Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CRÓNICA DA CULTURA

POSTAL 4º


Singular e querida amiga Dulce,

Obrigada pelo teu postal. Obrigada pelo modo como escreves. Obrigada por nunca teres partido.

Fizeste bem em adquirir o anel que descreves e a pulseira a jogo. Essa prata baça que referes, essas pedras antigas do Nepal irão casar com os teus dedos longos e com os teus pulsos estreitos e brancos, e ao adereço, chamarás peça astral. Pois sim, acho adequado.

Dulce,

Tenho duas notícias diferentes para ti. Nenhuma te queria dar, mas insistes, e, na verdade, desconheço por que razão entendo que aí, em Lassa, no mosteiro que escolheres, as dominarás melhor.

Assim, a morada que pedes está vaga. Por outras palavras, não te será acesso a quem queres, pois foi viver para uma cidade perto de Paris. Apenas sei que foi uma decisão que não pôde adiar mais, por desamparo, por tanto acrescido de aflições, tudo ligado aos seus problemas familiares. Às vezes, a infelicidade é um tempo de granito, é mesmo o advir da solidão pesada, da que não despega.

E querida Dulce, apetecia sumir-me em vez de te dar a segunda notícia: a nossa Joana deixou-nos fisicamente. Tenho para ti um saquinho de linho que ela me encarregou de te entregar. Dentro dele e por sua mão escrevente, a razão de lhe faltar tempo.

Preciso que te recordes que em ambas, luz e trevas, dorme o mesmo mistério, a mesma indecifração.

Longe e bem perto tudo é uma possibilidade.

Que mais dizer-te?

Custa-me que a reflexão sobre a morte seja um sinal de vida, mas afinal de que outro modo se pode olhar a fundo as coisas ainda abertas?

Em Lassa a eternidade poderá ser diferente? Não sei. Coloca um papel ao vento, te peço, por ti e por mim, e mediada pelos mosteiros, talvez a razão de ser de tu estares aí, e eu aqui.

Li no teu postal que irás pela Índia um mês. Se encontrares um deus para todas as condições, lembra-te de nós duas.


Tua muito amiga
Isadora

 

 Teresa Bracinha Vieira

CRÓNICA DA CULTURA

POSTAL 3º

 

Tens toda a razão, Dulce, os homens foram e são o centro e o descentro da terra. Há mesmo quem acrescente: e paradigmas de si mesmos. Não sabem quem são nem quem foram e tudo numa rotação de gelatinas ajuizadas pelos mesmos.

Não se pode estar no mundo, e no mundo de Lassa, e olharmo-nos a espelhos. Tomaria até aversão a espelhos. Seria terrível ver o desconhecimento de quem se é, e tão mais perto do céu, o vacilar.

Quem te diz e me diz do sem remédio de onde viemos e ao qual voltaremos? Quem te diz e me diz que só o além da memória é eixo no sentido da rotação que desejamos? Como sabemos ajuizar do tecido dos nossos sentires?

Ó Dulce!, e nós, a dizermo-nos estas coisas por postal, por postal oriundo do peito que já as ouviu, quando as nossas dúvidas eram adivinhadas de olhos nos olhos!, e grande era o susto e o espasmo.

Quero crer, quero crer que um dia os homens possam, enfim, ter o dom de entender, na totalidade, a palavra dita, e, se um dia a escreverem, quem sabe?, se não se alteram as proporções das fraturas e a mera lasca traga humanidade ao humano.

No jade da terra as palavras são confiáveis, alguém me disse, e o amo-te é seguro. Vê só!

Nas encostas íngremes por onde andas, as sombras chegam primeiro aos cumes: são sombras de onde nascem os dias, alguns, tão discretos que passam despercebidos, e outros, em que trocamos estes postais-cometas.

Abraço-te com saudade

Isa

 

Teresa Bracinha Vieira

CRÓNICA DA CULTURA

POSTAL 2º

 

Querida Dulce,

Gostei tanto da tua pronta resposta. E que postal lindo enviaste. Leio que permaneces em Lassa.

Calculei sim, que preferirias o Palácio Vermelho e suas bibliotecas e capelas - eixo central das coisas - ao Palácio Branco, o palácio dos incríveis tesouros de ouro, possante, mas ainda assim reconhecendo os cestos de vime. E, claro, já foste duas vezes ao Palácio de Potala, outrora casa de Dalai Lama, e dele também já pensaste fugir rumo a uma Índia, daí que o teu remetente me não surja absolutamente claro. Diria, sim, que estás no rebordo de uma paisagem e que te espreitas de outra.

Diz-se, querida Dulce, que no Tibete se começa um outro viver, o viver dos cumes, onde e aonde um olhar captor, nos convida a sentir que, ao mesmo tempo, esse mesmo olhar, nos liberta. Ah! Que extraordinário!, que excesso!, uma entrega sem defesa.

No postal anterior, fazia-te notar as razões da equidistância, aquelas que nos baralham, se não pensarmos o quanto somos furtivos e inábeis no conhecer mundos. Agora, proponho-te, que aí, desates os pés e experimentes sabores novos e descalços, e mais te proponho: deixa que que ao teu peito prevaleça uma segunda escolha. Ao teu nariz chegará um cheiro desconhecido, exalado da indagação. Diverte-te, pois, com ele. Descobre-lhe o enigma, chama-lhe viagem.

Agorinha mesmo, doce Dulce chegou-me à memória o cheiro dos pinhais da nossa infância. O ruído do vento por entre as pinhas. O estalar da caruma sob as sandálias. De repente, ali abri os braços, fechei os olhos, rodei em mim vertiginosamente. Quando parei, tu, habituada àquele ritual disseste-me, tranquila:

Um dia vou escrever-te tantos postais, Isa!, mas tantos!, como se estivesse muito longe daqui.

Abraço desta tua amiga

Isa

 

Teresa Bracinha Vieira

CRÓNICA DA CULTURA

POSTAL 1º

 

Parece-me que todos os países e cada um que visitas sofregamente, não passam de recantos equidistantes do ponto que procuras e que afinal, quantas vezes, até já conheces por muito conheceres?

Dulce,

Pelo que intuo, fora do teu refúgio, nunca estás sem ele.

Arrepiaste caminho, bem sei, quando seguias por aquela estrada que te levava ao início dos montes inquietos, com sítios e nomes registados na tua agenda, lá por onde passeaste na mota do Luís Pedro, braços teus seguros, enfim, no peito dele.

Arrepiaste caminho, siderada da saudade do que não aconteceu.

Sei que sabias que nas tuas mãos, o estojo, onde tudo guardavas, podia-se abrir um dia, tal como aconteceu, e, de repente, alguns beijos soltaram-se, e agora, agora não sabes como celebrar o luto daqueles em falta.

E lá foste a Lassa. De novo. Por confusão ou desejo, esse o destino. Mais um, equidistante.

Minha querida amiga,

Nem sabes que também eu perdi a morada do profeta, aquele que tudo jogava num ladrilho de céu, torres, cavalos, peões, reis, enquanto os oceanos se sossegavam e neles eu também equidistante nas ondas da minha onda.

Todos temos segredos, querida Dulce, e alguns extraordinários, por tão belos e outros, por tão funestos. Todavia, é meu desejo que este meu postal, te faça esquecer esse teu fundamental, possa ele distorcer esse teu real, encobrir mesmo teu passado só teu, e do que fica, tenhas tu a possibilidade de partir, como quem se some num denso, desconhecido e convidativo nevoeiro, e saibas tu que a primeira recordação nítida da tua vida, será sempre de ti.

Assim hoje.

Isa.

 

Teresa Bracinha Vieira