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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CADA TERRA COM SEU USO

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XXI.  O Ultimatum inglês e o 31 de janeiro

 

O Ultimatum inglês de 11 de janeiro de 1890 marcou profundamente a vida portuguesa inserindo-se na internacionalização da bacia hidrográfica do rio Zaire e na liberdade de navegação do rio Zambeze. Portugal tinha nas suas mãos as duas chaves da navegação em Angola e Moçambique, sendo forçado a franquear ambos os rios à navegação estrangeira. É uma das consequências do chamado Mapa Cor de Rosa, que pretendia conceder a Portugal o controlo dos territórios entre Angola e Moçambique, na sequência das expedições de Angola até à contracosta de Serpa Pinto, Hermenegildo Capelo e Roberto Ivens. Hesitações na política colonial e uma posição internacional frágil deram espaço a que o influente cônsul britânico Harry Johnston (1858-1927) se tenha tornado um agente ativo no amotinamento das populações em todo o curso do rio Chire – do lago Niassa ao Zambeze.

 

Assim, o Ultimatum pôs em causa as aspirações territoriais portuguesas entre Angola e Moçambique. Portugal deveria evacuar os territórios de Mashona (hoje Zimbabué) e as margens do rio Chire. Perante tão humilhante invetiva, o governo progressista em funções demite-se, cedendo lugar a um gabinete regenerador presidido por António de Serpa Pimentel, que negoceia o Tratado de 20 de agosto de 1890, mal recebido pela opinião pública, que o Parlamento reprovaria – uma vez que previa cedências territoriais excessivas e abrangia compromissos em Angola, quando nesse território não havia questões com os britânicos. Além disso, havia cedências desproporcionadas quanto aos transportes ferroviários e à liberdade de comércio. O governo cai e dá lugar a um ministério não partidário, com apoio do Exército, presidido pelo General João Crisóstomo de Abreu e Sousa (outubro de 1890), tendo como ministro da Marinha e Ultramar o dramaturgo António Enes, que tinha uma posição crítica relativamente ao mapa cor-de-rosa. A capacidade negocial face ao governo britânico era, porém, muito limitada, importando introduzir correção ao Tratado de 20 de agosto. Em Londres, o marquês de Soveral tenta obter junto do Primeiro-Ministro Lord Salisbury (1830-1903) as alterações necessárias que permitissem uma saída airosa e que evitassem perdas irreparáveis para a posição portuguesa. Salisbury resiste: ou se mantinha tudo na mesma ou se renegociava tudo. Cecil Rhodes, com o seu projeto de ligação ferroviária do Cabo ao Cairo, através da South Africa Company, exerce forte influência. Havia que agir rapidamente e António Enes propõe um “modus vivendi”, tendo por base a liberdade de navegação no Zambeze e no Chire para Portugal e o compromisso da Inglaterra de não celebrar novos compromissos com os régulos africanos, até se fixarem as fronteiras.

 

Salisbury e Soveral assinam em Londres a 14 de novembro de 1890 uma convenção para vigorar em 6 meses, pela qual o governo português se comprometia a permitir o trânsito de todas as vias fluviais do Zambeze, do Chire e do Pungue e a facilitar as comunicações entre os portos portugueses da costa e os territórios na esfera de influência da Grã-Bretanha. Era uma solução precária, mas preparava um entendimento. Em 28 de maio de 1891 viria a ser assinado um Convénio e em 11 de junho o Tratado que substituía o de 20 de agosto. Alguns aspetos foram retificados, como os de Angola, mas as reivindicações britânicas em matéria de exploração mineira ficaram. Quanto às fronteiras houve ganhos e perdas e António Enes partiria para a África Oriental para exercer funções de Alto-Comissário. Mas o Ultimatum deixou sequelas definitivas. Antero de Quental presidiu à Liga Patriótica do Norte, que marcou fortemente o protesto contra os britânicos, e em 31 de janeiro teve lugar a tentativa republicana do Porto, muito influenciada pela implantação da República brasileira (de 15 de novembro de 1889), dirigida intelectualmente por Sampaio Bruno e Basílio Teles, mais pensadores do que políticos de ação, que permitiu a aura do movimento, apesar do insucesso imediato, considerado como precursor da República.

 

Nos antecedentes próximos do 5 de Outubro de 1910 temos, assim, fatores políticos (o Ultimatum inglês, o 31 de Janeiro, os adiantamentos à Casa Real, a ditadura de João Franco, o regicídio), económicos (a perda de confiança interna, as imposições dos credores externos, a desorganização), financeiros públicos (o peso da dívida, a bancarrota de 1891-92, a falta de receitas fiscais estáveis), constitucionais (o esgotamento do rotativismo regenerador, a degradação do sistema partidário), educativos (a taxa de analfabetismo próxima dos 80%, a insuficiente cobertura escolar, o mal estar académico de 1907), culturais (o ambiente urbano favorável ao republicanismo), e sociais (tensões cidade/campo, falta de industrialização, ausência de política social). As instituições estavam demasiado frágeis, a humilhação tornou-se intolerável, o descontentamento sobretudo nas cidades gerou um clima que explodiu quando o rei e o príncipe real foram mortos… 

 

Agostinho de Morais

 

 

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A VIDA DOS LIVROS

  

De 1 a 7 de julho de 2024


Fernando Henrique Cardoso foi há 30 anos o autor do Plano Real, no Brasil, que constitui um exemplo notável de reforma político-económica, que merece celebração.


“A política não é a arte do possível. É a arte de tornar possível o necessário”. Quando Fernando Henrique Cardoso o afirmou tinha especial autoridade para o fazer por provas dadas no moderno reformismo. O Plano Real foi um exemplo extraordinário, que completa no dia 1 de julho, 30 anos. E é ponto consensual entre os economistas que a nova moeda criada em 1994 correspondeu a uma estratégia de sucesso para conter a hiperinflação e estabilizar a economia, tendo desempenhado um papel fundamental na criação de um ambiente de previsibilidade e de confiança, abrindo campo a medidas de justiça social.


Em 1993 vivia-se no Brasil uma conjuntura de dificuldade extrema em que os rendimentos do cidadão comum eram afetados por uma inflação galopante (5 mil % ano) e por uma perturbadora incerteza económica, com a multiplicação de movimentos grevistas e uma forte penalização dos trabalhadores mais pobres, mercê de uma espiral inflacionista incontrolável. Protegiam-se melhor os bancos, os grandes investidores, as empresas capazes de impor seus preços e o próprio Estado, com as suas receitas dependentes do índice de preços, contando com a inflação para ajustar o valor real das despesas. Aumentavam, porém, a pobreza e as desigualdades pelo descontrolo monetário. Fernando Henrique Cardoso conta que nesse contexto recebeu, em Nova Iorque, uma chamada telefónica do presidente Itamar Franco a perguntar-lhe se aceitaria trocar o Ministério das Relações Exteriores, cuja função então exercia, pelo espinhoso Ministério da Fazenda. Era maio de 1993 e a instabilidade determinava que, se aceitasse, seria o quarto ministro da pasta em apenas sete meses de governo. Perante o convite, respondeu que à partida não concordava com o afastamento do então Ministro da Fazenda, Eliseu Rezende, mas que não poderia responder, uma vez que não tinha condições para avaliar a situação. O Presidente Itamar foi lacónico e apenas disse que conversaria com o ministro e que voltariam a falar. Mais tarde, enviou um recado segundo o qual já não precisaria de falar. Fernando Henrique foi para o hotel convencido de que o assunto ficara resolvido. Contudo, na manhã seguinte, foi despertado por uma chamada de sua mulher, Ruth, muito preocupada e surpreendida, por ter ouvido no noticiário que ele tinha sido já designado para sobraçar a tão espinhosa pasta da Fazenda. Regressou ao Brasil com o chefe de gabinete, embaixador Sinésio Sampaio Góes, a quem disse que precisaria dele no novo ministério. E começou logo a pensar no discurso de posse do dia seguinte, lembrando o mantra repetido pelo seu amigo José Serra de que o Brasil tinha três problemas persistente: inflação, inflação e inflação. Mas como poderia um sociólogo como ele solucionar algo que ninguém tinha conseguido resolver?


UMA REFORMA EXEMPLAR
Uma coisa era certa, haveria que convocar uma boa equipa de economistas e cuidar da conceção de um plano audacioso, mas determinado. Para tanto, tinha carta branca do Presidente. Nomeou Clovis Carvalho como Secretário-Geral do Ministério e o jovem Gustavo Franco para a secretaria de Política Económica, que seria chefiada por Winston Fritsch, contando ainda como a assessoria de Edgar Bacha. A primeira ideia foi a de lançar um programa tradicional de redução de despesas. Depressa concluiu, porém, que tal seria insuficiente, havia que ser mais ambicioso. E nasceu a ideia, sugerida por Edgar Bacha, de tomar como índice de correção monetária as Obrigações do Tesouro Nacional. Partiu-se, assim, da conceção inovadora de unidade de uma conta de natureza escritural, a URV (Unidade Real de Valor), inspirada no importante estudo teórico de André Lara Resende e Pérsio Arida, escrito dez anos antes. E, em boa hora, com concordância do Presidente, incluiu ambos na equipa de coordenação. André Lara Resende substituiria Pedro Malan na chefia da negociação da dívida externa, que por sua vez seria Governador do Banco Central numa remodelação que o Presidente entendeu dever fazer. Constituiu-se, assim, a equipa do novo Plano Real, sob a coordenação de Clovis Carvalho. E Fernando Henrique fez questão de ir acompanhando, com todo o cuidado, os complexos trabalhos desenvolvidos. Quando a proposta era mais complexa dizia aos seus colaboradores: “esclareçam melhor, porque eu terei de explicar tudo ao país”. E foi o que aconteceu. Das decisões tomadas, duas deveriam ser destacadas. Antes do mais, haveria que preparar a opinião pública sobre tudo o que iria ser feito, para não haver surpresas. Por outro lado, o plano deveria ser solidamente estruturado nos planos constitucional e jurídico. Eduardo Jorge e Gustavo Franco dedicaram-se com o apoio dos melhores juristas ao desenvolvimento à concretização do Plano. Sabia-se bem das dificuldades sentidas em experiências anteriores e em tentativas noutros países, pelo que haveria que salvaguardar o melhor possível a proteção prática do programa de ação, que teria de ser acompanhado por mecanismos de segurança capazes de impedir a especulação e as hipóteses de fraude, lembrando o velho “plano de metas” de Juscelino Kubitschek.


UMA REALIZAÇÃO DE PRAZO LARGO
O Plano teria três fases:  Período de equilíbrio das contas públicas, com redução de despesas e aumento de receitas, para os anos de 1993 e 1994; a criação da URV para preservar o poder de compra da massa salarial, evitando medidas de choque como confisco de poupança e quebra de contratos; e lançamento do padrão monetário denominado Real, que chega aos dias atuais. Fernando Henrique confessaria: “Dediquei-me a explicar o Plano (tarefa que foi continuada com sucesso por Rubens Ricupero). Falei com cada bancada partidária no Congresso, com os principais líderes sindicais, inclusive os da CUT, com os ministros e, especialmente, com a Nação”. Com efeito, mudar o rumo de uma economia não era apenas uma tarefa técnica. Só a inteligência política do futuro Presidente do Brasil permitiu que houvesse resultados positivos. Houve que convencer os mercados, os agentes sociais e sobretudo o cidadão comum. E a comunicação social constituiu-se num fator decisivo de mobilização.


Só poderia haver estabilização monetária se todos entendessem que era uma questão de sobrevivência. Estava-se no domínio decisivo do moderno reformismo social. Mais ainda, havia que fazer compreender que a Unidade Real de Valor (URV) não era “um truque”, mas uma ponte sólida para uma nova moeda estável. E voltamos a ouvir o principal artífice do Plano: “Um programa econômico da magnitude do Real é um processo, leva tempo. Requeria a renegociação da dívida externa, como fizemos antes de lançar a nova moeda, bem como a privatização de muitos bancos públicos, especialmente os estaduais, a negociação da dívida pública de estados e municípios e muitas outras medidas que viriam a ser tomadas ao longo dos dois mandatos que se sucederiam na Presidência do Brasil, culminando com a Lei de Responsabilidade Fiscal. Foram necessários tempo, persistência e coragem. Só assim se ganha o que é fundamental: a credibilidade”. Desde 1994, fez-se um longo caminho. Houve, naturalmente nuvens e incertezas no horizonte, mas ficou uma lição fundamental – um homem de cidadania e de cultura como Fernando Henrique Cardoso foi um exemplo forte sobre a ligação necessária entre reformismo e democracia. O Plano Real realizou-se a pensar na cidadania e na justiça, ficará na História política como a demonstração de que o tempo e a reflexão, o conhecimento e a sabedoria têm de caminhar juntos com método, antevisão, respeito mútuo, transparência, pluralismo e rigorosa avaliação dos resultados obtidos. Eis a arte de tornar possível o necessário.


Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

"PORTUGAL AMORDAÇADO"

  


A publicação pela Imprensa Nacional de Portugal Amordaçado da autoria de Mário Soares e a sua apresentação na Fundação Gulbenkian, no dia em que o antigo Presidente da República completaria 99 anos, são motivo de séria reflexão, já que se trata de um texto político fundamental para a história contemporânea. Daí a grande importância desta coleção dirigida por José Manuel dos Santos. Como salientaram João Soares e Jaime Gama, em intervenções de grande oportunidade, não poderemos compreender a institucionalização da democracia sem o entendimento do contexto e dos termos em que se situou o papel fundamental de Mário Soares, quer quando correu o risco do exílio, quer quando decidiu a fundação de uma nova força política, que se tornaria matricial para a afirmação da liberdade, de um consenso nacional, do pluralismo e de uma opção europeia.


Temos de lembrar que Mário Soares, quando decidiu avançar com o livro, estava num momento difícil da sua trajetória política. Como afirmou Jaime Gama, o Portugal Amordaçado "não é um livro escrito no quadro de um percurso de normalidade ou de facilidade, porque Mário Soares tinha não só o problema de se confrontar com uma ditadura, mas tinha também o problema de gerir o seu espaço como líder político". E assim "usa este livro em estado de necessidade", procurando "evitar que o seu exílio fosse um passo mais no sentido da sua destruição. Porque os exílios podem ser - e muitas vezes são - passos mais degradativos para a destruição de um político do que a própria prisão”. E Mário Soares teve a agudíssima consciência disso. “O livro ficou pronto em 1972, teve boa imprensa. (…) Escrevi-o com determinação (disse-o a Maria João Avillez), sempre de jacto e de memória, embora com grandes interrupções. Sempre fui visceralmente incompatível com a Ditadura, sentindo o dever moral, irrecusável, de a combater por todos os meios ao meu alcance (…). Mas nunca tive ilusões acerca da dificuldade do caminho. Para dizer a verdade, até pensava que o Governo de Salazar era bem mais sólido do que, finalmente, se revelou ‘a posteriori’”. E acrescentava: “As ideias estão certas. São as mesmas de sempre e estão certas. O livro dá uma larga panorâmica da Oposição durante o tempo de Salazar e de Caetano. O contraponto da propaganda oficial. (…) É um livro que constituiu um marco”. Importava, afinal, definir a autonomia estratégica do “socialismo democrático”. Por isso, houve que estabelecer com as outras forças políticas, boas relações, pontes, diálogo. A preocupação fundamental era “ganhar forças e apoios de toda a ordem para bater e derrubar o fascismo – um regime gasto, serôdio e de traição nacional aos interesses de Portugal”. Assim se exprimia quem conhecia a história, designadamente da Primeira República, tendo consciência de que havia um campo complexo para explorar. Portugal Amordaçado antecipa os acontecimentos. Depois, Francisco Sá Carneiro e Miller Guerra denunciam que a “evolução na continuidade” não tinha futuro, e renunciam aos lugares de deputados da “ala liberal”, nos inícios de 1973, por manifesta falta de condições para o exercício da livre expressão do pensamento. No Congresso da Oposição Democrática de Aveiro de abril de 1973, José Medeiros Ferreira levanta, premonitoriamente, a hipótese da intervenção militar para abrir caminho à democracia e em setembro iniciar-se-iam as ações do Movimento das Forças Armadas, que culminariam em 25 de abril de 1974 com a operação coroada de êxito, antecedida pela declaração “O Movimento das Forças Armadas e a Nação”, em cuja redação Ernesto Melo Antunes teve papel determinante, antecipando o Programa do Movimento, num percurso que culminaria na nossa democracia civil de perfil constitucional europeu. Nos dias de hoje, a releitura do livro de Mário Soares tem, assim, de ser feita como memória de um caminho de coerência e determinação, que foi o de uma vida inteira, como exemplo para a democracia contemporânea.


GOM

ECONOMIA E POLÍTICA AO SERVIÇO DA VIDA

  

 

Quando se olha para a presente situação do mundo, não é difícil constatar que o que está decisivamente em crise é a razão moderna com o seu imperialismo devastador. Ao contrário do que pensam os seus profetas mais ardentes, após a crise/implosão do chamado "socialismo real", o capitalismo desenfreado, neoliberal, não constituiu de modo nenhum a solução do futuro nem é a palavra mágica, decisiva e definitiva da História. A prova está em que pretender que toda a humanidade viva segundo os padrões do mundo mais desenvolvido, tecnocrático, seria pôr fim à própria possibilidade de continuação da História. O modelo dos países do hemisfério norte, sendo necessário sublinhar que ele se implantou já noutras paragens, não pode estender-se ao mundo inteiro, isto é, não é universalizável, sob pena de pura e simplesmente não haver futuro para o planeta. E, não sendo universalizável, não é ético.


A crise ecológica, de que os pobres acabam por ser as principais vítimas e também, na luta pela sobrevivência, uma das grandes causas, coloca-nos perante a crise da nossa civilização, que pretendeu organizar a casa comum da humanidade com base na ideologia do progresso ilimitado. Urge, pois, mudar de rumo, o que implica pôr ter termo a um antropocentrismo exacerbado e reconhecer e respeitar o valor da natureza e de todos os seres do ecossistema, a começar pelo homem e pela mulher pobres e explorados. Impõe-se uma conversão sócio-ecológica, no sentido da transformação do modelo de desenvolvimento em que assentou a modernidade. Se é o presente modelo de desenvolvimento que gera simultaneamente a crise ecológica e a injustiça estrutural no mundo, então a construção da casa comum da humanidade exige uma nova consciência ética - veja-se a ligação entre ethos, que também significa habitação, toca do animal, e donde provém ética, e oikos, que significa casa, interconectando ética, economia (lei, governo da casa) e ecologia (tratado da casa, que hoje percebemos melhor ser a casa comum de todos) -, aliada a uma nova proposta político-cultural global, para uma nova ordem económico-ecológica global, no quadro de um autêntico eco-humanismo, proposto pelo Papa Francisco - diga-se entre parêntesis que, se não fosse por muitas outras magnas razões, Francisco ficaria na História por causa da sua encíclica Laudato Sí, onde aparece o conceito de “ecologia integral”, que mostra que a degradação do meio ambiente e a degradação do mundo social caminham juntas.


Hoje, tomamos consciência de que tudo e todos estamos interligados e somos interdependentes. Isto pelo menos nos deveria ter ensinado a pandemia: infectamo-nos uns aos outros e, por isso, ou nos salvamos juntos ou nos perdemos todos. Só posso estar de acordo com o filósofo Peter Sloterdijk, quando, com outros, propugna uma “Declaração de Dependência” universal, assinada por todos.  Assim, dadas as relações realmente existentes entre todos e o vínculo indissolúvel com a catástrofe ecológica, damo-nos pela primeira vez conta de que, perante a ameaça comum de que somos objecto todos, se impõe que a humanidade, se quiser ter futuro, se tem de tornar sujeito comum da responsabilidade pela vida. Ou a humanidade como todo se torna sujeito do seu futuro e da responsabilidade pela vida em geral ou pura e simplesmente não haverá futuro para ninguém. Em termos simples e cínicos: se não quisermos ser solidários uns com os outros por razões de ética e humanidade, sejamo-lo ao menos por razões de egoísmo esclarecido.


A globalização arrasta consigo inevitavelmente questões gigantescas e desperta paixões, que nem sempre permitem um debate sereno e racional. Mais uma vez, o teólogo Hans Küng procurou contribuir para esse debate, que assenta, segundo ele, em quatro teses: a globalização é: 1. “inevitável”, 2. “ambivalente (com ganhadores e perdedores), 3. “incalculável” (pode levar ao milagre económico ou ao descalabro), mas também - e isto é para mim o mais importante - “dirigível". Isto significa que precisamente a globalização económica exige uma globalização no domínio ético. Impõe-se um consenso ético mínimo quanto a valores, atitudes e critérios, um ethos mundial para uma sociedade e uma economia mundiais. É o próprio mercado global que exige um ethos global, também para salvaguardar as diferentes tradições culturais da lógica global e avassaladora de uma espécie de "metafísica do mercado" e de uma sociedade de mercado total.


Quem é que responsavelmente pode aceitar que a moral no domínio económico se identifica com o incremento insaciável do lucro? Tornou-se claro que a mão invisível do mercado que funcionaria a favor de todos os cidadãos não passa de "um mito refutado pela realidade", exactamente como a ideia de que o socialismo conduz todos os homens ao "paraíso do bem-estar", escreveu Hans Küng. Por isso, à economia de mercado tout court é preciso contrapor a economia social e ecológica de mercado.


O sentido da economia e da política só pode ser o serviço da vida. Trata-se de uma política para a vida (Vitalpolitik, segundo Peter Rüstow), que sabe que, ao contrário de uma política da concorrência, orientada só para a eficiência, tem em consideração muitos outros factores, já que que, em ordem ao bem-estar, a uma sociedade boa, a uma vida feliz, para os seres humanos, incluindo os capitalistas, não basta a economia. O homo sapiens não se identifica pura e simplesmente com o homo oeconomicus.

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 11 de junho de 2022

A VIDA DOS LIVROS

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   De 7 a 13 de dezembro de 2020

 

Gonçalo Ribeiro Telles publicou na revista “Cidade Nova” (nº 4, IV série, 1956) um texto pioneiro sobre a valorização da Paisagem, que merece lembrança. Hoje damos uma breve nota sobre o percurso político do nosso sócio número 1.

 

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CORAGEM POLÍTICA E ECOLÓGICA
Aquando das devastadoras inundações na região de Lisboa de novembro de 1967 uma voz desassombrada ergueu-se na televisão, rompendo as barreiras da censura, a denunciar o que se tinha passado. Então o jovem arquiteto paisagista Gonçalo Ribeiro Telles veio explicar, num tom simultaneamente pedagógico e politicamente assertivo, que o desastre não era devido a um acaso nem à revolta das forças da natureza. A catástrofe, em que morreu um número muito elevado de pessoas (cuja dimensão real foi escondida), em que foram arrasadas habitações, campos e estradas, deveu-se, afinal, a uma confrangedora falta de ordenamento do território e à ocupação de leitos de cheia e de cabeceiras das bacias hidrográficas por gente que vivia em condições miseráveis de habitação. Ouvia-se quem, provindo do curso livre do Instituto Superior de Agronomia de Arquitetura Paisagista, criado por Francisco Caldeira Cabral, em 1942, em articulação com o Departamento de Geografia da Faculdade de Letras de Lisboa, do grande mestre Orlando Ribeiro, projetava para a sociedade portuguesa a necessidade de ligar o desenvolvimento económico à preservação ambiental. Contudo, o jovem arquiteto paisagista que deitava a pedra no charco, não era um neófito político. Católico e monárquico, era um cidadão democrata de horizontes abertos e audaciosos. Há muito que exprimia os seus pontos de vista com grande coragem. Em 1958, acompanhara outros monárquicos, como Luís de Almeida Braga, Vieira de Almeida, Rolão Preto ou Francisco de Sousa Tavares no apoio à candidatura presidencial do General Humberto Delgado. Em 1945 participara na fundação do Centro Nacional de Cultura, com Fernando Amado, Afonso Botelho, António José Seabra e Gastão da Cunha Ferreira e em 1957 apoiara a eleição de Sousa Tavares para a presidência do Centro, participando na fundação do Movimento dos Monárquicos Independentes, de feição constitucionalista.

Como cristão inconformista, subscreveu em 1959 dois documentos, que constituem marcos decisivos na preparação de uma nova fase na vida da Igreja em Portugal, após a tomada de posição do Bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes, e antecipando a decisão de João XXIII de convocar o Concílio Ecuménico Vaticano II. Gonçalo Ribeiro Telles será um militante ativo da nova mentalidade conciliar, ao lado dos seus amigos António Alçada Baptista e Sophia de Mello Breyner Andresen, na geração de “O Tempo e o Modo”. Aí se inserem tais documentos! Em fevereiro, o texto é sobre as relações entre a Igreja e o Estado e a liberdade dos católicos – onde o visado é Salazar, por ter dito que havia “alguns católicos”, que tinham rompido com a “frente nacional”, considerando que o assunto oferecia “graves implicações no que respeita à Concordata e mesmo ao futuro das relações entre o Estado e a Igreja”. Os signatários diziam, porém, que a Igreja não podia ser acusada de hostilidade ao Estado Novo, mas se a Ação Católica não fazia política, não deveria alhear-se do mundo. De facto, os católicos tinham o direito e o dever de se interessarem pela política – com sérias razões “para julgar que o atual regime descura aquele mínimo de respeito pela justiça e pelas liberdades fundamentais dos cidadãos, sem o qual se deve pôr em dúvida o seu acordo com a doutrina cristã”. Em coerência com estas preocupações o grupo dirigiu-se a Salazar, em 1 de março – para falar “sobre os serviços de repressão do regime”. Com exemplos concretos de desrespeito pelos mais elementares direitos previstos na própria Constituição, os signatários concluíam: “Se outros católicos, e também V. Exª, julgarem que os signatários abusam dos seus direitos de simples católicos, resta-lhes a esperança de terem procedido de acordo com as exigências da sua consciência da mesma forma que eventualmente V. Exª o fará também. E só Deus julgará a todos”. Os textos são claríssimos e marcam o início de um novo tempo, que aponta para a afirmação dos valores democráticos que culminaria na revolução de 1974. Além de Gonçalo Ribeiro Telles, encontramos entre os autores os Padres Abel Varzim e Adriano Botelho, Alberto Vaz da Silva, António Alçada Baptista, António Arnaut, Francisco Lino Neto, Francisco de Sousa Tavares e Sophia de Mello Breyner, João Bénard da Costa, João Gomes, Padre João Perestrello, José Escada, Manuel Bidarra, Manuel de Lucena, M. S, Lourenço, Manuel Serra, Nuno Teotónio Pereira, Orlando de Carvalho e Vítor Wengorovius. A iniciativa merece uma atenção redobrada, já que entre 11 e 12 de março teria lugar o chamado “golpe da Sé”, que Mário Soares no Portugal Amordaçado considera como “um movimento de clara inspiração católica, embora com a participação importante de elementos não católicos, democratas de diferentes correntes oposicionistas”, sendo a alma civil da conspiração, Manuel Serra, antigo dirigente da juventude católica e apoiante do General Delgado.

 

O MANIFESTO DOS 101
Outro documento fundamental subscrito por Gonçalo foi o chamado Manifesto dos 101, de 25 de outubro de 1965, com muitos subscritores de 1959, num grupo mais alargado (onde se encontrava José Pedro Pinto Leite, que viria a integrar a Ala Liberal do tempo de Marcelo Caetano): onde se repudia a violência e o ódio com a maior firmeza, se defende uma cultura de paz e o respeito pelas Nações Unidas, se realçam os princípios da encíclica “Pacem in Terris” e do magistério de Paulo VI, se alerta para os problemas complexos e urgentes levantados pela política ultramarina, se denuncia a repressão da PIDE, os processos judiciais iníquos, os entraves no acesso a lugares públicos e empregos particulares, as buscas domiciliárias e a vigilância policial. Gonçalo Ribeiro Telles foi, assim, um cidadão completo – desde a oposição política democrática até à participação ativa na preparação da vida democrática. Esteve ao lado do pioneirismo de José Correia da Cunha na Comissão Nacional do Ambiente e foi um governante influente depois de 1974 (fundador do PPM, da AD e do Movimento Partido da Terra), sendo autor de medidas fundamentais, como a defesa dos melhores solos agrícolas, do coberto vegetal, do relevo natural, até à classificação das áreas adstritas à conservação da natureza e da paisagem. O seu comunalismo significa, no fundo, uma democracia centrada na dignidade humana, no primado da pessoa humana e numa ecologia global, centrada na equidade entre gerações. Manuel Alegre disse por isso: “talvez a culpa seja minha, porque fui deputado e participei na construção de uma democracia que a páginas tantas se distraiu e não soube resolver problemas estruturais, como o reordenamento do território e das florestas, assim como o combate ao abandono e à desertificação do país. Não se ouviu como se devia ter ouvido o arquiteto Gonçalo Ribeiro Telles. É certo que por vezes protestei, mesmo contra o meu próprio partido. Mas não foi suficiente. Não consigo calar-me e sinto-me culpado” (2017). A afirmação merece atenção especial. Estamos a tempo de não esquecer o exemplo e a experiência de quem deixou um testemunho político essencial. Os jardins da Fundação Gulbenkian são uma das suas obras emblemáticas, cuja autoria partilhou com António Viana Barreto. Um dia perguntaram-lhe o que desejava para Portugal – e respondeu: gostaria que se tornasse uma espécie de Gulbenkian…

 

Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

A VIDA DOS LIVROS

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   De 31 de agosto a 6 de setembro de 2020

 

Os «Escritos do Vintismo (1820-23)» de Almeida Garrett, Editorial Estampa, 1985, permitem-nos encontrar o mestre do Romantismo como grande cicerone da Revolução de 1820.

 

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UMA CONTINUIDADE MARCANTE

Dois séculos de constitucionalismo são motivo de reflexão, menos no tocante aos acontecimentos originais de 1820 e mais quanto à dinâmica criada. Pode dizer-se que a matriz revolucionária sofreu entorses, teve erros e limitações, que as instituições políticas revelariam ao longo do tempo. É natural que assim tenha acontecido, uma vez que a vida pública é sempre uma projeção da sociedade e das suas características. A verdade é que o constitucionalismo tem a virtude de consagrar a aceitação da imperfeição, exigindo, porém, o seu aperfeiçoamento permanente. Lembramo-nos, assim, como Ernesto Melo Antunes, na sua coerência inabalável, em 25 de abril de 1974, colocou o Movimento das Forças Armadas na continuidade da tradição constitucional portuguesa, interrompida no seu curso histórico. E deste modo puderam ser cumpridos, no essencial, os compromissos de normalização constitucional assumidos pelo MFA. Olhando a dimensão cultural da comemoração de 1820, centrar-me-ei no testemunho pessoal e literário de Almeida Garrett, que considero paradigmática – uma vez que nele encontramos o entusiasmo genuíno de quem acreditou nas virtualidades dos valores defendidos pelos regeneradores, temperado pela reflexão crítica e pela experiência pessoal. Alguns porão em dúvida a coerência do poeta, do intelectual e do cidadão, mas o certo é que o seu percurso e a sua evolução de pensamento são perfeitamente compreensíveis porque traduzem o curso da sociedade e das mentalidades. Daí o interesse em podermos acompanhar como o escritor seguiu os acontecimentos, afinando ideias, reflexões e críticas – chegando ao entendimento sobre a necessidade de compromissos sociais e políticos capazes de preservar a identidade pátria e de seguir os movimentos emancipadores centrados na liberdade e nos direitos.

 

O FIM DO ABSOLUTISMO

São conhecidos os antecedentes que mais diretamente suscitaram o movimento revolucionário de 24 de agosto de 1820: o rescaldo das invasões francesas, a perplexidade decorrente da longa ausência da Corte no Brasil, a subalternização das instituições nacionais pelo domínio de facto dos militares ingleses, mesmo depois da derrota dos franceses, o sacrifício ilegítimo e brutal de Gomes Freire e dos “mártires da Pátria” em 1817, além dos ecos da Revolução espanhola de Cádis (1812), da Revolução de Pernambuco (1817), do movimento liberal espanhol de janeiro de 1820 e do juramento da Constituição de Cádis por Fernando VII. É neste contexto que intervem o Sinédrio, na cidade do Porto, com o Desembargador Manuel Fernandes Tomás, José Ferreira Borges, José Silva Carvalho e João Ferreira Viana. Decidido o golpe de Estado, os grupos militares dirigiram-se ao Campo de Santo Ovídio, constituindo-se a Junta Provisional do Governo Supremo do Reino, presidida pelo Brigadeiro António Silveira Pinto da Fonseca, tendo como vice o Coronel Sebastião Drago Brito Cabreira, com a participação, além dos principais membros do Sinédrio, de Frei Francisco de S. Luís (futuro Cardeal Saraiva) e do Coronel Bernardo Correia de Castro e Sepúlveda. Encontramos o jovem Garrett, ainda Silva Leitão, entre 1816 e 1821, estudante da Universidade de Coimbra – manifestando uma clara simpatia pelos ideais do iluminismo enciclopédico fortalecido pela Revolução francesa. É um crítico severo da decadência, da exaustão cultural e do domínio britânico. Lê Rousseau, admira a retórica jacobina, invoca o antigo republicanismo romano, e encontra entre os seus colegas um ambiente favorável à ideia de uma Regeneração revolucionária. De facto, é a Coimbra estudantil um verdadeiro alfobre favorável ao combate ao Antigo Regime. Constituía-se, assim, uma muralha contra o professorado retrógrado, o que levaria o novo reitor após a Revolução de 1820, Frei Francisco de S. Luís, a ter de impor aos docentes o ensino dos novos princípios do Sistema Constitucional. Garrett defendia ardorosamente o espírito novo. O ambiente adensara-se com as notícias da execução injusta e ilegítima dos mártires da Pátria. O futuro poeta afirma-se então como orador inflamado contra a negação do voto à massa estudantil nas eleições paroquiais para deputados; na produção dramática, ataca na farsa “O Corcunda por Amor” os reacionários, numa hilariante trama que é uma floresta de enganos e de ilusões, como no caso da intervenção de Eleutério que, para cair nas boas graças de um lente, diz exatamente o contrário do que pensa – “Isto por cá está cada vez pior. Daqui a pouco não há criados, todos são amos…”; isto enquanto na expressão trágica coloca na boca de Catão a afirmação: “Ou liberdade, ou morte, eis o meu voto”. E, após o herói ter posto termo à vida, diz-se: “Vede Expirar Catão: dentro do peito / Guardai desse romano alma e virtudes”.

 

LIBERDADE E IGUALDADE, MARCOS PATRIÓTICOS

Garrett sente-se imbuído dos ideais clássicos mais intensos e nobres – e em Novembro de 1820, aquando da Martinhada, diz ao Corpo Académico: “Vivamos livres… ou morramos homens”. Mais do que o desenrolar dos acontecimentos políticos, seguimos os passos do jovem poeta que exprime com entusiasmo a força mais pura dos ideais em que a sua geração acredita. Importaria defender uma solução política que favorecesse a liberdade e a justiça. Mas, ao acompanhar o curso das discussões na Assembleia Constituinte, o jovem não esconde o desencanto pela falta de audácia no domínio da Instrução Pública – “tão livre é o povo ilustrado quanto escravo o povo ignorante”, acrescentando: “o povo cuja maioridade seja iluminada, esse povo será livre, porque a pequena porção de ignorantes não basta para servir os que o não são”. De facto, exigia-se pedagogia cívica. Essa era a orientação persistente do futuro autor de “Da Educação”. Se havia nele um impulso genuinamente radical contra a tirania e a idolatria, havia igualmente uma preocupação, que se manifestará pela vida adiante, no sentido do pragmatismo e do primado da lei, de acordo com os apelos que Catão e Mânlio fazem a Bruto contra o seu radicalismo. Daí que a defesa do republicanismo sofra abrandamento, do mesmo modo que a crítica de Rousseau vai dar origem à leitura de Montesquieu e Chateaubriand. A Lei Fundamental deveria ser compromissória, reconhecer a soberania do povo e do seu poder constituinte, assegurar o sufrágio geral, que assegurasse a representatividade popular das Cortes e ser unicameral. Neste último ponto, contudo, a posição garrettiana evoluirá. Depois da Vilafrancada, interrompida a vigência fugaz da Constituição de 1822, o dramaturgo reconhece erros cometidos, desde Cádis, por se dar demasiado à democracia e nada à aristocracia. Reconhecendo a importância da Carta Constitucional de 1826, Garrett vai ser um cidadão empenhado, ativo participante da guerra civil na Regência de D. Pedro, redator dos Decretos da Terceira de Mouzinho da Silveira, constituinte do setembrismo no compromisso de 1838 e defensor do Ato adicional de 1852. Se virmos bem, a coerência garrettiana, apesar das hesitações, culminará na defesa de um constitucionalismo assente no primado da lei e nas legitimidades do voto e do exercício. A Constituição deveria ser, assim, a pedra de toque de um regime justo, promovendo um governo representativo, segurando a majestade do Povo, a liberdade da Nação, os direitos do Trono, as santidade da religião, e o império das leis.

 

Guilherme d’Oliveira Martins

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

Minha Princesa de mim:

 

   Sobre essa agitação francesa dos coletes amarelos, li uma entrevista estimulante de reflexões sobre movimentos sociais, dada por Christophe Gilluy, geógrafo, autor de um livro com certa fama popular (La France périphérique - Comment on a sacrifié les classes populaires, Champs, Flammarion, 2015) ao semanário La Vie, de 22 deste novembro. A lembrança de outros títulos do mesmo autor diz-nos bem o campo sobre que se vem debruçando: Fractures françaises (2013), Le Crépuscule de la France d´en haut (2016) ou ainda, já em setembro deste ano, No Society, uma análise que se estende às periferias norte americanas e britânicas e nos vai falando do apagamento das classes médias no Ocidente. E dos seus ressentimentos, como dos seus "cantos do cisne". Visita movimentos populistas (bonnets rouges, gilets jaunes e Le Pen, em França), o epifenómeno Trump, o confuso Brexit, e encontra-lhes um denominador comum: É a antiga classe média maioritária, correspondendo por via de consequência a uma geografia, a uma relegação para a periferia. E, hoje, toda a contestação, o famoso «voto populista», em França e alhures na Europa, provém dos territórios economicamente menos dinâmicos. Na ocorrência, das categorias populares - operários, empregados, independentes, etc. - , que já não se sentem integrados económica, política e culturalmente. Ao contrário do que dantes sucedia com a classe média. É consequência da recomposição económica dos territórios e, portanto, da metropolização e do modelo económico mundializado.

 

   Noutro passo da entrevista, Guilluy explica esse processo: Dantes, o facto de pertencer à classe média implicava a ideia de ascensão social para o próprio e seus filhos. Hoje, as lógicas económicas e imobiliárias fazem com que essas categorias sociais já não possam morar onde são criados empregos. O que nos conduz aos trabalhos do economista Thomas Piketty sobre a desigualdade no cerne do modelo económico hodierno. A isso chamo o grande choque cultural no Ocidente. Pela primeira vez na História, as categorias populares já não vivem onde se cria emprego.

 

   Repara, Princesa de mim, em que estas afirmações não são especulativas, nem sequer hipotéticas, mas resultam de trabalho no terreno geográfico e da observação sociológica das populações que o habitam. Tal realismo no estudo do que eu seria tentado a chamar sufocos sociais devia alertar-nos, quer para a gravidade crescente das situações criadas, quer para a necessidade de uma achega autenticamente democrática à edificação de sociedades político-económicas mais justas, mais equitativas, integradoras de todos em cidadanias portadoras de valores humanistas. O que mundialmente se vai apelidando de fenómeno populista é, na realidade, o quase desespero de povos órfãos, e o recurso emotivo a salvadores imaginários, onde se disfarçam os oportunistas prenunciadores do advento de ditaduras ou de catástrofes, mais provável sendo que tragam ambas. Aliás, mesmo antes desses aproveitadores, a indignação popular pode ser, e é, explorada por gente sem rumo e sem tino, grupúsculos de mentecaptos da raiva ou da embriaguez do protesto. Infelizmente, na voragem da atual "informação social" - mediática ou em rede - surgem sobretudo as imagens mais chocantes (as cenas de violência e vandalismo, o teatro "político"), para satisfazer o apetite delirante das turbas por "fitas" coloridas e barulhentas e "dramas sanguinários", em prejuízo da necessária, essa sim, observação e análise das ocorrências, com a consequente localização das suas motivações próximas e causas remotas. Basta pararmos um pouco e cuidarmos no que nos dizem estudiosos como Guilluy, para nos apercebermos de que os problemas que se têm agudizado são muito mais graves e complexos do que as suas manifestações. Não só resultam de processos iniciados há décadas e desenrolados por tempo suficientemente longo para já não termos bem presentes algumas das suas circunstâncias e condicionantes, como nem sempre será fácil, ou cómodo, precisar quem foram os seus agentes principais, e muito menos identificá-los...

 

   [Permite-me ainda, Princesa de mim, este curto parêntese que, todavia, reputo importante para uma reflexão mais longa acerca das circunstâncias e consequências dos movimentos de massas solicitados e motivados sobretudo através de redes sociais, isto é, sem notoriedade dos seus promotores, mas certamente reunindo descontentamentos, ressentimentos e reivindicações comuns a muita gente. Imaginemos, por exemplo, que a subida das taxas de certos impostos não visa apenas nem prioritariamente o aumento de receitas fiscais (apesar do equilíbrio ou superavit orçamental estar nas ordens dos dias), mas procura atingir objetivos de outra ordem: redução do consumo de combustíveis como combate à poluição, ou do de sal ou açúcar por razões sanitárias, etc. A dificuldade de assim se justificarem essas medidas de política encontra-se, não só na falta de informação adequada, como sobretudo na cultura popular que, ao longo de décadas, foi sendo educada no sentido de uma sociedade de consumo e na perspetiva de que o crescimento económico iria abundantemente servir-lhe os produtos desejados e os meios de os adquirir. E talvez mais ainda no sentimento generalizado de que há classes ou categorias sociais privilegiadas, que escapam ou estão isentas dos custos e das consequências penalizadoras das medidas ditas reformadoras, como se fossem irresponsabilizáveis.] 

 

   O geógrafo que te tenho referido, Princesa de mim, cita aquele dito de Emmanuel Macron aos microfones da TF1, no dia 15 deste novembro: Não consegui reconciliar o povo francês com os seus dirigentes. E aproveita tal dica para acrescentar: Como explico no meu último livro [No Society], pela primeira vez temos um mundo de cima (d´en haut) - ou todas as categorias [classes] superiores - de costas voltadas para o conjunto das categorias [classes] populares, antigamente classes médias. E temos um mundo de baixo (d´en bas) que já não ouve o mundo de cima, seja este o político, o mediático ou o cultural. A isso chamo «o movimento real da sociedade». E tal «movimento real» dá poder de influência às classes populares. Os populistas bem o perceberam, já que se apoiam nessa força. Os dirigentes políticos franceses devem ligar-se, eles também, a esse movimento. Há um enorme problema de oferta política. Mas creio que o mundo político acabará por se adaptar, porque vivemos em democracia...

 

   Estou mais tentado a dizer «Deus o ouça!», do que a subscrever esta última afirmação de Christophe Guilluy. Não tanto por desacordo, visto tratar-se de uma hipótese. Mas, quiçá, porque o meu pensarsentir antes deambula por outras questões, mais atinentes à cultura popular e à que rege grande parte dos comportamentos e ações dos agentes do poder, seja ele político ou mediático. E, sendo cidadão português, também entendo que deverei abordar tais questões na perspetiva da incidência que têm na vida lusitana. Embora depare, à partida, com uma desvantagem minha: como não sou geógrafo nem sociólogo, não fiz, eu próprio, qualquer trabalho de campo nesta área; e tampouco disponho de dados ou estudos analíticos que sustenham a exposição dos meus pontos de vista. Assim, a seu tempo direi como pensossinto alguns aspetos da nossa realidade nacional que, dia a dia, vou empiricamente observando -  e na qual vou vivendo sem razão maior de queixa, ainda que com muitos motivos de resmunguice e alguns de escândalo. Aliás, em cartas anteriores, Princesa de mim, já te fui deixando algumas (in)confidências...

 

   Por agora, só para nos estimular uma reflexão mais global sobre o estado atual das "coisas", entrego-te umas referências interessantes:

 

   1. Kate Raworth, investigadora nas universidades de Oxford e Cambridge, publicou um "Sunday Times Best Seller", recentemente traduzido para outras línguas, entre as quais a portuguesa, intitulado Doughnut Economics: Seven Ways to Think Like a 21st-Century Economist. Aconselho-te a edição inglesa, não só por ser a original, mas por custar o terço do que pagarias por uma tradução. A confessa intenção da autora é levar-nos a entender que vivemos uma época formidável para desaprendermos e reaprendermos as bases da economia. Fala-nos do abismo que separa as preocupações da teoria económica convencional das crises cada vez mais graves do mundo real, tais como a desigualdade planetária e as mudanças climáticas...   ... A humanidade está confrontada com enormes desafios, e é em grande parte graças às omissões e às metáforas erradas duma reflexão económica ultrapassada que aí chegámos. Mas para aqueles que estão prontos a rebelar-se, a olhar em volta, a contestar e a repensar, a época é entusiasmante. «É preciso que os estudantes aprendam a desembaraçar-se das ideias desmodadas e saibam quando e como substituí-las... como aprender, desaprender e reaprender», escrevia o futurólogo Alvin Toffler. Nada de mais verdadeiro para aqueles que procuram o conhecimento económico. Sabes bem, Princesa de mim, tal como muitos amigos meus, como eu incessantemente batia na mesma tecla, quando discutíamos a vinda da Troika e o problema das dívidas ditas soberanas... E não nos esqueçamos de que crises e sufocos nacionais que se distribuem pelo planeta já não nos são questões alheias: basta olharmos para as torrentes de massas migratórias, como também, ainda que diferentes, para as movimentações terroristas. Desde vitimizações sentidas, por discriminação económica ou jurídica, a ressentimentos, históricos ou atuais, por exploração colonialista ou opressão étnica, "religiosa" ou cultural, sem esquecer a força tentacular de agentes económicos e financeiros, são múltiplas as razões das ameaças que hoje perturbam as nossas classes médias em vias de extinção, cuja força política vai diminuindo na medida do enfraquecimento democrático das nossas sociedades. E é tão forte o sentimento de injustiça dessas populações, que se vão progressivamente agarrando, não ao regime político que já não as serve, mas à "Autoridade" que ponha tudo na ordem desejada.

 

   2. Por outro lado, economistas (e não só) vão-se dando conta de que a expansão económica já não reduz as desigualdades, mas aumenta o aquecimento global, e assim surge, uma vez mais, o debate acerca do pós-crescimento. Eis porque, no seu suplemento Économie & Entreprise, o jornal Le Monde iniciou, a 30 deste novembro, um dossiê sobre o tema Crescimento contra Decrescimento, cujo primeiro artigo se intitula O Crescimento, uma Velha Lua para esquecer? Ainda hoje guardo, na minha biblioteca, um exemplar, em francês, do relatório Meadows para o Clube de Roma, apelando à moderação do crescimento económico e intitulado Les Limites de la Croissance (1972), trabalho sobre o qual fiz algumas palestras em cursos organizados pelo IAG (Institut d´Administration et Gestion) da Université Catholique de Louvain. A questão de fundo era a de saber se e como seria possível compatibilizar um infinito crescimento económico com os limitados recursos naturais disponíveis neste mundo... O artigo de Le Monde, assinado por Frédéric Cazenave e Marie Charrel, faz o comentário seguinte, que, quase meio século depois, com simpatia me divertiu: Aqueles que se mostram sensíveis a essas ideias, agruparam-se, nos anos 2000, sob a bandeira «decrescimento», assente numa crítica da sociedade de consumo e do liberalismo. Formam hoje uma corrente atravessada por várias escolas teóricas e umas capelas, nem sempre fáceis de circunscrever. Na Europa, nos Estados Unidos, uma ladainha de coletivos cogita igualmente sobre o assunto. «O decrescimento é um conceito guarda-chuva, simultaneamente político, económico e social, e agrupa várias ideias mais ou menos ridículas», explica Giorgos Kallis, economista especializado em ecologia na Universidade Autónoma de Barcelona. Mas, afinal, desde adeptos do "crescimento verde" e do "desenvolvimento sustentável" aos que insistem no malthusianismo, todos parecem concordar num ponto, que o artigo aponta: a crítica do produto interior bruto (PIB), que hoje está no cerne das nossas políticas públicas, como critério primeiro do desenvolvimento económico e social.

 

   É verdade que no pós-guerra, e até aos anos 1980, o crescimento económico se traduzia mecanicamente por um aumento do bem estar, tanto nos países industrializados como nos emergentes. «Mas, desde então, essa relação já não é evidente», sublinha Tim Jackson, professor de desenvolvimento sustentável na universidade britânica de Surrey. Primeiro, porque a atividade industrial gera uma poluição que degrada cada vez mais a qualidade de vida. Além disso, uma parte do crescimento é doravante arrastada pelas despesas ligadas aos problemas gerados pelo desregulamento climático - secas, inundações, subida das águas... Finalmente, os frutos desse crescimento são cada vez menos bem repartidos entre as classes sociais. «O crescimento, não só deteriora as condições de vida na terra, mas já não permite reduzir as desigualdades e favorecer o bem estar», resume Dominique Bourg, filósofo na Universidade de Lausanne

 

   3. O já famoso sociólogo alemão Michael Hartmann publica este ano mais um livro sobre "os desconectados", as elites desligadas das gentes: Die Abgehobenen: Wie die Eliten die Demokratie gefährden (Campus, 2018). Aí vou buscar mais umas achas para a nossa reflexão de hoje: As elites na Alemanha, mas também noutros países, já não sabem o que possa ser a vida da maioria da população: muitos dos seus membros vivem em bairros homogéneos. Têm um quotidiano diferente, outros lazeres, outras oportunidades. E, referindo-se a Joe Kaeser, o PDG da Siemens, cujo salário horário atinge os 3 mil e 500 euros, e que aconselhou os pobres a comprarem ações para se enriquecerem, comenta: É evidente que Kaeser nem consegue imaginar a existência de pessoas que nem sequer têm dinheiro suficiente para poder poupar pelo menos um bocadinho... Por muito bem intencionado que seja, e desejoso de proceder a reformas da sociedade francesa, Macron não consegue escapar à acusação generalizada de que está com os ricos -  e não ao lado dos pobres. Porque, mais alto do que qualquer apelo ao diálogo e à busca de soluções acordadas no presente e projetadas para o futuro, soa o grito de raiva pelo engano sofrido de classes sociais que - no cotejo com os privilegiados, hoje inevitável - se sentem abandonadas pelo poder político que julgavam potencialmente mais atuante em democracia. Donde também este mal estar que, nos dias que correm, connosco habita os nossos Estados de Direito pouco democrático...

 

   Verifico que, em Portugal, quiçá pela sua tradição estatal e centralista, as manifestações reivindicativas de direitos sociais surgem sobretudo de corporações sectoriais ou profissionais vinculadas ao serviço público ou ao aparelho do Estado: transportes públicos, professores e auxiliares, médicos e enfermeiros, bombeiros e forças de segurança,magistrados... Todos sectores de atividade que, deste ou daquele modo, com mais ou menos força, sempre podem afetar interesses vitais ou fatores essenciais ao bom funcionamento do corpo social. É assim aparente mais uma discriminação, entre cidadãos melhor ou pior protegidos, sobretudo num país onde o recurso ao Estado-Solução é sempre insinuante...

 

   Para terminar esta carta, aproveito a ideia de já não ser evidente que o crescimento económico seja, só por si, fator de desenvolvimento social e político (conceito, aliás, bem subjacente ao sonho do fim da História, de Francis Fukuyama) para referir a resposta de Carlos Gaspar, em entrevista ao jornal Público, a uma pergunta sobre se, no Ocidente, se acreditava em que a abertura económica seria acompanhada de uma abertura política na China: Existia essa ilusão. Os liberais norte-americanos defenderam, com o seu otimismo histórico e incorrigível, que a abertura económica e a ascensão de uma classe média, urbana, com dezenas de milhares de estudantes nas universidades, levariam naturalmente a que, a partir de um certo nível de desenvolvimento económico e social, as classes urbanas iriam querer instalar um Estado de direito e um regime de democracia pluralista. Não tinham razão.

 

   Falar-te-ei do Portugal-China em carta futura. Retomando temas que já tinha abordado em cartas mais antigas. Sobre o conceito de Tianxiá e as tempestades e/ou bonanças que poderão, ou não, surpreender-nos.   

 

Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

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   Minha Princesa de mim:

 

   Nunca entendi bem como funciona esta minha teimosia em procurar salvar-me de sentidos pensamentos que me afligem, partindo em busca das respetivas raízes, ou do solo em que medram. Como se o antídoto de qualquer mal fosse ir ao seu encontro, ao fundo do seu porquê. Mas tampouco é vício masoquista, quem como tu me conhece bem sabe que je suis plutôt bon vivant ou, como tantas vezes me disse, rindo muito, a nossa tia Bertha Eugenia: Camilo, tu es un jouisseur! Vejo-a agora, quase trinta anos depois, a vir comigo a uns five o´clock tea, no Plaza, em Manhattan, ao som de violinos que ressuscitavam música vienense que lhe encantara a mocidade. Viera visitar-nos, ao nosso posto estadunidense, airosa e contente, elegante e esperta, flor de oitenta e dois anos, viajando, viúva sozinha, desde Bruxelas. Viria a morrer dez anos mais tarde, aos noventa e dois, em Gerardsbergen, onde ainda a visitei muitas vezes, quando fazia escala em Bruxelas em viagens do Japão a Portugal. Apesar do ou por causa do seu fervoroso catolicismo, aquela Senhora tinha, como sua irmã mais velha, minha Mãe, uma alegria contagiosa e um otimismo que inspirava confiança... era de boa companhia.


   Voltando às minhas interrogações, aquela citação final da Hannah Arendt na minha carta anterior (Sempre acreditei que somos o que vivemos) foi-me soprada pela leitura de um livro que te recomendo: Trois femmes dans de sombres temps (Edith Stein, Hannah Arendt, Simone Weil), três filósofas judias, duas alemãs e uma francesa de origem alsaciana, meditadas por outra filósofa (francesa), Sylvie Courtine-Denamy, na Bibliothèque de l´Évolution de l´Humanité (Albin Michel, Paris, 1997). Logo no prólogo, a autora, além da citada frase da carta de Arendt a Mary McCarthy, lembra-nos que a designação "os tempos sombrios" (1933-1943) se deve a Bertold Brecht, num poema onde, dirigindo-se «aos que nascerão depois de nós», lhes implorava indulgência para com esta geração que não tinha sabido «preparar o terreno para um mundo de amizade». Têm-me surgido, como fantasmas, tentações de referência, de factos e acontecimentos hodiernos, a situações de tensão, afrontamentos e reviravoltas, daqueles tempos, nesses anos em que a confusão dos espíritos foi levando a melhor sobre o amor do próximo... Desde a Guerra de Espanha, em que até padres católicos se odiaram uns aos outros, até à França de Vichy que, vencida pelo invasor nazi, se defendia dizendo "Hitler plutôt que le Front Populaire!", ou do pacto germano-soviético à conferência de Yalta... Traduzo um trecho de Les Grands Cimetières sous la lune, de Georges Bernanos:

 

   Parece-vos natural que Deus não tenha abençoado a sageza do mundo, a tal que confere honras, fortuna, riquezas. Esqueceis que, no decurso dos séculos, os homens consideraram a conquista desses bens, fosse pela força, pela injustiça ou pela manha, como legítima, sendo a posse assim obtida um favor do Altíssimo. A maioria dos grandes reis de Israel, a começar por Salomão, tinham do poder uma ideia comparável à que presentemente tem o Dr. Rosenberg. Será, aliás, precisamente por isso que os povos totalitários eliminarão fatalmente os seus judeus, já que cada um deles acredita que é eleito, e não há, no mundo, lugar para dois povos eleitos. Um facto, um simples facto, deveria abrir-vos os olhos: o sacrifício do fraco, do inocente, por muito tempo foi tido como o mais agradável a Deus. Por toda a parte, em qualquer idade, por milhares de séculos, a ideia de oração, de graça, de purificação, de perdão, esteve ligada à imagem repugnante de animais degolados por padres fumegando sangue lustral...

 

   [O Dr. Alfredo Rosenberg (1893-1946), autor de O Mito do século XX, foi um dos principais teorizadores do nazismo, ficando ainda famoso por ter organizado, durante a 2ª Grande Guerra, o saque de museus, bibliotecas e coleções privadas nos países ocupados. Mas talvez tenha escrito a sua mais negra folha de serviços enquanto Ministro dos Territórios de Leste, em 1941, ordenando execuções e deportações em massa, com o fito de germanizar a Ucrânia. Aprisionado em 1945, foi julgado em Nuremberga e executado em 1946.] 

 

   Seguindo o fio duma meada que, desde há algum tempo, trago na cabeça (terei começado pelo conceito de Tianxiá, e talvez lá regresse), retomo reflexões de Trois femmes dans de sombres temps, em que a autora vai analisando pensamentos de Hannah Arendt : Do carácter decididamente planetário e sem precedentes dos acontecimentos contemporâneos, Étienne Gilson [que foi meu professor], no seu Les Métamorphoses de la Cité de Dieu [Lovaina, 1952], conclui pelo necessário estabelecimento duma «sociedade universal», o que pressupõe a adesão de todas as nações a um princípio que a todas transcenderia. Não estaremos, assim, pergunta Hannah Arendt, a condenar-nos à alternativa do domínio global do totalitarismo ou à sociedade universal promovida pelo cristianismo? Em ambos os casos se ameaça a liberdade política, que só é possível no exercício de uma pluralidade de «princípios de vida e de pensamento» [Cahiers de Philosophie]. Não estaremos confrontados com a hipótese que ela encara em O que é a política? para demonstrar a perda irreparável de mundo que uma guerra total determinaria : «Se tivesse de acontecer que, na sequência de uma enorme catástrofe, só um povo sobrevivesse no mundo, e se tivesse de acontecer que todos os seus membros percebessem e compreendessem o mundo a partir duma única perspetiva, vivendo em consenso pleno, o mundo, no sentido histórico-político, caminharia para a sua perda, e esses homens privados de mundo, e que seriam os únicos sobreviventes sobre a terra , não teriam mais afinidades connosco do que essas tribos privadas de mundo e de relações que a humanidade europeia encontrou quando descobriu novos continentes, e que foram reconquistadas pelo mundo dos homens ou exterminadas sem que se desse conta de que pertenciam igualmente à humanidade».

 

   Certo é que, em tempo de invasiva globalização (pensei esta expressão e dou-me bem com ela), ninguém escapa à interrogação do destino do mundo, caminho de todos e de cada um, e acerca de se isso poderá ter governo e como. Esse epifenómeno da egocultura americana, vulgarmente chamada "american dream", que dá pelo nome de Donald Trump, poderá julgar que a grandeza dos EUA, como potência superior, quiçá hegemónica, será a chave do fado e da ordem mundial. Mas, não só a confusão das gentes que compõem o seu eleitorado, e cujo único denominador comum é uma pungente debilidade das respetivas visões do mundo, é incapaz de ultrapassar critérios sectários desfasados do tempo hodierno, como tampouco saberá produzir um discurso compreensível, racional e sentidamente aceitável pelos restantes cidadãos estadunidenses e outras muitas e variegadas gentes. E não será assim tão só em resultado de pouca instrução e fraca cultura do espírito, nem apenas pela exposição quotidiana de mentes sem educação do espírito crítico às ilusões mediáticas de notícias ou anúncios falsos, sejam esses de motivação política, publicitária ou outra. Pois também a falta de mais propostas livres e promotoras de consciência humanista é fruto do "quero, posso e mando" dos grandes interesses político-económicos, da omnipresença quase omnipotente do seu "marketing" nas orientações dos comportamentos dos indivíduos. Mesmo aqueles que se tomam por independentes, modernos, informados e cultos, são certamente enformados nas suas opções de dietas, passeios, leituras e lazeres, para já não entrarmos por questões políticas e outras de fora da sua vida estritamente privada. Basta falar com qualquer quarentão ou cinquentão (a média idade nas sociedades de "afluência"), para encontrar gente bem convencida de si e suas artes, mas que, afinal, tal como logo recorre à informação imediatamente disponível no computador ou no iphone, também não tem tempo nem esforço para refletir e exercitar espírito crítico. Menos ainda para sequer entender a força humanizante da contemplação. Seja de que lado estiverem quanto ao aquecimento global, às fontes de energia ou à alimentação sadia. Uns e outros vão beber às respetivas fontes, ou seja, ali onde se acham intelectualmente corretos. Eça de Queiroz dizia que a cultura, em Portugal, se importava de França, pelo paquete. No mercado contemporâneo, além do pronto a vestir e do take away, compra-se, na tv ou na net, o pronto a pensar, a opinar, a ter razão, a nos orientarmos pelo melhor, desde a ideia política ao passeio de domingo... mas o individualista sentimento de si é tão marcante que cada qual vê o mundo e os outros a girar à sua volta - por vezes quase como automobilista a identificar-se com a potência do seu carro - e se perde íntima comunhão com o mistério ontológico de tudo, essa oração essencial, tal como, infelizmente, se vai fugindo dessoutra força centrípeta que é a solidariedade humana.  

 

   Voltando atrás, Princesa de mim, reencontro essa ideia de povo eleito ou, mais simples e assustadoramente (evocando o conceito "arendtiano" de banalidade do mal), esse sentimento de superioridade atribuível à raça, à religião, à linhagem, à instrução, etc... Quem assim se reclama de direitos especiais, incluindo o de governar os outros, até se esquece dessa profecia de Pablo Neruda (cito de cor, a ideia está certa, a fórmula, creio, próxima) de que "podemos ser livres nas escolhas, mas seremos sempre escravos das consequências delas"... Mas, pergunto, não estaremos nós a enveredar, cada vez mais, pela senda da liberdade condicionada? [ou, desde já, da robotização?]

 

   Aliás, esse dito do Neruda (que, mais do que comunista, foi poeta), também qualquer filósofo o poderá relembrar ao debater a crise atual da democracia nas sociedades em regime liberal-capitalista. Na verdade, a justíssima opção da livre concorrência como garantia da igualdade das oportunidades, da melhoria da qualidade dos bens e dos serviços, da distribuição da riqueza criada por critérios de justiça e mérito, acabou por ser geradora da sua própria Némesis : o esquecimento ou laxismo da responsabilidade política de devidamente assegurar as condições necessárias a uma economia humanista (quem se lembra ainda do movimento Économie et Humanisme do padre Lebret, dominicano francês, que em Portugal só teve algum acolhimento pela geração hoje conhecida como "os vencidos do catolicismo", na roda da Moraes Editores do António Alçada Baptista?). Para resguardarmos a nossa humanidade, não será necessário aprendermos a limitar os excessos de acumulação, anonimização e intervenção política e social do capital (designadamente nos meios de informação) , tal como a submeter a promoção e publicidade das ofertas de bens, serviços e lucros financeiros a critérios de transparência e de responsabilização ativa, célere e rigorosíssima dos infratores? Infelizmente, desembocamos em praças onde inconfidências e desastres podem trazer a público enganos magoados e fados mais tristes de famílias espoliadas pela ganância de "empresários" e "financeiros", estes mesmos continuando a safar-se. Mais e pior: sem pejo, por aí continuam a acenar com ilusões.   

 

   Quanto ao concerto das nações, nesta etapa da globalização, também vai espreitando, em busca da recuperação do sonho russo (tzarista e soviético) de ser primeiro entre os seus pares, Vladimir Putin. Aposta, como o colega Trump, no reforço de um poderio financeiro assente em empreendimentos só viáveis pela acumulação de capital, pela concentração de poucos comandantes dos demais agentes económicos. E, externamente, vai fazendo apostas... Muitas vezes me mói o toutiço a questão de como Hannah Arendt tão bem percebeu a essência totalitária partilhada pelo nazismo e pelo estalinismo - que tanto escândalo bem pensante provocou - sem que outros tivessem depois entendido como, mutatis mutandis, o sonho capitalista americano e o economicismo estatal soviético, no campo do exercício político, respondiam à mesma  vontade de poder... hoje tão aproveitada pela nova velha China que, não só mas também, por via de um prosseguido vanguardismo tecnológico, se vai aproximando da meta de maior potência económica e financeira. É assim compreensível a reserva de muitos analistas políticos e filósofos relativamente à reactualização do conceito de Tianxiá: harmonia de todos os que estão debaixo do mesmo Céu, ou - além disso, mas também, parafraseando Orwell e evocando a antiga designação de Celeste Império - sendo uns mais celestes do que os outros?

 

   Pois, na verdade, tal como o sonho americano desenhou o direito universal ao enriquecimento dos indivíduos, também a dado passo acordou para a necessidade (como fator e como fatalidade) de assegurar externamente as condições políticas e militares da sua prepotência económica. Os poderosos regimes ditos comunistas, inversamente, concluíram que um possível proeminente lugar no mundo não poderia ser-lhes garantido apenas por forças armadas, repressão de povos, controlo das vidas, desde a natalidade até ao usufruto de bens e ao livre exercício do pensarsentir. Pareceu-lhes, assim, imprescindível a criação de músculo económico e financeiro e a procura de novos modos de imposição do poder estatal, incluindo as formas mais subtis, por via, privilegiadamente, da informática... estaremos todos destinados a ser robôs? 

 

   Se releres passadas cartas minhas, Princesa, perceberás porque me comoveu profundamente a notícia de recentes reencontros de membros sulistas e nortenhos de famílias coreanas, e me valeu o recolhimento de umas horas a da morte do israelita Uri Avnery, num hospital de Telavive, aos 94 anos. Quando só contava 10 de vida, refugiara-se na Palestina sob administração britânica, acompanhando seus pais, escapando à perseguição nazi. Era então alemão, chamava-se Helmut Ostermann, e aos 15 já era membro do movimento sionista Irgun, que mais tarde abandonaria, para se tornar num defensor intransigente da paz, do reconhecimento de dois estados palestinos (um dos quais judeu). Até hoje, lutou sempre contra a ocupação ilegítima de territórios por Israel e, pouco antes de morrer, ainda se pronunciava contra a lei que quer impor o conceito de Israel como pátria histórica do povo judeu.

 

   E, neste último domingo de agosto, é de coração sentido que dizemos a Deus a John McCain, herói de guerra, ferido e feito prisioneiro no Vietnam, político humanista, defensor da dignidade humana, que não se cansava de lembrar que, apesar das torturas sofridas, a guerra lhe tinha ensinado a amar e procurar a paz... Serão pois bem sinceras as condolências do seu guarda de cárcere vietnamita, ao dizer hoje como chora a sua morte.

 

   A dedicação de tanta outra gente a causas e serviços de solidariedade humana, a causas de justiça e de paz, de proteção e exaltação da natureza e da vida, de recuperação de doentes, de superação de desvantagens físicas ou mentais, de reinserção social e consciencialização da sua própria dignidade humana de presos e marginalizados, é o espelho maior em que a nossa humanidade se deveria rever... Então, porque será que, a toda a hora e momento, nos envolvem em notícias torpes, acusações e ataques ad hominem, ou ilusões de luxo e de luxúria?

 

   Talvez se ganhe mais esperança em comungar no batimento incessante do coração de gente sempre viva. Sobretudo se, nos sinais dos tempos, além de maus agouros, soubermos encontrar, e amar mais, sinais das promessas de Deus.

 

   Camilo Maria

   

Camilo Martins de Oliveira

 

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

 

 

Minha Princesa de mim:

 

   A Foreign Affairs publicou um artigo assinado por Jeremy Shapiro, com elucidativo título: WHY TRUMP CAN SAFELY IGNORE EUROPE: Its Leaders Readily Condemn But Never Act.

 

   Talvez tenha vindo a ser assim há tempo de mais. Proximamente - depois da retirada americana do acordo com o Irão (sobretudo tendo em vista as ameaças de penalização, pelos EUA, das empresas europeias que mantenham os seus negócios persas) e da extemporânea e provocatória mudança da sua embaixada para Jerusalém - veremos se e como, parafraseando jargão jurídico, a UE e cada um dos seus membros irão continuar a "promulgar" os "decretos" estadunidenses, ou optarão por "derrogá-los" ou, mesmo, "revogá-los", isto é, como continuarão a seguir as orientações americanas : se total, parcialmente, ou de modo nenhum. Ou ainda, e melhor seria, se ousarão enfrentar desafios diretos lançados pelos EUA, tais como esta última decisão unilateral de agravamento de direitos aduaneiros americanos sobre produtos europeus. Wait and see... 

 

   Tal dilema, é difícil resolvê-lo já e só por via diplomática, sabendo nós que os negociadores europeus estão fraturados (p. ex.: quatro países membros estiveram na "festa" da embaixada em Jerusalém; a Itália, um dos fundadores da CE - com a França, a RFA e os três do BENELUX - é hoje uma interrogação a juntar ao Brexit), além de que, na verdade secreta dos factos e relações económicas, o poder que finalmente delineia, determina e decide, reside mais nos próprios agentes financeiros do que nas instituições e órgãos do poder político. Esta última questão, aliás, é doravante crucial em qualquer projeção do que poderá ser uma democracia no futuro, já que a concentração crescente da riqueza e do poder financeiro anda de mãos dadas com a sua infraestrutura tecnológica e a oferta de bens e serviços básicos, desde a energia à informática e comunicações; e também não tem pátria, nem população a quem prestar contas, além dos seus próprios donos ou acionistas. Cansado de noticiários recitados por "jornalistas" que pouco ou nada sabem do que dizem - e, tantas vezes, até mal conhecem o significado das palavras que usam -, farto de fake news e de mentiras de trumps, putins e quejandos, lembrado do Bernanos que, há tantas décadas já, ergueu a voz contra a robotização dos espíritos, chamo, Princesa, a tua atenção para um livro do alemão Richard David Precht, recentemente publicado: Jäger, Hirten, Kritiker - Eine Utopie für die digitale Gesellschaft (Goldmann, 2018). Traduzo o título: «Caçadores, Pastores, Críticos - Uma Utopia para a Sociedade digital». Numa entrevista à revista Der Spiegel (o espelho), o autor afirma que a Silicon Valley vê no ser humano um organismo que funciona segundo reflexos mecânicos, como um rato de laboratório... Uma minha sucinta interpretação do que diz o próprio livro é que o projeto de sociedade digital ali analisado padece de uma vocação totalitária mais coadunável com um regime iliberal do que com aquilo a que chamamos democracia liberal (no sentido político de sociedade em liberdade de consciência e participação nas decisões coletivas). No fundo, está bem longe dos ideais humanistas da Renascença e da racionalidade das Luzes... Acrescento que nada tem, certamente, a ver com essa espiritualidade a que Romano Guardini tão bem chamou O Valor Divino do Humano (livro que li bem jovem, e ainda guardo)...

 

   Mas, ficando pelo universo internacional, passam por aí veleidades e prenúncios de recomposições, precárias ou, quiçá, mais duradouras, de entendimentos e alianças: a busca de um entendimento de europeus com russos (que são não só, mas também, um pouco europeus) sobre a salvaguarda do acordo nuclear com o Irão, é disso exemplo, como de nova arrumação do xadrez diplomático, visto que outros parceiros aparecem, incluindo uma potência maior (a China). E também surgem desafios à periclitante centralidade ou superioridade dos ocidentais, não só vindos dum qualquer misterioso "oriente" - que a nossa corrente vox populi teima em considerar exótico, já que só acha normal e normativo, sempre, evidentemente, o "ocidente" - mas de outras zonas do planeta, como a América Latina, colonizada, larga e continuamente povoada por imigrantes europeus. Lembro, para nossa ilustração, Princesa de mim, um livro recente do colombiano Arturo Escobar, para o qual fui inicialmente atraído pela primeira palavra do título, vocábulo que eu só conhecia, sob a forma pensarsentir, da minha própria escrita: Sentipensar con la tierra. Nuevas lecturas sobre desarrollo, território y diferencia. Basta traduzir-te uma frase desse conhecido militante e antropólogo colombiano, para também perceberes o despertar de uma nova consciência da dignidade dos povos: Nós somos diferentes de vós, Ocidentais, porque beneficiamos de outro modo de sentirpensar com a Terra, porque lutamos contra o individualismo, e temos uma cosmologia muito mais rica e relacional do que a vossa. E assim também volto a pensar no tianxiá.  Sorrindo pelo jeito com que as duas Coreias e a China, falando entre si, lá conseguiram voltar a sentar o presidente Trump à mesa...dando-lhe, presumo, as necessárias garantias de graxa com renovado brilho. Ou, em contrapartida da "compreensão" americana para com a ZTE (empresa chinesa que tem violado os limites impostos pelos EUA para negócios com o Irão e a Coreia do Norte), oferecendo mais reconhecimento de marcas comerciais, e proteção das mesmas, à sua filha Ivanka que, como sabemos, além de empresária, trabalha na Casa Branca e, ocasionalmente, representa o senhor seu pai, como aconteceu na cerimónia de inauguração da embaixada americana em Jerusalém...

 

   A política de Obama não era perfeita, mas tinha o mérito indiscutível de considerar como sua premissa a realidade do atual advento de um mundo plural para o fomento e a prática de uma cultura da paz e do respeito democrático. Os slogans trumpistas de America first! Make America great again!, como o seu comportamento errático-oportunista em todas as negociações e disputas internacionais onde se mete (incluindo as de matéria ou consequências económicas e comerciais), deixam-nos temer, Princesa de mim, um mundo de conflitos cujos manipuladores nem sempre serão só os que deixam os rabos de fora... Poderia escrever-te agora muitos parágrafos acerca do modo aparentemente caprichoso como a política externa americana tem sido "conduzida", desde a obsessão de Trump com o seu "estrelato" (uma quase olímpica primazia) ao seu receio de ser menosprezado ou desconsiderado, tudo isso refletido naquele seu tique de que tudo estava e continua mal, mas será, brevemente, por ele, o Magno Donald, totalmente banido, destruído, ou, então, revisto, corrigido e bem melhorado. Não faz política enquanto ciência e prudência, vontade de consenso e bem querer, mas apenas busca que surjam ou possam surgir -   há que aproveitá-las! - oportunidades de "brilhar" ou afirmar primazia. É, assumidamente, um "business man".

 

   Mas desde há muito que te vou dizendo como, na raiz profunda de tanta confusão - ao ponto de, por vezes, nem sabermos bem quem somos, onde nos situamos ou devemos situar - está uma cultura em crise. A explosiva disseminação de notícias e semânticas novas por meios ditos de "comunicação social", com a consequente superficialização das perceções e variação dos sentimentos, vai minando a nossa capacidade de ponderação e reflexão, isto é, vai fazendo de nós baratas tontas. O que já foi pensarsentir, uma construção mental e espiritual do nosso ser humano na sua circunstância, tende progressivamente a tornar-se numa mera reprodução mimética de fantasmas que nos são propostos ou impostos de fora. Aliás, os casos mais alarmantes de autismo adventício que hoje vão surgindo entre tantos jovens, que se fecham nos seus quartos com um ecrã e um computador, são "vidas virtuais" de seres humanos cuja circunstância real é feita de fantasias.

 

   Por enquanto, todavia, a consequência mais imediatamente gritante desta presente cultura da banalidade e superficialidade, com o seu rodopio de imediatismos proponentes de gozos e usufrutos logo esgotados e substituídos, é esse pulular estulto de idolatrias: desde as dietas adelgaçadoras ao melhor champô, do melhor jogador do mundo ao ator mais sexy, ou à modelo mais glamour; do meu clube que só pode ser campeão, ao meu partido que tem sempre razão, ao líder que tudo sabe e conduz o modelo económico sempre gerador de riqueza, etc... etc... Tal criação de riqueza servindo, obviamente, para me assegurar, na estabilidade garantida pelo tal líder, tranquilo usufruto do maior número possível de bens e serviços adquiríveis.  Num mundo que a chamada globalização progressivamente concentra (o que também quer dizer que vai tornando as suas nações e culturas cada vez mais centrais e menos periféricas), um "ocidente" descuidado e incauto, se não arrogante e distraído, delicia-se, por exemplo, a importar terapias físicas e psíquicas de qualquer arquétipo "oriental", como novidades a juntar à sua panóplia de consumos disponíveis... - mas queda-se sem a inteligência e a vontade (diria mesmo a prudência, esse amor sagaz) necessárias ao entendimento e convívio com novos vultos e outros protagonistas da cena internacional. Isto é: o "ocidente" teima em pensarsentir que o seu modelo económico, o seu regime político, a sua ética de êxito materialista, são o que há de melhor, são incontornáveis e impõem-se universalmente. Desejamos doidamente enriquecermo-nos; mas a riqueza por que ansiamos pouco ou nada tem a ver com a alma, a mente e o coração dos humanos, com essa única perfeição possível pela nossa condição existencial que é o amor na relação de uns com os outros, a busca da utopia das bem aventuranças.

 

   Finalmente, ou seja, para acabar esta carta - que, como todas as outras, é mera conversa entre nós, Princesa, para puxar a cabeça um ao outro - deixa-me referir-te que a França das luzes tem andado a olhar bastante para uma Itália politicamente caótica (que vai, paradoxalmente, assustando e, a talho de fouce, alertando e despertando a Europa). Parece-me, pelas traduções do italiano que em francês se vão sucedendo, que a Gália, também inquieta com a sua própria crise de identidade e valores, procura ali encontrar memórias, razões e motivos para voltar a beber mais das águas que regaram as nossas greco-latinas raízes culturais. Sabes como, pessoalmente, penso que o abandono, no ensino liceal, de letras clássicas, por retirar etimologia ao aprender da nossa própria língua, e fechar outro acesso à literatura e à filosofia, foi um erro de "casting"(autorizas-me esta modernice?) dos curricula escolares. Sobretudo - e compreendê-lo-ás melhor quando te falar da escrita chinesa na própria estruturação do discurso intelectual -  a medida em que nos prejudicou a base de construção verbal e escrita dos nossos modos de discorrer. Hoje, direi, caricaturando, já nem neologismos há. O que por aí se ouve é um chorrilho de ditos na moda, cujo próprio significado os seus mesmos emissores não tiveram tempo de compreender. Não faz mal, pensarão alguns: amanhã teremos mais novidades. Traduzo uns trechos do professor Lucien d´Azay (escritor e tradutor, ensina francês no liceu Marco Polo, em Veneza) respigados de um artigo publicado no Figaro Littéraire de 24 de maio p.p., em que fazia a resenha de duas obras vertidas do italiano para francês: La Langue Géniale - 9 bonnes raisons d´aimer le Grec, de Andrea Marcolongo (Les Belles Lettres, Paris) e Vive le Latin - Histoires et Beauté d´une Langue Inutile, de Nicola Gardini (Éditions de Fallois):

 

   Porque nos chegam de Itália estes dois livros? Porque esse país, diferentemente da França, nunca duvidou da sua herança clássica, nem do estudo, desde o liceu, do que outrora se chamava «humanidades greco-latinas». Na Itália, o filão mais prestigiado do segundo ciclo do ensino secundário permaneceu o liceu dito «classico», cujas matérias principais, durante cinco anos (dois anos de «ginnasio» e três de «liceo» propriamente dito), são precisamente o latim e o grego antigo. Deve-se atribuir a essa escolha o sentido da urbanidade, o bom humor e a alegria de viver que qualquer cidade italiana testemunha? É certo que o clima e a beleza do cenário para tal muito contribuem. Mas o gosto da civilização clássica participa do mesmo espírito, da mesma graça.

 

   Seria curioso que uma sociedade como a nossa, que tão ostensivamente aspira ao hedonismo e à beleza, quisesse sacrificar o imenso prazer providenciado pela aprendizagem e a prática das línguas antigas, com o pretexto de que elas já não servem para uma cultura sujeita à atualidade, às mercadorias e à tecnologia. Na Renascença, o latim e o grego galvanizavam aqueles homens universais, modelos de humanitas, como foram Aldo Manuce e Ange Policiano. Inspiremo-nos neles. Gaudeamus igitur!

 

   Apesar de ser um "bota de elástico", não estou a propor que se restaure, em Portugal, a escolástica! Mas parece-me razoável poder, pelo menos, esperar mais cultura na educação da fala, da leitura e da escrita. Quanto mais não seja, para que a gente não fale por falar e como ouviu soar, mas para procurar exprimir algo que faça sentido. E deixo o sentido do yi chinês para a próxima carta.

 

Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira

 

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

Minha Princesa de mim:

 

   Soube, cedo pela manhã, que o Fidesz de Viktor Orban terá obtido quase 50% dos votos nas legislativas húngaras, os quais lhe darão uma maioria absoluta (ou seja, de 2/3 dos lugares) no Parlamento. A sua campanha assentou fundamentalmente na política anti imigração, evocando razões de segurança interna e a preservação da identidade nacional.

 

   Mas, ao talho da fouce lúdico-grave com que temos cortado em efemérides e mitos, na nossa correspondência recente, Princesa, calha mais a jeito o "Viva!" gritado por um jovem apoiante do Fidesz, chamado Lehel: Orban é um visionário, o maior homem político da Europa. A sua política é que é a boa! Viva Trump, viva Putin e viva Orban!

 

   Uma política trindade, que dispensa comentários. Qualquer "populismo" é trágico-cómico, revela sobretudo, hoje, uma carência cultural - que nada ou pouco tem a ver com esses debates acerca da atribuição de subsídios a um universo vário de iniciativas "culturais" - mas é indigência de educação básica da descoberta das raízes e desenvolvimento da nossa natureza ou ecossistema espiritual, e de espírito crítico. Os providencialismos surgem quando já não sabemos bem intimamente quem somos, e deixámos de pensarsentir por nossa cabeça-coração.     

 

   De tanto te falar de curiosidades "imperatoriais", lembrei-me de um dos últimos títulos da série Lucky Luke, daquela em que o desenhador Morris, que inventara a personagem do cowboy solitário nos anos 40, teve como parceiro guionista o também inolvidável Goscinny, trabalhando juntos de 1955 a 1972. A história aos quadradinhos (ou quadrinhos) que ora te recordo é a de L´Empereur Smith (Dargaud, 1976), conto impagável, em que, aliás, também é posto em cena um colega e amigo dos dois autores, o desenhador Uderzo, brevemente anunciado, num baile da corte imperial de Smith, como Sua Excelência Giovanni Uderzo, Embaixador de Sua Majestade Vítor Manuel II, Rei de Itália!... O verdadeiro nome do Uderzo (desenhador de Asterix e Umpapá) era Alberto. Tudo aquilo é uma paródia de qualquer corte napoleónica, esta recriada numa imaginária cidade do Oeste americano, Grass Town. Não te digo mais, apenas te aconselho leitura muito divertida e... instrutiva!

 

  A ficção do conto, ainda por cima, tem raízes históricas. Citando os autores, traduzo: Por inverosímil que pareça, a aventura de Dean Smith, "imperador dos Estados Unidos" baseia-se em factos históricos.

 

   Na verdade, algumas personagens excêntricas sonharam transformar em monarquia a jovem e grande República americana. A mais célebre persona foi um tal Joshua A. Norton, nascido na Grã-Bretanha a 4 de fevereiro de 1819. Chegado a São Francisco em 1849, lançou-se logo a negócios. Inteligente e manhoso, fez rapidamente fortuna no imobiliário e na importação. Mas, alguns anos depois, Norton arruinou-se num infeliz negócio de cereais: esse desastre financeiro fê-lo perder a razão.

 

   Foi então que uma obsessão ganhou corpo no seu espírito doente: decidiu que era Norton I, imperador dos Estados Unidos. Já não tendo dinheiro, não pôde levantar um exército, comprar armamento e rodear-se de fasto. Assim, era perfeitamente inofensivo. Os habitantes de São Francisco acharam divertido esse homenzinho ridículo que se arrogara os títulos sonoros de imperador dos Estados Unidos e protetor do México. Em breve se tornou chalaça corrente enviarem-lhe telegramas assinados por chefes de Estado, tal como publicarem-se proclamações fantasiosas por ele assinadas. O imperador Norton depressa se tornou popular: era um homem bom e cortês, e quando morreu, a 8 de janeiro de 1880, mais de 10.000 pessoas assistiram ao funeral. Tinha entrado, à sua maneira, e de pleno direito, no panteão dos excêntricos que contribuíram para forjar a formidável lenda do Oeste.

 

   O génio da escrita de Goscinny e do desenho de Morris tornaram tal história numa sátira divertida em que, a par de um olhar benevolente e de humana estima sobre o de per si inofensivo louco Dean Smith, e de uma acertada, ainda que sempre hílare, reprimenda dos malevolentes oportunistas que, à sombra do imperador, procuram riqueza e poder, se nos oferece o "show" de uma burguesia inchada de nada pelo vício gostoso de títulos e honrarias do império. Babados. Quiçá em evocação dos exércitos napoleónicos, os soldados de Smith justificam-se: é bem melhor andar fardado e bem pago do que correr planícies atrás das vacas...como quando éramos apenas esforçados cowboys!

 

   Mas, em 2ª feira de primavera chuvosa - que, todavia, vai tornando, dia a dia, mais viçosa a minha cerejeira do Japão - volto, Princesa de mim, à notícia de abertura desta carta (a brincar ao telejornal): a oposição húngara (talvez excluindo a extremíssima direita, que conquistou quase 20% dos votos) está dividida, e um pouco perplexa, entre liberais e socialistas, mais ou menos europeístas. Na linha do que vamos, tu e eu, Princesa, conversando, deu-me gosto e gozo ler um artigo no meu "Réveil" do Courrier International desta manhã, intitulado: En Pologne, rire des hommes politiques plutôt que déprimer. É melhor rirmo-nos dos homens políticos do que entrarmos em depressão.

 

   Referem-se vários espetáculos, programas televisivos e ditos humorísticos, numa Polónia governada pelo PiS, Partido Direito e Justiça. Desde o espetáculo de cabaré Pozar w Burdelu ("Há Fogo no Bordel") ao televisivo Make Poland Great Again! (lembro-me de já ter ouvido algo parecido...) ou, ainda, uma adaptação da série americana Saturday Night Live. Tudo modos de rir dos poderes e das oposições, assim desdramatizando situações e conflitos, reduzindo megalomanias imperiais à dimensão, pequena mas humana, dos Smith sem providencialismos. Tentativas de chamar o bom senso à ribalta, através do riso que, em minha opinião, é, muitas vezes, o remédio dos sábios: abre portas à sageza, ao sentido de justa proporção, ao espírito livremente crítico, à alegria da responsabilidade.

 

   [Gosto muito, no discurso do papa Francisco, dessa insistência em tudo referir à alegria: a da boa nova, a do amor, a da aprendizagem e, já agora, digo eu, porque não?, à da responsabilidade, isto é, do dever em consciência cumprido.]

 

   [Ucha Prezesa ("O Ouvido do Presidente"), de que vi um episódio pelo YouTube, brinca com uma presidência diáfana e inefável, mas tentacularmente presente, e com os seus respetivos sequazes e opositores. Este Presidente não é o da República, Andrezj Duda, mas a eminência parda, Jaroslaw Kaczynski, líder do Partido Direito e Justiça. Todos acabam por não saber bem a quantas andam...]

 

Camilo Maria

  
Camilo Martins de Oliveira