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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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ABECEDÁRIO DA CULTURA DA LÍNGUA PORTUGUESA

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W.   WENCESLAU DE MORAES

 

E encontrámos Wenceslau com Camilo Martins de Oliveira e José Tolentino Mendonça… Quioto é uma cidade especial. Aqui sente-se a tradição japonesa, como sinal de um povo antigo, sereno, amável e hospitaleiro. Estamos na antiga cidade imperial, qualidade que perdeu em 1868, depois de ter havido entre os séculos XVII e XIX uma partilha de influência política com a cidade de Edo, hoje Tóquio, até à revolução Meiji. A cidade é marcada pelo rio Kamo e está situada entre três montanhas. No bairro de Gion, conhecemos as narrativas e descrições romanescas, e aí podemos ver o desenho de uma antiga cidade nipónica. Há restaurantes tradicionais, há muito movimento, edifícios baixos e pequenos, em madeira, bem ordenados, assinalados com balões coloridos iluminados. Vêem-se geishas em trajes de função. As ruas são estreitas e limpas, a ordem e a organização imperam. A cada passo, as pessoas saúdam-nos com vénias, ora para nos convidarem a entrar, ora para nos agradecerem se lhes demos primazia no burburinho dos passeios. No Outono, há alegria e jovialidade no ar, mesmo depois de cair a noite. Não há humidade e a temperatura ronda os 12 graus. Ao passar pela zona dos teatros, invocamos o Kabuki e a sua evolução. Apesar de ter sido fundado por mulheres, estas foram banidas sob acusação de prostituição, e há muito que o Kabuki passou a ser representado apenas por homens. Complexas maquilhagens permitem distinguirmos o Kabuki do teatro Noh, as diferenças são profundas, indo do burlesco à erudição. Quando no dia seguinte passamos por Gion, de manhã cedo, a quietude impera, num ambiente doce. O rio Kamo é referido com veneração. As suas águas protegem a cidade e os seus habitantes. Nas margens, passamos pela rua de Pontocho, popularíssima e uma das marcas da cidade. Aqui a referência aos portugueses não se faz esperar. Neste local ficaria um banco de areia e diz a tradição que os nossos compatriotas chamar-lhe-iam ponte. Sempre que se falava dos portugueses os olhos dos nossos interlocutores brilhavam de satisfação. Há um genuíno gosto pelo que somos e pelo facto de termos sido os primeiros europeus a chegar. O sol iluminava a cidade e as montanhas e começámos a perceber a beleza extraordinária do «momiji». As árvores que rodeiam a cidade no Outono têm as folhas vermelhas ou amarelas. Wenceslau de Morais (1854-1929), o escritor português que se apaixonou pelo Japão e cujos textos nos acompanham como ajuda preciosa, disse que «as espécies europeias não oferecem igual maravilha em colorido». Sentimos entusiasmo ao ver as grandes massas desta folhagem belíssima. Nessa manhã cristalina, fomos, ao Pavilhão de Prata, o Ginkaku-ji, que literalmente se apagava diante daquela natureza outonal pujante. Depressa percebemos que o importante não era o facto de a prata nunca ter sido colocada para tornar o edifício espetacular. Tudo se passa, afinal, como se apenas faltasse a prata para espelhar a pujança dos jardins, pois o essencial é o movimento das plantas e a ordenação magnífica da natureza.

 

O momiji tudo domina, parecendo dizer que a natureza culta, domada pelo ser humano, é dominada pelas folhas escarlate, como se fossem flores. Deambulamos pelos caminhos do jardim, contamos as suas pedras, deslumbramo-nos com os musgos tratados, com as águas, com os lagos, com os jardins secos, com o saibro riscado ou a terra cuidadosamente penteada a representar ilhas, oceanos e os rios da vida. Seguimos pelo caminho dos filósofos ou via dos mestres. Um canal ladeado de cerejeiras segue sinuoso pelo sopé das Montanhas Orientais e há muita gente que caminha, gozando a natureza, conversando, lendo ou simplesmente indo em direção ao templo zen de Nanzen-ji. A designação recente do percurso deve-se ao filósofo Nishida Kitaro (1870-1945), professor da universidade de Quioto, que tornou este lugar simbólico obrigatório para a compreensão da cultura japonesa.

 

As obras de Wenceslau de Moraes são de extrema importância no plano nível cultural com reflexo do pensamento português no mundo e sobre o mundo. Encontra-se em cada palavra sua o cruzamento de ideias e de História, de imaginário e realidade. Torna-se difícil compreender o que Moraes encontrou numa civilização tão diferente da sua, que fez mudar os seus padrões culturais, sempre com os sentimentos do exílio e da saudade presentes na sua alma e no seu coração, sentimentos tão particulares do seu povo.  Um português que procurou manter um contacto diplomático quer com os seus conterrâneos, quer com os japoneses, mas terminou os seus dias sozinho em Tokushima. Wenceslau de Moraes foi autor de um legado sobre assuntos ligados ao Oriente, em especial ao Japão destacando-se as obras: Traços do Extremo Oriente; Cartas do Japão; O Culto do Chá; A Vida Japonesa; Relance da História do Japão; Serões no Japão e Relance da Alma Japonesa.

 

Em Nanzen-ji sentimos que a lição «sê mestre da tua mente» é um elemento fundamental nesta cultura do conhecimento e da compreensão. A colossal Sanmon à entrada do recinto do templo dá-nos a impressão de que estamos num lugar essencial para a cultura zen. Este portão descomunal não tem um prego, foi erguido no século XVII apenas com encaixes que põem à prova a habilidade e a inteligência humanas. Tudo para consolar as almas dos que morreram num cerco do Castelo de Osaka. Nos aposentos do Abade do Convento deparamos com o célebre “Tigre a beber água”, obra-prima da pintura tradicional japonesa do século XVII da autoria de Tamyu Kano, além de uma intervenção de Kobori Enshu, com seixos e pinheiros num impressionante jardim seco. A verdade é que a relação do tempo e do universo tem uma importância especial. Sentimo-lo no equilíbrio entre a arte e a natureza em Nanzen-ji, nos jardins, nos seixos, nas representações, mas especialmente na cerimónia do chá, no templo de Kodai-ji, nessa tarde. A preparação, a simbologia e os gestos – tudo exige um forte domínio do corpo e da presença, em nome do respeito, da tranquilidade, da pureza e da harmonia. O culto é muito mais do que uma tradição, é um gesto litúrgico, até de influência cristã. Folheamos “O Culto do Chá” de Wenceslau de Moraes: «nos templos famosos em Quioto, por exemplo, o bonzo oferece chá ao peregrino antes de mostrar as relíquias e os museus». Aqui os nossos queridos fantasmas estão bem vivos. Convivem connosco. Explicam tudo!

 

 

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ANTOLOGIA


O DESLUMBRANTE "MOMIJI"
por Camilo Martins de Oliveira


Minha Princesa de mim:

Está um outono lindo, sinto-me com alma japonesa. O "ryokan" em que me alojaram nesta visita a Kyoto fica à beirinha de um ribeiro de águas claras, na parte oriental da cidade, no sopé do Higashiyama, em terra de arvoredo e águas, propícia a longos passeios a pé até ao recolhimento de templos budistas, com os seus jardins "zen" ou a surpresa de verduras mansas. Mas, nesta altura do ano, deslumbram-me os "momiji"! É inigualável o esplendor colorido do envelhecimento das folhas dos bordos ("érables" em francês, no texto), visto do patamar do Kyomizu, como se o anúncio do Inverno que se aproxima, branco e frio, fosse já um aleluia à primavera, ao renascimento depois do silêncio (como o silêncio do abismo inicial sobre o qual pairava o Espírito)... Penso que, na alma do japonês, todos, todos, ciclicamente recolhemos à mansão dos mortos, onde nos reunimos com os que foram a nossa vida antes de nós... E ressurgimos na comunhão de todos connosco e com a natureza a que chamamos universo... Há aí um sentimento que - não me custa imaginá-lo - Francisco Xavier "compaixonou", ao ponto de afirmar que nenhum outro povo do Oriente seria tão fecunda seara para a boa nova do Senhor Jesus... Ocorre-me, minha Princesa de mim, muitas vezes, pensar como o bom louco desse missionário ainda tão venerado na longínqua Ásia, talvez, no fundo da sua alma consagrada à missão do seu Deus, tivesse, em verdade consigo, preferido a alegria do encontro místico - atingível, mas intangível e inefável - à afirmação dogmática - escolástica, argumentista, apologética - de princípios quiçá inteligíveis e, portanto, pelo menos discutíveis na moldura intelectual de uma cultura cujas referências "lógicas" são estruturalmente estranhas a outros. O "Ocidente" tem cometido o erro - que, não devo ocultá-lo, é fruto também duma crença de benquerer - de pretender transmitir e, infelizmente, muitas vezes, impor um encontro com a verdade formatado pelas suas próprias coordenadas culturais. É certamente bom que cada povo ou sociedade ou civilização. procure identificar-se com as raízes e parâmetros da sua cultura, isto é, do como a sua história o construiu. Pois só na consciência de nós nos assumimos como sendo. Mas somos sempre, sempre, ontologicamente, seres em relação. Com Deus, o mundo, os outros. O nosso próprio faz a nossa diferença. O reconhecimento desta deve levar-nos ao reconhecimento dos outros. Para que possamos entender como partilhar o que nos é querido. A essência do amor é a comunicação. Guardo no coração, profundamente, essa intuição judia de família agnóstica que, lenta e refletidamente, se aproximou da Igreja Católica, sem nunca ter, aos olhos dos homens - e certamente por magnífica (e quando digo magnífica penso no "magnificat" de Maria como aceitação de uma vontade acima das nossas pretenções) iluminação - escreveu: "Antes de tudo mais, Deus é amor. Antes de tudo Deus ama-se a si mesmo. Esse amor, essa amizade em Deus é a Trindade..." E ainda: "O verdadeiro Deus é o Deus concebido como todo poderoso, mas como não comandando em toda a parte onde tem poder; porque Ele está nos céus, ou então, aqui em baixo, no segredo". Tenho deambulado pelo acolhimento desta natureza que, diria a Simone Weil, respira a beleza que nos afaga a alma carnal. Passeando, sinto-te muito neste coração que habitas e dou comigo a murmurar (em português, vê tu bem!) uns versos que o nosso Alberto recitava: "teu coração dentro do meu descansa / teu coração desde que lá entrou / e tem tão bom dormir essa criança /deitou-se, ali caiu, ali ficou"... Dizia o Alberto que o autor, António Nobre, era o poeta do coração português. Faz-me isto pensar em como a minha lembrança de ti é esta tua presença no meu peito. De ti, não recordo nem prazeres nem zangas. Tampouco te imagino. Estás aqui, incessantemente presente, e nós sempre à espera um do outro. Nem a proximidade nos junta, nem nos separa a distância. Entrámo-nos, e o nosso futuro é esta presença que espera estar adiante. Connosco estamos fora do tempo que dura, o nosso encontro pertence ao tempo eterno. Quando, há mais de uma década, vim a Kyoto pela primeira vez, foi em meados de agosto, na despedida do Verão. Para o "Dai-monji", vos fogos que alumiam a cidade, em que se apagaram luzes e "néons" publicitários, para que surjam os "incêndios" provocados nas encostas de cinco montes do Higashiyama. Chamam-lhes "Lumes de Escolta", luzes flamejantes acesas para o acompanhamento das almas que regressam aos espaços celestes. Yasunari Kawabata - grande e trágico romancista, nascido ainda na era Meiji, e por isso tão sensível ao que, para muitos dos seus contemporâneos, foi a "estrangeirização" do Japão - diz-nos no seu "Kyoto": "As tintas das montanhas abrasadas pelos ´Lumes da Escolta´, essas, lá de longe, das trevas do céu, despertavam, no coração de Chieko, os tons do Outono nascente". Apesar do choque de uma qualquer inculturação, permanecem verdades mais sentidas do que eloquentemente dizíveis. Serão essas, talvez, as universais, ininformáveis. As que não se transmitem por argumentação, nem, através da tortura, por imposição. Só pelo reconhecimento de que Deus habita o coração dos homens, criados à sua imagem e semelhança. O nosso tempo escatológico - sujeito a dramatismos milenaristas - parece opor-se à serenidade do tempo circular destes orientais. Mas é facto que, ano após ano, a nossa liturgia católica vai celebrando, não a nossa pressa ocidental de acabar depressa o máximo possível, mas a contemplação da história de Deus entre os homens, como esgotamento do tempo-duração e esperança de eternidade. Aconchego-me-te. E contigo me deslumbro na contemplação dos "momiji". Dizem-nos, no seu esplendor cromático, cheio de sol intrínseco, que o Outono da vida será uma Primavera, depois da morte aparente do Inverno. À sua maneira, budistas e shintoístas, os japoneses também comungam com os santos. Deus é grande». Hesitei em traduzir e transcrever esta carta de Camilo Maria. Convenceu-me a sinceridade do Marquês de Sarolea e sua atualidade, décadas depois, num mundo que se interroga (ou devia) sobre os valores da sua "globalização".        


Camilo Martins de Oliveira

 

Obs: Reposição de texto publicado em 05.04.13 neste blogue.