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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CONTRA OS FUNDAMENTALISMOS...

  


Valerá a pena debruçarmo-nos sobre a história de Deus nas culturas dos homens antes de Cristo, a saga da Revelação, o percurso a que um agnóstico, Régis Debray, chamou itinerário de Deus. Ou, ainda, procurarmos, noutras tradições do pensamento e da fé, raízes espirituais, frutos e concordâncias do Cristianismo e do Ocidente cristão. Fá-lo-emos, à procura de pilares e pontes para o diálogo entre civilizações e culturas, com que teremos, sob ameaça de confrontos violentos, de responder a um tempo-mundo em que comunicações e migrações nos põem, todos os dias, em casa uns dos outros. Falámos da identidade cristã de Europa, olhemos agora para o enraizamento da cristandade europeia. O Cristianismo, enquanto religião do Deus incarnado no homem e na história, nesta tem as suas múltiplas raízes. Num estudo sucinto, notável pela erudição e pela profundidade da análise ("Jésus l´Héritier - Histoire d´un métissage culturel"), Christian Elleboode, professor na Universidade Católica de Lille, parte à descoberta das raízes do cristianismo na história dos homens. Do animismo primitivo aos deuses das civilizações da agro-pastorícia, do Egipto e da Mesopotâmia à Pérsia e ao monoteísmo israelita, onde nasce, como herança e antítese, o Deus da misericórdia e do amor universal que Cristo incarna e apregoa, há todo um caminho de revelação da transcendência pela imanência. Ao fim do percurso, uma conclusão: "Crente ou incréu, judeu ou cristão, é fundamental, para que haja diálogo, romper com a obsessão da procura do aspeto original de cada religião, reconhecer as suas dívidas culturais e aceitar finalmente a mestiçagem como um fenómeno que em nada altera a identidade dos indivíduos. Pelo contrário, é a ideia de pureza original que confunde as pistas e se torna fonte de conflitos. Hoje, num mundo mais global, em que os valores cristãos se encontram em diáspora e, simultaneamente, interrogados e contestados em sua casa, quer pela imigração de outras gentes, credos e culturas, na "nossa" Europa, quer sobretudo pelo materialismo e o economicismo consumista e ganancioso que o próprio "Ocidente" gerou, devemos refletir sobre as raízes espirituais da Europa e sobre a fidelidade como condição do diálogo. Não falamos de negociação nem de relativismo: não se trata de uma possível troca de valores, trata-se de um esforço comum na procura de um sentido da história e para o futuro. Ou do que, para um crente, é a comunhão dos homens no universo de Deus. Quando, ao esbofetearem-me a direita, eu ofereço a esquerda, não me submeto, mas interrogo: se disse ou fiz mal, diz-me o quê; se não, porque me bates? O diálogo e o entendimento são exercícios difíceis, só possíveis a prazo, onde seguem a fé e a esperança, e se constroem, dia a dia, pela fidelidade do amor. Situam-se numa perspetiva diametralmente oposta à das relações "líquidas" que Zygmunt Bauman aponta como causa de precaridade. Interrogar o outro, o diferente, é necessariamente interrogar-me também, e à minha diferença. Para o incréu, é um imperativo da dúvida sistemática. Para o crente, um imperativo da humildade: se Deus me revelou assim a verdade, como e porquê a terá frustrado a outros? Ou será que, no itinerário da sua revelação, Deus foi abrindo outros caminhos, para que os homens de boa vontade, que são a sua glória, na encruzilhada se reconheçam? Afinal, o que nos une? Tudo o que Deus semeou ou só a nossa semente contra a dos outros? A rutura do Deus de Jesus Cristo com o Deus de Israel antigo é clara: quem são os meus irmãos, o meu pai, a minha mãe? Não é a minha família ou nação que os define, são os que me seguem no amor universal. E S. Paulo dirá que não há escravo nem homem livre, homem nem mulher... Contra todos os fundamentalismos, inclusive os nossos.


Camilo Martins de Oliveira

 

Obs: Reposição de texto publicado em 14.09.12 neste blogue.

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

Minha Princesa de mim:

 

   Prosseguindo na mesma linha de pensamento, ou de encadeamento de interrogações - mas noutro registo - falo-te nesta carta de uma resenha que Éric Zemmour, intelectual tenor da direita francesa, faz, em Le Figaro de 4/10/2018, ao livro de Régis Debray, figura da esquerda universal, intitulado L'Angle Mort (Éditions du Cerf, Paris, 2018). Este opúsculo, aliás, mais não é do que a reprodução de uma conferência do autor, proferida, a convite de Élie Barnavi, ex-embaixador de Israel em França, como lição inaugural do último encontro dos Rendez-vous du Bastogne War Museum, cujo tema foi, em março deste ano de 2018: Le Terrorisme: sommes nous en guerre? Traduzo alguns trechos do artigo do Zemmour:

 

   Há duas maneiras de ler a última obra de Régis Debray: ficarmos pelo que ele escreve, ou compreendermos - e adivinharmos - o que ele diz por meias palavras. Também há dois livros nesse texto: uma penetrante análise da confrontação entre djihadistas e as nossas sociedades ocidentais, através da relação - antagónica - de cada lado com a morte; e uma reflexão sobre a capacidade duma civilização - a nossa - sobreviver quando já não acredita numa vida depois da morte.

 

   Zemmour observa atentamente essa distinção diamantina, cortante, que Debray firmemente traça assim: onde nós vemos vazio, eles vêem plenitude...   ... desde que rompemos com a origem, apenas poderíamos perder o fim...   ... para que haja um paraíso prometido, é preciso que haja um paraíso perdido. Sou, como sabes, leitor fiel de Régis Debray, já várias vezes de falei do seu Dieu, un itinéraire - de que há tradução portuguesa (Deus, um itinerário, Ambar, Porto, 2002) - e lembrei que o filósofo francês faz, entre outras, a distinção entre religiões com clero e sem clero, com o propósito de demarcar as que, pela autoridade da interpretação eclesial de textos sagrados, asseguram, como a Igreja Católica, uma unidade de doutrina, em oposição às que deitam fogo à pradaria, como movimentos do fundamentalismo islâmico ou, já nos séculos XVI/XVII, do sectarismo de confissões protestantes. Sendo eu - tal como tu e tanta gente sabe - anticlerical (isto é: contra o clericalismo como regime de poder de classe) sou insuspeito quando afirmo que não pode haver serviço de igreja sem clero, o que não significa que este, como classe, tenha qualquer poder exclusivo discricionário e pouco atento à vida eclesial. Pois antes deve ser parte da organização do ministério necessário à comunidade dos crentes. Também aprecio um retrato de Debray por Zemmour: Debray é um progressista contrariado, tal como há canhotos contrariados. Ele acreditou nos amanhãs que cantam, nesses 1789 e 1917, todas essas novas alvoradas da humanidade que nos prometiam futuros radiosos, todas essas versões laicizadas do messianismo judeo-cristão. A experiência e a História sempre o desembriagaram um pouco. Mas prefiro, até por essa experiência, que iniciada na sua juventude, foi refletidamente evoluindo, a sincera descoberta ou novidades de Régis Debray: Progressismo, cientismo, socialismo. A perda do Deus futuro fez do futuro o nosso Deus...   ... Quem poderá ainda duvidar de que a pós-modernidade será cada vez mais arcaizante? Arcaico não é o que está caduco, é o enterrado que remonta à superfície em caso de crise geral, visto que o mais resistente, num indivíduo como numa coletividade, é o que nele é mais antigo.

 

   Eis palavras luminosas na busca de um sentido para a vida humana, seja no oriente ou no ocidente, no tempo circular ou no tempo escatológico. Não nos falam de uma relíquia, algo que resta ou sobrou, mas de algo vivo, alma que, no fim do percurso, se reconhece no princípio de tudo.

 

   E vamos vendo, cada vez mais, em comunidades e escolas do Islão, um número crescente de crentes que buscam na leitura dos seus textos fundamentais a visão do Deus Vivo dos vivos, já não o castigador deus dos mortos, mas o Misericordioso. Infelizmente, a nossa generalizada ocidental cultura ainda largamente reserva, no seu seio, desconfianças agrestes e fobias de outras culturas e expressões religiosas, o que muito dificulta o exercício da saída para o encontro e o diálogo, este nunca sendo possível sem um esforço de escuta atenta dos outros para se iniciar o cultivo cooperante dos campos do entendimento e da paz. Bíblia hebraica, Novo Testamento cristão, Alcorão - todos esses livros e coletâneas têm várias leituras possíveis. Se assim não fosse, talvez não tivesse havido tanta guerra religiosa, menos ainda tantos cismas que ainda hoje dividem cada confissão em diferentes igrejas, sinagogas, madraças, seitas e escolas... Parece-me, e tanto o tenho dito, que não há cultura da paz possível sem essa entreajuda cooperativa, não só das religiões, como de todos os seres humanos de boa vontade, no sentido apocalíptico da descoberta da dignidade e da misericórdia de todos e cada um, e a todos comum, em cada uma das diferentes expressões de que se reveste. Mais vale apoiarmo-nos na busca da paz do Deus misericordioso de tantos muçulmanos, do que fechar-lhes a porta do diálogo, só pelo receio ou o ódio que nos suscita o fanatismo religioso de muitos outros. Sem saída e caminho não há encontro possível.

 

   Para já, o fanatismo suicidário, por exemplo, dos que se fazem explodir para atentar contra outros, apesar da repugnante desumanidade que também é sua, pode também levar-nos a outra interrogação. Esta, igualmente assustadora, por nos confrontar com o nosso comodismo materialista - e, consequentemente, com a fraqueza relativa da nossa civilização num hipotético cenário de choque, à Samuel Huntington - deixo-ta aqui, para nossa reflexão, nas palavras de Régis Debray:

 

   Abismo negro e escancarado, o terrorismo de invocação divina merece, nos nossos países, para além de uma resposta musculada e sem hesitações, ser cada vez melhor localizado e perseguido. Mas que tal nos não faça fugir de um leal regresso sobre nós mesmos. O ato frequentemente suicidário do terrorista força-nos a pensar no que já não queremos, e até, com a ajuda da habituação, naquilo em que já não podemos pensar: o lugar da morte na nossa vida. Ou, mais precisamente, no facto de que ela já não tem esse lugar. Nunca nos saberemos explicar com esses "loucos de Deus", sem nos explicarmos com a nossa própria situação, nós que, como parece, nos tornámos sages ao ponto de já não acreditarmos em qualquer vida futura.

 

   Façamos o esforço de não confundir a árvore com a floresta e, sobretudo, de vermos primeiro as traves que nos tapam os olhos...

 

Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA


Minha Princesa de mim:

  

   O tema da edição de outubro de 2016 da Revue des Deux Mondes é a saudade do Rei, La Nostalgie du Roi. Logo a abrir, o editorial assinado pela diretora da revista, Valérie Toranian, recorda uma declaração do mais jovem e mais moderno dos ministros de esquerda, Emmanuel Macron, estrela ascendente do PS francês, ao semanário Le 1, em 8 de julho de 2015: Há no processo democrático e no seu funcionamento um ausente. Na política francesa, esse ausente é a figura do rei, cuja morte - penso eu fundamentalmente - o povo francês não quis. O Terror cavou um vazio emocional, imaginário, coletivo: o rei já não está cá! [...] Todavia, o que esperamos do presidente da República é que ele ocupe essa função. Tudo se construiu sobre este mal-entendido.

 

   E a editorialista prossegue perguntando a que é que essa tal ausência dá nome? Deceção, desconfiança, lassidão, para com a classe política e o executivo? Mas também o sinal de que a nossa época, que virou costas ao sagrado, não cessa de lhe sentir a falta e tenta compensá-la evocando os valores que tem dificuldade em definir. E cita então Régis Debray, filósofo agnóstico que, neste mesmo número da revista, assina um artigo (Que faut-il entendre par sacré?). Dois trechos: quando uma sociedade sente fragilidade, possibilidade de naufrágio, risco de abandono, o seu primeiro reflexo é consagrar, para consolidar, reafirmar, fortalecer...   ...nos tempos hodiernos, só é legítima e valorizadora, nos nossos meios oficiais, a linguagem dos valores, esse adoçante "cidadão", que é, para o sacro cívico, o que Walt Disney é para Sófocles, a Nutella para o creme inglês, ou o McDo para o restaurante... O que Debray quer salientar é ter-se posto fora de moda e uso a noção do sagrado, substituindo-a por sucedâneos, já que o sacro se tornou tabu por se definir como o que legitima o sacrifício e interdita o sacrilégio...   ... Já não temos qualquer vontade de nos sacrificar seja pelo que for, e detestamos visceralmente os interditos, a não ser quando temos a gloriazinha de os violar...   ...no fundo, conjuramos o medo ou o embaraço que hoje suscitam o amor sagrado da pátria e outros versículos republicanos que nos cheiram demasiadamente a terra e a mortos, ao cântico das armas e à hecatombe dos corpos. Assim se ausenta o sagrado dos nossos discursos políticos, e é proscrito dos nossos textos legislativos...   ...os nossos infelizes ministros, para se adaptarem aos ares do tempo, ao jeito da moralita, complemento do reino dos números, barram o pão dos seus discursos com os "valores da República", e percebemos porquê: esse doce não custa nada. Os nossos valores não têm penalizações. Não obrigam a nada de sério nem de preciso, pois são desprovidos de infrações, prestação de contas e sanções, enquanto que onde há sagrado estipulado há imperativo categórico, com coercivo e obrigatório. O valor é mole, o sagrado é duro. O valor agrada a todos - é a função do kitsch e o recurso dos políticos. O sagrado afasta. 
 

   Outros autores, como Jacques de Saint Victor, professor universitário em Paris, evocam a figura do general De Gaulle: Em 1958, em razão da incapacidade do regime de partidos para resolver a questão argelina, o general de Gaulle conseguiu pôr fim ao "parlamentarismo absoluto" (Raymond Carré de Malberg). A Constituição de 1958 instituiu o que alguns juristas, como Maurice Duverger, designaram de "monarquia republicana". Recordo o significativo título do livro que Duverger publicou pela Robert Laffont em 1974: La Monarchie républicaine. Comment les démocraties se donnent des rois. E o historiador Jean-Christian Petitfils, autor de vasta obra escrita, incluindo as biografias de quatro reis de França (todos eles Luís: XIII, XIV, XV e XVI) assina um interessantíssimo artigo (De la monarchie absolue à la monarchie impossible), que é também uma reflexão sobre a soberania e o seu exercício. Traduzo-te, Princesa de mim, o trecho final: Quanto a Charles de Gaulle, deitará sobre a monarquia hereditária a última pazada de terra, criando a sua "monarquia republicana", que dura há quase 60 anos, e da qual os franceses, agarrados à personalização do poder e à eleição do seu presidente por sufrágio universal, não estão dispostos, diga-se o que se disser, a desembaraçarem-se. Adeus estremecimento sagrado da bandeira da flor de lis! Doravante, segundo o famoso dito de Charles Péguy, "a república única e indivisível é o nosso reino de França!"

 

   Este paradoxal gosto por figuras tutelares numa sociedade de forças populares e politicamente democrática, para além da presença invisível do prestígio do passado, é um elemento incontornável de uma certa tensão francesa. Falar-te-ei adiante, Princesa, de outros sintomas ou contradições do presente mal-estar gaulês. Por agora deixo-te esta resposta de Emmanuel Le Roy Ladurie à pergunta "E Charles de Gaulle?"  que lhe foi feita pela revista: Aí, estamos noutra dimensão. De Gaulle é uma mistura extraordinária de Joana d´Arc, de Henrique IV e de Luís XIV. É o género de figura excecional que encontramos uma vez por século, e às vezes ainda menos... Neste preciso momento em que te escrevo, ocorre-me, não sei porquê, que quiçá o grande De Gaulle tenha optado pela solução que deu ao problema argelino por pensar que aquele povo não era, não podia ser francês. Pois foi ele que afirmou, em 1959: Nós somos, antes do mais, um povo europeu de raça branca, de cultura grega e latina e de religião cristã... Enganava-se: basta vermos a seleção francesa de futebol na tv, ou olharmos para a composição demográfica da França hodierna, para percebermos que mais perto da realidade estava Éric Besson, gaulista e ministro da Imigração, Integração e Identidade Nacional, ao dizer, em 2010, que a França não é nem um povo, nem uma língua, nem um território, nem uma religião; é um conglomerado de povos que querem viver juntos. Não há francês de raiz, há tão somente uma França de mestiçagem.
 

   Sei bem que muitos franceses, e não só, não concordarão com tal ideia. Também sei que a realidade presente - e a sua evolução étnica e cultural - é sobretudo uma interrogação, quiçá factor de mal-estar. Mas poderá evitar-se? Está aí. Le Magazine Littéraire, na sua edição de outubro de 2016, em secção oportunamente intitulada L´esprit du temps, debruça-se sobre vários livros agora publicados, todos, afinal, pretendendo responder à questão Qu´est-ce qu´être Français? Ali respiguei alguns trechos de prosas diversas, que aqui te traduzo, com intenção de nos fazer pensarsentir melhor a dimensão humana das diferentes condições, o tempo e os modos vários das nossas circunstâncias. Magyd Cherfi é vocalista do grupo Zebda, e argelino de nascimento. Publica agora um livro intitulado Ma Part de Gaulois, onde escreve: Sempre quis ser francês. Sinto-me pirenaico, sou flaubertiano, respiro só pela cultura francesa. Até ao dia em que percebi que não ser branco era não ser francês. Desde então, passo o tempo a tentar sê-lo um pouco menos. Decidi tornar fortaleza o que pensei ser uma maleita: o esquartejamento...   ... Que símbolos há, na nação francesa, para que eu, filho da Argélia, nela me reveja? Quando a equipa da Argélia ganha um jogo de futebol e os jovens do bairro desfilam nos Campos Elísios levantando a bandeira argelina, isso choca-me. Mas pode ser-se francês arvorando a bandeira argelina. Devemos declarar-nos cosmopolitas e redefinir uma identidade francesa que não seja estática. Houve gauleses, mas já não há. Há franceses. Então, o comunitarismo já não será um problema: deste, aliás, apenas existem farrapos alimentados pela frustração.
 

   Denis Tillinac, no prólogo ao L´Âme française (2016), escreve algo diferente, uma achega ao título desse seu livro: A França, parece-me, é mais de direita nas profundezas e mais de esquerda nos humores. Quando o estalinista Aragon, numa ode à glória do seu partido, se descobre patriota em 1944, não é a França "republicana" que os seus versos invocam, mas a França imemorial, logo sempre igual: "Vejo Joana correr, Rolando toca a trombeta". Tal como acredito na realidade da clivagem, assim aprecio esses momentos em que a trégua das lutas políticas nos permite saborear em conjunto a felicidade de ser francês. O mesmo Tillinac dirá que Cioran não tinha razão ao afirmar que uma pátria é uma língua e nada mais, pois ela é também outra coisa. Mas a argelina Kaoutar Harchi, no seu Je n’ai qu´une langue, ce n´est pas la mienne, escreve: A França é uma nação literária, onde se dá uma forte fusão do ideal nacional com uma língua. Esse magistério vai muito para além do território. E diz mais, acrescenta que os escritores argelinos se tornaram escritores franceses pela resistência e pela relação de forças. Cada vez mais, a França não é percebida como o território colonial, mas como o território da liberdade. Aqueles escritores acham-se franceses, sem por isso quererem viver em França. A nação literária não morreu, mas deslocou-se para fora de França.
 

   Tudo isto nos dá muito para pensar, Princesa. Vivemos, na Europa e não só, tempos de mudança, com ameaças de afrontamentos, mas também com promessas de entendimentos em terrenos onde consigamos acertar referências. A esta luz, a cultura ganha nova dimensão e importância nas nossas vidas. As artes e a música, a literatura, podem ajudar-nos a contruir a paz.
 

   E, também, o pragmatismo do bem, a prática do mandamento evangélico: amai-vos uns aos outros. Sermos capazes de um olhar para os outros e os problemas de todos nós, olhar que veja mais longe e mais certo do que os nossos preconceitos. Eis o que nos propõe o atual diretor executivo da conceituada revista americana Foreign Affairs, Jonathan Tepperman, diplomado em direito por Oxford e New York, num livro ora publicado (The Fix: How Nations Survive and Thrive in a Worl in Decline). Aí identifica uma dezena de problemas mais ou menos universais, como a desigualdade, a imigração, a guerra civil, a corrupção e a paralisia política. E defende que serão resolúveis se os líderes agirem com coragem e diligência. Dá alguns exemplos ilustrativos: a Bolsa de Família do presidente Lula da Silva, que tirou muita gente da miséria extrema, distribuindo pequenas somas a mães, para alimentarem e educarem os filhos; os líderes democráticos da Indonésia depois de Suharto, que conduziram políticas de erradicação do fundamentalismo islâmico. O bem querer, a solidariedade e o bom senso, afinal, ainda fazem sentido.


Camilo Maria 

Camilo Martins de Oliveira