Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Luís Filipe Castro Mendes cita Manuel António Pina no início de Tentação da Prosa (Exclamação, 2024) - “Poesia, saudade da prosa”, e assim se compreende o ofício da escrita. E Francisco Seixas da Costa diz, na nota inicial: “conhecia-lhe já a prosa, a sua limpidez, a riqueza vocabular, o fluir fácil e elegante no estilo, saído de alguém para quem a produção de textos constitui um óbvio ato de prazer”. E estas crónicas “espelham alguém (…), já sem algumas das ilusões geracionais, mas com notas permanentes de esperança e de otimismo”. E assim há “uma imensa e invejável felicidade” na busca dos acontecimentos e das leituras… “É das coisas miúdas que se fazem os grandes encontros”. A tentação da prosa é assim um exercício de gozo íntimo. Quando lemos: “gostava tanto de ver Samarcanda”, é esse deslumbramento das cidades desejadas, mesmo que apenas na imaginação, que nos enche de curiosidade e que o escritor, que nunca deixa a sua veia poética, vai recordando. E embrenhamo-nos em Atlas escolares, nas rotas míticas, no caminho de Marco Polo, nas cidades de família – Trebizonda, Tombuctu, Mompracém…. Sim, é a pura literatura. Depois, o cronista confessa que ainda é de Paris, que a francofilia lhe entra nos poros, que ouriços e raposas partilham a humanidade e que não esquece “o sino da minha aldeia”, aqui no largo de S. Carlos, de onde Pessoa nunca saiu verdadeiramente. “Gosto de palavras!” e a consequência torna-se clara.
As recordações sucedem-se. “Viena é uma cidade maravilhosa, capital de um império que deixou de existir logo que atingiu o seu apogeu, criando uma pomposa arquitetura cenográfica para perdidos fastos imperiais. Sem dúvida, a reação modernista da Viena de 1900, que deixou os fundamentos da cultura da suspeita de si própria que foi a nossa no século XX e da ligeireza de viver frivolamente por dentro da mais funda angústia, que parece ser o espírito do nosso século XXI, projetou-se bem para além do seu momento histórico. Que seria a modernidade sem Freud, Wittgenstein, Musil, Mahler, Schoenberg?” Aí nos encontrámos, na meditação diante de uma livraria. E vem a defesa dos jornais. “Fazem-nos falta”. E é a procura da verdade que está em causa, mais do que oração do homem moderno em Hegel. No confronto entre o Apocalipse e a promessa, o otimismo da vontade o pessimismo da inteligência, os direitos sociais e a diferenciação positiva. E o diplomata confessa-se, perante um poema de Kavafis: “Porque a noite caiu e os Bárbaros não vieram / E umas pessoas que chegaram da fronteira / dizem que não há sinal de Bárbaros”… Mas a conclusão é desesperada: “E agora que vai ser de nós sem os Bárbaros? / Essa gente que era uma espécie de solução”.
Os livros e os autores aconchegam as angústias: Eduardo Lourenço, como ausente de si mesmo, Eça de Queirós em desencontro com Ramalho, a casa de Unamuno, Teixeira de Pascoais, poeta forte, redescoberto, o olhar impiedoso de Vasco Pulido Valente, e ainda Helder Macedo, Eugénio de Andrade, Fernando Echevarria. E fica sentidamente a memória daqueles que perdemos: Jorge Sampaio, José Manuel Galvão Teles, Leonor Xavier, Jorge Silva Melo, Ana Luísa Amaral e Nuno Júdice. “Escrever é procurar uma cumplicidade com quem nos lê e se não a encontramos, falhamos”. Sentimos esse mistério, devendo perceber porque estamos zangados e porque recusamos a indiferença.
Em boa hora acaba de ser publicada Toda a Prosa, de Manuel Alegre (D. Quixote, 2023), com prefácio de Paula Morão. Em complemento natural de uma obra poética bem conhecida, o presente volume apresenta uma evidente coerência com a produção lírica e épica de um escritor que se insere, como poucos, na linhagem da língua portuguesa, provinda da tradição dos trovadores. Não podemos esquecer, aliás, que as raízes galaico-portuguesas levaram D. Dinis a adotar de modo pioneiro o idioma vulgar como língua dos tabeliães em lugar do latim e logo como língua nacional, em simultâneo com a definição fronteira e com a afirmação da nação ancorada no Estado. Se há autor que nos conduz à compreensão de uma ligação íntima à mais antiga cultura dos portugueses, desde que aberta à renovação e à diversidade, ele é Manuel Alegre, e a prosa ora apresentada ou recordada demonstra-o de modo inequívoco. Pode mesmo dizer-se que é lendo em paralelo a poesia da Praça da Canção, de O Canto e as Armas ou de Um Barco para Ítaca com a obra em prosa de Manuel Alegre, como Jornada de África – Romance de Amor e Morte do Alferes Sebastião ou Alma que podemos compreender, não apenas a personalidade e a força de um autor, mas sobretudo um momento da história portuguesa em que só a coexistência de fatores diversos e complementares, mais do que contraditórios, permite entendermos, apesar de mil defeitos, quem somos, donde vimos e para onde poderemos ir. Além dos trovadores, encontramos facilmente os ecos inconfundíveis de Camões, mas também o romanceiro transmitido por Garrett, a Nau Catrineta e a Barca Bela. Razão tem Paula Morão ao ligar o forte impulso narrativo aos poemas devedores de epopeias antigas e modernas. E assim a ficção ocupa um lugar de muito relevo com a poesia.
Alma é Portugal. E só podemos entender este povo de onde “a terra se acaba e o mar começa”, neste cadinho de mil diferenças, ao ler: “Para me perceber a mim mesmo, não posso esquecer que nasci e fui criado entre a tensão da energia e o desprendimento da contemplação. (…) Essa fronteira passará sempre por dentro de mim, é uma guerra civil que no mais fundo de mim mesmo nunca se resolverá”. E ouvimos Sá de Miranda: “Comigo me desavim, / Sou posto todo em perigo; / Não posso viver comigo / Nem posso fugir de mim…”. E esse confronto íntimo encontra-se na presença do pai e da avó do protagonista: “Olhava ora o meu pai ora a minha avó, ambos muito antigos, com uma forma de coragem que nunca mais encontrei (…). Eles eram invencíveis, havia dentro deles algo que não se vergaria nunca”. E quando vamos lendo Jornada de África, A Terceira Rosa, Rafael ou Tudo é e não é descobrimos essa marca de carácter tão evidente na poesia como na ficção. Não disse o poeta sobre Portugal: “O teu destino é nunca haver chegada / O teu destino é outra índia e outro mar / E a nova nau lusíada apontada /A um país que só há no verbo achar” (Chegar Aqui)? A História faz-se de indeléveis dúvidas e contradições. Quando uma tia contou a triste história de D. Sebastião e do seu desaparecimento em Alcácer Quibir, nunca foi capaz de dizer que o rei morreu na batalha, falava sempre dele como um rei desaparecido. “As nações todas são misteriosas”, e em Jornada de África, Sebastião vai à mala buscar uma credencial que está em O Desejado, um exemplar autografado por António Sérgio a que falta a página 149… E em Rafael, é lembrado o herói de Aljubarrota, no levantar ao raiar da aurora – “o nosso nome é esse, todos nós nos chamamos Nuno Madruga, somos poucos, mas somos um quadrado”. E assim encontramos, como diz Paula Morão, heróis junto de homens comuns, alicerçados em mitos e na ficção, a preparar a Liberdade. “Mesmo na noite mais triste / em tempos de servidão / há sempre alguém que resiste / há sempre alguém que diz não”.