Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
A temática dos refugiados é a base do seu trabalho
Segundo a Academia, o prémio foi concedido "por sua penetração intransigente e compassiva dos efeitos do colonialismo e do destino do refugiado no abismo entre culturas e continentes."
Deste escritor tanzaniano ainda só li este livro By the sea.
Ficou-me sonoro na alma o que se possa entender por um requerente de asilo. Por um requerente de paraíso que há-de encher até fazer transbordar o saco que desde Zanzibar leva às costas e no qual também transporta um pouco de incenso: sua posse mais preciosa.
Depois uma história de amor e traição, de sedução e de desvendamento, de luz e névoa, angústia e medo e nunca, nunca a rota da trégua no caminho do refugiar.
Bem-haja quem denuncia estrada tão amarga, tão poço junto à boca: tão no ventre dos nossos dias.
Quando Louise Glück (1943) soube que lhe tinha sido atribuído o Prémio Nobel 2020 mostrou-se muito surpreendida por se tratar de poesia e ainda por cima por ser uma escritora branca. Mas não havia razões para surpresa, não só pela sua atitude de compreensão permanente pelos mais legítimos combates pelo respeito da dignidade humana, mas também pelos temas que tem escolhido para a sua criação poética – nos quais a não indiferença marca sempre a busca de um elo entre as mais legítimas preocupações da arte e dos criadores. Pelo menos, ficamos com a certeza de que este será um caso em que o tempo se encarregará de demonstrar que o prémio Nobel da Literatura tem também grandes nomes a celebrizá-lo. “A necessidade de escrever é o desejo de seguir uma ideia. Para um escritor, pensar e escrever, como pensar e sentir são sinónimos” – eis o que nos diz a poeta. Mas também encontramos na sua escrita coerente e imprevisível a compreensão da incindibilidade entre a mente e os sentimentos: “O melhor / é não ter mente. Sentimentos / Oh, tenho-os / governam-me”. Os mitos clássicos são um dos seus temas preferidos. Importa compreender os valores permanentes. Ao tratar da guerra de Troia, pergunta-se se a guerra é um passatempo masculino, “um passatempo para fugir a questões espirituais profundas”. A cada passo, Glück vê a história, real e mítica, como realidade contraditória, que é preciso encarar com sentido crítico, reflexão e sentimento. Tantas vezes as personagens do teatro grego não são pessoas, como Perséfone e Hades, mas aspetos do dilema e do conflito de qualquer ser humano. “Que farás quando chegar a tua vez em um campo com um deus?”… Há um permanente diálogo entre pessoas, como se a autora conversasse com cada um dos leitores. A simplicidade da linguagem, o humor, a aparente proximidade tornam a poeta uma grande referência. Neste tempo marcado pela pressa e não pela reflexão, mas também pelo medo e pela incerteza, Glück é uma marca positiva e necessária. Um jornalista de “El Pais” salientou como temas recorrentes da premiada; a traição, a mortalidade, o amor, o sentimento de perda. Eis um conjunto de questões que tornam a escritora um símbolo atualíssimo, para além das modas e das imitações… Como disse Adam Plankett, o mais extraordinário milagre de Louise Glück é a capacidade extraordinário de transformar água em sangue, não no sentido elementar, mas como sentimento humano – o mesmo que encontramos no combate entre Aquiles e Heitor e no título do livro de 1985 “The Triumph of Achilles”. Não há, contudo, livros traduzidos em português, há apenas algumas traduções esparsas. Recordamo-las aqui, à espera das edições que a autora tanto merece…
Agostinho de Morais
O Poder de Circe
Nunca transformei ninguém em porco. Algumas pessoas são porcos; faço-os parecerem-se a porcos.
Estou farta do vosso mundo que permite que o exterior disfarce o interior.
Os teus homens não eram maus; uma vida indisciplinada fez-lhes isso. Como porcos,
sob o meu cuidado e das minhas ajudantes, tornaram-se mais dóceis.
Depois reverti o encanto, mostrando-te a minha boa vontade e o meu poder. Eu vi
que poderíamos ser aqui felizes, como o são os homens e as mulheres de exigências simples. Ao mesmo tempo,
previ a tua partida, os teus homens, com a minha ajuda, sujeitando o mar ruidoso e sobressaltado. Pensas
que algumas lágrimas me perturbam? Meu amigo, toda a feiticeira tem um coração pragmático; ninguém
vê o essencial que não possa enfrentar os limites. Se apenas te quisesse ter podia ter-te aprisionado.
*Poema publicado originalmente na coletânea Meadowlands (1996), com o título “Circe’s Power”. Editado em Portugal na antologia Rosa do Mundo. 2001 Poemas Para o Futuro (2001), da Assírio & Alvim, numa tradução de José Alberto Oliveira.
Paisagem
Nos fins do outono uma rapariga deitou fogo a um trigal. O outono
fora muito seco; o campo ardeu como palha.
Depois não sobrou nada. Se o atravessávamos, não víamos nada.
Nada havia para colher, para cheirar. Os cavalos não compreendem –
Onde está o campo, parecem dizer. Como tu ou eu a perguntar onde está a nossa casa.
Ninguém sabe responder-lhes. Não sobra nada; resta-nos esperar, a bem do lavrador, que o seguro pague.
É como perder um ano de vida. Em que perderias um ano da tua vida?
Mais tarde regressas ao velho lugar – só restam cinzas: negrume e vazio.
Pensas: como pude viver aqui?
Mas na altura era diferente, mesmo no último verão. A terra agia como se nada de mal pudesse acontecer-lhe.
Um único fósforo foi quanto bastou. Mas no momento certo – teve de ser no momento certo.
O campo crestado, seco – a morte já a postos por assim dizer.
*Terceira parte do poema “Landscape”, de Averno (2006), traduzido por Rui Pires Cabral. Os versos foram publicados no n.º 12 da revista Telhados de Vidro, da editora Averno, maio de 2009