Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CRÓNICAS COM MEMÓRIAS DE SÃO TOMÉ

Pero 2.jpg

Estátua de Pêro Escobar no Padrão dos Descobrimentos, foto de Luís Pavão


4. ENTRE MEMÓRIAS DO PASSADO E O PRESENTE (II)


1.
Prosseguindo viagem eis-me junto ao “Memorial da descoberta/achamento da ilha de S. Tomé a 21 de dezembro de 1470 pelos navegadores portugueses Pêro Escobar e João de Santarém”, onde fica o cruzeiro ou padrão dos descobrimentos, no local do primeiro desembarque.   

O acesso é mau, agravado pela ausência da ponte, que ruiu e caiu, forçando os veículos a atravessar a água da ribeira, quando podem e consoante a época do ano, o que foi possível, no meu caso. A degradação é geral, incluindo o monumento, um edifício inativado, mesas e bancos ao ar livre a fazer lembrar tempos idos de melhor preservação.

Degradado, mas não destruído, é um património que merece ser cuidado e reabilitado, quiçá através de obras de conservação e manutenção com a ajuda de parcerias público-privadas portuguesas e do Estado são-tomense.

Apesar da deterioração, há um sossego, uma tranquilidade, uma beleza colorida pela vegetação banhada pelas águas de uma pequena praia à beira mar, que nos “alheamos” da desolação e idealizamos um turismo histórico e cultural reinventado e descomplexado.       

2. De seguida, paragem na roça Diogo Vaz, uma das mais antigas, fundada em 1895, localizada num pequeno promontório elevado em relação à cota do mar e organizada sob um eixo perpendicular à costa, ladeado por terreiros em socalcos enquadrados por sanzalas e edifícios de apoio, com a casa principal (escritórios e casa do médico) no extremo oposto, com visibilidade para o mar e todo o eixo da fazenda.   

Mantendo a tipologia-base em avenida, sendo a primeira estrutura do género, possibilitou aperfeiçoar e testar o modelo de roça-avenida, para a posterior construção da Rio do Ouro. 

Tendo passado por várias fases de construção, reabilitação e modernização, notório na conservação dos edifícios mais emblemáticos, é um dos exemplos de sucesso, de produtividade e rendimento, entre as roças de São Tomé. Prova-o a floresta de cacaueiros de variedades nativas e não endémicas, o chocolate de qualidade que produz, já consagrado como marca, exportado e premiado internacionalmente, que comercializa numa loja elegante na marginal da capital da ilha. 

3. A viagem prossegue até ao túnel de Santa Catarina, percorrendo uma estrada que é tida como a mais bonita da ilha, pelo que ouvi e li, o que pude presumir pelos reflexos solares, de tons levemente dourados e prateados, refletidos na água da praia e por entre palmeiras posicionadas uma atrás das outras, vergadas pelo vento, entre a estrada e a beira mar. Naquela hora, com a despedida solar, foi um dos momentos paisagísticos mais deslumbrantes e emocionantes que vivi em São Tomé.

Tudo a apelar a fotografias e vídeos, em vários ângulos, formatos e posições, o que é corroborado com a chegada ao túnel verdejante de Santa Catarina, escavado na rocha, onde a beleza da natureza, com a ajuda humana, predomina.

Não foi fácil chegar, dado o péssimo estado de conservação da estrada na zona de Neves, capital do distrito de Lembá, com enormes buracos, aberturas e desníveis do piso, agudizados pela queda de uma chuva forte e repentina, que deu oportunidade a porcos, cães e toda a gama de animais à solta fazerem bebedouro das covas e fendas rodoviárias, embaraçando o trânsito numa povoação desorganizada, compacta e populosa.  

Mais perplexo fiquei quando me apercebi estar ali instalada a fábrica da icónica cerveja Rosema, a única do país, e os depósitos de abastecimento de combustível, tornando incompreensível a degradação que acabara de ver. Respondeu-me, quem me acompanhava, que os camiões de transporte pesado de combustível danificam permanentemente as vias por onde passam, não sendo compensada, em contrapartida, a população local com as melhorias a que devia ter direito.

O dia findava e havia que regressar ao ponto de partida, o que fizemos voltando por Guadalupe, capital do distrito de Lobata.     

Deparei-me com uma cidade limpa, organizada, boa estrada de pavimento novo, passeios para peões, sinalética adequada, o que facilitou, e muito, a chegada à Cidade de São Tomé, dado o bom estado de todo o percurso. Enfim, uma surpresa, por contraste com o desleixo de Neves.

Perguntei, a mim mesmo: porquê esta disparidade, se ambas as cidades são capitais de distrito, urbes com indústria, embora Neves seja mais populosa? Não sei a resposta. Mas de uma observação atenta tive a intuitiva impressão de que em Guadalupe há habitações de qualidade acima da média, por oposição a Neves (muitas delas barracas).

Também em Guadalupe, ao passar pela igreja de Nossa Senhora de Guadalupe, perguntei ao guia se havia em São Tomé algum santo ou santa de origem negra, como Nossa Senhora da Aparecida, no Brasil. A resposta foi negativa, pelo que sugeri, a ser assim, que podem importar o culto do Brasil. Ou ter santos nativos e negros de São Tomé e do Príncipe, O que faz sentido, pois só têm santos brancos. Ambos, bem-dispostos, rimos. Algum tempo depois, fim de mais um dia.


25.10.24
Joaquim M. M. Patrício

CRÓNICAS COM MEMÓRIAS DE SÃO TOMÉ

  
     Baía de Ana Chaves, S. Tomé © Centro Nacional de Cultura


3. ENTRE MEMÓRIAS DO PASSADO E O PRESENTE (I)


1. A primeira paragem do dia foi no extremo sul da baía de Ana Chaves, na cidade de São Tomé, onde fica o forte de São Sebastião, erguido pelos portugueses, em 1575, diante do qual, no seu perímetro exterior, ao ar livre, estão as estátuas monumentais dos navegadores lusos João de Santarém e Pêro Escobar e do povoador João de Paiva. Retiradas de praças e jardins, após a independência, não foram, até agora, destruídas nem vandalizadas, sendo preservadas como património e memória histórica (o que é de louvar), como que parte ou a continuação do Museu Nacional de São Tomé e Príncipe, instalado no interior da fortaleza.   

A alva representação monumental dos homenageados, reforçada pelo obelisco que os acompanha, sinaliza-se à distância, contrastando com a discrição do tributo aí prestado ao líder anticolonial santomense Amador.   

O espólio do museu faz a retrospetiva possível da história e cultura que evoca, através de documentos artísticos e históricos, fotografias, esculturas, pinturas, recolha de objetos e reconstituição da vida diária nas plantações de cacau e café, departamentos públicos, residências estatais e eclesiásticas, desde a época colonial à atual, exemplificando-o a vida nas roças e o texto do hino nacional, subscrito por Alda Espírito Santo. De destacar também a capela do santo padroeiro, baluartes, farol, terraços e vista para o ilhéu das cabras.     

2. A CACAU (Casa das Artes, Criação, Ambiente e Utopias) é um caso pioneiro no panorama cultural de São Tomé, como o é João Carlos Silva a inovar e a caminhar por caminhos nunca antes caminhados. Seja na inovação e reinvenção da cozinha tradicional e de autor na roça de São João, na Fábrica das Artes e Cidadania Ativa (FACA), no autocarro Tata, uma biblioteca móvel levando livros e cultura a toda a ilha (como outrora a da Gulbenkian), sem esquecer a CACAU, o seu mentor mostra-nos que há algo de belo em ter uma missão, haja querer e perseverança para o tentar realizar.

Na CACAU há um museu, galeria de exposições, auditório, palco de espetáculos e eventos, espaço de dança, livraria, bar, restaurante, produção e venda de artesanato, tendo como objetivo principal promover a arte e a cultura. É também um centro polivalente de vocação aberta e transversal no que toca à educação, formação artística, empreendedorismo, aprendizagem, informação e animação turística, incluindo mostras permanentes e temporárias de pinturas e tradições culturais, com uma detalhada retrospetiva histórica, económica, social e cultural do país, dos primórdios à atualidade, não esquecendo o tchiloli, que persiste.   

Se a arte é essencial para construir cidadania, também é possível transformar São Tomé e Príncipe num entreposto cultural, com novos voos, parcerias bilaterais ou multilaterais e com o beneplácito do Estado local e de pessoas visionárias como João Carlos Silva.    

3. Se as roças foram o ordenador territorial do país e ainda são um polo central do seu desenvolvimento, ir a São Tomé sem ter uma noção da sua importância no passado, no presente e das suas potencialidades futuras é indesculpável.   

Após uma breve paragem na roça da Bela Vista, onde a casa principal é o edifício mais interessante do conjunto construído (seguido do hospital), e de uma visita à aprazível e discreta cascata Rio de Ouro, paramos na roça Agostinho Neto (antigamente chamada Rio de Ouro).       

É a maior e a mais emblemática pela sua dimensão e imponência arquitetónica em São Tomé e Príncipe, apesar do abandono e degradação a que está votada, organizando-se através de uma larga, longa e pavimentada avenida central, dominada pelo impactante hospital (de influência déco), na extremidade mais elevada, e ladeada pelo conjunto das sanzalas com terreiros privados, das casas dos feitores, encarregados, trabalhadores e pessoal dos escritórios, hoje ocupadas e habitadas por população local.   

É desolador constatar o desleixo e deterioração a que chegou um hospital que outrora funcionou com duas grandes alas, masculina e feminina, para doentes, consultório médico, enfermarias e farmácia, tendo ao lado uma capela.   

No extremo oposto ao hospital, ficava a casa do proprietário, antiga casa principal, substituída agora por um pavilhão de festas, museu ou algo similar. No espaço onde houve um jardim botânico, zoológico e um pavilhão de chá, há flora e vegetação à solta, onde sobressai uma planta conhecida por “não me toques”, a qual se fecha e dorme quando é tocada. Dizem os locais fazer lembrar a antiga proibição aos santomenses de tocarem nas mulheres portuguesas.     

Dentro das três grandes tipologias das roças, correspondia ao modelo da roça-avenida, mais complexa e organizada, em redor da espinha-dorsal constituída por uma alameda, situando-se nela, em tempos, o mais avançado sistema ferroviário do arquipélago, fazendo a ligação com o porto em Fernão Dias.       

Era uma espécie de joia da coroa das roças de São Tomé. Foi na Rio do Ouro que pernoitou, em 1907, o Príncipe Luís Filipe, filho do rei D. Carlos, aquando da sua visita à colónia.     

Mesmo desaproveitada e exposta ao descuido, é uma permanente atração turística, organizada de modo a condicionar uma visita guiada, com a obrigação de deixar um contributo para ajuda da comunidade, que nos recebe bem.     

E se é verdade que se as roças não estivessem localizadas em zonas interiores e remotas de São Tomé, o país não se teria desenvolvido tanto do ponto de vista viário, ferroviário e portuário, o mesmo releva, agora, em termos turísticos.    

4. Seguimos para a Lagoa Azul, antecipando uma paragem no topo da estrada, observando as águas azul-turquesa de um dos melhores locais de mergulho da ilha, com uma grande variedade de corais, a haver boa visibilidade.       

Junto à lagoa, somos abordados por jovens santomenses que expõem, para venda, artesanato local, que assim passam os dias, segundo apurei. 

Havia que satisfazer um pedido, de alguém muito especial e em trabalho de voluntariado: saber da situação do embondeiro, por ela eleito como seu, o qual, neste entretanto, desapareceu por arrastamento para a água, por destapamento das raízes com a erosão da terra onde assentava. Era de grande porte, segundo testemunho do guia, confirmado por quem o escolheu. Afinal, a lagoa, na sua idílica beleza de águas azul-turquesa ou verde-esmeralda, consoante a disposição da luz, também tem os seus caprichos.           

Almoço no Mucumbli, num refúgio que é um hino à natureza, como que a compensar o dissabor que acabáramos de ter.


18.10.24
Joaquim M. M. Patrício

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

  


164. QUEM QUER EXERCER O PODER NO PRESENTE TEM DE DESTRUIR O PASSADO?


1. Com o desumano assassinato de George Floyd gerou-se uma vaga de indignação global contra o racismo. Aproveitando a ocasião grupos radicais ativaram uma guerra cultural contra o que têm como símbolos do colonialismo e opressão, através do apeamento, desmembramento e vandalização de memoriais e monumentos tidos como colonialistas, opressores e racistas. 


Ao longo da História humana sempre foram destruídos patrimónios civilizacionais, em nome de Deus, da fé, de ideologias, de poderes instituídos, de direitos tidos como inalienáveis, de utopias compensadoras, redentoras e salvíficas. 


Impõe-se referir que a destruição do passado em termos culturais, patrimoniais e civilizacionais tem sido transversal a todos os poderes e civilizações, uma caraterística constante e permanente que tem atravessado todos os conquistadores e vencedores, desde o Ocidente ao Oriente, do Norte a Sul, não sendo um exclusivo ocidental. 


Jerusalém, com a sua simbologia de cidade sagrada, é um exemplo, com as suas sucessivas ocupações e destruições (a começar pela destruição do Templo de Salomão e Herodes), desde a ocupação Judaica, Babilónica, Grega, Ptolemaica, do Reino Asmoneu, Romana, Bizantina, Persa, Islâmica, das Cruzadas, de Saladino, dos Mamelucos, Otomana, Britânica, Israel/Jordânia e Israel.


Só que o repúdio e revolta, mesmo que legítimos, por atos praticados contra a raça ou a cultura daqueles que se têm por vencidos, oprimidos ou explorados, não justificam, quanto a nós, que se destruam os símbolos de identidade cultural e patrimonial dos que têm como vencedores, por maioria de razão quando estes lhes permitem, na sua própria casa, manifestar-se e protestar, ao invés de países não democráticos, que não censuram, onde nunca poderiam exercer o direito à indignação e de opinião que exercem no Ocidente.


Se o presente interpela o passado, se aceitamos uma pluralidade de visões e diferentes memórias civilizacionais, a História tem de ser, no mínimo, a visão do vencedor e do vencido, o que levanta a questão, no nosso tempo e circunstâncias, do que é tolerável e intolerável na nossa memória coletiva. 


Em regimes autocráticos, ditatoriais e totalitários, apela-se a uma visão única da História, do tudo ou nada. Apelidar obras de arte de “degeneradas”, como Goebbels, durante o nazismo, a arte ocidental de “decadente, burguesa, capitalista e reacionária”, como Lenine na União Soviética, de “contaminadas”, no Estado Novo, a artes miscigenadas no âmbito da colonização e do império, lembra a linguagem de um poder supremacista sobre afirmações culturais tidas como desprezíveis ou indignas.     


2. Defendemos que os monumentos e memoriais, incluindo as letras e as artes em geral, são património histórico e cultural e, como tal, devem ser preservados, contra tudo e todos, o que exige às democracias saber o que fazer de uma memória tida como tolerável e intolerável, no seu tempo e nas suas circunstâncias, sendo inadmissível que se brutalizem, destruam ou vandalizem, tomando como arma de arremesso causas justas ou princípios universalmente consagrados, como o da justiça igualitária e social.


Se aceitamos que todas as obras de arte, incluindo a sua história, a museologia e as ciências do património, são um testemunho de uma História comum, do tempo em que foram produzidas, do que se seguiu e do atual, assim contribuindo para a configuração cultural e espiritual do mundo, também temos de aceitar que são permanentemente transcontemporâneas, não se esgotando na temática que representam.   


Nesta sequência, o questionamento crítico sobre se uma determinada estátua, por exemplo, pode ser retirada, deslocalizada, armazenada, transferida para um museu, discutida, historicamente contextuada e enquadrada, até por razões meramente estéticas ou de gosto, pode ser exequível e ser aceite pela comunidade, mas não ser adulterada, apeada, brutalizada, destruída, vandalizada, muito menos quando a iconoclastia integra uma agenda de protesto. O mesmo quanto à remoção, destruição ou vandalização de esculturas ou pinturas que só num determinado enquadramento previamente programado se justificam, que são transcontextuais e isentas de culpa dos desmandos humanos, mas que podem, a todo o tempo, ser contextualizadas e confrontadas com esculturas e pinturas contemporâneas sobre os mesmos temas. 


Mesmo que ideológica, política e socialmente comprometidos, os monumentos, memoriais e a arte em geral são sempre um testemunho vivo que suscita debate, controvérsia, seja no espaço público, museus, bibliotecas, igrejas, edifícios estatais ou civis, porque portadoras dos olhares do passado, do presente e do futuro. 


E ao abrir e reconhecer uma parte oculta da História, pode-se enriquecer a narrativa, torná-la mais verídica.


Daí que quem quer exercer o poder sobre o presente não tem que destruir o passado. Mais fácil, sem dúvida, em sociedades onde se aceita o respeito por uma pluralidade de visões e de diferentes memórias, onde há liberdade de expressão, de manifestação e de protesto, amiúde não reconhecida por quem dela aí beneficia, por confronto com países onde a intolerância é a regra.


01.03.24
Joaquim M. M. Patrício