Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Recordando António Alçada Baptista, termino o Folhetim de 2024 com uma dedicatória à língua portuguesa ou ao livro da nossa língua que maior projeção mundial tem. De facto, é uma obra pioneira na literatura mundial. Mais do que um livro de viagens, trata-se de um modo inteiramente novo e original de fazer uma narrativa. Com mil aventuras e mil personagens, estamos diante de uma mudança completa no mundo da literatura.
“Peregrinação” de Fernão Mendes Pinto (c. 1510-1583) põe-nos diante uma verdadeira personagem romanesca, como antes não existiu, que assume diferentes acontecimentos e até personalidades, e que descreve de um modo notabilíssimo, o que era a vida de um português no Oriente – criado de fidalgo, soldado, escravo, agente de negócios, pirata dos mares da China, mercador, médico ocasional do rei do Bongo, vagabundo e embaixador -, a verdade é que isso simboliza o português do mundo. Os estudiosos sobre esse tempo são os primeiros a considerar que não é possível compreender o que João de Barros ou Diogo do Couto nos relataram sem ler Fernão Mendes Pinto. Se Alonso Quijano, de Cervantes, se rebela contra a personagem de D. Quixote, Fernão Mendes é a personagem completa, que não precisa de convencer ninguém que deixa de ser quem sempre foi. O próprio título com que a obra foi publicada dá-nos a expressão plena da riqueza e complexidade do relato. "Peregrinaçam de Fernam Mendez Pinto em que da conta de muytas e muyto estranhas cousas que vio & ouvio no reyno da China, no da Tartaria, no de Sornau, que vulgarmente se chama de Sião, no de Calaminhan, no do Pegù, no de Martauão, & em outros muytos reynos & senhorios das partes Orientais, de que nestas nossas do Occidente ha muyto pouca ou nenhua noticia. E também da conta de muytos casos particulares que acontecerão assi a elle como a outras muytas pessoas. E no fim della trata brevemente de alguas cousas, & da morte do Santo Padre Francisco Xavier, unica luz & resplandor daquellas partes do Oriente, & reitor nellas universal da Companhia de Iesus".
Ao ler o sumário e a obra, houve entre os contemporâneos quem duvidasse da verdade dos relatos, respeitantes aos vinte e um anos em que andou pela Ásia, tendo sido, na sua própria expressão, “treze vezes cativo e dezassete vendido nas partes da Índia, Etiópia, Arábia Feliz, China, Tartária, Macáçar, Samatra e muitas outras províncias daquele Ocidental arquipélago dos confins da Ásia”. Mas sentimos, a cada passo, a força da verdade. A escrita começou logo uma vez regressado o autor a Portugal, em 1557, com a memória bem fresca, só sendo publicada trinta e um anos depois da sua morte (1614), por Pedro Craesbeek, com tardia autorização do Santo Ofício. Aos que duvidaram da veracidade dos relatos, o autor respondeu significativamente: “a gente que viu pouco mundo, como viu pouco também costuma dar pouco crédito ao muito que os outros viram”.
É memorável, a título de exemplo, o encontro de Fernão Mendes Pinto com António de Faria, o célebre corsário (quem é ele verdadeiramente?), numa situação, em que havia que saber novidades de Liampó, "porque se soava então pela terra que era lá ida uma armada de quatrocentos juncos em que iam cem mil homens por mandado de El-Rei da China a prender os nossos que lá iam de assento, a queimar-lhes as naus e as povoações, porque os não queria em sua terra, por ser informado novamente que não eram eles gente tão fiel e pacífica como antes lhes tinham dito", mas afinal era engano, pois essa armada tinha ido, afinal, socorrer um Sultão nas ilhas de Goto. É inesquecível a perseguição ao corsário mouro Coja Acém, que se dizia "derramador e bebedor do sangue português" e a quem Faria jurara vingança, por lhe ter roubado as fazendas e morto os companheiros na batalha mais violenta da “Peregrinação”. "E arremetendo com este fervor e zelo da fé ao Coja Acém como quem lhe tinha boa vontade, lhe deu, com uma espada que trazia, de ambas as mãos, uma tão grande cutilada pela cabeça que, cortando-lhe um barrete de malha que trazia, o derrubou logo no chão...”. E lembre-se o episódio da vinda do Embaixador do Rei dos Batas. Pero de Faria fê-lo «agasalhar o mais honradamente que então foi possível». E assim «o despediu bem despachado, e satisfeito do que viera buscar, porque lhe deu ainda algumas cousas além das que lhas pedira, como foram cem panelas de pólvora, e rocas, e bombas de fogo, com que se partiu tão contente desta fortaleza, que chorando de prazer, um dia perante todos os que estavam no tabuleiro da igreja, virando-se para a porta principal dela, com as mãos levantadas, como quem falava com Deus, disse publicamente. Prometo em nome de meu Rei a ti Senhor poderoso, que com descanso e grande alegria vives assentado no tesouro das tuas riquezas que são os espíritos formados da tua vontade, que se te praz dar-nos vitória contra este tirano de Achem (…). E assim te prometo e juro com toda a firmeza de bom e leal, que meu Rei não tenha nunca outro Rei se não este grande português, que agora é senhor de Malaca».
Fernão Mendes construiu, deste modo, no dizer de António José Saraiva, «um Oriente espantosamente humano, que tem o seu estilo próprio. Um Oriente que não é feito só de cidades, templos e esculturas, mas também do estilo falado, de etiquetas humanas, de sentimentos típicos». Hoje sabemos da verosimilhança de tudo quanto nos relatou. Pode até ter acontecido que não fora ele o real protagonista de tudo, mas percebemos que tudo ocorreu de facto. E assim a nossa cultura é inesgotavelmente peregrina!
XXVI. Portugal hoje - que relacionamento com a Europa e o Mundo?
A cultura europeia é pluralista, dinâmica e renovadora. Longe de uma identidade harmonizadora ou de uma lógica de uniformidade, o “património comum” leva-nos, na lógica da herança e da tradição, ao bem comum europeu, como ação inovadora como fator de coesão, de harmonia e de emancipação. A identidade europeia é construída por várias identidades, é plural, é complexa, é multifacetada. Não há, pois, uma “comunidade de destino”, mas uma comunidade plural de destinos e valores. Falar de identidade europeia é, assim, referirmo-nos à complexidade, a uma realidade não confundível com um bloco monolítico, diferente das nações e dos povos que a constituem. Daí que a legitimidade europeia seja de Estados e povos, e que a realidade “constitucional” da Europa não seja um sucedâneo ou um substituto das “constituições nacionais”. Continua a ser tempo de seguir uma via de “euro-realismo”, já que andar para trás “seria regressar a formas de centralismo, autoritarismo e subdesenvolvimento paroquial”. No fundo, sem uma sábia ligação entre as legitimidades dos Estados e dos cidadãos, arriscar-nos-emos a criar uma realidade efémera, artificial e reversível sem ligação efetiva ao mundo da vida. Só uma forte vontade comum ajudará a superarmos o fosso entre as instituições europeias e as pessoas.
Continente de contrastes unido pelo conteúdo, acessível, recortado, temperado, em que a variedade é a regra, a Europa não é uma Babel nem uma terra de ninguém. Terra de conflitos e de contradições, de guerras civis, de competição e de combate, alberga uma constante procura de equilíbrio e de síntese através de várias influências, etapas e polos. “É o dualismo entre fé e lei que, desde o início, torna possível o crescimento da liberdade e das liberdades – porventura o maior anelo e fator de dinamismo da história europeia no seu conjunto. Braudel considera que ‘liberdade’ – não apenas a individual mas também a das cidades, dos grupos e das nações – é mesmo a palavra-chave dessa história” – como lembra Francisco Lucas Pires. Assim, é possível ler “uma história através de várias histórias”, desde as raízes greco-romanas, das invasões bárbaras e da conversão cristã da Europa, para chegar à “coroação poética” da “Divina Comédia” e a uma “cultura comum europeia”, segundo a expressão feliz de T.S. Eliot, continuando essa rota na crise da República Cristã e na vida da Europa dos tempos modernos. Seguindo Paul Valéry, é fundamental reter a emergência de uma grande síntese na identidade originária da Europa enquanto “legado greco-romano mais cristianismo”. A história moderna abre, assim, campo às diferenças e a uma conflitualidade decorrente da competição gerada no Renascimento e continuada no iluminismo, no liberalismo, na revolução social do industrialismo e na mundialização.
À tentativa de criar condições para a emancipação nacional com equilíbrio e tolerância entre os Estados, sucede a autarcia e o fechamento. E em 1914, depois de a “Primavera dos Povos” (1848) ter-se inclinado para os nacionalismos protecionistas, a Europa como possibilidade de ação em comum deixou de existir pelas suas contradições nacionais. E foi a devastação da guerra e a necessidade de reconstrução que fez regressar à ordem dia um programa europeu, no contexto de uma paz ameaçada e segundo o modelo de Jean Monnet de “integração funcional”. Tratava-se de garantir a partilha de soberanias e a salvaguarda de um projeto assente nos valores comuns da liberdade (cidadania europeia), da democracia (codecisão e esboço de democracia parlamentar nas relações entre a Comissão e o Parlamento), do desenvolvimento (moeda única e coesão), e da segurança (política externa e de segurança comum e cooperação policial e judicial), fatores de efetiva complementaridade. Eis a base do método comunitário e da subsidiariedade e a necessidade de seguir um caminho de construção gradual das instituições supranacionais e de respeito escrupuloso pela iniciativa cívica e pelo que está mais próximo dos cidadãos, que prevaleça sobre o que está mais distante das pessoas (os Estados e a democracia supranacional). A ideia de “Europa connosco” não corresponde nem a uma subalternização, nem a um fechamento, mas à abertura de horizontes, a uma geometria variável e à participação numa globalização baseada na paz e na cooperação.
XX. O fim do século XIX e a crise – o Portugal saudosista e decadentista
O PNB per capita era em Portugal no ano 1860 de 86% da média dos países desenvolvidos e passa para 45% no início do século XX. Isto aconteceu apesar de uma política de melhoramentos, tantas vezes à custa da dívida pública. Tal desfasamento em relação à Europa deveu-se ao facto de a sociedade industrial ter favorecido um crescimento muito mais rápido nos países desenvolvidos, graças às economias de escala. Pesou o diferente potencial de crescimento entre os países industrializados e as economias menos dinâmicas como a portuguesa, presa à ruralidade e ao atraso. Apesar das importantes mudanças estruturais operadas pela Regeneração, como nos casos dos transportes, da modernização das instituições, bem como do alargamento e aperfeiçoamento dos mercados dos fatores de produção, a verdade é que o potencial de crescimento viu-se reduzido. Alguns números merecem especial atenção. Se pensarmos nos citados melhoramentos, a rede rodoviária portuguesa era de apenas 476 quilómetros construídos em 1860, contra 11 754 em 1900, e a rede ferroviária tinha 69 quilómetros contra 2867 nas mesmas datas. Olhando as Finanças Públicas, temos uma progressão moderada das receitas públicas depois de 1850, com um crescimento muito lento do produto interno, o que conduziria à crise financeira dos anos noventa. As despesas efetivas do Estado correspondiam a 4,3% do PIB na década de 1850 e a 5,6% na década de 1890. No entanto, segundo Maria Eugénia Mata, apenas 38% das receitas da dívida pública foi aplicado em despesas de investimento reprodutivo, sendo o restante absorvido por gastos correntes – com forte penalização das novas gerações. Para Magda Pinheiro, o investimento em despesas reprodutivas foi mais lento do que o desejável. Nestes termos, a eficiência dos melhoramentos ficou aquém do que se pretendia, no sentido de criar recursos para amortizar o endividamento. Os encargos com a dívida pública passaram de 20,5% na década de 50, para 40,2 na década de 90. Veja-se, pois, que o modelo não se revelou sustentável. Se a Regeneração atraiu investidores para as obras públicas, outro tanto não aconteceu no fim do século, em face da ineficiência do modelo económico e da incapacidade reformista dos governos, incapazes de aproveitar condições excecionais de estabilidade institucional. Tudo se agravou em virtude da crise internacional do fim do século.
Os anos 1890 foram de recessão económica: o PIB a preços correntes cresceu apenas 1,6% ao ano na década de 1889 a 1899, enquanto na década anterior tinha registado um crescimento de 3,3% ao ano. O certo é que os investimentos públicos, nomeadamente em infraestruturas, praticamente pararam na década de 90, pelos constrangimentos financeiros internacionais (bancarrota da Argentina, quebra da banca britânica, abandono do padrão-ouro e suspensão do pagamento de parte da dívida externa, que culminaria no Convénio de 1902). Das crises que atingiram a economia portuguesa na segunda metade do século (1853-58; 1867-70; 1889-92) a última foi a que mais afetou as condições de vida dos cidadãos, desencadeando subida de impostos, aumento do desemprego, baixa de salários reais, redução do horário de trabalho e migrações internas (para o sul e para as cidades) e externas (para Espanha e Brasil). Jaime Reis interroga-se sobre o porquê da persistência do atraso português na segunda metade do século XIX, em especial no tocante à expansão do sistema educativo, sobretudo quando «estava definitivamente redistribuída a propriedade da Coroa e da Igreja, tinham sido abolidas as principais instituições do Antigo Regime e estavam efetivamente reconciliadas as grandes famílias políticas que se tinham guerreado com ardor durante as primeiras décadas de Oitocentos. Os motins ocasionais que ainda se registaram em reação a questões fiscais ou de propriedade, ou simplesmente, por manipulação de políticos desencantados e descontentes, estavam longe das convulsões populares de 1808-1809 ou da cruel violência das guerras civis dos anos 1830 e 1840». Surge, assim, a dúvida sobre a razão por que uma sociedade com relativa estabilidade não foi capaz de reorganizar a instrução pública e de combater o analfabetismo. E, perante o contraste com outras sociedades europeias com fortes conflitualidades, surge a hipótese explicativa de que «num quadro de maiores tensões, mais forte teria sido a vontade de educar». Temos, pois, que a sociedade e a economia se revelaram incapazes de corresponder aos desafios das reformas e dos investimentos. O impulso republicano procurou criar condições para um sobressalto económico e social, mas as fragilidades da representação política não alcançaram os desígnios propostos.
V. As origens da nacionalidade: a fundação de Portugal
Compreende-se a importância do Norte Atlântico por ser "a região por excelência do regime senhorial" e de as áreas mais montanhosas do Norte Interior e do Sul Mediterrânico coincidirem com a "implantação maciça das comunidades organizadas em concelhos". Afinal, a receita para o sucesso político de Henrique de Borgonha e dos reis portucalenses advém da arguta compreensão desta diferença e desta complementaridade. Há, de facto, uma "dialética constante entre os vetores da divergência e os movimentos da integração". E a integração acaba por prevalecer, por força das migrações, do progresso económico ou da organização social e do poder político. Eis como José Mattoso, com base numa investigação essencial que articula os diversos elementos já conhecidos, faz a ponte entre as duas influências portuguesas - superando, assim, o velho entendimento dos Nobiliários, sobretudo preocupados com o nexo gótico e com o predomínio exclusivo dos reinos cristãos. O Estado, que precedeu a Nação, progrediu para além desse entendimento - compreendendo os mais influentes monarcas portugueses a importância das diferenças sociais e étnicas, do moçarabismo, da fragmentação dos reinos taifas e do descontentamento crescente que ia germinando no sul.
O papel da guerra externa foi fundamental na consolidação da nacionalidade. E o facto de o reino ser de fronteira pesou fortemente na relação exigente entre o estímulo e a resposta. A expansão para sul permitiu resolver a conflitualidade entre os membros da nobreza, dando-lhes novos espaços de influência. Os excedentes demográficos de Entre-Douro-e-Minho puderam ser absorvidos e as importantes cidades conquistadas (nas quais avultam Santarém e Lisboa) tornaram-se centros económicos muito relevantes e novos mercados para a sociedade agrícola e comercial. O facto de os municípios moçárabes se terem deixado encabeçar por D. Afonso Henriques tornou-se garantia de estabilidade e de uma boa defesa fronteiriça - baseadas na cedência ao rei de prerrogativas na justiça e no fisco, em troca de não terem de se submeter aos poderes senhoriais e da Igreja. Em bom rigor, porém, o Estado nasceu apenas com Afonso II, e com o seu chanceler Julião, sendo ameaçado pela expansão senhorial do reinado de Sancho II, a que Afonso III pôs cobro. No fundo, o Estado - identificado com o poder real - engendrou lentamente a nação, unindo populações, contrariando a fragmentação, mobilizando forças e dando um sentido à ação coletiva. E assim se entende que na crise de 1383-85 tenhamos uma guerra nacional e não tanto um conflito entre senhores. É a consciência nacional que surge, encontrando as suas fronteiras e os seus símbolos - que deixam de significar a identificação de um poder real, para representar a identidade dos portugueses… O método de José Mattoso em Identificação de um País recusa as explicações tradicionais ou mitológicas. Centra-se nos factos, na concatenação dos acontecimentos e das vontades, no processo longo de maturação da consciência nacional. As simplificações são postas de parte. A "portugalidade" é vista como fenómeno complexo que não pode resumir-se a um dilema entre os que "tendem a estreitar os laços com a Europa" e os que projetam "Portugal para fora dela". Os traços da nossa identidade baseiam-se numa síntese que exige a compreensão das diferentes raízes e de um percurso histórico longo e multifacetado.
A afirmação do poder real e os concelhos
Afonso III, o Bolonhês, revelou excecionais qualidades políticas e militares, como bom conhecedor da Europa e das melhores práticas governativas, quer em virtude da sua experiência em França, onde viveu durante 16 anos – sob a influência de sua tia D. Branca de Castela (1188-1252) e, mais tarde, ao lado de seu primo, Luís IX (S. Luís) rei de França, junto de quem ganhou fama de excelente homem de armas – quer ainda pelo facto de ter acompanhado sua irmã D. Leonor, falecida muito jovem, como rainha da Dinamarca (1211-1231). Esse conhecimento e as qualidades que tinha permitiram no seu reinado ter tomado medidas fundamentais para a afirmação de um reino moderno e precursor em muitos domínios – abrindo caminho ao reinado extraordinariamente fecundo de D. Dinis. Por exemplo, as Cortes de Leiria de 1254 são um momento fundamental, por serem as primeiras que contam com a participação do Terceiro Estado – o Povo, fator premonitório na configuração da legitimidade política no final da Idade Média. Com especial significado, em termos práticos, para a afirmação do reino de Portugal, merece referência a conquista do Algarve e o complexo processo que conduziu ao seu reconhecimento. Em 16 de fevereiro de 1267, foi firmada a Convenção de Badajoz entre o rei de Castela Afonso X, o Sábio (poeta maior da nossa língua, o galaico-português), e o rei de Portugal, Afonso III. Este assumira a legitimidade real, após a guerra civil, que o opusera a seu irmão D. Sancho II, deixando o condado de Bolonha. O acordo firmado em Badajoz estabelecia que daí para o futuro o rei de Portugal renunciaria a qualquer direito sobre os territórios entre o Guadiana e o Guadalquivir a favor do rei de Castela, seu sogro, desde que desposara sua filha D. Beatriz em 1253. Assim, foram cedidas as terras de Aroche e Aracena – estabelecendo-se que da confluência do rio Caia à foz do rio Guadiana, o limite da fronteira entre os domínios dos dois monarcas seria este curso de água. A norte de Elvas, as terras de Arronches e Alegrete ficariam pertencendo ao rei de Portugal e ao de Leão e Castela as de Marvão e Valença de Alcântara. Afonso X renunciava, deste modo, definitivamente ao reino do Algarve, ordenando que se fizesse a entrega imediata ao rei de Portugal dos castelos ainda à guarda dos seus lugares-tenentes. A Convenção de Badajoz, permitiu começar a regularizar a fronteira que seria estabelecida definitivamente por D. Dinis em Alcanizes (1297), faltando ainda incorporar no reino de Portugal a comarca de Riba Coa. Este acordo de Badajoz, assumiu especial importância, pois deu a D. Afonso III o papel crucial de definidor do Reino de Portugal – não apenas nos seus limites essenciais, mas na sua organização política, económica, cultural e administrativa, com novo centro de poder em Lisboa, em lugar de Coimbra. Para compreender o significado pleno deste papel, temos de recordar que o reino do Algarve (Al Gharb do Al-Andaluz, ocidente da Andaluzia) coincidia parcialmente, a oeste, com a antiga taifa ou reino de Niebla, que tinha permanecido depois da conquista de Sevilha por Castela nas mãos de Ibn Mahfut. Este, para salvaguardar a sua autonomia, manifestamente precária, declarou-se vassalo do rei de Castela, Afonso X, desde 1253, tendo reconhecido em 1262 a definitiva perda da independência. No entanto, ainda antes de Afonso X ter sucedido a Fernando III, em 1252, já Afonso III de Portugal tinha concretizado a conquista do Algarve, em 1249. Tal não teve, porém, reconhecimento de Castela, em virtude de compromissos assumidos com o rei deposto Sancho II, o que motivou que Afonso X, uma vez aclamado, tenha tomado medidas no sentido da afirmação da soberania sobre o Algarve – pedindo mesmo pessoalmente à Santa Sé a restauração do bispado de Silves. O conflito entre os dois monarcas apenas foi atenuado a partir do casamento de Afonso III com D. Beatriz, filha de Afonso X (1253). O casamento com a condessa de Bolonha, D. Matilde, foi declarado nulo pelo Papa para permitir a solução política que consolidou os poderes do rei de Portugal. Apesar de tudo, ainda em 1254 Afonso III protesta com veemência contra os atos unilaterais de Afonso X em território algarvio, no tocante à posse de Lagos, Albufeira, Faro, Tavira e Silves. O Papa apela, entretanto, a um acordo efetivo e Afonso III parece aceitar uma solução jurídica transitória – Afonso X continuaria a considerar-se Senhor feudal do Algarve, mas Afonso III reivindicava o domínio efetivo do território. Em 1261, nasce o futuro rei D. Dinis, sendo em 1263 nomeada uma comissão entre os dois reinos para tratar da divergência de fronteiras. Em 1264, Afonso X cede, porém, às pretensões portuguesas e atribui os seus direitos a seu neto D. Dinis, por ser de seu sangue, estabelecendo uma contrapartida de cinquenta lanças. Essa solução seria, contudo, transitória até à celebração da Convenção de Badajoz. À definição da fronteira, associa-se a institucionalização política, jurídica e administrativa de Afonso III, reconhecido como rei de Portugal e do Algarve. É o tempo da nomeação de um Bispo pelo rei de Portugal, Frei Bartolomeu, bem como da centralização da coroa, da política anti senhorial e da aliança do poder real com os Concelhos por contraponto aos poderes do Alto Clero e da Alta Nobreza – que Sancho II não tinha assegurado, enfraquecendo a independência do Reino. O antigo reino de Niebla ficou, assim, dividido pelo rio Guadiana, cabendo ao rei de Portugal o Algarve. Com a morte de Afonso X, sua filha D. Beatriz, como testamenteira, ainda foi designada para receber o reino de Niebla, num afloramento do conflito com Sancho IV. D. Dinis, sucedendo a seu pai (1279), garantirá plenamente a orientação do «Bolonhês», reforçando-a definitivamente – pela prevalência centralizadora e redução dos poderes senhoriais, pela fronteira e pela língua. D. Afonso III consolida o poder real e a Administração pública, torna-se Rei de Portugal e do Algarve, escolhe Lisboa como sede do poder real e prenuncia as grandes reformas de seu filho, D. Dinis.
A ação de D. Dinis: fronteira, língua, educação
Dinis, sucessor de D. Afonso III, aproveitou o conflito com Castela para reforçar a sua posição e para lançar um conjunto de medidas que definiram a organização política do reino e contribuíram decisivamente para criar uma identidade e uma consciência coletiva. Quando, em 12 de setembro de 1297, em Alcanizes (ou Alcañices) os monarcas de Portugal e Castela acordaram no estabelecimento de fronteiras entre os dois reinos, estavam porventura longe de prever o alcance desse seu ato – por um lado, abriam caminho ao entendimento de que as fronteiras tinham uma importância política e territorial e, por outro, marcavam os limites mais estáveis e duradouros do continente europeu ao longo dos séculos. A instabilidade do momento, sob os efeitos da morte de Afonso X, a guerra civil castelhana, as reivindicações do malogrado Sancho IV, a sucessão extemporânea do filho deste, Fernando IV, ainda criança, a regência de D. Maria de Molina, viúva de Sancho IV, não permitiam antever a longa vigência desse entendimento, que chegou aos nossos dias... D. Dinis aliara-se a Aragão e apoiara os infantes D. João e D. Afonso de La Cerda. Chegara a ir, em 1296, de Salamanca a Tordesilhas e a Simancas, mas não ousara avançar para Valhadolid. Então recuou até aos castelos de Ribacoa, ainda sob jurisdição leonesa, e redefiniu assim as bases da nova fronteira. Essas praças juntar-se-iam (em Alcanizes) a Olivença, Campo Maior, Ouguela, S. Félix de Galegos, Moura e Serpa. Portugal desistia de Aroche, Aracena e Aiamonte e o rei prometia fazer o casamento de sua filha D. Constança com Fernando IV, oferecendo trezentos cavaleiros para combater D. João de La Cerda. É certo que ainda tentou perceber se poderia ter mais ganhos de causa. Chegou mesmo a propor a D. Maria de Molina que D. João fosse aclamado rei da Galiza, mas sem êxito. Esperou no Sabugal, para ver como decorriam os acontecimentos, mas tudo culminaria nas bodas de D. Constança com Fernando IV, em janeiro de 1302, selando o acordo de paz e de ajuda, que de facto se cumpriu…
O Tratado de Alcanizes é um símbolo. É o Tratado de Fronteiras mais antigo da Europa. Castela e Aragão reconheciam a D. Dinis uma autoridade inequívoca. A Crónica de 1344 recorda, aliás, a solene comitiva de mais de mil nobres que o rei de Portugal levou à fronteira castelhano-aragonesa, em junho de 1304, por ocasião da arbitragem a que foi chamado. A ocasião foi aproveitada para selar um solene tratado de paz envolvendo os três reinos, Portugal, Castela e Aragão. O prestígio de D. Dinis não precisava de demonstração e não tardaria a fazer-se ainda o consórcio do infante D. Afonso com D. Beatriz, irmã de Fernando IV. Não foram regateadas ajudas e apoios, nos domínios militar e político, sendo de destacar o importante pacto (extensivo a Aragão) de defesa e conservação dos bens da Ordem dos Templários, perante os ataques de Filipe, o Belo, rei de França, e depois do papado, num entendimento que culminaria em 1319 na fundação em Portugal da Ordem de Cristo.
Pode dizer-se que foi na viragem dos séculos XIII para XIV que o reino de Portugal reforçou a sua posição no contexto peninsular. Depois da guerra civil, que opusera o fraco D. Sancho II a D. Afonso III, prevaleceu uma política de aliança com os concelhos e de reforço destes, para limitar o poder e a influência do alto clero e da alta nobreza. Na fórmula consagrada na moderna historiografia: o Estado precedeu a Nação e a vontade política construiu Portugal… Entretanto, o longo conflito com a Santa Sé em matéria eclesiástica (1267-1290) foi solucionado por D. Dinis – levando à clarificação dos poderes do rei, dos concelhos e dos bispos, quanto a privilégios eclesiásticos, coordenação de alçadas das autoridades judiciais civis e cobrança de dízimos municipais. As relações com os bispos tornaram-se mais pacíficas, mas ficou clara a importância da articulação entre a Coroa e os concelhos e contrariada a excessiva concentração fundiária pelo clero.
O êxito de D. Dinis deveu-se essencialmente ao prestígio que alcançou, já que manteve, no essencial, as orientações de seu pai. A regularização das receitas públicas e o crescimento económico permitiram a existência de capacidade financeira para custear as ações militares externas (e limitar os conflitos internos com a alta nobreza). O prestígio foi, assim, conseguido na ação ibérica, mas também na política interna: de reordenamento do aparelho administrativo; de atribuição de forais aos municípios; de acompanhamento das comunas judaicas e de “mouros forros”; de regularização na cobrança das receitas; de fomento das atividades agrícolas e comerciais; de concessão de feiras francas (no Douro e na estrada da Beira); de realização de Inquirições Gerais e de afirmação de reserva para o rei da distribuição de poderes e dons aos membros da corte; de adoção de novas regras de recrutamento militar nos concelhos (“besteiros de conto”); da nacionalização das Ordens religiosas militares (Santiago, Templários/Cristo); da criação de coutos de homiziados, que previam o cumprimento de penas em zonas fronteiriças pouco povoadas; da concretização de uma lei sobre tabeliães e selos dos concelhos; da criação da bolsa de mercadores para apoio aos portugueses que comerciavam em França, Inglaterra e Flandres, na proteção da atividade mineira (ferro, mercúrio, ouro…); e da nomeação do genovês Manuel Pessanha para o comando da frota real (1317), além da regularização do pinhal de Leiria – lugar da produção de madeira para a construção de navios e proteção para os terrenos agrícolas. Fernando Pessoa referirá D. Dinis como fundador da nova potência Marítima, chamando-lhe “plantador de naus a haver”.
O casamento em junho de 1282 com D. Isabel (Rainha Santa), filha de Pedro III, o Grande, de Aragão, permitiu uma ligação diplomática, política e económica fundamental. E temos de invocar a importância da influência franciscana, a abrir novos horizontes e mentalidades e uma nova visão do mundo e da história. Como salientou Jaime Cortesão, as festas do Espírito Santo nos Açores ou no Brasil (mas também no continente, no Penedo, em Sintra) são uma sequência da presença franciscana a partir da presença da Rainha Santa Isabel. Por outro lado, deve lembrar-se o messianismo de Joaquim de Flora, frade calabrês, que considerava, depois das Idades do Pai (Antigo Testamento), do Filho (Novo Testamento), uma terceira idade do Espírito Santo, de que a festa de Pentecostes é a celebração suprema, com a coroação de um Menino e organização de um bodo (sopa do Espírito Santo, carne de boi, massa sovada…) para todos. As artes e as letras tiveram neste tempo um desenvolvimento ímpar. A Biblioteca de D. Dinis é um exemplo notável de abertura de espírito, de curiosidade intelectual e de sensibilidade (ou não fosse ele um notável poeta, na linhagem de seu avô, Afonso X, o Sábio). O Estudo Geral de Lisboa, futura Universidade, referenciado em 1 de março de 1290, constitui indicador de que a autonomia política necessitaria da capacidade para a criação de uma elite intelectual, de clérigos e legistas (homens de leis, hoje juristas), apta a corresponder às novas exigências de uma Administração pública centralizada e exigente, sem recurso a instâncias estrangeiras. Cerca de 1296, a adoção da língua vulgar (o galaico-português), em vez do latim, nos documentos oficiais da chancelaria constituiu outra medida de profundo alcance, com consequências no desenvolvimento da língua portuguesa, que assim se reforçou e se enriqueceu. A medida levou à consagração da prevalência da instância civil sobre a eclesiástica. Fronteira, língua, Estudo Geral, independência económica (agricultura, marinha e pesca) definem ventos novos a soprar nesse momento de reforço da “autonomia política e cultural”. O Estado constitui-se e a Nação começa a consolidar-se.
A relação dos portugueses com o Japão é singular e corresponde, apesar das vicissitudes, a um percurso que o tempo fortaleceu. Os primeiros portugueses chegaram ao país do Sol Nascente entre 1542 e 1543. Segundo a tradição, teria sido um junco chinês com três portugueses, apanhado por uma tempestade, que teria sido desviado para a ilha de Tanegashima. E a partir de então iniciou-se uma relação com repercussões culturais únicas. Não foi, no entanto, fácil o intercâmbio histórico e religioso, muitas vezes com repercussões trágicas. A evolução permitiu, porém, o aprofundamento dos fatores de entendimento.
A exposição «Mundo Flutuante: estampas japonesas “ukiyo-e”», que se encontra no Museu Gulbenkian, é uma agradável surpresa. Centra-se no conceito de ukiyo, que se refere aos prazeres efémeros da vida quotidiana. Sobre esse tema fascinante, Calouste Gulbenkian reuniu um notável conjunto de arte produzida entre os séculos XVII e XIX, maioritariamente estampas do período Edo (1603-1868) e um conjunto de objetos de laca., além de livros, incluindo as preciosas “surimono” que permitem usufruirmos das mais valiosas virtualidades da cultura nipónica. É uma faceta menos conhecida da personalidade de Gulbenkian que permite compreender o carácter multifacetado do extraordinário colecionador. Em paralelo, e num domínio diferente, o Centro de Arte Moderna celebra os seus quarenta anos de vida com uma evocação da contemporaneidade japonesa, permitindo-nos complementar a lembrança histórica e a vitalidade atual. Aproveitando a obra de renovação do CAM pelo arquiteto japonês Kengo Kuma esta aproximação cultural revela-se preciosa. Na tradição antiga e na modernidade, a natureza é, para os japoneses uma força vital. E sempre me tocou o grande interesse dos japoneses por Portugal, sabendo eles muito mais sobre nós do que nós sabemos sobre o Japão, apesar do contacto e da partilha de experiências.
Agora, temos o privilégio de dispor de diferentes visões da natureza e da paisagem, a projeção da perspetiva linear ocidental do Renascimento para o Oriente, a beleza e a sofisticação das cortesãs (“bijin”), a importância das narrativas literárias tradicionais, mas ainda os efeitos das inundações de 1967 sobre as estampas da coleção e a mestria dos restauros realizados.
Perante as belas estampas japonesas da coleção de Calouste Gulbenkian, recordo a visita que fiz a Ryoan-ji, em Quioto, quintessência de um templo zen. João Bénard da Costa no seu “Quinze Dias no Japão” (2001) fala-nos da inesquecível experiência que teve nesse jardim de delícias. No filme “A Décima Quinta Pedra” de Rita Azevedo Gomes (2007), João desenvolve num diálogo extraordinário com Manoel de Oliveira a ideia de que “só se vê com o coração” … Naquele jardim, com quinze pedras, representando o universo, em nenhum ponto do mesmo podem ser vistas todas elas. Há sempre uma que desaparece encoberta por outras. E depressa percebemos que nunca poderemos ver todas as pedras em simultâneo. O monge de Ryoan-ji perguntou ao João, no fim da estada, se já compreendia o que vira. «Começo a compreender!» - disse o interlocutor de um modo cauteloso. Mas o monge surpreendeu-se: «Já aqui estou há vinte anos e cada vez entendo menos». E mercê do alerta do monge, percebe-se que só com o coração se pode ver, compreendendo o mundo, a memória e o tempo. “No Oeste varremos as folhas caídas com a nostalgia de quem sabe que o tempo findou; no Japão essas folhas juntam-se e dão lugar à alegria do surto de um novo tempo”. A cultura traz-nos mil surpresas. E dizia João que «esse jardim de Ryoan-ji ensina-nos, entre muitas outras coisas, que dizem os orientais, uma vida inteira não dá para aprender, que cada coisa é ela e simultaneamente o seu duplo, que nada existe fora do olhar que lhe dá existência e que – como no paradoxo de Zenão, de que talvez seja a ilustração suprema – o movimento é a mais radical de todas as ilusões».
«O Português visto por (alguns) Portugueses» de Marcello Duarte Mathias (D. Quixote, 2023) permite-nos compreendermo-nos melhor à luz da nossa literatura de hoje.
AFINAL, QUEM SOMOS?
«Quem somos? Qual o grau da nossa cultura? Porque decaímos? Que remédios nos poderão salvar? Sem dúvida tentaram eles (os homens de 1870) responder a estas e outras interrogações que tanto nos importam; e com ou sem resposta as legaram às gerações vindouras». José Régio faz estas perguntas a que temos de responder com sentido da realidade. Marcello Duarte Mathias reuniu na obra que intitulou O Português visto por (alguns) Portugueses (D. Quixote, 2023) opiniões que podem ajudar. E neste conjunto de diversas perspetivas, podemos concluir que nos caracterizamos por algo paradoxal que nos distingue. Por isso, o conde Ficalho disse que, com essa busca, Portugal “significa simplesmente ser uma coisa à parte, sem imitação e sem cópia; significa ter uma língua própria, e um traje especial e um modo de pensar e de sentir particular, lentamente fixado pela tradição (…). E se um dia, os burgueses e viscondes, que tão relesmente nos governam, chegarem a desnacionalizá-lo, sob o fútil pretexto de o civilizar, hão de talvez perceber que ele fica sem grande razão de existir». Com estas palavras ásperas, Ficalho faz suas as preocupações de antepassados como Almeida Garrett e Alexandre Herculano, longe de qualquer entendimento fechado ou autossuficiente. Daí que este verdadeiro inquérito nos permite ver até que ponto no ocidente peninsular se construiu uma identidade própria, aberta e complexa, que poderemos designar por um patriotismo prospetivo, que envolve a compreensão de uma realidade complexa e diversa que devemos continuar a aperfeiçoar e a fortalecer, como realidade viva e aberta.
O CARÁCTER PORTUGUÊS
Pela parte que me toca, segui desde muito cedo muitos dos percursos que aqui encontramos – salientando uma preciosa primeira edição de “O Estudo do Carácter Português” de Jorge Dias que me acompanha e que continuo a ler com distância crítica, ao lado de um manual único de ensinamentos sobre quem somos, que é “Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico” de Orlando Ribeiro, onde está tudo o que devemos saber sobre nós mesmos. Devo dizer, aliás, que, confirmando plenamente o que Ernesto Sabato afirmou sobre a verdade de uma nação dever ser encontrada nos romances, e não na História, foi Ruben A. quem demonstrou claramente, designadamente em “A Torre da Barbela”, que os portugueses só podem ser compreendidos com essa rica profusão de retratos romanescos, que vão do “pobre de mim” da “Peregrinação” até à Joaninha dos Rouxinóis, ao Joãozinho das Perdizes, a Simão Botelho, a Fradique, a Jacinto, a Zé Fernandes, a Gonçalo Mendes Ramires, ao Lelito de “A Velha Casa”, até aos fantasmas de Barbela e à panóplia de Aquilino, de Nemésio ou de Saramago… E, nos textos escolhidos, com olho clínico, por Marcello D. Mathias é essa heterogeneidade que encontramos, ligada por um forte fio de Ariadne. “O génio lusíada é mais emotivo do que intelectual”, diz Pascoaes. “O trágico, o patético, a teatralidade, a desmesura não são connosco”, afirmou António José Saraiva. “O bom português é várias pessoas”, para Fernando Pessoa. “Entre o delírio e a melancolia, entre a exigência e a queixa, (o português) prefere esperar a sua vez”, disse Agustina Bessa-Luís. “Os portugueses têm aversão às soluções simples” para Valente de Oliveira.
UM NOVO-VELHO PAÍS
Com o 25 de abril de 1974, nasceu “um novo-velho país, e não é fácil a adaptação que constituiu uma verdadeira metamorfose. Para muitos um reencontro; para os demais, um dilaceramento. De qualquer modo, esta procura de identidade, que se agudiza com o pós-25 de abril, não é sentimento exclusivamente nosso, pois foi partilhado pelos países europeus que haviam sido potências coloniais, e que viriam a sofrer de semelhante rutura”. E a literatura dá-nos pano para mangas para essa interrogação e o sucesso do Marquês de Fronteira D. José Trasimundo, a seguir à revolução, foi significativo do que permanece e do que muda. António José Saraiva, Eduardo Lourenço, Vergílio Ferreira devem, por isso, ser lidos com atenção, porque o sentido crítico ajuda a uma leitura dos acontecimentos capaz de compreender a complexidade dos fatores com que se constrói a pátria. Uma identidade antiga não pode ser interpretada de modo simples ou superficial. E se esta obra notável de Marcello Duarte Mathias merece uma atenção especial e uma revisitação necessária, tal deve-se à complementaridade dos diversos registos que integra. E assim se entende Eduardo Lourenço, uma vez que ninguém levou tão longe e com tanta pertinácia “repensar a sério e a fundo uma realidade tão difícil de apreender como a portuguesa”. O autor apresenta diversos testemunhos numa escolha plural que permite compreender a essência do património, como serviço do que recebemos de quem nos antecedeu, fundamento duma herança rica e multifacetada, e valorização de uma memória viva. Na evocação, por exemplo, de Augusto de Ataíde ou de João Bigotte Chorão, duas personalidades com experiências diferentes, sentimos que a cultura se constrói com sensibilidade e sabedoria, com vontade e lembrança. E uma certa frustração das elites, correspondente à sua fragilidade, leva a um persistente fatalismo do atraso e da preguiça, a que importa responder com a compreensão de que, mais do que o primado do improviso, o melhor em nós é o trabalho. De facto, só podemos ter resultados positivos se ligarmos organização, persistência e cooperação. Sempre que o fizemos ganhámos, sempre que o esquecemos desaparecemos. Não se esqueça o que disse António Sérgio: “Quem vê com miragens o seu passado, constrói com miragens o seu futuro”. E é bom que Miguel Torga, como homem de raízes, seja lembrado quando diz “o Portugal de que sempre me orgulhei não é o da versão oficial”. Aí se sente “uma vontade de identificação, tanto no plano físico como espiritual, a que nunca renunciará”. Os vários autores que Marcello Duarte Mathias nos traz merecem ser lidos com vagar, de modo e entendermo-nos melhor. Somos um povo antigo, que se evidenciou por querermos ser nós mesmos. Como D. Pedro das Sete Partidas, entendamos a Europa como lugar de afirmação e não de ilusão. “A Europa, sim como pedra angular de uma política externa mais alargada, não como meio de subsistência coletiva; como âncora de ações que se assumem, não como álibis, que desresponsabilizam; não como uma aliança de nações que se juntam na afirmação de um bem comum superior, e não como um conjunto de povos às ordens de uma central burocrática interventiva que se arroga um magistério moral e político que não tem; a Europa, sim, como um processo contínuo de afirmação e valorização do que somos, entidade à parte entre os demais parceiros europeus, e não cobaia de um gradual desapossamento de nós mesmos, de tudo o que fomos e somos”.
«Portugal e o Islão – Novos Escritos do Crescente» (Teorema, 2009) de Adalberto Alves trata de temas diversos, como o do Diálogo Intercultural, a influência árabe na literatura portuguesa, a História do Período Muçulmano no nosso território ou as contribuições e os limites da Genética no estudo de tal época.
A ARTE DO LIVRO “O Poder da Palavra” é um projeto do Museu Calouste Gulbenkian que visa valorizar a Arte do Livro e outros objetos da coleção do Médio Oriente, com o objetivo de abrir novas perspetivas e criar interpretações contemporâneas, que afirmem a importância essencial do património cultural imaterial. Já na quarta edição, Jessica Hallett e Fabrizio Boscaglia animaram a invocação da festividade do Noruz, o início do ano persa, no equinócio da Primavera. A partir do caminho da espiritualidade sufi, é um conjunto de iniciativas centradas no Museu sob o título “Sabedoria Divina – o caminho dos sufis” até 2 de outubro de 2023, que salienta a importância de um verdadeiro diálogo entre culturas. A noção moderna do património cultural, como o Conselho da Europa salienta na Convenção de Faro, corresponde a essa ideia dinâmica, em que o passado e o presente são fatores de enriquecimento e respeito mútuo, de criatividade e de paz.
A música, a dança, a poesia, a caligrafia são expressões da Beleza e Majestade Divinas. Assim, os poemas de amor sufi referem-se ao copo e ao vinho, como metáforas da complementaridade entre as práticas religiosas exteriores (copo) e do êxtase espiritual interior (vinho). O sufi encontra, assim, a Beleza em tudo, quando o ego se encontra pacificado e o coração é espelho polido que reflete a Luz Divina. Tudo ao nosso redor é uma manifestação Divina, do Uno, indescritível e intangível, inefável e belo, majestoso e misericordioso. Não podemos esquecer na cultura portuguesa a Arrábida, como topónimo de reminiscência sufi, no santuário mediterrânico da península de Setúbal, bem ligado à etimologia da palavra árabe, que significa ligação espiritual entre o mestre e o discípulo, e na nossa cultura e língua invoca grandes poetas como Frei Agostinho da Cruz ou Sebastião da Gama. E o certo é que essa ligação espiritual se estende às referências a ermidas e comunidades, com uma forte influência sufi. E invocamos o poema do mestre sufi Ibn ‘Arabi (1165-1240), incluído em “O Intérprete dos Sonhos”, cujas palavras transmitem a mensagem universal do sufismo, como caminho espiritual praticado de modo aberto pelos muçulmanos, centrado em cinco temas chave: Sabedoria, Unidade, Amor, Caminho e Plenitude.
UM POEMA ESSENCIAL Leia-se o poema e compreenda-se essa rica ligação. “O meu coração tornou-se capaz de acolher todas as formas: / É pasto para gazelas e mosteiro para monges cristãos, / É templo para ídolos e Caaba para o peregrino muçulmano, / É tábuas da Torá e livro do Sagrado Alcorão. / Eu sigo a religião do Amor, qualquer que seja a direção / Que a sua caravana possa tomar. / Esta é a minha religião e a minha fé. Para o sufismo, a proximidade e a procura de intimidade com Deus são ideia-chave. Não por acaso, os primeiros sufis foram chamados como «a gente da varanda (ṣuffah)», por reunirem inicialmente em Medina, sob uma varanda anexa à mesquita de Maomé. Desde então, os grandes sufis como Rābiʿa (718-801) e Rūmī (1207-1273) passaram a ser designados como amigos íntimos de Deus.
Ao invocar o diálogo de culturas e a riqueza da tradição sufi, ouvimos na língua original e em português a grande poesia árabe, e agradecemos a Adalberto Alves o seu trabalho continuado para o estudo dessa presença entre nós, num país cuja cultura e língua se contruíram num cadinho, onde os movimentos norte-sul e sul-norte se encontram e são comuns as referências aos vestígios das comunidades sufis, nas azóias (recantos de recolhimento), arrábidas e morabitos. E numa tarde mágica do início da Primavera pudemos entender como os poetas de Al-Garb do Al Andaluz continuam connosco com as suas palavras e, por isso, sentimos familiaridade quando ouvimos Ruy Belo a dizer “A primavera é o meu país / saio à rua sento-me no chão / e abro os braços e deixo raiz / e dá flores até a minha mão…” ou Antero de Quental a lembrar “Que beleza mortal se te assemelha, Ó sonhada visão d'esta alma ardente…”.
O reforço de Portugal, como realidade cultural e linguística, é o principal suporte da nossa reação aos desafios que a atual globalização nos coloca e à nossa existência como país.
Numa perspetiva económica e financeira, o escudo e a política monetário-cambial nacional desapareceu. Passámos a ter o euro como moeda e o Banco Central Europeu tomou o lugar do Banco de Portugal.
Ao deixarmos de ter moeda própria, perdemos a capacidade de ter uma política de comércio externo, de impor ou não restrições às trocas externas, de introduzir taxas aduaneiras ou alfandegárias, ou outras restrições, a outros países, ficando dependentes de decisões dos órgãos da União Europeia.
A nossa política orçamental está condicionada e sujeita ao Pacto de Estabilidade e Crescimento.
As políticas nacionais estão, cada vez mais, subordinadas a Bruxelas, restando-nos poder ter capacidade para as influenciar.
Portugal como economia é uma região, entre várias, da UE e da zona euro.
Sendo, cada vez menos, um país do ponto de vista económico e sendo-o parcialmente sob um prisma político, é-o ainda no sentido cultural, onde sobressai a língua e o património.
Quando há uma tendência, com a integração europeia e a globalização, para a ausência de barreiras ao comércio e à mobilidade de pessoas e bens, é a nossa realidade cultural que sobressai, sendo imperioso reforçá-la, assegurando o apoio interno e a internacionalização do nosso idioma, das nossas artes e centros culturais, fazendo mais pela manutenção e restauração dos nossos monumentos e pela divulgação de figuras representativas da nossa identidade e universalidade, sem que isso constitua um obstáculo a contactos com outras culturas.
Para que tudo não fique igual e se fortaleça a nossa especificidade como realidade cultural, enquanto espaço de autonomia e diversidade.
A natureza mista e descontínua do território português manifesta-se no artigo 5.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, onde se lê: “Portugal abrange o território historicamente definido no continente europeu e os arquipélagos dos Açores e da Madeira”, incluindo Olivença, no território continental ibérico.
Embora real a distinção entre o Portugal continental europeu e o insular, há subjacente a esta descrição uma encruzilhada de vários continentes, da Europa, a África e à América, dado o cruzamento e a tripla junção no nosso território das placas euroasiática (Portugal continental e as ilhas açorianas de São Miguel, Pico, Faial, São Jorge, Terceira e Graciosa), africana (Madeira, Porto Santo, Desertas, Selvagens e a ilha açoriana de Santa Maria) e americana (Flores e Corvo).
Se tivermos como referência a parte continental europeia, o ponto mais ocidental de Portugal e da Europa é o Cabo da Roca.
Mas não o é, mas sim o ilhéu açoriano do/e Monchique (apesar de situado na placa tectónica norte-americana, a oeste das Flores), se incluirmos também o Portugal insular e tivermos como Europa a totalidade do nosso país.
Os arquipélagos dos Açores e da Madeira são a razão de ser de tão vasta dispersão territorial e geográfica, dispersando-se Portugal, no seu todo, uno e soberano, por três continentes, ao invés da versão mais oficial e comum, tendo-o apenas como europeu.
São também os Açores e a Madeira a razão que justifica a vastidão da zona económica exclusiva portuguesa, vinte vezes maior que o território terrestre, sendo a de Portugal continental mais pequena que a de cada um dos arquipélagos. Área que pode aumentar a atender-se às reivindicações marítimas portuguesas referentes à extensão da plataforma continental, vindo a ser, se exequível, vários milhões de Km2, por confronto com 92 000 km2 de terra habitável para humanos.
Embora o oceano seja apenas o Atlântico, a navegação do Mediterrâneo para a Europa do Norte, de África, da América do Sul, de uma parte da América Central e do Norte para a Europa passa obrigatoriamente pela zona económica exclusiva portuguesa, o que exige custos e meios, mas também mentes abertas e visões mais amplas.
Há que ultrapassar perspetivas paroquiais, alicerçando o futuro de Portugal na riqueza proveniente dessa dispersão, diversidade e multicoloridade territorial e marítima, a ser defendida, adaptando-se e crescendo em consonância com novas conveniências e realidades estratégicas e geopolíticas, sendo cada vez menos sustentável convencionar que a fixação de fronteiras é mais aceitar o costume convencionado em geografia por mero interesse ou proveito político, que o cultural, civilizacional ou verdade geográfica que emerge em si e por si.
Integra o grupo ocidental do arquipélago dos Açores a ilha das Flores e a do Corvo.
Em volta da ilha das Flores existem vinte ilhéus.
Um deles, é o ilhéu do/e Monchique.
É o ponto mais ocidental dos Açores, de Portugal e da Europa, tomando como referência o todo do arquipélago açoriano e do nosso país, e que todas as ilhas, ilhéus e ilhotas açorianas são europeias.
Dúvidas não há de ser o ponto mais a oeste dos Açores e de Portugal insular e continental, o mesmo não sucedendo se se considerar que o grupo ocidental açoriano se situa na placa litosférica e tectónica norte-americana.
Sendo, porém, todo o Portugal parte integrante da Europa, o mesmo se convencionou, até hoje, em relação à totalidade dos Açores.
Eis, então, que um grande e sólido rochedo oceânico de basalto, elevando-se e emergindo em dezenas de metros de altura de uma plataforma profunda, em frente à costa oeste da ilha das Flores, é o local e ponto geográfico mais ocidental do arquipélago açoriano, de Portugal e da Europa.
Deu por empréstimo o seu nome ao periódico O Monchique, da ilha das Flores, ao que consta extinto, em presumível homenagem aos tempos que o ilhéu foi ponto de contacto para acerto de rotas e verificação de instrumentos de navegação, com a ajuda de corpos celestes no espaço sideral, qual mensageiro de notícias das Américas e demais terras ao longe.
Sendo mais longo e tardio o tempo até à chegada de Diogo de Teive, achador ou descobridor das Flores, do Corvo e do ilhéu do/e Monchique, dada a dispersão das ilhas açorianas por uma extensa área geográfica.
Em que as duas ilhas mais ocidentais dos Açores estão mais a oeste que a Islândia, que as não supera, apesar da sua insularidade.
O Cabo da Roca, por sua vez, é o ponto mais ocidental do continente europeu, de Portugal continental e da Europa continental, sem incluir o Portugal e a Europa insular. Favorece-se, ainda, uma geografia convencional, embora esta se modifique e apele a outras leituras.