CRÓNICA DA CULTURA
Reposição de texto publicado a 22.06.23, agora em singela homenagem ao Prémio nobel da Paz 2023 atribuído a
Les hirondelles de Kaboul
PORQUE É HUMANO TENTAR QUANDO A RAZÃO PARECE PERDIDA
As andorinhas de Cabul, o filme do futuro, do futuro de hoje.
As cores das aquarelas instam a placidez do deserto face ao desastre perpétuo que se tem passado no Afeganistão, quando um sentido para a vida é procurado por dois homens e duas mulheres que mal sobrevivem ao martírio que o país perpassa, sob a loucura entregue às mãos da tirania talibã.
Todavia, nem sob o jugo do fanatismo religioso, esse mesmo que se alenta e gargalha quando as bolas de pano, pontapeadas pelas crianças, atravessam as argolas de corda preparadas para os enforcamentos; nem mesmo quando de pedrada a pedrada as mulheres sob a burca rolam de dores espraiando sangue até à morte, perante uma ovação furiosa; nem mesmo assim, o amor cede, nem mesmo assim a esperança parte dali.
E nada é milagre, mas antes desobediência. Desobediência no pequeno gesto que faz futuro apesar da miséria e da extrema violência que a obriga.
Porque há esperança e futuro quando há desejo de ensinar, na clandestinidade, as futuras gerações que têm de saber que a falta de liberdade acarreta a falsa estabilidade, num silêncio tão fundo que até os pensamentos, mata, e há que transmitir esta verdade, porque há gestos de andorinhas.
Porque há esperança e futuro quando nada parecendo acontecer que mude a dimensão trágica da vida, as andorinhas insistem no seu piar, no seu voo livre, desafiando os termos dos homens.
Porque há esperança e futuro quando o amor faz explodir as grilhetas que punem a humana tentação, o humano desejar.
O silêncio mata mais do que as armas, é certo, e os personagens centrais sabem-no, e tentam subverter as regras aguardando ou não que a misericórdia derradeira lhes seja concedida, já que apenas tentam.
O final deste filme portentoso?
Um murro explosivo no estômago. Uma centelha estrondosa de barulho no coração.
Teresa Bracinha Vieira
Obs: Estreou mundialmente este filme, no Festival de Cannes em 2019. Baseado no livro de Yasmina Khadra, pseudónimo de Mohammed Moulessehout, escritor argelino.
Filme realizado por Zabou Breitman e a ilustradora Élea Gobé Mévellec.