-membros, o que exigiria abrir-se corajosamente o dossiê da União Política. Acabava o romance, começava a História. Vítor Constâncio falou de três cenários: a fragmentação maligna, a fragmentação benigna e a Europa com unidade e vontade política suficiente para agir na sociedade internacional. O que tivemos foram amostras dos dois primeiros cenários, e hoje ainda por cima uma guerra.
Trinta anos depois, ouvimos Timothy Garton Ash, referindo-se ao facto de estarmos perante um triplo choque: (a) o revanchismo de Putin e o regresso expansionista da velha guerra entre Estados, numa tentativa de reconstruir o império russo; (b) a emergência de um universo pós-ocidental, envolvendo a China, a Índia, a Turquia, o Brasil ou a África do Sul, que contornaram as sanções à Federação Russa, permitindo o crescimento desta, graças à utilização dos recursos de que dispõem; e (c) o choque Trump, com o não apoio á Europa, a atenção à Ásia, tendência para liquidar a Ucrânia, privilegiando tornar os EUA uma potencia transacional em vez da defesa de uma lógica liberal. Eis o pano de fundo, e a resposta necessária tem de corresponder ao conjunto, prevalecendo a dimensão nacional e fragmentária. Donald Trump tornou-se um adversário da Europa, quer no plano político, quer no plano económico, o que não significa ainda que os Estados Unidos e a sua opinião pública se tenham tornado adversários da Europa. Daí as necessidade de construir uma Europa capaz de se defender a si própria, mantendo os elos atlantistas. Precisaremos para T. Garton Ash de uma síntese entre os pensamentos de De Gaulle e de Churchill. Na OTAN, os europeus deverão ter um papel acrescido, em detrimento da quase exclusiva influência americana. Assim, a dissuasão mundial futura obrigará a uma maior consideração franco-britânica no equilíbrio nuclear. Apesar da tragédia do Brexit, há agora uma oportunidade de correção através da integração do Reino Unido nos programas europeus de defesa. Enquanto a Alemanha e a Polónia deverão ter também um papel fundamental. “A grande questão é unir tudo isto, para reduzir os efeitos negativos da fragmentação.” (Le Monde, 23.3.2025). Daí um otimismo moderado do historiador. Investir mais na defesa não é um bem, mas uma necessidade. Precisamos, de facto, de um estímulo keynesiano, que anime a economia e não sacrifique o modelo social. Importa, por isso, investir corajosamente, utilizar os bens russos congelados e contrair créditos mutualizados. A industrialização poderá facilitar a inovação, com benefício para a coesão social. E assim somos chamados à coragem.
Há males que vêm por bem, como diz o povo. O regresso dos fantasmas do protecionismo americano tem precedentes, lembramo-nos da História, cada vez mais esquecida. E temos de recordar, no sentido inverso, Franklin Delano Roosevelt, que em aliança com Winston Churchill, foi o primeiro responsável por um momento decisivo de afirmação da influência americana no mundo. Quando hoje se fala de regressar a um passado glorioso que outra lembrança poderá haver senão a dessa “Pax Americana”? Por isso, a tentativa de destruição dessa herança constitui uma contradição nos termos e um jogo perigoso, de efeitos imprevisíveis. Infelizmente, lê-se muito pouco, mesmo nas mais altas instâncias, e esse desconhecimento não tem apenas a ver com a dimensão histórica, mas também com o reconhecimento científico e cultural da América, como País de acolhimento. Lorde Keynes com as suas análises argutas da realidade económica foi o grande inspirador do “New Deal”. Hoje, pelo contrário, parece prevalecer o método das impressões gerais, que dificilmente pode funcionar. Pode contentar momentaneamente um eleitorado sedento de pão e circo, mas no largo prazo está condenado ao fracasso. Eis o ponto em que nos encontramos. A Europa está confrontada com responsabilidades, que não se traduzem apenas no mercado das armas, mas exigem a adoção de uma nova dissuasão num mundo de polaridades difusas, com recurso ao método das cooperações reforçadas, garantindo que possam avançar os Estados que quiserem e estiverem melhor preparados.
O guarda-chuva protetor americano e a iniciativa Marshall foram importantes na reconstrução do mundo destruído por duas guerras mundiais. Todos beneficiámos. Mas hoje os tempos são outros, importando não voltar aos erros que conduziram ao desastre de há um século. Lembramo-nos da afirmação de Jean Monnet: “sempre pensei que a Europa far-se-ia nas crises e que se construirá pela soma das soluções que encontrarmos para essas crises”. Este é um desses momentos cruciais, sendo necessário mobilizar capacidades para chegar onde se concentram as ameaças, ou seja, a leste, desde a atitude assumida pelo governo russo até à retirada norte-americana. Daí que tenha razão Fareed Zakaria quando diz que “a Europa deve reforçar os seus elos, pôr em prática uma política de defesa e externa mais unificada, fazer crescer as despesas em matéria de segurança. Todos o sabem. Contudo, a única questão que fica por saber é se há vontade política”. E os dirigentes europeus ainda procuram uma receita que lhes permita convencer os seus eleitores de que esse é o caminho da sobrevivência. No entanto, a conjuntura é extremamente difícil. Mudam as circunstâncias e, ao contrário da prática dos últimos cinquenta anos, o sistema internacional passou a ser dominado pelos instintos de um Presidente norte-americano, que não tem uma estratégia, mas segue a tendência dos poderes de facto, que se desenvolvem fora dos quadros do Direito Internacional. Surpreendentemente, Vladimir Putin, que avançou para a invasão da Ucrânia em 2022, no pressuposto errado de uma deposição do governo de Kyiv rápida e imediata, inebriado pelas operações da Chechénia, da Georgia e da Crimeia, passou agora a contar com a cumplicidade de Trump… O impasse reveste-se da maior gravidade. A paz torna-se necessária e a Europa está sob a exigência da recusa da irrelevância. Se houver uma resposta consistente e durável talvez os males venham por bem…
A superioridade da democracia é muitas vezes atribuída ao papel que a discussão, a participação generalizada dos interessados e o confronto de opiniões têm nela. A emoção das grandes decisões e das grandes opiniões dá-lhe muitas vezes o aspecto de um jogo divertido e interessante; e tem ainda por cima a vantagem de, ao contrário do futebol dos Aztecas, não requerer o uso de cabeças humanas. Esta ideia geral sobre a superioridade da democracia coexiste porém com uma noção generalizada, mais sombria, sobre o pouco que se pode esperar de uma discussão e o pouco que as opiniões mudam por causa do confronto de opiniões; e com a noção aparentemente oposta mas porventura ainda mais sombria de que se a participação dos interessados nas decisões fosse total os resultados seriam os melhores para todos.
Pelo contrário, uma vantagem não negligenciável da democracia parece-me antes ser a de não exigir a discussão permanente, a participação generalizada dos interessados, ou o confronto de opiniões; e de os substituir pelo voto periódico. O processo tem inúmeras virtudes. Uma das principais é a de, pelo facto de, salvo em regimes mais duvidosos, o voto não ser obrigatório, as pessoas terem a possibilidade de não votar. E essa é a principal diferença entre a democracia e as variadas formas de tirania: a participação dos interessados nas decisões não é requerida; a falta de interesse não é punida; e ninguém é excluído por não mostrar as virtudes cívicas relevantes. A baixa afluência às urnas lembra-me países que admiro e enche-me quase sempre de alegria – e a alta afluência lembra-me países que não admiro, e enche-me quase sempre de preocupação.
Esta ideia de democracia supõe uma ideia particular de política e de governação. Por exemplo, contraria a ideia de que a política e a governação sejam uma forma de entretenimento, de manipulação, ou dependam demasiado do amor dos governados; diminui a importância que nela têm os grandes desígnios, as epopeias públicas e, sobretudo, as frases memoráveis. Chama, pelo contrário, a atenção para o papel de uma série de actividades baças e, apresso-me acrescentar, completamente legais: decisões técnicas, com certeza, mas também mudanças imperceptíveis em leis e soluções baseadas em compromissos; dilemas que são vividos sem fingir que se conhece a solução, e que são expressos por memorandos de prosa detestável; alterações de opinião sobre assuntos que só quatro seres humanos alguma vez perceberam; momentos de improvisação, segredos e ignorância; e muitas horas passadas cortesmente a falar com pessoas com quem nunca por livre escolha se beberia um café. A isto tudo um autor chamou “governação sem graça.” “A falta de graça”, como ele observou, “deve ser o nosso lema”.
Miguel Tamen Escreve de acordo com a antiga ortografia
Quando Robert Schuman, ministro da França, proferiu em 9 de maio de 1950 a célebre declaração que lançaria as bases da Comunidade Europeia, fê-lo ciente de que seria necessário ir além dos grandes princípios, propondo passos concretos. De facto, a paz mundial apenas poderia ser salvaguardada com um esforço criativo que estivesse à altura dos riscos que espreitavam. Havia que evitar os erros de Versalhes em 1919. “A contribuição que uma Europa organizada e dinâmica pode dar à civilização é indispensável para a manutenção de relações pacíficas”. Contudo, um compromisso europeu não se constrói de uma só vez, nem segundo um plano único. Essa construção far-se-ia através de realizações, capazes de criar “uma solidariedade de facto”. Em vez das “guerras civis” europeias, haveria que promover uma união de nações livres e soberanas, reunidas por um interesse vital comum - a reconstrução de um continente dizimado pela guerra. Hoje, porém, estamos sob a ameaça da irrelevância.
Vivemos até aqui sob a proteção dos Estados Unidos, mas esse tempo chegou ao fim duradouramente. Há setenta e cinco anos, Schuman propôs “subordinar o conjunto da produção franco-alemã de carvão e de aço a uma Alta Autoridade comum, numa organização aberta à participação dos outros países da Europa”. Tal coordenação de produções garantiria o estabelecimento de bases comuns de paz e desenvolvimento, no que seria a primeira etapa de uma federação europeia, “mudando o destino de regiões que há muito se dedicam ao fabrico de armas de guerra e delas têm sido as principais vítimas”. Contudo, a lógica das armas tem de ser instrumental relativamente à coesão social e à lei. E o caminho então seguido foi prometedor. Porém, agora tal sentido sofreu um perigoso abalo, perante uma profunda alteração de circunstâncias, ditada pela paradoxal convergência perversa entre os Estados Unidos e a Federação Russa, fruto do conflito na Ucrânia.
Assim, a declaração de Robert Schuman torna-se inesperadamente atual, uma vez que põe sobre a mesa não só a necessidade de uma visão comum quanto à defesa e segurança da Europa, mas também a exigência de uma nova perspetiva quanto à salvaguarda dos interesses e valores comuns. Para além de boas intenções, importa articular objetivos realistas que coloquem nos dois pratos da balança a dissuasão na defesa militar e estratégica e a coesão económica e social. Desvalorizar a Europa social constituirá um caminho suicida que só agravará a irrelevância. A transição digital e a defesa do meio ambiente, a sustentabilidade e a equidade, o desenvolvimento e o respeito dos direitos humanos obrigam a ações consistentes e continuadas no sentido da afirmação do primado da lei e de uma partilha de responsabilidades no mundo global. Em lugar de um entendimento imperial das relações internacionais ou de uma perigosa lógica de conquista do espaço vital, urge pensar na Europa não como fortaleza ou espaço decadente, mas como um polo regulador e mediador em nome do desenvolvimento humano. A paz mundial apenas poderá ser salvaguardada através de um esforço criativo que esteja à altura dos acontecimentos. A Ucrânia é hoje um símbolo da Europa contemporânea, encruzilhada do ocidente e do oriente e reminiscência de dois impérios. E o renascimento da União Europeia obriga a uma convergência inteligente em que os interesses e os valores éticos comuns prevaleçam.
Em memória do meu amigo Manuel Sérgio, pensador da dignidade humana.
Recebi sempre de Mário Soares as melhores provas de amizade e estima pessoal, num período largo sem sombras e com provas de confiança inexcedíveis. O mesmo devo dizer de Maria de Jesus Barroso, que foi sempre de uma generosidade a toda a prova. Trabalhei de perto com o então Presidente da República na sua Casa Civil na Assessoria Política e fui membro da Comissão Política do MASP em 1985 e 1991 e porta-voz nesta última campanha. Estive na administração da Fundação Mário Soares, a cujos órgãos continuo a pertencer. Foram, assim, quarenta anos de uma relação que jamais esquecerei. Tive oportunidade de recordar em testemunhos pessoais esses tempos, ficando muito por dizer do que usufrui dessa amizade. Em Belém, almoçávamos todas as semanas e devo dizer que havia uma verdadeira partilha de pontos de vista e de ideias. Mário Soares ouvia atentamente, e deixava claro o seu ponto de vista – cuidava da liberdade como o contrário da indiferença e do relativismo. Os valores republicanos ilustravam o culto da liberdade de consciência.
Mário Soares sempre teve uma preocupação com a questão religiosa que envenenara a Primeira República. E lembro a relação saudável que estabeleceu com o Cardeal-Patriarca D. António Ribeiro, crucial para a institucionalização da democracia, aliada ao contacto, vindo da resistência, com D. António Ferreira Gomes, bispo do Porto, sem esquecer a admiração que tinha por D. Alexandre Nascimento, futuro Cardeal de Luanda e a amizade profética com António Alçada Baptista e os democratas católicos. A sua coerência era exemplar, não esquecendo o equilíbrio nas relações institucionais importantes. Sophia de Mello Breyner falava de uma coragem que nos dava ânimo. E as suas casas eram lugares de hospitalidade plena e recordo muitas horas de genuíno encontro, no Campo Grande, em Nafarros ou no Vau. Eram momentos extraordinários. Muito se tem dito sobre Mário Soares, no entanto, salvo o testemunho do meu amigo José Manuel dos Santos, poucas têm sido as referências ao escritor. E a verdade é que estamos perante alguém que viveu sempre a paixão da escrita e da grande literatura. Num passeio pelos alfarrabistas da Rua da Misericórdia ofereceu-me um dia a biografia de Garrett, de Gomes de Amorim, e esse foi motivo para falarmos longamente sobre o dramaturgo e sobre Herculano, à sombra de cujo busto conversávamos em Nafarros. Leiam-se o “Portugal Amordaçado”, as “Incursões Literárias” ou “Um Político Assume-se” – aí se encontra, numa escrita clara e atraente, a demonstração da ligação incindível entre a responsabilidade cívica e a paixão literária. Desde Péricles, Tucídides e Cícero, de Montesquieu, Rousseau, Voltaire, Burke ou Tocqueville, até Tolstoi resulta a ideia de que nada há de mais digno do que o compromisso com a polis na sua expressão mais nobre. Mário Soares foi um grande escritor e o futuro confirmá-lo-á. A proximidade dos acontecimentos não permitiu aferir plenamente essa qualidade, de quem teria gostado de ser romancista. Contudo, a vida cultural e literária encontra grandes políticos que se singularizam na escrita. E o tempo revelará para Soares essa faceta, do mesmo modo que hoje, ao relermos o diálogo entre Garrett e José Estevão sobre o Porto Pireu, temos ecos do mais puro uso da língua como sinal de cidadania.
As lições da História estão sempre envoltas em incerteza e mistério. O impasse que hoje se vive no mundo não constitui exceção e a sabedoria ensina-nos que o mais elementar realismo obriga a considerar as circunstâncias tal como são e não como desejaríamos que fossem. A recente eleição presidencial nos Estados Unidos aponta para um tempo de fragmentação e protecionismo, e não de multilateralismo, com novas responsabilidades para a Europa, que deverá contar mais consigo própria com o fim do equilíbrio herdado da segunda guerra mundial. Por outro lado, os efeitos da queda do império soviético, após os acontecimentos de 1989, deram lugar ao projeto do Presidente Vladimir Putin de reeditar o velho império czarista. Contudo, os fantasmas de Pedro o Grande e de Catarina II voltaram à ribalta, pelas piores razões, porque o véu da ignorância esconde o que ambos procuraram significar no seu tempo, pela afirmação de um Estado respeitado na ordem internacional pelos seus princípios. Como disse Hélène Carrère d’Encausse, Catarina a Grande quis associar a sociedade ao Estado por todos os meios. Hoje, assistimos exatamente à tendência contrária nos impérios remanescentes, que apresentam sinais de decadência e a expressão evidente do cansaço.
Eis que não podemos tirar conclusões precipitadas, porque não há vitórias ou derrotas por antecipação - a verdade é que nos deparamos com uma longa guerra com efeitos sempre devastadores, havendo que lhe pôr termo. As tentativas de renascimento póstumo de velhas soluções são invariavelmente, votadas a poderosos fatores contraditórios que correspondem a uma tendência inexorável de declínio. Também as dúvidas norte-americanas dão sinais de mimetismo e de simetria relativamente aos antagonistas, pelas piores razões, como se de um espelho se tratasse, o que explica surpreendentes solidariedades negativas, que põem em causa os valores fundamentais da razão e do direito. A “realpolitik” de Catarina, nos cerca de trinta e cinco anos de reinado, procurou basear-se na afirmação de uma legitimidade racional, para que a Europa pudesse contar com ela. Mas tal não é entendido pelos sucessores de hoje. Pior para eles. De facto, sabia que era preciso dar tempo ao tempo e sobretudo ponderar bem os fatores que condicionam qualquer ação humana: o caminho, o tempo, o terreno, a liderança e as regras – segundo a velha lição de Sun Zu, o estratega e filósofo do período dos Reinos Combatentes do Império chinês em meados do século V a.C.. O caminho tinha de ser nítido. O tempo devia ser certo. O terreno bem escolhido. A liderança determinada. As regras justas. E a confiança era condição absoluta para o bom governo. Sem confiança até um país rico e bem guardado está fadado à ruína. “Nunca houve uma guerra longa que fosse benéfica para qualquer dos reinos envolvidos”. A czarina construiu o seu governo neste entendimento. Mas hoje há uma grande cegueira. E o milenar império da Ásia oriental espera com enorme paciência.
Tempos houve em que as intervenções no Parlamento constituíam momentos profundamente sentidos pelos cidadãos, a que assistiam com vivo interesse. Se estudarmos o século XIX e o início do século XX, encontramos bons exemplos dessa vivência cívica, que nos transportava à antiguidade clássica, de Péricles a Cícero. Hoje relemos com gosto tais marcos fundamentais da história humana. Junto da Assembleia da República temos a figura de José Estevão Coelho de Magalhães, único deputado com direito a ser representado de corpo inteiro, autor de intervenções míticas. Perguntado um dia sobre se se considerava o primeiro dos oradores parlamentares, ele indicou outro nome, indiscutivelmente célebre, com quem terçou armas retóricas em S. Bento e que se elevou à qualidade de interlocutor maior. Referia-se a Almeida Garrett e ainda hoje as palavras de ambos merecem lembrança – são célebres os discursos que ficaram conhecidos como do Porto Pireu, e que chegaram a fazer parte das seletas escolares.
Em fevereiro de 1840, na vigência da Constituição de 1838 e sob um governo de setembristas moderados, José Estevão evocou aquele louco que em Atenas se declarou dono do Porto Pireu e de todos os navios que nele entravam. Criticava, assim, a bancada do governo ordeiro em funções, que pretenderia ter o exclusivo da razão. E o que estava em causa era a necessidade de uma partilha de responsabilidades, em nome de uma governação para todos. Coube a Garrett considerar em resposta que ser ordeiro significava cooperar, denunciando que apenas não o queriam os ‘anónimos conspiradores’ que viviam ‘cobardemente agachados’ em ‘escondidas águas-furtadas’. Haveria que salvar a ordem constitucional, o que pressupunha um entendimento. Infelizmente não houve tal acordo e em 1842 Costa Cabral restauraria a Carta, contra o compromisso de 1838. O episódio merece recordação, porque a voz de Garrett foi a do médio prazo e do interesse comum, contra o imediatismo. Anos depois, Viagens na Minha Terra, obra-prima da literatura romântica, ilustrando o encontro em Santarém de Garrett com Passos Manuel, o herói de Setembro de 1836 e da Constituição de 1838, daria o sinal de que, como aquele dissera em S. Bento, haveria que cooperar e defender o “interesse na nação”, em lugar de um meio termo e de um radicalismo exclusivos. As lições da história apelam ao bom senso em lugar do imediatismo.
E se refiro os dois maiores oradores parlamentares dos alvores do nosso constitucionalismo, devo lembrar o outro nome maior de oitocentos, António Cândido Ribeiro da Costa, “Águia do Marão”, como lhe chamou Camilo, que foi o orador sagrado nas exéquias de Alexandre Herculano, tendo pertencido, por sugestão de Oliveira Martins, ao grupo dos onze que passaria à história com a designação algo irónica de “Vencidos da Vida”. E a sua conterrânea Agustina Bessa Luís disse dele ser necessário “tirar do poço da memória a água pura que nele vive”. Conhecido como “Boca d’Oiro” pelo extraordinário dom da palavra, atraindo centenas de ouvintes às suas intervenções parlamentares, no que se aproximou de José Estevão e Garrett, afirmaria na última homenagem que lhe foi prestada na Academia das Ciências, sob a presidência de António José de Almeida: “Nestes tempos fala-se muito, mas medita-se pouco”…
O Ultimatum inglês de 11 de janeiro de 1890 marcou profundamente a vida portuguesa inserindo-se na internacionalização da bacia hidrográfica do rio Zaire e na liberdade de navegação do rio Zambeze. Portugal tinha nas suas mãos as duas chaves da navegação em Angola e Moçambique, sendo forçado a franquear ambos os rios à navegação estrangeira. É uma das consequências do chamado Mapa Cor de Rosa, que pretendia conceder a Portugal o controlo dos territórios entre Angola e Moçambique, na sequência das expedições de Angola até à contracosta de Serpa Pinto, Hermenegildo Capelo e Roberto Ivens. Hesitações na política colonial e uma posição internacional frágil deram espaço a que o influente cônsul britânico Harry Johnston (1858-1927) se tenha tornado um agente ativo no amotinamento das populações em todo o curso do rio Chire – do lago Niassa ao Zambeze.
Assim, o Ultimatum pôs em causa as aspirações territoriais portuguesas entre Angola e Moçambique. Portugal deveria evacuar os territórios de Mashona (hoje Zimbabué) e as margens do rio Chire. Perante tão humilhante invetiva, o governo progressista em funções demite-se, cedendo lugar a um gabinete regenerador presidido por António de Serpa Pimentel, que negoceia o Tratado de 20 de agosto de 1890, mal recebido pela opinião pública, que o Parlamento reprovaria – uma vez que previa cedências territoriais excessivas e abrangia compromissos em Angola, quando nesse território não havia questões com os britânicos. Além disso, havia cedências desproporcionadas quanto aos transportes ferroviários e à liberdade de comércio. O governo cai e dá lugar a um ministério não partidário, com apoio do Exército, presidido pelo General João Crisóstomo de Abreu e Sousa (outubro de 1890), tendo como ministro da Marinha e Ultramar o dramaturgo António Enes, que tinha uma posição crítica relativamente ao mapa cor-de-rosa. A capacidade negocial face ao governo britânico era, porém, muito limitada, importando introduzir correção ao Tratado de 20 de agosto. Em Londres, o marquês de Soveral tenta obter junto do Primeiro-Ministro Lord Salisbury (1830-1903) as alterações necessárias que permitissem uma saída airosa e que evitassem perdas irreparáveis para a posição portuguesa. Salisbury resiste: ou se mantinha tudo na mesma ou se renegociava tudo. Cecil Rhodes, com o seu projeto de ligação ferroviária do Cabo ao Cairo, através da South Africa Company, exerce forte influência. Havia que agir rapidamente e António Enes propõe um “modus vivendi”, tendo por base a liberdade de navegação no Zambeze e no Chire para Portugal e o compromisso da Inglaterra de não celebrar novos compromissos com os régulos africanos, até se fixarem as fronteiras.
Salisbury e Soveral assinam em Londres a 14 de novembro de 1890 uma convenção para vigorar em 6 meses, pela qual o governo português se comprometia a permitir o trânsito de todas as vias fluviais do Zambeze, do Chire e do Pungue e a facilitar as comunicações entre os portos portugueses da costa e os territórios na esfera de influência da Grã-Bretanha. Era uma solução precária, mas preparava um entendimento. Em 28 de maio de 1891 viria a ser assinado um Convénio e em 11 de junho o Tratado que substituía o de 20 de agosto. Alguns aspetos foram retificados, como os de Angola, mas as reivindicações britânicas em matéria de exploração mineira ficaram. Quanto às fronteiras houve ganhos e perdas e António Enes partiria para a África Oriental para exercer funções de Alto-Comissário. Mas o Ultimatum deixou sequelas definitivas. Antero de Quental presidiu à Liga Patriótica do Norte, que marcou fortemente o protesto contra os britânicos, e em 31 de janeiro teve lugar a tentativa republicana do Porto, muito influenciada pela implantação da República brasileira (de 15 de novembro de 1889), dirigida intelectualmente por Sampaio Bruno e Basílio Teles, mais pensadores do que políticos de ação, que permitiu a aura do movimento, apesar do insucesso imediato, considerado como precursor da República.
Nos antecedentes próximos do 5 de Outubro de 1910 temos, assim, fatores políticos (o Ultimatum inglês, o 31 de Janeiro, os adiantamentos à Casa Real, a ditadura de João Franco, o regicídio), económicos (a perda de confiança interna, as imposições dos credores externos, a desorganização), financeiros públicos (o peso da dívida, a bancarrota de 1891-92, a falta de receitas fiscais estáveis), constitucionais (o esgotamento do rotativismo regenerador, a degradação do sistema partidário), educativos (a taxa de analfabetismo próxima dos 80%, a insuficiente cobertura escolar, o mal estar académico de 1907), culturais (o ambiente urbano favorável ao republicanismo), e sociais (tensões cidade/campo, falta de industrialização, ausência de política social). As instituições estavam demasiado frágeis, a humilhação tornou-se intolerável, o descontentamento sobretudo nas cidades gerou um clima que explodiu quando o rei e o príncipe real foram mortos…
Fernando Henrique Cardoso foi há 30 anos o autor do Plano Real, no Brasil, que constitui um exemplo notável de reforma político-económica, que merece celebração.
“A política não é a arte do possível. É a arte de tornar possível o necessário”. Quando Fernando Henrique Cardoso o afirmou tinha especial autoridade para o fazer por provas dadas no moderno reformismo. O Plano Real foi um exemplo extraordinário, que completa no dia 1 de julho, 30 anos. E é ponto consensual entre os economistas que a nova moeda criada em 1994 correspondeu a uma estratégia de sucesso para conter a hiperinflação e estabilizar a economia, tendo desempenhado um papel fundamental na criação de um ambiente de previsibilidade e de confiança, abrindo campo a medidas de justiça social.
Em 1993 vivia-se no Brasil uma conjuntura de dificuldade extrema em que os rendimentos do cidadão comum eram afetados por uma inflação galopante (5 mil % ano) e por uma perturbadora incerteza económica, com a multiplicação de movimentos grevistas e uma forte penalização dos trabalhadores mais pobres, mercê de uma espiral inflacionista incontrolável. Protegiam-se melhor os bancos, os grandes investidores, as empresas capazes de impor seus preços e o próprio Estado, com as suas receitas dependentes do índice de preços, contando com a inflação para ajustar o valor real das despesas. Aumentavam, porém, a pobreza e as desigualdades pelo descontrolo monetário. Fernando Henrique Cardoso conta que nesse contexto recebeu, em Nova Iorque, uma chamada telefónica do presidente Itamar Franco a perguntar-lhe se aceitaria trocar o Ministério das Relações Exteriores, cuja função então exercia, pelo espinhoso Ministério da Fazenda. Era maio de 1993 e a instabilidade determinava que, se aceitasse, seria o quarto ministro da pasta em apenas sete meses de governo. Perante o convite, respondeu que à partida não concordava com o afastamento do então Ministro da Fazenda, Eliseu Rezende, mas que não poderia responder, uma vez que não tinha condições para avaliar a situação. O Presidente Itamar foi lacónico e apenas disse que conversaria com o ministro e que voltariam a falar. Mais tarde, enviou um recado segundo o qual já não precisaria de falar. Fernando Henrique foi para o hotel convencido de que o assunto ficara resolvido. Contudo, na manhã seguinte, foi despertado por uma chamada de sua mulher, Ruth, muito preocupada e surpreendida, por ter ouvido no noticiário que ele tinha sido já designado para sobraçar a tão espinhosa pasta da Fazenda. Regressou ao Brasil com o chefe de gabinete, embaixador Sinésio Sampaio Góes, a quem disse que precisaria dele no novo ministério. E começou logo a pensar no discurso de posse do dia seguinte, lembrando o mantra repetido pelo seu amigo José Serra de que o Brasil tinha três problemas persistente: inflação, inflação e inflação. Mas como poderia um sociólogo como ele solucionar algo que ninguém tinha conseguido resolver?
UMA REFORMA EXEMPLAR Uma coisa era certa, haveria que convocar uma boa equipa de economistas e cuidar da conceção de um plano audacioso, mas determinado. Para tanto, tinha carta branca do Presidente. Nomeou Clovis Carvalho como Secretário-Geral do Ministério e o jovem Gustavo Franco para a secretaria de Política Económica, que seria chefiada por Winston Fritsch, contando ainda como a assessoria de Edgar Bacha. A primeira ideia foi a de lançar um programa tradicional de redução de despesas. Depressa concluiu, porém, que tal seria insuficiente, havia que ser mais ambicioso. E nasceu a ideia, sugerida por Edgar Bacha, de tomar como índice de correção monetária as Obrigações do Tesouro Nacional. Partiu-se, assim, da conceção inovadora de unidade de uma conta de natureza escritural, a URV (Unidade Real de Valor), inspirada no importante estudo teórico de André Lara Resende e Pérsio Arida, escrito dez anos antes. E, em boa hora, com concordância do Presidente, incluiu ambos na equipa de coordenação. André Lara Resende substituiria Pedro Malan na chefia da negociação da dívida externa, que por sua vez seria Governador do Banco Central numa remodelação que o Presidente entendeu dever fazer. Constituiu-se, assim, a equipa do novo Plano Real, sob a coordenação de Clovis Carvalho. E Fernando Henrique fez questão de ir acompanhando, com todo o cuidado, os complexos trabalhos desenvolvidos. Quando a proposta era mais complexa dizia aos seus colaboradores: “esclareçam melhor, porque eu terei de explicar tudo ao país”. E foi o que aconteceu. Das decisões tomadas, duas deveriam ser destacadas. Antes do mais, haveria que preparar a opinião pública sobre tudo o que iria ser feito, para não haver surpresas. Por outro lado, o plano deveria ser solidamente estruturado nos planos constitucional e jurídico. Eduardo Jorge e Gustavo Franco dedicaram-se com o apoio dos melhores juristas ao desenvolvimento à concretização do Plano. Sabia-se bem das dificuldades sentidas em experiências anteriores e em tentativas noutros países, pelo que haveria que salvaguardar o melhor possível a proteção prática do programa de ação, que teria de ser acompanhado por mecanismos de segurança capazes de impedir a especulação e as hipóteses de fraude, lembrando o velho “plano de metas” de Juscelino Kubitschek.
UMA REALIZAÇÃO DE PRAZO LARGO O Plano teria três fases: Período de equilíbrio das contas públicas, com redução de despesas e aumento de receitas, para os anos de 1993 e 1994; a criação da URV para preservar o poder de compra da massa salarial, evitando medidas de choque como confisco de poupança e quebra de contratos; e lançamento do padrão monetário denominado Real, que chega aos dias atuais. Fernando Henrique confessaria: “Dediquei-me a explicar o Plano (tarefa que foi continuada com sucesso por Rubens Ricupero). Falei com cada bancada partidária no Congresso, com os principais líderes sindicais, inclusive os da CUT, com os ministros e, especialmente, com a Nação”. Com efeito, mudar o rumo de uma economia não era apenas uma tarefa técnica. Só a inteligência política do futuro Presidente do Brasil permitiu que houvesse resultados positivos. Houve que convencer os mercados, os agentes sociais e sobretudo o cidadão comum. E a comunicação social constituiu-se num fator decisivo de mobilização.
Só poderia haver estabilização monetária se todos entendessem que era uma questão de sobrevivência. Estava-se no domínio decisivo do moderno reformismo social. Mais ainda, havia que fazer compreender que a Unidade Real de Valor (URV) não era “um truque”, mas uma ponte sólida para uma nova moeda estável. E voltamos a ouvir o principal artífice do Plano: “Um programa econômico da magnitude do Real é um processo, leva tempo. Requeria a renegociação da dívida externa, como fizemos antes de lançar a nova moeda, bem como a privatização de muitos bancos públicos, especialmente os estaduais, a negociação da dívida pública de estados e municípios e muitas outras medidas que viriam a ser tomadas ao longo dos dois mandatos que se sucederiam na Presidência do Brasil, culminando com a Lei de Responsabilidade Fiscal. Foram necessários tempo, persistência e coragem. Só assim se ganha o que é fundamental: a credibilidade”. Desde 1994, fez-se um longo caminho. Houve, naturalmente nuvens e incertezas no horizonte, mas ficou uma lição fundamental – um homem de cidadania e de cultura como Fernando Henrique Cardoso foi um exemplo forte sobre a ligação necessária entre reformismo e democracia. O Plano Real realizou-se a pensar na cidadania e na justiça, ficará na História política como a demonstração de que o tempo e a reflexão, o conhecimento e a sabedoria têm de caminhar juntos com método, antevisão, respeito mútuo, transparência, pluralismo e rigorosa avaliação dos resultados obtidos. Eis a arte de tornar possível o necessário.
A publicação pela Imprensa Nacional de Portugal Amordaçado da autoria de Mário Soares e a sua apresentação na Fundação Gulbenkian, no dia em que o antigo Presidente da República completaria 99 anos, são motivo de séria reflexão, já que se trata de um texto político fundamental para a história contemporânea. Daí a grande importância desta coleção dirigida por José Manuel dos Santos. Como salientaram João Soares e Jaime Gama, em intervenções de grande oportunidade, não poderemos compreender a institucionalização da democracia sem o entendimento do contexto e dos termos em que se situou o papel fundamental de Mário Soares, quer quando correu o risco do exílio, quer quando decidiu a fundação de uma nova força política, que se tornaria matricial para a afirmação da liberdade, de um consenso nacional, do pluralismo e de uma opção europeia.
Temos de lembrar que Mário Soares, quando decidiu avançar com o livro, estava num momento difícil da sua trajetória política. Como afirmou Jaime Gama, o Portugal Amordaçado "não é um livro escrito no quadro de um percurso de normalidade ou de facilidade, porque Mário Soares tinha não só o problema de se confrontar com uma ditadura, mas tinha também o problema de gerir o seu espaço como líder político". E assim "usa este livro em estado de necessidade", procurando "evitar que o seu exílio fosse um passo mais no sentido da sua destruição. Porque os exílios podem ser - e muitas vezes são - passos mais degradativos para a destruição de um político do que a própria prisão”. E Mário Soares teve a agudíssima consciência disso. “O livro ficou pronto em 1972, teve boa imprensa. (…) Escrevi-o com determinação (disse-o a Maria João Avillez), sempre de jacto e de memória, embora com grandes interrupções. Sempre fui visceralmente incompatível com a Ditadura, sentindo o dever moral, irrecusável, de a combater por todos os meios ao meu alcance (…). Mas nunca tive ilusões acerca da dificuldade do caminho. Para dizer a verdade, até pensava que o Governo de Salazar era bem mais sólido do que, finalmente, se revelou ‘a posteriori’”. E acrescentava: “As ideias estão certas. São as mesmas de sempre e estão certas. O livro dá uma larga panorâmica da Oposição durante o tempo de Salazar e de Caetano. O contraponto da propaganda oficial. (…) É um livro que constituiu um marco”. Importava, afinal, definir a autonomia estratégica do “socialismo democrático”. Por isso, houve que estabelecer com as outras forças políticas, boas relações, pontes, diálogo. A preocupação fundamental era “ganhar forças e apoios de toda a ordem para bater e derrubar o fascismo – um regime gasto, serôdio e de traição nacional aos interesses de Portugal”. Assim se exprimia quem conhecia a história, designadamente da Primeira República, tendo consciência de que havia um campo complexo para explorar. Portugal Amordaçado antecipa os acontecimentos. Depois, Francisco Sá Carneiro e Miller Guerra denunciam que a “evolução na continuidade” não tinha futuro, e renunciam aos lugares de deputados da “ala liberal”, nos inícios de 1973, por manifesta falta de condições para o exercício da livre expressão do pensamento. No Congresso da Oposição Democrática de Aveiro de abril de 1973, José Medeiros Ferreira levanta, premonitoriamente, a hipótese da intervenção militar para abrir caminho à democracia e em setembro iniciar-se-iam as ações do Movimento das Forças Armadas, que culminariam em 25 de abril de 1974 com a operação coroada de êxito, antecedida pela declaração “O Movimento das Forças Armadas e a Nação”, em cuja redação Ernesto Melo Antunes teve papel determinante, antecipando o Programa do Movimento, num percurso que culminaria na nossa democracia civil de perfil constitucional europeu. Nos dias de hoje, a releitura do livro de Mário Soares tem, assim, de ser feita como memória de um caminho de coerência e determinação, que foi o de uma vida inteira, como exemplo para a democracia contemporânea.