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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A VIDA DOS LIVROS

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   De 8 a 14 de fevereiro de 2021

 

“O Albatroz e o Chinês” (Ouro sobre Azul, Rio de Janeiro, 2004) de António Candido é um conjunto de ensaios dividido em três partes, as duas primeiras com maior extensão e a última constituida por pequenos textos, todos necessários à compreensão do pensamento do autor, um dos grandes pensadores da língua portuguesa.

 

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LIGAR LITERATURA E SOCIEDADE

António Candido de Mello e Souza (1918-2017) foi Prémio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras, em 1993, e Prémio Camões de 1998. A sua obra mais marcante é “Formação da Literatura Brasileira” (1959), que influenciou várias gerações de professores e intelectuais. Permitiu entender melhor a encruzilhada de influências da cultura brasileira e foi uma ponte entre duas influentes gerações – aproximando Oswald de Andrade, João Guimarães Rosa e Graciliano Ramos. Colega de Florestan Fernandes na Universidade de S. Paulo, desde 1942, tornou-se notado na “Folha da Manhã” pelo exercício brilhante da crítica literária, evidenciando, por exemplo, o valor de João Cabral de Melo Neto e Clarice Lispector. Usando o método dialético e comparatístico, a partir da sua formação sociológica, pôde dar uma nova luz para a compreensão do caráter poliédrico da poderosa criação literária e cultural do Brasil. A sua tese de sobre “O Método Crítico de Sílvio Romero” constitui um prometedor anúncio do percurso que fez, através de uma leitura da criação literária integrada no contexto da sociedade e da cultura. “O Albatroz” é um dos poemas mais conhecidos de Baudelaire, alegoria do destino do poeta no meio da turba que não o compreende. Representa a poesia que procura registar a experiência  do espaço aberto como estímulo para representar a natureza. O segundo termo do título está no pugente drama do criador sentido por Mallarmé (“Las d’amer repos”) e no “Cancioneiro chinês”, traduzido por António Feijó, no qual o poeta chinês Tché-Tsi está perante a “Folha branca” paralisado pela falta de imaginação – concentrado no espaço fechado, favorável à mente inventiva, que procura recriar a natureza. Para Celso Lafer: «“O Albatroz e o Chinês” é um grande livro de Antonio Candido, pelo qual, aliás, ele tinha especial predileção. Recebeu, no entanto, menos atenção da crítica do que outros que se inserem na mesma linhagem. (…) Os textos da segunda parte, em especial “Dos livros às pessoas” e “Portugueses no Brasil”, discutem e analisam a presença que tiveram em nosso país, e para a própria memória da formação de Antonio Candido, figuras intelectuais e personalidades culturais de Portugal. Também incluem reflexões sobre obras da literatura portuguesa que sempre o interessaram e sua recepção no Brasil, como é o caso de Eça de Queirós (“Eça de Queirós – passado e presente” e “Ironia e latência”), e, de maneira menos conhecida, Camilo Castelo Branco (“Duas máscaras”). São ensaios que, em sua especificidade, inserem-se no âmbito mais geral de sua constante dedicação ao romance como gênero literário».

 

PORTUGUESES NO BRASIL

Como tive oportunidade de verificar pessoalmente, no amabilíssimo encontro com o ensaísta, foram importantes as relações que estabeleceu com os portugueses que, por razões diversas, rumaram até ao Brasil – Jorge de Sena, João Sarmento Pimentel, Novais Teixeira, Agostinho da Silva, mas também Jaime Cortesão, Fidelino de Figueiredo, Adolfo Casais Monteiro, Fernando Lemos, António Pedro, Eduardo Lourenço e António José Saraiva. E é muito rica a invocação feita por Antonio Candido dessas diferentes personalidades que, cada uma à sua maneira, foram marcantes nas ligações e na compreensão das culturas da língua portuguesa. Ainda na mesma recensão, Celso Lafer recorda que a primeira aproximação dele ao Mestre foi feita através de Gil Vicente e de Camões, mas foi aprofundada mercê das leituras de Alexandre Herculano e também dos escritores da geração de 1870 – Eça de Queirós, Antero de Quental, Oliveira Martins, Guerra Junqueiro, Ramalho Ortigão e seus seguidores, bem como de António Sérgio. Na invocação do encontro memorável que tivemos em S. Paulo Celso refere que Candido pensava de Oliveira Martins, que “prendia o leitor, não apenas pelo conteúdo das ideias, mas pela eficiência da escrita”, e lembra a devoção juvenil que devotava a Antero de Quental, sobre cujos “Sonetos Completos” planeara um estudo aprofundado. Na versatilidade e agudeza das análises avulta a leitura de “A Ilustre Casa de Ramires”. Como refere Celso Lafer: «Gonçalo Mendes Ramires, o protagonista do romance (…) é, na obra de Eça, o personagem mais complexo que engendrou. “Ironia e latência” insere-se (…) no âmbito da reflexão de Candido sobre o personagem de ficção, o homo fictus, que foi o tema do curso de Teoria Literária de 1961, no qual fui seu aluno. Esse ensaio destaca “a graça e a força de uma prosa da mais sedutora plasticidade, que sabe penetrar no modo de ser das personagens, sobretudo do protagonista” e do espaço aberto da natureza (p. 160)».

 

GONÇALO E A SAGA DOS RAMIRES

A. Candido concorda com Beatriz Berrini quando esta diz que é impossível querer mal a Gonçalo, apesar da sua fraqueza de caráter. O romance é admiravelmente composto e “a lei do desenho, isto é, do enredo é o que se pode denominar ironia estrutural, geradora de contrastes, sugerida no fim pelo próprio romancista. Ironia que em princípio poderia ter suscitado um texto trágico: a fim de ser deputado e sair do seu ‘buraco rural’, Gonçalo Mendes Ramires deserta do seu partido e entrega tacitamente a irmã casada a um antigo suspirante, quase noivo, que a rejeitara e ele passara a odiar e combater; mas uma vez eleito, percebe que tal baixeza era desnecessária, pois de qualquer modo os eleitores teriam votado triunfalmente nele”. O duplo registo entre a história da Torre de D. Ramires e a situação de Gonçalo revela que, “como a nação, degenera a nobre raça”… Os Ramires de outrora venciam com grandes lanças, o de agora vai para África plantar seringueiras, cacaueiros, coqueiros, em nome do revigoramento da consciência nacional… E assim encontramos um enredo latente, que ilude a tragédia, permitindo “escamotear os aspetos eventualmente dramáticos, relegando-os para o subsolo do relato”. Há um olhar pacificado sobre o campo português, que sentimos em Gonçalo, a ponto de vir a estabelecer a supremacia da serra sobre cidade. “E quem sabe esse gosto pela dimensão rural contribuiu subtilmente para amainar os fermentos de drama em “A Ilustre Casa”, que continua mais vivo do que nunca.”. E Antonio Candido chama a atenção para os arrabaldes do trabalho crítico e para as razões que determinam de que maneira somos levados a encontrar, conhecer e amar as obras que se tornam prediletas, “sobretudo quando nos fazem companhia pela vida toda numa sucessão de leituras”. E interroga as contradições e os paradoxos, como acontece com Jünger com as cobras do Butantã, ao mesmo tempo propícias e fatídicas, sendo o único animal que vive no espaço destinado ao saber, à ciência do bem e do mal, segundo a tradição. Enquanto sobre Darcy Ribeiro recorda as três bandeiras que cobriam o seu caixão: a do Brasil, a do seu Estado de Minas Gerais e a dos Sem-Terra, referindo que “elas não encarnavam o país dos donos da vida, nem eram pendões de festa cívica, objetos cansadíssimos de discursos em cerimónias rotineiras”. E assim se incorporavam “os pais dos pobres, dos que precisam ser finalmente incorporados à nação”…

 

Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença