Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

UM MUNDO FLUTUANTE

  


A relação dos portugueses com o Japão é singular e corresponde, apesar das vicissitudes, a um percurso que o tempo fortaleceu. Os primeiros portugueses chegaram ao país do Sol Nascente entre 1542 e 1543. Segundo a tradição, teria sido um junco chinês com três portugueses, apanhado por uma tempestade, que teria sido desviado para a ilha de Tanegashima. E a partir de então iniciou-se uma relação com repercussões culturais únicas. Não foi, no entanto, fácil o intercâmbio histórico e religioso, muitas vezes com repercussões trágicas. A evolução permitiu, porém, o aprofundamento dos fatores de entendimento.


A exposição «Mundo Flutuante: estampas japonesas “ukiyo-e”», que se encontra no Museu Gulbenkian, é uma agradável surpresa. Centra-se no conceito de ukiyo, que se refere aos prazeres efémeros da vida quotidiana. Sobre esse tema fascinante, Calouste Gulbenkian reuniu um notável conjunto de arte produzida entre os séculos XVII e XIX, maioritariamente estampas do período Edo (1603-1868) e um conjunto de objetos de laca., além de livros, incluindo as preciosas “surimono” que permitem usufruirmos das mais valiosas virtualidades da cultura nipónica. É uma faceta menos conhecida da personalidade de Gulbenkian que permite compreender o carácter multifacetado do extraordinário colecionador. Em paralelo, e num domínio diferente, o Centro de Arte Moderna celebra os seus quarenta anos de vida com uma evocação da contemporaneidade japonesa, permitindo-nos complementar a lembrança histórica e a vitalidade atual. Aproveitando a obra de renovação do CAM pelo arquiteto japonês Kengo Kuma esta aproximação cultural revela-se preciosa. Na tradição antiga e na modernidade, a natureza é, para os japoneses uma força vital. E sempre me tocou o grande interesse dos japoneses por Portugal, sabendo eles muito mais sobre nós do que nós sabemos sobre o Japão, apesar do contacto e da partilha de experiências.


Agora, temos o privilégio de dispor de diferentes visões da natureza e da paisagem, a projeção da perspetiva linear ocidental do Renascimento para o Oriente, a beleza e a sofisticação das cortesãs (“bijin”), a importância das narrativas literárias tradicionais, mas ainda os efeitos das inundações de 1967 sobre as estampas da coleção e a mestria dos restauros realizados. 


Perante as belas estampas japonesas da coleção de Calouste Gulbenkian, recordo a visita que fiz a Ryoan-ji, em Quioto, quintessência de um templo zen. João Bénard da Costa no seu “Quinze Dias no Japão” (2001) fala-nos da inesquecível experiência que teve nesse jardim de delícias. No filme “A Décima Quinta Pedra” de Rita Azevedo Gomes (2007), João desenvolve num diálogo extraordinário com Manoel de Oliveira a ideia de que “só se vê com o coração” … Naquele jardim, com quinze pedras, representando o universo, em nenhum ponto do mesmo podem ser vistas todas elas. Há sempre uma que desaparece encoberta por outras. E depressa percebemos que nunca poderemos ver todas as pedras em simultâneo. O monge de Ryoan-ji perguntou ao João, no fim da estada, se já compreendia o que vira. «Começo a compreender!» - disse o interlocutor de um modo cauteloso. Mas o monge surpreendeu-se: «Já aqui estou há vinte anos e cada vez entendo menos». E mercê do alerta do monge, percebe-se que só com o coração se pode ver, compreendendo o mundo, a memória e o tempo. “No Oeste varremos as folhas caídas com a nostalgia de quem sabe que o tempo findou; no Japão essas folhas juntam-se e dão lugar à alegria do surto de um novo tempo”. A cultura traz-nos mil surpresas. E dizia João que «esse jardim de Ryoan-ji ensina-nos, entre muitas outras coisas, que dizem os orientais, uma vida inteira não dá para aprender, que cada coisa é ela e simultaneamente o seu duplo, que nada existe fora do olhar que lhe dá existência e que – como no paradoxo de Zenão, de que talvez seja a ilustração suprema – o movimento é a mais radical de todas as ilusões».


GOM

A VIDA DOS LIVROS

 

GOM _ A Vida dos Livros.jpg
  De 10 a 16 de abril de 2023

 

«O Português visto por (alguns) Portugueses» de Marcello Duarte Mathias (D. Quixote, 2023) permite-nos compreendermo-nos melhor à luz da nossa literatura de hoje.

 

Marcello Duarte Mathias

 

AFINAL, QUEM SOMOS? 

«Quem somos? Qual o grau da nossa cultura? Porque decaímos? Que remédios nos poderão salvar? Sem dúvida tentaram eles (os homens de 1870) responder a estas e outras interrogações que tanto nos importam; e com ou sem resposta as legaram às gerações vindouras». José Régio faz estas perguntas a que temos de responder com sentido da realidade. Marcello Duarte Mathias reuniu na obra que intitulou O Português visto por (alguns) Portugueses (D. Quixote, 2023) opiniões que podem ajudar. E neste conjunto de diversas perspetivas, podemos concluir que nos caracterizamos por algo paradoxal que nos distingue. Por isso, o conde Ficalho disse que, com essa busca, Portugal “significa simplesmente ser uma coisa à parte, sem imitação e sem cópia; significa ter uma língua própria, e um traje especial e um modo de pensar e de sentir particular, lentamente fixado pela tradição (…). E se um dia, os burgueses e viscondes, que tão relesmente nos governam, chegarem a desnacionalizá-lo, sob o fútil pretexto de o civilizar, hão de talvez perceber que ele fica sem grande razão de existir». Com estas palavras ásperas, Ficalho faz suas as preocupações de antepassados como Almeida Garrett e Alexandre Herculano, longe de qualquer entendimento fechado ou autossuficiente. Daí que este verdadeiro inquérito nos permite ver até que ponto no ocidente peninsular se construiu uma identidade própria, aberta e complexa, que poderemos designar por um patriotismo prospetivo, que envolve a compreensão de uma realidade complexa e diversa que devemos continuar a aperfeiçoar e a fortalecer, como realidade viva e aberta.

 

O CARÁCTER PORTUGUÊS

Pela parte que me toca, segui desde muito cedo muitos dos percursos que aqui encontramos – salientando uma preciosa primeira edição de “O Estudo do Carácter Português” de Jorge Dias que me acompanha e que continuo a ler com distância crítica, ao lado de um manual único de ensinamentos sobre quem somos, que é “Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico” de Orlando Ribeiro, onde está tudo o que devemos saber sobre nós mesmos. Devo dizer, aliás, que, confirmando plenamente o que Ernesto Sabato afirmou sobre a verdade de uma nação dever ser encontrada nos romances, e não na História, foi Ruben A. quem demonstrou claramente, designadamente em “A Torre da Barbela”, que os portugueses só podem ser compreendidos com essa rica profusão de retratos romanescos, que vão do “pobre de mim” da “Peregrinação” até à Joaninha dos Rouxinóis, ao Joãozinho das Perdizes, a Simão Botelho, a Fradique, a Jacinto, a Zé Fernandes, a Gonçalo Mendes Ramires, ao Lelito de “A Velha Casa”, até aos fantasmas de Barbela e à panóplia de Aquilino, de Nemésio ou de Saramago… E, nos textos escolhidos, com olho clínico, por Marcello D. Mathias é essa heterogeneidade que encontramos, ligada por um forte fio de Ariadne. “O génio lusíada é mais emotivo do que intelectual”, diz Pascoaes. “O trágico, o patético, a teatralidade, a desmesura não são connosco”, afirmou António José Saraiva. “O bom português é várias pessoas”, para Fernando Pessoa. “Entre o delírio e a melancolia, entre a exigência e a queixa, (o português) prefere esperar a sua vez”, disse Agustina Bessa-Luís. “Os portugueses têm aversão às soluções simples” para Valente de Oliveira.

 

UM NOVO-VELHO PAÍS

Com o 25 de abril de 1974, nasceu “um novo-velho país, e não é fácil a adaptação que constituiu uma verdadeira metamorfose. Para muitos um reencontro; para os demais, um dilaceramento. De qualquer modo, esta procura de identidade, que se agudiza com o pós-25 de abril, não é sentimento exclusivamente nosso, pois foi partilhado pelos países europeus que haviam sido potências coloniais, e que viriam a sofrer de semelhante rutura”. E a literatura dá-nos pano para mangas para essa interrogação e o sucesso do Marquês de Fronteira D. José Trasimundo, a seguir à revolução, foi significativo do que permanece e do que muda. António José Saraiva, Eduardo Lourenço, Vergílio Ferreira devem, por isso, ser lidos com atenção, porque o sentido crítico ajuda a uma leitura dos acontecimentos capaz de compreender a complexidade dos fatores com que se constrói a pátria. Uma identidade antiga não pode ser interpretada de modo simples ou superficial. E se esta obra notável de Marcello Duarte Mathias merece uma atenção especial e uma revisitação necessária, tal deve-se à complementaridade dos diversos registos que integra. E assim se entende Eduardo Lourenço, uma vez que ninguém levou tão longe e com tanta pertinácia “repensar a sério e a fundo uma realidade tão difícil de apreender como a portuguesa”. O autor apresenta diversos testemunhos numa escolha plural que permite compreender a essência do património, como serviço do que recebemos de quem nos antecedeu, fundamento duma herança rica e multifacetada, e valorização de uma memória viva. Na evocação, por exemplo, de Augusto de Ataíde ou de João Bigotte Chorão, duas personalidades com experiências diferentes, sentimos que a cultura se constrói com sensibilidade e sabedoria, com vontade e lembrança. E uma certa frustração das elites, correspondente à sua fragilidade, leva a um persistente fatalismo do atraso e da preguiça, a que importa responder com a compreensão de que, mais do que o primado do improviso, o melhor em nós é o trabalho. De facto, só podemos ter resultados positivos se ligarmos organização, persistência e cooperação. Sempre que o fizemos ganhámos, sempre que o esquecemos desaparecemos. Não se esqueça o que disse António Sérgio: “Quem vê com miragens o seu passado, constrói com miragens o seu futuro”. E é bom que Miguel Torga, como homem de raízes, seja lembrado quando diz “o Portugal de que sempre me orgulhei não é o da versão oficial”. Aí se sente “uma vontade de identificação, tanto no plano físico como espiritual, a que nunca renunciará”. Os vários autores que Marcello Duarte Mathias nos traz merecem ser lidos com vagar, de modo e entendermo-nos melhor. Somos um povo antigo, que se evidenciou por querermos ser nós mesmos. Como D. Pedro das Sete Partidas, entendamos a Europa como lugar de afirmação e não de ilusão. “A Europa, sim como pedra angular de uma política externa mais alargada, não como meio de subsistência coletiva; como âncora de ações que se assumem, não como álibis, que desresponsabilizam; não como uma aliança de nações que se juntam na afirmação de um bem comum superior, e não como um conjunto de povos às ordens de uma central burocrática interventiva que se arroga um magistério moral e político que não tem; a Europa, sim, como um processo contínuo de afirmação e valorização do que somos, entidade à parte entre os demais parceiros europeus, e não cobaia de um gradual desapossamento de nós mesmos, de tudo o que fomos e somos”.

 

Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

A VIDA DOS LIVROS

  

De 3 a 9 de abril de 2023


«Portugal e o Islão – Novos Escritos do Crescente» (Teorema, 2009) de Adalberto Alves trata de temas diversos, como o do Diálogo Intercultural, a influência árabe na literatura portuguesa, a História do Período Muçulmano no nosso território ou as contribuições e os limites da Genética no estudo de tal época.

 

A ARTE DO LIVRO
“O Poder da Palavra” é um projeto do Museu Calouste Gulbenkian que visa valorizar a Arte do Livro e outros objetos da coleção do Médio Oriente, com o objetivo de abrir novas perspetivas e criar interpretações contemporâneas, que afirmem a importância essencial do património cultural imaterial. Já na quarta edição, Jessica Hallett e Fabrizio Boscaglia animaram a invocação da festividade do Noruz, o início do ano persa, no equinócio da Primavera. A partir do caminho da espiritualidade sufi, é um conjunto de iniciativas centradas no Museu sob o título “Sabedoria Divina – o caminho dos sufis” até 2 de outubro de 2023, que salienta a importância de um verdadeiro diálogo entre culturas. A noção moderna do património cultural, como o Conselho da Europa salienta na Convenção de Faro, corresponde a essa ideia dinâmica, em que o passado e o presente são fatores de enriquecimento e respeito mútuo, de criatividade e de paz.


A música, a dança, a poesia, a caligrafia são expressões da Beleza e Majestade Divinas. Assim, os poemas de amor sufi referem-se ao copo e ao vinho, como metáforas da complementaridade entre as práticas religiosas exteriores (copo) e do êxtase espiritual interior (vinho). O sufi encontra, assim, a Beleza em tudo, quando o ego se encontra pacificado e o coração é espelho polido que reflete a Luz Divina. Tudo ao nosso redor é uma manifestação Divina, do Uno, indescritível e intangível, inefável e belo, majestoso e misericordioso. Não podemos esquecer na cultura portuguesa a Arrábida, como topónimo de reminiscência sufi, no santuário mediterrânico da península de Setúbal, bem ligado à etimologia da palavra árabe, que significa ligação espiritual entre o mestre e o discípulo, e na nossa cultura e língua invoca grandes poetas como Frei Agostinho da Cruz ou Sebastião da Gama. E o certo é que essa ligação espiritual se estende às referências a ermidas e comunidades, com uma forte influência sufi. E invocamos o poema do mestre sufi Ibn ‘Arabi (1165-1240), incluído em “O Intérprete dos Sonhos”, cujas palavras transmitem a mensagem universal do sufismo, como caminho espiritual praticado de modo aberto pelos muçulmanos, centrado em cinco temas chave: Sabedoria, Unidade, Amor, Caminho e Plenitude.


UM POEMA ESSENCIAL
Leia-se o poema e compreenda-se essa rica ligação. “O meu coração tornou-se capaz de acolher todas as formas: / É pasto para gazelas e mosteiro para monges cristãos, / É templo para ídolos e Caaba para o peregrino muçulmano, / É tábuas da Torá e livro do Sagrado Alcorão. / Eu sigo a religião do Amor, qualquer que seja a direção / Que a sua caravana possa tomar. / Esta é a minha religião e a minha fé. Para o sufismo, a proximidade e a procura de intimidade com Deus são ideia-chave. Não por acaso, os primeiros sufis foram chamados como «a gente da varanda (uffah)», por reunirem inicialmente em Medina, sob uma varanda anexa à mesquita de Maomé. Desde então, os grandes sufis como Rābiʿa (718-801) e Rūmī (1207-1273) passaram a ser designados como amigos íntimos de Deus.


Ao invocar o diálogo de culturas e a riqueza da tradição sufi, ouvimos na língua original e em português a grande poesia árabe, e agradecemos a Adalberto Alves o seu trabalho continuado para o estudo dessa presença entre nós, num país cuja cultura e língua se contruíram num cadinho, onde os movimentos norte-sul e sul-norte se encontram e são comuns as referências aos vestígios das comunidades sufis, nas azóias (recantos de recolhimento), arrábidas e morabitos. E numa tarde mágica do início da Primavera pudemos entender como os poetas de Al-Garb do Al Andaluz continuam connosco com as suas palavras e, por isso, sentimos familiaridade quando ouvimos Ruy Belo a dizer “A primavera é o meu país / saio à rua sento-me no chão / e abro os braços e deixo raiz / e dá flores até a minha mão…” ou Antero de Quental a lembrar “Que beleza mortal se te assemelha, Ó sonhada visão d'esta alma ardente…”.

 

Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

MEDITANDO E PENSANDO PORTUGAL

  


38. O PAÍS COMO REALIDADE CULTURAL E LINGUÍSTICA


O reforço de Portugal, como realidade cultural e linguística, é o principal suporte da nossa reação aos desafios que a atual globalização nos coloca e à nossa existência como país.

Numa perspetiva económica e financeira, o escudo e a política monetário-cambial nacional desapareceu. Passámos a ter o euro como moeda e o Banco Central Europeu tomou o lugar do Banco de Portugal.   

Ao deixarmos de ter moeda própria, perdemos a capacidade de ter uma política de comércio externo, de impor ou não restrições às trocas externas, de introduzir taxas aduaneiras ou alfandegárias, ou outras restrições, a outros países, ficando dependentes de decisões dos órgãos da União Europeia.

A nossa política orçamental está condicionada e sujeita ao Pacto de Estabilidade e Crescimento.

As políticas nacionais estão, cada vez mais, subordinadas a Bruxelas, restando-nos poder ter capacidade para as influenciar. 

Portugal como economia é uma região, entre várias, da UE e da zona euro.

Sendo, cada vez menos, um país do ponto de vista económico e sendo-o parcialmente sob um prisma político, é-o ainda no sentido cultural, onde sobressai a língua e o património.   

Quando há uma tendência, com a integração europeia e a globalização, para a ausência de barreiras ao comércio e à mobilidade de pessoas e bens, é a nossa realidade cultural que sobressai, sendo imperioso reforçá-la, assegurando o apoio interno e a  internacionalização do nosso idioma, das nossas artes e centros  culturais,  fazendo mais pela manutenção e restauração dos nossos monumentos e pela divulgação de figuras representativas da nossa identidade e universalidade, sem que isso constitua um obstáculo a contactos com outras culturas.

Para que tudo não fique igual e se fortaleça a nossa especificidade como realidade cultural, enquanto espaço de autonomia e diversidade.    


Joaquim M. M. Patrício
20.01.23

MEDITANDO E PENSANDO PORTUGAL


37. ONDE FICAM AS FRONTEIRAS DE PORTUGAL?


A natureza mista e descontínua do território português manifesta-se no artigo 5.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, onde se lê: “Portugal abrange o território historicamente definido no continente europeu e os arquipélagos dos Açores e da Madeira”, incluindo Olivença, no território continental ibérico. 


Embora real a distinção entre o Portugal continental europeu e o insular, há subjacente a esta descrição uma encruzilhada de vários continentes, da Europa, a África e à América, dado o cruzamento e a tripla junção no nosso território das placas euroasiática (Portugal continental e as ilhas açorianas de São Miguel, Pico, Faial, São Jorge, Terceira e Graciosa), africana (Madeira, Porto Santo, Desertas, Selvagens e a ilha açoriana de Santa Maria) e americana (Flores e Corvo).  


Se tivermos como referência a parte continental europeia, o ponto mais ocidental de Portugal e da Europa é o Cabo da Roca. 


Mas não o é, mas sim o ilhéu açoriano do/e Monchique (apesar de situado na placa tectónica norte-americana, a oeste das Flores), se incluirmos também o Portugal insular e tivermos como Europa a totalidade do nosso país.  


Os arquipélagos dos Açores e da Madeira são a razão de ser de tão vasta dispersão territorial e geográfica, dispersando-se Portugal, no seu todo, uno e soberano, por três continentes, ao invés da versão mais oficial e comum, tendo-o apenas como europeu.


São também os Açores e a Madeira a razão que justifica a vastidão da zona económica exclusiva portuguesa, vinte vezes maior que o território terrestre, sendo a de Portugal continental mais pequena que a de cada um dos arquipélagos. Área que pode aumentar a atender-se às reivindicações marítimas portuguesas referentes à extensão da plataforma continental, vindo a ser, se exequível, vários milhões de Km2, por confronto com 92 000 km2 de terra habitável para humanos.


Embora o oceano seja apenas o Atlântico, a navegação do Mediterrâneo para a Europa do Norte, de África, da América do Sul, de uma parte da América Central e do Norte para a Europa passa obrigatoriamente pela zona económica exclusiva portuguesa, o que exige custos e meios, mas também mentes abertas e visões mais amplas. 


Há que ultrapassar perspetivas paroquiais, alicerçando o futuro de Portugal na riqueza proveniente dessa dispersão, diversidade e multicoloridade territorial e marítima, a ser defendida, adaptando-se e crescendo em consonância com novas conveniências e realidades estratégicas e geopolíticas, sendo cada vez menos sustentável convencionar que a fixação de fronteiras é mais aceitar o costume convencionado em geografia por mero interesse ou proveito político, que o cultural, civilizacional ou verdade geográfica que emerge em si e por si.


07.10.22
Joaquim M. M. Patrício

MEDITANDO E PENSANDO PORTUGAL

Ilha das Flores _ CNC.jpg

 

35. ILHÉU DO/E MONCHIQUE

 

O PONTO MAIS OCIDENTAL DE PORTUGAL E DA EUROPA

 

Integra o grupo ocidental do arquipélago dos Açores a ilha das Flores e a do Corvo.

Em volta da ilha das Flores existem vinte ilhéus.

Um deles, é o ilhéu do/e Monchique.

É o ponto mais ocidental dos Açores, de Portugal e da Europa, tomando como referência o todo do arquipélago açoriano e do nosso país, e que todas as ilhas, ilhéus e ilhotas açorianas são europeias.

Dúvidas não há de ser o ponto mais a oeste dos Açores e de Portugal insular e continental, o mesmo não sucedendo se se considerar que o grupo ocidental açoriano se situa na placa litosférica e tectónica norte-americana.

Sendo, porém, todo o Portugal parte integrante da Europa, o mesmo se convencionou, até hoje, em relação à totalidade dos Açores.

Eis, então, que um grande e sólido rochedo oceânico de basalto, elevando-se e emergindo em dezenas de metros de altura de uma plataforma profunda, em frente à costa oeste da ilha das Flores, é o local e ponto geográfico mais ocidental do arquipélago açoriano, de Portugal e da Europa.

Deu por empréstimo o seu nome ao periódico O Monchique, da ilha das Flores, ao que consta extinto, em presumível homenagem aos tempos que o ilhéu foi ponto de contacto para acerto de rotas e verificação de instrumentos de navegação, com a ajuda de corpos celestes no espaço sideral, qual mensageiro de notícias das Américas e demais terras ao longe.

Sendo mais longo e tardio o tempo até à chegada de Diogo de Teive, achador ou descobridor das Flores, do Corvo e do ilhéu do/e Monchique, dada a dispersão das ilhas açorianas por uma extensa área geográfica.

Em que as duas ilhas mais ocidentais dos Açores estão mais a oeste que a Islândia, que as não supera, apesar da sua insularidade.

O Cabo da Roca, por sua vez, é o ponto mais ocidental do continente europeu, de Portugal continental e da Europa continental, sem incluir o Portugal e a Europa insular. Favorece-se, ainda, uma geografia convencional, embora esta se modifique e apele a outras leituras.

 

Joaquim M.M. Patrício
23.09.22

A VIDA DOS LIVROS

image14752527605109.jpeg
   De 12 a 28 de agosto de 2022

 

Torga, discípulo de Cervantes e de Unamuno, definiu Portugal como um ponto de encontro entre a vontade, o mar e a insatisfação. A leitura da sua obra permite entendermo-nos nas nossas contradições e nos nossos anseios.

 

Torga _ a vida dos livros _ pq.png

 

CADINHO DE VÁRIAS INFLUÊNCIAS

Portugal é um país difícil de entender. O cadinho de várias influências apresenta-nos elementos contraditórios. Mas há fatores que são permanentes e definem uma identidade que começa no querer, continua na omnipresença do mar e pressupõe uma luta constante. Lembremo-nos da saga dos poveiros, com o negro do luto das viúvas e dos órfãos nas praias atlânticas ou do combate contra a adversidade do meio em Trás-os-Montes, no Douro ou no Alentejo. Eduardo Lourenço e José Mattoso lembram que “uma das descobertas mais simples e irrecusáveis do após 25 de Abril é que Portugal é um país como os outros. Sem missão providencial, sem Quinto Império, sem realizações espetaculares, sem lugar especial no mundo, apesar dos Descobrimentos”. Isto significa, porém, que dependemos da nossa responsabilidade, do nosso querer e do saber pensar e fazer. Assim chegámos aqui. Precisamos uns dos outros. E temos de saber planear o futuro, partindo do presente, e avaliar os resultados que somos capazes de obter. Sempre que preparámos o futuro, ganhámos. Ao Deus dará perdemos e agravámos o nosso atraso, que não é uma fatalidade. O mérito não é um mito, só funciona quando resulta do reconhecimento das diferenças e da dignidade de cada um. Miguel Torga foi tantas vezes duro na sua apreciação de quem somos. Sabia do que falava e que nada se consegue de ânimo leve ou de ilusão. O desencanto assalta-nos tantas vezes, e o lirismo poético é apimentado com o picaresco e o maldizer.

 

O MUNDO CONTRADITÓRIO

Desejamos coisas contraditórias. E assim, se temos vícios devemos combatê-los, em vez de cultivar utopias enganadoras e esperanças vãs. Considerando-nos ou os melhores ou os piores, não nos safamos. Relendo o “Portugal” de Miguel Torga, surpreendemo-nos quando nos fala do Algarve, onde o conheci e cuja memória guardo num lugar especial. Disse ele, depois de nos descrever quem somos e onde estamos, sem ilusões: «O Algarve, para mim, é sempre um dia de férias na pátria. Dentro dele nunca me considero obrigado a nenhum civismo, a nenhuma congeminação telúrica nem humana. Debruço-me a uma varanda de Alportel e apetece-me tudo menos ser responsável e ético. As coisas de Trás-os-Montes tocam-me muito no cerne para eu poder esquecer a solidariedade que devo a quem sofre e a quem sua. E isto repete-se com maior ou menor força no resto de Portugal. Mas, passado o Caldeirão, é como se me tirassem uma carga dos ombros. Sinto-me livre, aliviado e contente, eu que sou a tristeza em pessoa! A brancura dos corpos e das almas, a limpeza das casas e das ruas, e a harmonia dos seres e da paisagem lavam-me da fuligem que se me agarrou aos ossos e clarificam as courelas encardidas que trago no coração. No fundo, e à semelhança dos nossos primeiros reis, que se intitulavam senhores de Portugal e dos Algarves, separando sabiamente nos seus títulos o que era centrípeto do que era centrífugo no todo da Nação, não me vejo verdadeiramente dentro da pátria. Também me não vejo fora dela. Julgo-me numa espécie de limbo da imaginação, onde tudo é fácil, belo e primaveril». Não, não há contradição nesta bela página, que temos de ler em estreita ligação a tudo o resto. O que Torga nos diz, é exatamente que temos de ser quem somos. E no caso algarvio, compreender que não é de sol e praia que se trata, mas de entender a cultura como capacidade de construir e usufruir, de amar a liberdade e de ligá-la à entreajuda, à compreensão da diversidade das raízes e ao desenvolvimento humano. E José Mattoso definiu o ponto que permite entender a paradoxal visão de Torga: «o fundamento da esperança no futuro é o reconhecimento dos ‘justos’ que nos rodeiam, seja qual for o meio em que vivem, e o apoio que somos capazes de lhes dar na sua luta pela ‘justiça’».

 

Guilherme d'Oliveira Martins

 

A VIDA DOS LIVROS

  

De 14 a 20 de fevereiro de 2022


A “Temporada de Portugal em França - 2022” ou “Saison du Portugal en France” abriu este fim de semana com o concerto da Orquestra Gulbenkian na Philarmonie de Paris, com Maria João Pires e a inauguração das Três Graças de Pedro Cabrita Reis nas Tulherias. A versão deste ano da “Noite das Ideias” constituiu um excelente aperitivo relativamente à Temporada Cultural Portugal-França.


RECONSTRUIR A EUROPA… 
Na Fundação Gulbenkian, Isabel Mota e a Embaixadora Florence Mangin deram a tónica, salientando a importância da cooperação e do intercâmbio cultural. E o antigo Comissário Europeu e atual Presidente da Câmara de Lisboa Carlos Moedas pôs a tónica na importância do tema proposto para os debates: “(Re)construir em conjunto uma Europa mais justa e mais unida”. Daí a referência a três objetivos urgentes, ainda condicionados pela crise pandémica: exigência de proximidade das pessoas; aposta na ciência; e atenção à cultura. Não por acaso, recordou o “Ensaio sobre a Desintoxicação Moral da Europa” de Stefan Zweig, enviado pelo escritor austríaco para o Congresso sobre a Europa, organizado pela Fundação Volta, da Academia de Itália, em novembro de 1932. O texto é premonitório, mas então poucos o ouviram. E que afirmava? “A situação moral da Europa é preocupante pelo peso de um ódio belicoso que prevalece sobre uma paz frágil. Uma desconfiança mútua entre os europeus e a recrudescência do nacionalismo fazem, temer o regresso do caos da guerra e os traumatismos do primeiro conflito mundial”. E Zweig dizia que, mais do que política ou diplomática, a resposta a dar deveria ser cultural. E assim preconizava um ensino da História que privilegiasse os elos culturais e não as guerras, não apresentando os povos como inimigos, bem como a criação de uma Universidade Europeia, a mobilidade dos estudantes num programa semelhante ao atual Erasmus (mas que envolvesse também o ensino secundário) e a existência de uma comunicação social europeia, visando uma opinião pública informada – a partir de uma “geração vigilante”, e de uma elite que conhecesse os países, as línguas e os costumes dos outros, com a missão de preparar um futuro de paz… Eis o que hoje continua a estar em causa para respondermos à incerteza. E o conjunto dos debates e reflexões dessa noite, permitiu pôr em comum e em diálogo cientistas, pedagogos, sociólogos, historiadores, filósofos, juristas, politólogos. Longe de soluções ou receitas, tratou-se de pôr a tónica nos novos problemas – desde a democracia e do confronto de culturas, até à necessidade de superação de ressentimentos e incompreensões… 


LEMBRANÇAS HISTÓRICAS
A Temporada Cultural Portugal-França constitui exemplo significativo de uma cooperação que vai ao encontro de uma nova perspetiva nas relações culturais entre os dois países, centrada na vivência comum do projeto europeu e na necessidade de lhe dar um conteúdo participativo e mobilizador. Não esquecemos as raízes históricas muito antigas que chegam às origens da nacionalidade e à consolidação da independência portuguesa, desde o papel desempenhado pela Casa de Borgonha e pelos beneditinos de Cister ou pela duquesa D. Isabel de Portugal, filha de D. João I e mulher de Filipe, o Bom, até à intervenção do Cardeal Richelieu na Restauração de 1640, às Luzes, ao apoio do rei Luís Filipe de Orleães, durante a Monarquia de Julho, à causa liberal de D. Pedro e às origens da I República… Há um longo caminho que explica uma ligação cultural multifacetada, complementar da antiga aliança luso-britânica. O espírito europeu esteve, assim, bem presente na afirmação cultural portuguesa em vários momentos da nossa história, sendo reafirmados no século XX no movimento migratório, e hoje pela importância das novas gerações de descendentes de portugueses, com novos horizontes e oportunidades. Eis por que razão o desafio do Presidente Emmanuel Macron, em 2018, na Fundação Gulbenkian, surge como natural, correspondendo a uma afirmação de vitalidade europeia, num momento mais importante do que nunca, de compromisso e partilha. A “Temporada Cruzada”, comissariada por Emmanuel Demarcy-Mota, Victoire Bidegain di Rosa e Manuela Júdice, inscreve-se na continuidade das presidências portuguesa e francesa da União Europeia constituindo oportunidade para sublinhar a proximidade e amizade que ligam os dois países. Procura-se pôr em relevo a excelência dos nossos artistas, pensadores, cientistas e empresários na perspetiva do reforço e renovação das bases da cooperação em aspetos prioritários para a juventude dos dois países: preservação do meio ambiente, energias renováveis, economia responsável, urbanismo humano, agriculturas alternativas, a fim de demonstrar que estamos preparados para inventar soluções para os desafios contemporâneos.


UM PROGRAMA VARIADO
A Temporada inicia-se com o concerto de abertura, a 12 de fevereiro, em que a Orquestra Gulbenkian se apresentará, com Maria João Pires, na Philarmonie de Paris. E com este momento especialíssimo poderemos referir a exposição do Centro Pompidou, que juntará o escultor Rui Chafes, o cineasta Pedro Costa e o fotógrafo Paulo Nozolino, que se somam à instalação, nas Tulherias, no jardim do Museu do Louvre, de uma obra monumental de Pedro Cabrita Reis, intitulada As Três Graças. Invoca-se ainda uma muito fecunda intervenção em França, desde os anos cinquenta, simbolicamente assinalada na mostra de Tesouros da Coleção Gulbenkian, realizada em coprodução com a Coleção Al-Thani no Hôtel de la Marine, em Paris. Acresce o programa destinado a promover exposições de artistas portugueses em França, com uma retrospetiva dedicada a Maria Helena Vieira da Silva, referência fundamental do panorama artístico europeu, bem como as apresentações individuais de Pedro Barateiro, Francisco Tropa, Carla Filipe, além de uma exposição coletiva com Mónica de Miranda, Sérgio Carronha, Rita Sobral Campos e Musa Paradisíaca. É de especial importância a apresentação da exposição “Tudo o que eu quero – Artistas portuguesas 1900-2020”, comissariada por Helena de Freitas e Bruno Marchand, realizada em 2021, com assinalável êxito na Gulbenkian, em Lisboa, no âmbito da Presidência Portuguesa do Conselho da União Europeia, que não pôde ser apresentada em Bruxelas, no Bozar, como previsto, em virtude do incêndio entretanto ocorrido na capital belga. Agora, a presença em Tours permite o contacto, ao vivo do público francês e europeu, com um notável acervo de primeira qualidade, que demonstra o caráter pioneiro de um conjunto significativo de mulheres artistas portuguesas. As artes performativas serão também contempladas na ação da Gulbenkian, através do apoio aos Festivais d’Automne e Chantiers d’Europe. Entretanto, será apresentada em Lisboa, a partir de março a mostra “Europa, Oxalá”, vinda do MUCEM de Marselha, com curadoria de António Pinto Ribeiro, de Kátia Kameli e Aimé Mpane Enkobo, que apresenta cerca de 60 obras de 21 artistas com origem nas antigas colónias em África, nascidos e criados em contexto pós-colonial. O carácter inovador e transnacional do trabalho «pós-memória» marca profundamente o panorama artístico e cultural das últimas décadas, conjugando linguagens contemporâneas e processos tradicionais. São os valores de hoje e de amanhã a estar presentes. 


Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

A VIDA DOS LIVROS

De 29 de novembro a 5 de dezembro de 2021


Francisco Velasco de Gouveia (1580-1659)
foi um eminente legista defensor da causa da independência de Portugal em 1640 – autor de «Justa aclamação do sereníssimo rei de Portugal D João IV: Tratado analítico dividido em três partes: Ordenado e divulgado em nome do mesmo reino, em justificação de suas ações, Lisboa, 1644» - repositório fundamental na defesa da Restauração da Independência.

 

RESTAURAÇÃO DA INDEPENDÊNCIA
O mais antigo feriado nacional decretado pela República em 1910 foi o Primeiro de Dezembro, como Dia da Bandeira. Tratou-se do reconhecimento de um momento fundamental da História portuguesa. A Restauração da Independência de Portugal correspondeu a uma reação direta à tentativa de Filipe III (IV de Espanha) e do Conde Duque de Olivares de centralização e unificação dos reinos ibéricos. Estava em causa o desrespeito das condições definidas nas Cortes de Tomar (de 1581). Se Portugal nunca perdeu a soberania formal, o certo é que, como Francisco Rodrigues Lobo bem viu, o que havia era uma “Corte na Aldeia”. Os constrangimentos da guerra dos 30 anos, os efeitos da crise económica, o aumento dos impostos para financiar as forças armadas espanholas, a subalternização política portuguesa, a invasão holandesa do Brasil – tudo isso determinou grande descontentamento e alterações populares em todo o país, como as do Manuelinho em Évora. A reação não se fez esperar e os conjurados apoiaram a causa do Duque de Bragança, D. João, contando com o apoio da França do Cardeal Richelieu e a exigência da mobilização espanhola para a guerra da Catalunha. A Vice-Rainha de Portugal, Margarida de Sabóia, Duquesa de Mântua, bisneta de Isabel de Portugal e de Carlos V de Habsburgo, não resistiu e sairia de Portugal ainda em dezembro de 1640, tendo o Secretário de Estado Miguel de Vasconcelos sido morto e defenestrado pelos conjurados.


O PAPEL DO PADRE ANTÓNIO VIEIRA
Depois de 1640, ao lado de D. João IV, o mais célebre dos Conselheiros do novo rei foi o Padre António Vieira (1608-1697), figura ímpar da cultura portuguesa. Foi um visionário, um diplomata, um pregador da Capela Real, um conselheiro avisado, um humanista, um lutador pelo respeito da dignidade de todos, à frente do seu tempo, e um artífice, como houve muito poucos, da palavra dita e escrita. O império vinha-se esboroando, num processo longo que vinha do último quartel do século XVI. As riquezas perdiam-se ou dissipavam-se, os “fumos da Índia” avolumavam-se, havia divisões profundas. Assim se delineou uma estratégia, segundo a qual seria necessário compatibilizar o humanismo universalista e uma nova ideia de império. E o Padre António Vieira retomou então o que os franciscanos espirituais há muito defendiam (na linha do monge calabrês Joaquim de Flora, que falava das Idades do Pai, do Filho e do Espírito Santo). Pode falar-se de audácia e atrevimento, bastando lembrar o poderoso “Sermão pelo bom sucesso das armas de Portugal contra as da Holanda”, dito na Igreja baiana de Nossa Senhora da Ajuda em Maio ou Junho de 1640 (“arrependei-vos misericordioso Deus, enquanto estamos em tempo, ponde em nós os olhos da vossa piedade, ide à mão da vossa irritada justiça, quebre vosso amor as setas da vossa ira, e não permitais tantos danos e tão irreparáveis”). Mas os exemplos multiplicam-se. António Vieira atraiu ódios que juraram pela sua pele, primeiro entre os colonos, depois na corte, entre os invejosos do lugar proeminente que assumiu junto de D. João IV, alvitrando, aconselhando e agindo, e ainda na Inquisição, pela qual foi perseguido, julgado, preso e, por fim, perdoado apenas graças à intercessão papal… Leia-se ainda o Sermão da Dominga Vigésima Segunda depois do Pentecostes (1649), onde, partindo de S. Mateus (“É lícito ou não pagar o imposto a César?”, 22,17), verbera a hipocrisia dos fariseus, ataca o fanatismo cego e sem caridade, e lembra os escrúpulos falsos de Pilatos, sempre a pensar nos inquisidores: “Ó julgadores que caminhais para lá com as almas envoltas em tantos, e tão graves escrúpulos de fazendas, de vidas, de honras, e cuidais cegos, e estúpidos, que essas mãos com que escreveis as tenções e com que firmais as sentenças, se podem lavar com uma pouca de água. Não há água que tenha tal virtude”. Nunca fugiu das dificuldades nem da denúncia dos erros e atropelos, como se vê bem no Sermão do 5º Domingo da Quaresma, dito no Maranhão: “E se as letras deste abecedário se repartissem pelos Estados de Portugal, que letra tocaria ao nosso Maranhão? Não há dúvida que o M. M Maranhão, M murmurar, M motejar, M maldizer, M malsinar, M mexericar, e sobretudo M mentir: mentir com as palavras, mentir com as obras, mentir com os pensamentos, que de todos e por todos os modos aqui se mente…”. O Sermão de Santo António aos Peixes, dito também no Maranhão, da 3ª Dominga da Quaresma, pregado na Capela Real, e do Bom Ladrão, apresentado na Igreja da Misericórdia de Lisboa (Conceição Velha), de 1654 e 1655, são bem ilustrativos da coragem acusatória de Vieira contra abusos e injustiças: “Encomendou el-Rei D. João o Terceiro a S. Francisco Xavier o informasse do estado da Índia, por via de seu companheiro, que era mestre do Príncipe; e o que o santo escreveu de lá, sem nomear ofícios, nem pessoas, foi que o verbo rapio na Índia se conjugava em todos dos modos…”.


OS EFEITOS DA GUERRA DOS TRINTA ANOS
Com a Guerra dos Trinta Anos (1618-1648) a finar-se, havia que preparar um alinhamento que permitisse uma presença segura na nova balança europeia. E a justificação espiritual (que a Inquisição considerou heresia) poderia abrir novos horizontes, sobretudo através da criação de bases sólidas no Brasil e na Índia. Assim, o Quinto Império não era um sonho desligado da realidade nem uma ilusão centrada no território da loucura, era a tentativa de regresso à epopeia de quinhentos, com um repensamento estratégico que tirasse lições dos erros cometidos. Assim foi concebida a “História do Futuro”, antecipada pelo Sermão dos Bons Anos (1.1.1642), onde as Escrituras, as profecias de S. Frei Gil de Santarém e as “Trovas” do Bandarra levaram-no a transferir o mito do Desejado de um rei morto em Alcácer-Quibir (Sebastião) para um rei vivo (João, ali presente na Capela Real). Seria nesse império que se reuniriam todos os povos sob a égide do Vigário de Cristo e sob um mesmo governo temporal do Rei de Portugal… A obra de Velasco de Gouveia reúne os argumentos fundamentais para defesa da causa do Duque de Bragança D. João, invocando conclusões que viriam a ser consideradas apócrifas das Cortes de Lamego, onde se consideraria que «a filha fêmea de el-Rei que casasse com príncipe estrangeiro, que não fosse português, não pudesse herdar nem suceder nele para que assim nunca o reino saísse fora das mãos dos Portugueses nem reinasse nele pessoa que o não fosse».

 

Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

MEDITANDO E PENSANDO PORTUGAL


26. OPÇÃO ATLÂNTICA E EUROPEIA (I)


A opção atlântica é reconhecida desde sempre como historicamente vital para Portugal, não esgotando todas as suas potencialidades, pelo que se impõe também a opção europeia, desde logo porque parte integrante da Europa.


O problema presente e futuro que se coloca a Portugal é o de compatibilizar e harmonizar estas duas opções. O que indica a conveniência de tirar partido de todas as oportunidades de desenvolvimento e modernização da opção europeia, sem pôr em causa as vantagens oferecidas pela histórica opção atlântica.


Portugal tem interesse em compatibilizar e reforçar desenvolvimento com segurança na diversificação das dependências, gerindo-as para efeitos de sobrevivência, tendo presente que a opção europeia tem a ver com a Europa toda, que como tal lhe dá mais garantias de afirmação da sua identidade em relação a Espanha, encarada, nesta perspetiva, como um país europeu, entre vários. 


Diversificar dependências e relações é parte do caminho certo do desenvolvimento em segurança.


É o que fazem países com desafios e problemas idênticos aos de Portugal, como a Dinamarca (que impôs no Tratado de Maastricht uma cláusula especial proibindo a aquisição de propriedades no seu litoral a estrangeiros, pensando na Alemanha, com que tem uma só fronteira terrestre), a Irlanda, que diversificou as relações e dependências, fazendo da Inglaterra um parceiro europeu, entre outros.


Continentalizações e iberizações de Portugal podem ser compensadas pelo reforço correspondente do seu poder centrífugo, que decorre preferencialmente das potencialidades da sua litoralização, atlantização e universalização.   


Refere, a propósito, Virgílio de Carvalho, que a palavra Mar, aqui utilizada, tem um sentido mais amplo que o do simples meio líquido, “abarcando o sentido do poder marítimo (económico, militar), e ainda tudo o que, duma forma ou de outra, concorre para o centrifugismo económico, cultural e político que torne Portugal no referido país mais euro-atlântico que ibérico, universalista, viável” (A Importância do Mar para Portugal, p. 88).       


Mar que deve ser constituído pelo litoral do continente (locomotiva de desenvolvimento) e o interior a aproximar dele por meio de rios navegáveis e vias terrestres a ele paralelas; os arquipélagos dos Açores e da Madeira; o espaço marítimo e aéreo interterritorial (como área de grande interesse estratégico nacional). E como complemento os países que falam português, caso dos estados membros da CPLP, bem como as comunidades de interesses comuns culturais, económicos e geopolíticos que o possam desejar vir a constituir com Portugal; as potências marítimas (europeias e extraeuropeias) racionalmente interessadas na preservação da individualidade estratégica de Portugal; as comunidades de portugueses e seus descendentes, no estrangeiro, e respetivos países de seu acolhimento.     


Para Portugal é inquestionável que lhe interessa uma política de cooperação com os países que falam português, dado que, se for possível uma concertação de objetivos, de estratégias e meios para os realizar, ela pode redundar em poder negocial e em segurança que lhe são necessários, nomeadamente, como reserva para contrabalançar o desafio europeu. Pode, pois, tal cooperação ser tida como parte e componente universalista do potencial estratégico de Portugal.


Refira-se também o interesse estratégico, económico e cultural da escola de pensamento geopolítico brasileiro, de que é tido como mentor principal o general Golbery do Couto e Silva, que em 1981 disse ser dever do Brasil estar pronto para assumir a defesa do património lusófono criado por Portugal, nomeadamente no Atlântico ao sul do Senegal, caso tal se torne necessário.


08.10.21
Joaquim Miguel de Morgado Patrício