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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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ANTOLOGIA

  


DE CAMA, ENTRE ITÁLIA E A RÚSSIA
por Camilo Martins de Oliveira 


Minha Princesa de mim:


Estou doente, não saio de casa. Além das dores e maleitas habituais, fui prostrado por um cansaço que me prega à cama. Vou-me distraindo a ler, e hoje também já consegui ouvir um pouco de música. Como não gosto de palavras cruzadas nem de paciências de cartas, para "jogar" um bocadinho, pus-me a ler e comparar libretos de óperas, e pondo algumas a tocar. Assim como quem se entretém com acertar nas diferenças entre dois desenhos semelhantes... Deu-me ainda para intuir estruturas musicais em pinturas (no Kandinsky, por exemplo) ou em textos literários, mas não poéticos (de Gogol? de Tolstoi? de Saint-Éxupéry?). Agora escrevo-te, é uma forma de conversa. "Un Ballo in Maschera" é a mesma história contada pela mesma música, mas decorrendo em duas diferentes épocas e locais, e com personagens diferentes. "Stifellio" e "Aroldo" são duas óperas que contam a mesma história moral em épocas e locais distintos, por distintos registos musicais para distintas personagens. O compositor é Verdi. O causador inicial desses embrulhos é a censura institucional. O "Baile" estreou-se em 1859, em Roma, na versão cujo cenário é Boston, nos EUA, e os protagonistas são Riccardo (Conde de Warwick e Governador de Boston), Amelia (sua mulher) e Renato (seu amigo e secretário). Ricardo e Amélia apaixonaram-se, mas Amélia quer esquecer esse amor, antes que a mútua atração se consuma no que seria um adultério e a traição de um amigo. À declaração de amor de Ricardo, ela responde com a súplica de que ambos deverão respeitar os seus compromissos de fidelidade e amizade. Ricardo cede e concorda. Mas o dueto foi ouvido por Renato que, pouco depois, descobrirá que a dama é a sua mulher. O ciúme levá-lo-á a querer matá-la e, afinal, a aliar-se aos que conspiram contra o seu amigo. Este será a vítima mortal, num baile de máscaras, pela mão de Renato. Todavia, antes de morrer, consegue ainda proclamar a inocência de Amélia e perdoar a quem o assassinou. Uma história de ciúme, como tantas outras, de que o drama de Otelo será talvez a expressão mais torturada em óperas de Verdi. Mas esta história, cujo libreto verdiano foi escrito por Antonio Somma, baseado numa peça de Eugène Scribe, inspira-se no assassínio histórico - em 16 de março de 1792, por razões políticas e sem motivo passional, ainda que num baile de máscaras em Estocolmo - de Gustavo III, rei da Suécia, por um dos cabeças do partido aristocrático e anti-reformista, Jacob Johan Anckarström. Assim, na peça que Scribe escreveu para "Gustavo III" ou "Le Bal Masqué" de Daniel Aubert, e na primeira versão de "Un Ballo in Maschera" de Verdi, tudo se passa em Estocolmo, entre o rei Gustavo III, Anckarström, e Amélia que, com o pajem Óscar, é a única personagem com o mesmo nome nas duas realizações. Mas a estreia estava primeiramente prevista para Nápoles, em 1858, quando se deu um atentado contra a vida de Napoleão III. As autoridades napolitanas entenderam então que estava fora de questão autorizarem a produção de uma ópera (a 23ª de Verdi) com um tema tão escaldante como um regicídio. Após várias tentativas de relocalização do cenário da ação, de modificação de nomes ou, até, transformação de algumas personagens (Amélia passaria de pretendida a irmã do "rei"...), transportou-se tudo para os EUA, quando o Massachusetts ainda era colónia britânica, e onde poderia ocorrer a liquidação de um governador emotivo e descuidado, mas sempre generoso (até no perdão), por um colaborador ciumento... Entretanto, a versão "sueca" seria mais tarde, por várias vezes, levada à cena, Duas delas, pelo menos, nos anos 40 e 50 deste nosso século XX, no Metropolitan Opera de New York...onde, para comodidade dos cantores, se mantiveram os nomes das personagens da versão americana. Ganhou assim a Suécia um rei Ricardo, cujo secretário respondia ao nome bem escandinavo de Renato! Já "Stifellio" será uma das óperas mais esquecidas do compositor do Risorgimento. O próprio confessou um dia que "de todas as óperas minhas que não se representam, por lhes contestarem os conteúdos, há uma que eu não queria ver esquecida: Stifellio". Pessoalmente, minha Princesa, pensossinto que Verdi gostava do "conteúdo" da ópera, do tema do perdão, finalmente generoso, do marido à mulher adúltera. E gostava tanto que lutou contra a pressão dos censores e dos teatros para que retirasse a confissão de Lina a Stifellio do seu contexto religioso e eclesial. Na verdade, o marido é, aí, um pastor protestante, um padre casado, e é ao marido e ao padre que ela quer simultaneamente confessar-se. A cena final passa-se na igreja em que Stifellio vai proferir um sermão. Para se inspirar, abre ao acaso uma Bíblia e lê o passo do evangelho que relata a intervenção de Jesus a impedir a lapidação da mulher adúltera. Ao dizer, do púlpito, "e a mulher perdoada levantou-se", o pastor olha para a sua, ainda ajoelhada no chão, e acrescenta: "perdoada! Deus assim o decretou." E Lina levanta-se e erguendo as mãos ao céu exclama "Gran Dio!" Cai o pano. Esse libreto é de Francesco Maria Piave, seguindo a peça de Eugène Bourgeois e Émile Souvestre intitulada "Le Pasteur" ou "L’Évangile et le foyer". O que censores (oficiais,religiosos ou populares) apontam é, em terra católica e italiana, e em estado dos Habsburgos de Áustria, o facto de se tratar de um casal em que o marido é um padre casado. O que talvez lhes desagradasse mais seria a apologia do perdão de uma falta que maculava a "honra" de um homem (macho). Por isso mesmo, a posterior substituição, seguindo revisão do libreto pelo mesmo Piave, que relocaliza o drama na Inglaterra de 1200, de Stifellio por Aroldo, cavaleiro saxão que regressa da cruzada, e de Lina por Mina, medieva mulher deste, embora recolocando tudo num contexto já batido por narrativas europeias e já sem escândalo, não levará a nova ópera, refeita musicalmente também, ao êxito. Penso por vezes nesse tema da ofensa da honra de um homem pelo comportamento de uma mulher, sem que a inversa seja jamais apontada... Talvez um dia te escreva ou fale numa questão que é eminentemente cultural. Hoje, na vadiagem por livros e leituras, caí em contos de Tolstói. Não, não te citarei a "Anna Karenina", essa fica para outra vez... Mas "O Diabo" é um conto trágico, em que um homem que era bom sucumbe, mais do que à tentação da carne, à vertigem da sua auto-destruição por força dum sentimento de culpa e condenação do adultério que comete pelo vício dos sentidos… É curioso como Tolstói tantas vezes aborda essa tensão do homem entre o desejo da pureza e o diabo da carne; entre o caminho doloroso, esforçado e inseguro, da perfeição e o rodopio descendente para o esquecimento, a má consciência e o mal. "O Padre Sérgio" será um dos textos por que o escritor russo procurará exprimir a carga psíquica dessa tensão ao longo de uma vida. O príncipe Estêvão Kassatsky, feito monge e eremita, só encontrará a paz e descansará das tentações que o perseguem quando compreende que encontramos Deus servindo os outros, e nos enganamos quando julgamos que a nossa celebração de Deus, e só ela, nos torna santos. Mas voltando ao tema da "honra" do homem e da mulher: o príncipe foge do mundo, e para um mosteiro, ao descobrir, em vésperas do seu casamento com uma linda condessa - e por confissão voluntária dela - que ela fora já amante do czar Nicolau I. Isto é inaceitável para a sua "honra" (palavra que soa aqui a sinónimo de orgulho). Na verdade, conta Tolstói que, para Kassatski, a noiva era a incarnação da pureza inocente, do amor imaculado. Claro que ele tivera inúmeras relações carnais com diversas mulheres, mas tinham-lhe ensinado que as senhoras e, sobretudo, as meninas, mais ainda as casadoiras, do seu círculo social eram intocáveis... " 


Camilo Martins de Oliveira


Obs: Reposição de texto publicado em 04.10.13 neste blogue.  

CRÓNICAS PLURICULTURAIS


118. VISÕES EUROPEIAS, DO MUNDO E DA RÚSSIA


1. Perguntar “Que Europa queremos?”, coloca uma questão de fundo a que temos de responder: ou assumimos a nossa pertença ao mundo ocidental e fazemos da relação transatlântica um eixo fundamental de uma política de construção europeia, ou rejeitamos essa especificidade e elegemos o antiamericanismo e o imperialismo americano como causa estrutural de ressentimentos e traumas. O 11.09.2001 mudou a nossa perceção sobre o mundo em termos geoestratégicos e de sobrevivência. A que acresce a atual invasão da Ucrânia, tida como uma ameaça mundial, em especial para o ocidente. 


Se a Europa é uma Babel de culturas e línguas diferentes e a sua construção assenta essencialmente nas conveniências geopolíticas e estratégicas resultantes de pressões económicas, demográficas, políticas e de segurança, não é menos verdade que com o alargamento a mais países (via União Europeia) se desejou dar um salto qualitativo de um ente de natureza marcadamente económica para uma entidade política e cultural através da adoção de um tratado constitucional. E falhou. Não só porque não existe uma generalizada consciência e cidadania europeia, mas também porque falta à Europa uma massa de coesão em questões essenciais. Por um lado, o espírito europeu é embrionário e frágil, não ultrapassa as fronteiras do Estado ou da nação querendo, cada um e todos, sempre mais (da Europa e UE) do que aquilo com que se contribui. Por outro lado, há países com visões diferentes, em que os mais desenvolvidos e poderosos não querem ver as suas estratégias muito diluídas num vasto grupo de aderentes. Sempre houve tentativas de unidade europeia que falharam, em que a Europa quis ser Europa, ou mais Europa, e não foi. Desde a República Cristiana, ao império de Carlos Magno, ambições de Carlos V, Napoleão e Hitler.     


2.
Se uma histórica e permanente fragmentação da Europa se assemelha a uma “manta de retalhos”, em que os mais poderosos (à escala europeia) se têm como privilegiados, de igual modo todas as grandes potências mundiais (europeias ou não) se alimentam do culto de um suposto excecionalismo, próximo ou associado ao universalismo.


Usando as palavras de Bernardo Pires de Lima (Putinlândia, editora Tinta da China): “Todas as grandes potências vivem a mitologia de um pretenso excecionalismo. Há quem tenha adotado uma missão zelosa de universalismo liberal (EUA), quem temporize a singularidade do seu critério de ascensão (China), quem não se conforme com uma civilização contida no espaço (Irão), quem não consiga aceitar o declínio (França), quem não tenha encontrado a fórmula pós-imperial (Reino Unido), quem duvide do seu Karma (Alemanha), quem se glorifique através do espelho da geografia (Brasil), quem não descole por medos vizinhos (Índia). E depois há a Rússia”.   Rússia que com a revolução bolchevique descolou da sua escala clássica e foi modelo ideológico mundial, como farol de uma ideologia universal, o socialismo científico, que falhou, sendo agora promotora de um império eurasiano, através da União Eurasiática, em construção. Pretende ser, também, um modelo de diversidade na unidade. Desde o Báltico e dos Cárpatos ao Pacífico, devendo a Eurásia substituir, a prazo, a liderança dos EU. Tendo como indestrutível a ligação à Ucrânia, as tentativas desta, de parceria e de integração na UE, são tidas, pela Rússia, como contranatura e inadmissíveis, devendo juntar-se à União Eurasiática. 


3.
Não obstante a Rússia ser eurasiática do ponto de vista geográfico, é um país com  raízes europeias, de matriz civilizacional essencialmente europeia, pelas suas fontes históricas, nomeadamente cristãs, pela sua literatura, música clássica e as belas artes em geral que são parte da erudição europeia, ocidental e mundial, pela “joia da coroa” russa, fundada por Pedro, o Grande, ser pró-europeia (São Petersburgo), pelo seu centro do poder (Moscovo) e a maioria dos russos viver na Europa, de traços mais comuns com ocidentais do que com os vizinhos do extremo asiático. Os seus grandes momentos estão mais ligados ao Velho continente, sendo legítimo pensar que é mais uma extensão da Europa que da Ásia. Urge encontrar o meio mais adequado rumo a uma coexistência e sã convivência de direitos, tradições e costumes com respeito mútuo. Antes seja, no mínimo, um parceiro estratégico, como já foi, e não a ameaça de agora. O que não implica tergiversar com a agressão da Ucrânia, havendo que pressionar e compelir a política russa a respeitar a vontade soberana de Estados independentes que optem pela UE e o Ocidente, sem prejuízo de uma paz de compromisso.


Estamos face a uma encruzilhada, em que há que fazer uma escolha fundada numa aliança sólida com quem partilhamos os mesmos princípios e valores, os agarra mais de perto ou respeita. Liberdade, dignidade e direitos humanos são valores máximos que devemos preservar e exportar. Se os perdermos ou renegarmos a recuperação de um mundo melhor é utópica. Sem excluir uma inclusão e acomodação em diversidade e responsabilidade dentro dos padrões dominantes e vigentes, rumo a uma convergência de interesses e visão estratégica comum, fazendo a escolha de um mal menor, entre vários, dada a imperfeição da natureza humana, mas em que a magna diferença está em poder criticar, corrigir, escrutinar em liberdade num Estado de Direito que se quer sempre aberto ao debate.


12.08.2022
Joaquim Miguel de Morgado Patrício

CRÓNICAS PLURICULTURAIS


117. IMPERIALISMO, MESSIANISMO, EURASIANISMO, “NOVOROSSIA”


Para o filósofo russo Ivan Ilyin, anticomunista e defensor de uma “ditadura democrática”, a Rússia não é um “mecanismo artificialmente instalado”, mas sim um “organismo historicamente formado e culturalmente justificado”. É impossível amputá-la sem a ferir, fazer sofrer ou morrer. Faz uma exortação mística ao destino imperial russo, confiante de que chegará a hora em que a Rússia renascerá da desintegração e da humilhação, iniciando uma nova era de desenvolvimento e grandeza. Países e regiões que estavam sob o controlo natural da Rússia serão disputados e tomados por vizinhos imperialistas. Porquê? Porque o Ocidente não apoia nem compreende a originalidade russa. O objetivo é desmembrar a Rússia, colocá-la sob o controlo ocidental, para a desfazer e, por fim, fazê-la desaparecer, levando-a a que se transforme numa permanente fonte de guerras. O Ocidente transporta o vírus anticristão, tem um plano de ódio e luxúria de poder, promove valores hipócritas como a “liberdade”. Refere os bascos, catalães, flamengos, valões, croatas, eslovacos, eslovenos e ucranianos como povos incapazes de se tornar estados e, por isso, devem ser controlados por estados vizinhos. Considera que a Ucrânia não existia como nação, era parte da grande Rússia, sendo um crime falar na sua separação.


Outro filósofo, Nikolai Daniliévski, teoriza que a Rússia tem um povo eleito por Deus para preservar a verdade religiosa do mundo, a sua grande missão justifica-se naturalmente, propondo uma união de todos os povos eslavos sob a liderança russa, dada a inviabilidade de o seu país vir a fazer parte da Europa. A inimizade desta com a Rússia é estrutural. Só a União Eslava pode estar à altura de uma Europa unida a ocidente, permitindo um novo equilíbrio mundial contra a vontade de um domínio ocidental. A Rússia é demasiado grande e diferente para se aliar ao Ocidente, sendo o seu tamanho o primeiro impedimento, não se podendo esperar que seja apenas uma, entre outras, das grandes potências europeias, dada a sua imensidão e poder. Nega a caraterística de universalidade ao Ocidente, acentuando a importância de uma dominação russa universal. 


Piotr Savitski, economista e geógrafo, fala na Eurásia, rebate a separação feita pelos Urais, defende um “terceiro continente” (a Eurásia), de coerência botânica, harmonia do relevo e clima, um território unificado, cujo centro é a Rússia.


Aleksandr Dugin, o mais famoso mentor do eurasianismo, bipolariza o globo em telurocracias (países da terra, do sangue e do povo) e talossocracias (países marítimos, do indivíduo e do racionalismo). A Rússia é uma telurocracia e os Estados Unidos e Europa Ocidental talossocracias. Eurosianismo versus Atlanticismo. A nação russa, definindo-se pela cultura e religião, não cabe nas fronteiras atuais, consubstanciando-se num império pela sua vocação civilizadora e messiânica. A fragmentação da União Soviética criou nações artificiais como a Bielorrússia, a Sérvia e a Ucrânia. Prevê um confronto com o Ocidente relacionado com a tentação de os Estados pós-soviéticos serem atraídos pela Europa ocidental e pelos EU, não podendo a Geórgia e a Ucrânia ser parte integrante do império atlantista. Refere ter começado a contagem decrescente impeditiva da anexação da Ucrânia pelo império americano, apoiando a possibilidade de se travarem conflitos bélicos pela Crimeia e leste ucraniano. Enfatiza que a política externa deve focar-se num inimigo comum, a destruir: os EU, o liberalismo e a democracia. Deve instigar-se o antiamericanismo, como bode expiatório, a todos os níveis. E estimular-se a dependência energética da Europa, implementando a Rússia apoio, compensações e recursos aos seus aliados.     


Para o ideólogo Alesandr Prokhanov a “via russa”, messiânica, imperial e belicista brotou no século XV com a teoria de Moscovo, a terceira Roma, destinada a substituir Constantinopla, emergindo agora um quinto império (após a Rússia de Kiev e Novgorod, de Moscóvia, dos Romanov e o soviético) que justifica anexações, havendo um messianismo russo que obedece à ideia de uma justiça divina, sendo a Rússia teocêntrica e o Ocidente antropocêntrico.  


Evocando uma unidade indestrutível e espiritual entre a Rússia e a Ucrânia, que a fuga desta para o Ocidente amputaria os russos de uma parte de si mesmos, surge o projeto da Novorossia (Nova Rússia). Prevê ligar a Rússia à Transnístria, região ocupada por pró-russos, na República Moldova, ocupando também o sul da Ucrânia, incluindo Mariupol, Mykolaiv, Kherson e Odessa, recuperar o Donbas (Lugansk e Donetsk), a leste, e Kharkiv, em nome da defesa de cidadãos russos, russófonos e da língua russa do “sudeste da Rússia”.  


O projeto ideologicamente mais ambicioso é o da União Eurasiática, “imitação” da UE, englobando a Arménia, Bielorrússia, Cazaquistão, Quirguistão e Rússia, que tem como irrevogável a não junção da Ucrânia, e que se pode ampliar numa “Eurásia aberta de Lisboa a Vladivostoque”, nas recentes palavras de um ex-presidente russo.  


Sobressai uma Rússia ferida no seu orgulho, hipernacionalista e supremacista, que se diz humilhada, maltratada e ofendida, a querer reconquistar o poder que lhe foi subtraído, ampliando o seu estatuto imperial, numa lógica que apelida de correção da História. Tem o providencialismo como fundo permanente da personalidade e alma russa, transversal a outros povos, onde também emerge um quinto império, a fazer lembrar, entre nós, Vieira, Pessoa e Agostinho da Silva.  


Mas em que há sempre um império que se tem por melhor que os outros, que quer convertê-los, dominando-os e subjugando-os, se necessário, pela força, a começar pelos mais próximos, os “irmãos mais novos”.  

 

05.08.2022
Joaquim Miguel de Morgado Patrício

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

  


116. MUNDIVISÕES EUROPEIAS E RUSSAS


Qualquer Estado pelo mero facto de ser maior territorialmente, mais forte, ter uma mentalidade imperial e reclamar zonas de influência, não tem o direito de agredir outro, violando o Direito Internacional.    


Após a invasão, indicia-se poder desaparecer a função de estado tampão da Ucrânia para a Rússia. O país agredido quer ficar do lado europeu ocidental. O país agressor quer que fique do lado russo.


Quando há choques geopolíticos importantes, a Europa reage. Com o fim da segunda guerra mundial e o começo da guerra fria, reagiu com a integração europeia e a criação de dois blocos, um a oeste (ocidental) e outro a leste (comunista). Com o fim da guerra fria, reagiu com o alargamento a leste, através da União Europeia e da Nato. E reagiu, agora, com a aplicação de sanções ao invasor e a promessa de adesão da Ucrânia à União Europeia, bem como com ajuda humanitária e militar (esta última maioritariamente dependente dos Estados Unidos), juntamente com aliados de outros continentes: Canadá, Singapura, Coreia do Sul, Taiwan, Japão, Austrália e Nova Zelândia.


Em qualquer caso, a Rússia sempre foi um país com raízes europeias, em termos de cultura e mentalidade, apesar de ser um país euroasiático do ponto de vista geográfico.


Mas o desejo de ter nas relações internacionais um papel digno da sua dimensão territorial e poderio militar, em conjugação com a convicção de ter uma cultura específica suscetível de se universalizar, uma especificidade, excecionalidade e universalidade russa, faz com que tenha uma mentalidade imperial, que tem por justificada em termos históricos e culturalmente.   


Vejamos, numa sucinta síntese, as correntes fundamentais do pensamento filosófico e político russo, incluindo as tidas como subjacentes à atual invasão da Ucrânia.


Desde início do século XIX o pensamento russo divide-se em dois movimentos marcantes e opostos: o ocidentalismo e os eslavofilismo, englobando este os pan-eslavistas e os nacionalistas russos.


Para os ocidentalistas a Rússia, desde Pedro, O Grande, tem a vocação de ser parte integrante da Europa e a obrigação de recuperar o atraso que a distancia do  eurocentrismo ocidental, o que implica o abandono da arbitrariedade imperial, da limitação ou proibição das liberdades e direitos fundamentais, da identidade ortodoxa da igreja russa e do nacionalismo, tendo como representantes Piotr Chaadaev, Aleksandr Herzen e Vissarion Belinski.       


Os eslavófilos consideram a cultura europeia-ocidental decadente, fonte de declínio espiritual e moral, promovendo como ideal um arquétipo nacional que reúne as virtudes de um povo russo essencialmente agrícola, bom, gentil e pacífico, baseado numa visão religiosa do mundo apoiada na fé ortodoxa e na verdade da “via russa”, encontrando em si forças para a modernização, tornando-se um exemplo de referência para o Ocidente. São eslavófilos Alexis Khomiakov, Konstantin Aksakov, Ivan Kireievski, Ivan Aksakov, Mikhail Katkov, Iuri Samarin e Fiodor Dostoiévski.     


Esta visão orgânica, doméstica, idealista e romântica dos primeiros eslavófilos promovia o apoliticismo, em que o czar era tido mais como um pai, que uma autoridade formal. Daí que, entre outros, Khomiakov visse a missão do povo russo na vida suprema do espírito, e não na vida política, impossibilitando associar esta visão inicial a uma política estatal e imperial.


O dualismo entre ocidentalistas e eslavófilos estruturou para sempre o espaço intelectual russo, evoluindo, adaptando-se e reinventando-se, inclusive nas elites culturais e políticas da União Soviética, onde a nível intelectual teve, entre os dissidentes, um Sakharov ocidentalista, em oposição ao eslavófilo Soljenítsin.     


À filosofia especulativa e romântica dos primeiros eslavófilos, sucedeu um sistema filosófico mais positivista de filósofos e pensadores russos de segunda geração, nacionalistas e anti-ocidentalistas, tidos como inspiradores e mentores decisivos da atual política russa que subjaz à invasão da Ucrânia, a que aludiremos no próximo texto.

 

29.07.2022
Joaquim Miguel de Morgado Patrício

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

  

 

107. LIBERDADE DE EXPRESSÃO E CANCELAMENTO (RUSSOFOBIA) CULTURAL


Cancelar da cultura mundial Dostoiévsky, Tolstoi, Pushkin, Pasternak, Tchekhov, Tchaikovsky, Stravinsky, Kandinsky, Mussorgsky, Rachmaninov, Chostakovitch, Tarkovsky, Anna Pavlova, entre outros, por um sentimento de aversão ou ódio à Rússia, seu país natal, após a agressão e invasão russa na Ucrânia, é censurável, por maioria de razão em países democráticos que fazem culto e consagram a liberdade de expressão, incluindo a de informação e de pensamento.   


Pela arte, literatura, música, dança, pelo cinema, pela cultura em geral, a Rússia é património cultural da humanidade, produziu e continua a produzir, a nível artístico, cinematográfico, literário e científico, nomes intemporais que a Europa também reconhece como seus, e se universalizaram, sendo parte integrante da alma russa e do génio humano.


Não faz sentido cancelar a cultura russa, mesmo havendo uma condenação intransigente da invasão da Ucrânia, como notícias vindas de Zagreb revelando que a orquestra filarmónica cancelou dois concertos de Tchaikovsky, ou da MET, companhia de ópera de Nova Yorque, ao excluir uma soprano e um maestro russos, ou a interdição da literatura de Dostoiévski numa universidade italiana, o que não ajuda a amenizar o sofrimento das vítimas ucranianas, sendo um contra senso condenar o governo russo por limitar ou boicotar a liberdade de expressão e o ocidente agir do mesmo modo quanto à cultura russa.   


Defendemos que uma obra cultural (uma obra de arte em geral) vale por si, independentemente das opções políticas, ou outras, de cada um ou do autor, fazendo a separação entre a obra em si ou ao serviço de qualquer coisa, sobrepondo-se às contingências pessoais por que passou ou passa o seu autor, sendo transcontextuais, transversais, transnacionais, transcontemporâneas, isentas de culpas.   


Não há que confundir a Arte e a Cultura Russa com as opções políticas atuais dos seus governantes, dada a sua intemporalidade, antecipando-se, antepondo-se ou sobrepondo-se para além de quem tem o poder.   


Faz sentido que deixe de ler ou exclua da minha biblioteca obras como Guerra e Paz, de Tolstoi, Os Irmãos Karamázov, de Dostoiévski? 


Que deixe de se ouvir e ver O Lago dos Cisnes ou O Quebra-Nozes, de Tchaikovsky? 


Não se ouça Rachmaninov, Stravinsky, ou não se contemplem as pinturas de Kandinsky?


Não faz, nem faria, nem atenua o sofrimento dos ucranianos, antes é uma arma de arremesso que, por um lado, não dignifica sociedades que se dizem livres e têm por base a liberdade de expressão e, por outro, quando fazem uso de tais cancelamentos culturais dão argumentos ao culto da russofobia e a que se fortaleça o regime russo e a sua propaganda direcionada para criar entre os russos uma sensação de injustiça e de o ocidente estar contra eles, mesmo que a democracia em que vivemos, cheia de falhas, seja a melhor alternativa (por confronto com propostas autocratas, ditatoriais, totalitárias ou similares).

 

27.05.22
Joaquim Miguel de Morgado Patrício

A VIDA DOS LIVROS

  

De 4 a 10 de abril de 2022.


“A Mais Breve História da Rússia, dos Eslavos a Putin” de José Milhazes (D. Quixote, 2022) é um importante documento no qual encontramos o essencial da história russa, o que nos permite compreender melhor os acontecimentos mais recentes, designadamente na Ucrânia.


UMA HISTÓRIA RICA E COMPLEXA
Ao falarmos da Ucrânia estamos perante um caso especialmente difícil, longe do que quer a narrativa de Putin, porque a história envolve um conjunto vasto de razões. Kiev está na origem da civilização russa. Segundo a tradição, no século VI, aí se reuniram treze tribos eslavas orientais voluntariosas e determinadas, que fizeram prosperar a região do Dniepre. Se o primeiro Estado russo nasceu em Novgorod, quando o príncipe Riurik, um normando, não eslavo, foi convidado a assumir o poder, foi o seu irmão Oleg que transferiu para Kiev a capital da Rus. Iniciaram-se então as relações com Bizâncio e geraram-se as raízes dos povos russo, ucraniano e bielorusso. Kiev tornou-se o coração da Santa Rússia, herdeira da segunda Roma (Constantinopla). Contudo, no ocidente da Ucrânia, em Lviv, cidade fundada pelo Grão-duque da Ruténia, em 1256, encontramos, de certo modo, uma outra história. A cidade passou sucessivamente da soberania polaca, em 1340, para a austríaca em 1772, integrando o Império Austro-húngaro. Depois, a cidade foi polaca, em 1919, no fim da Grande Guerra, e tornou-se ucraniana em 1939. Em 1945, nas partilhas territoriais do fim da 2ª Guerra, a região foi integrada na República Soviética da Ucrânia, que viria a ser fundadora das Nações Unidas, ao lado da URSS e da Bielorrússia. A soberania de Direito da Ucrânia é assim inequívoca e antiga. A Ucrânia é um Estado soberano, com raízes históricas complexas e claras, a partir de influências que se completam – eslava e europeia central. Kiev é uma das cidades mais antigas da Europa e uma referência matricial da rica cultura eslava. Fundada no século V é um centro da economia e da cultura. E o cristianismo ortodoxo, de bases profundas, teve Kiev como matriz. A própria língua ucraniana tem raízes próprias, próximas da língua russa, do servo-croata e do polaco. A palavra “ukraina” significa zona fronteiriça, onde o domínio cossaco se distinguia dos principados eslavos do norte e oeste e das hordas turcas do sul. Em 1240, a cidade foi ocupada e destruída pelo Império tártaro-mongol, na conquista iniciada por Gengis-Khan. Kiev perdeu influência, mas manteve autonomia, no âmbito do Canato da Horda do Ouro. Em 1321, a cidade seria conquistada pelo Grão-Duque da Lituânia, passando ao domínio polaco-lituano até ao final do século XVII, quando Kiev passou para a esfera do Império russo, tornando-se o mais importante centro cristão ortodoxo, antes da transição para Moscovo. Nos séculos XVIII e XIX a vida da cidade foi dominada pelas autoridades militares e eclesiásticas, em 1834 foi criada a Universidade de S. Vladimir e em 1846 constituiu-se a proibida Irmandade de S. Cirilo e S. Metódio, defensora de uma Federação eslava de povos livres, animada por Nikolay Kostomarov. Kiev foi a terceira cidade do império, importante centro de comércio, beneficiando do rio Dniepre. As lágrimas e a vontade de um povo resistente reforçam a história, a herança e a memória de um dos fundamentos da civilização europeia, que a cegueira bárbara de um ditador será incapaz de destruir.     


A CULTURA RUSSA E A EUROPA
A cultura russa faz parte integrante da cultura europeia. Confundir as decisões de um ditador com o espírito de um povo é não compreender a essência da humanidade e da cultura. Cada nova guerra põe novas questões, mas não pode fazer-nos esquecer a memória histórica e o seu significado. A literatura russa é, aliás, bem ilustrativa da importância dos testemunhos e das reflexões sobre a guerra. Tolstoi e Pushkin muito nos ensinaram nesse domínio, como Dostoievski e Tchekov em matéria de psicologia humana. Os escritores são as melhores testemunhas das suas épocas. E muitos grandes artistas russos têm sido, ao longo dos tempos, dos melhores intérpretes da vida humana. Lembremo-nos de Berdiaev e da compreensão profunda da existência humana. E não esqueçamos que a identidade de Kiev e da atual Ucrânia estão no coração histórico da civilização russa, com um rico património, que está a ser destruído. E eis que não poderemos cultivar animosidade que atinja a sublime cultura eslava na sua diversidade. A grande Rússia é um complexo caleidoscópio, uma simbiose, ligada a uma história complexa, entre a tradição da Rus e a presença dos mongóis da Horda do Ouro, uma mistura de eslavos, fino-úgricos, alanos e turcos.


QUE FUTURO DA EUROPA? 
O futuro da Europa dependerá de um modus vivendi abrangendo a galáxia eslava, que em lugar da lógica imperial, deverá basear-se no respeito da Carta das Nações Unidas, na democracia, no Direito Internacional e nos direitos humanos. A Ucrânia constitui um caso especial de convergência entre as raízes culturais da Rússia, como herdeira da segunda Roma (Bizâncio), e as tradições dos povos ocidentais, que integraram a Polónia e o Imperio Austo-húngaro. A comunidade internacional tem de contrariar energicamente a lógica da guerra, do ressentimento e da mútua humilhação. A barbárie não pode continuar a impor-se à civilização. Andrei Kourkov, escritor de língua russa, defende a causa ucraniana, rebelando-se contra a guerra total e a destruição de teatros, museus, hospitais e escolas, património comum da humanidade. Não é só a Ucrânia a estar em causa. Eis por que faz sentido, o apoio aos cidadãos russos ilustrados e democráticos e o acompanhamento das consequências das sanções económicas, de modo a criar condições concretas para uma saída do conflito que limite as consequências desumanas. “A liberdade do homem distingue-se de qualquer outra força, porque é reconhecida pela nossa consciência, mas aos olhos da razão em nada se distingue das outras”. Foi Tolstoi quem o disse, no fecho do seu romance maior.

 

Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

AS TENTAÇÕES DO PODER E A TRAGÉDIA

  


Perante os horrores que estamos a viver, escrever o quê? O meu desejo era tão-só pôr como título: Ucrânia: o horror. Depois, pedir para colocarem na página em branco a imagem de uma cruz e, no fundo à direita, duas palavras: Lágrimas e solidariedade. E era tudo.


Mas estamos na Quaresma e, no Domingo passado, o Evangelho narrava as três tentações de Jesus, tentações que, lá no fundo, não são senão uma só: a tentação do poder total enquanto domínio: o poder económico — o diabo disse a Jesus: “diz a estas pedras que se transformem em pão” —, o poder religioso — levou-o ao pináculo do Templo e disse-lhe: “Se és Filho de Deus, atira-te daqui abaixo, os anjos levar-te-ão nas suas mãos” —, o poder total — “o diabo mostrou-lhe todos os reinos do universo: Dar-te-ei todo este poderio e a sua glória; se te prostrares diante de mim, tudo será teu.”


Jesus não cedeu. Mas, quando se cede, caindo na tentação do domínio total, da omnipotência, julgando ser Deus, então é o que se sabe, ao percorrer a História: horrores, tragédias sem fim, a brutalidade pura, reinos destruídos, impérios que se desmoronam, ódio, sofrimento e dor sem nome e sem fim...  Lembrando apenas o século XX na Europa: várias guerras, com duas mundiais, custaram quantos mortos? E agora, quando pensávamos ter encontrado a paz, eis que, num desígnio imperial, Vladimir Putin, ignorando o Direito Internacional, a dignidade da pessoa, os direitos humanos, invade um país independente e soberano, a Ucrânia. E aí está outra vez a guerra, e as atrocidades sucedem-se, bombardeamentos indiscriminados, milhões de deslocados, feridos, mortos, edifícios arrasados, idosos, mulheres, crianças a fugir desesperados à morte, num calvário arrepiante, pungente. O intolerável que, no limite da loucura de uma guerra nuclear, poderia arrastar para o auto-aniquilamento da Humanidade...


Mesmo se a União Europeia e a NATO não souberam gerir da melhor maneira o pós-queda do Muro de Berlim e o desmembramento da URSS — não se deverá esquecer a ideia de De Gaulle sobre uma Europa “do Atlântico aos Urais” nem o discurso do Papa João Paulo II sobre  o Ocidente e o Oriente como “os dois pulmões” da Igreja e da Europa —, isso não justifica de modo nenhum a invasão. Aliás, felizmente, como que anunciando o despertar para uma nova Europa, nunca a Europa esteve tão unida como nesta condenação e, também na Assembleia geral da ONU, 141 Estados votaram a favor da resolução condenando a invasão; apenas 5 votaram contra. Putin sentir-se-á isolado como nunca, já com um lugar na história dos tiranos, e a solidariedade com os ucranianos é gigantesca e cordial.


Nesta solidariedade e procura da paz mediante negociações diplomáticas, o Papa Francisco tem sido incansável. Logo nos primeiros dias da guerra, encontrou-se com o embaixador russo no Vaticano, telefonou ao embaixador da Ucrânia, manifestando a sua “profunda dor” pela invasão, e falou com o presidente ucraniano Zelensky.


Entretanto, enviou à Ucrânia dois cardeais: Krajewski, o esmoleiro, e Czerny, prefeito do Dicastério para o Desenvolvimento Humano Integral, como mensageiros da paz. No Domingo passado, foi claro: “Na Ucrânia,  correm rios de sangue e de lágrimas. Não se trata de uma operação militar, mas de guerra, que semeia morte, destruição e miséria.” Lembrando as tentações, sublinhou que elas são “uma proposta sedutora mas que conduz à escravidão do coração: cegam-nos com a ânsia do ter, reduzem tudo à posse de coisas, de poder  e de fama. Jesus, porém, opõe-se vitoriosamente à atracção do mal. Como? Respondendo às tentações com a Palavra de Deus, que diz que a verdadeira felicidade e a liberdade não estão no ter, mas na partilha, não no aproveitamento dos outros, mas no amor, não na obsessão pelo poder, mas na alegria do serviço.” E, mais uma vez, declarou: “A Santa Sé está disposta a tudo, a pôr-se a caminho pela paz.” Numa conversa telefónica entre o Secretário de Estado do Vaticano e o Ministro dos Negócios Estrangeiros da Federação Russa, o cardeal Parolin repetiu a Lavrov o apelo de Francisco e a disposição da Santa Sé para todo o tipo de mediação  considerado útil para fomentar a paz: “Os combates têm de cessar, impõe-se abrir corredores humanitários, negociar.”


O grande objectivo de Francisco é poder entrar em contacto, pelo menos telefónico, com Vladimir Putin. Para isso, precisaria da mediação do Patriarca ortodoxo de Moscovo, Kirill, que, desgraçadamente, se tem colocado ao lado de Putin.


Termino com parte da letra de uma canção, enviada por um amigo, intitulada: “Senhor Putin”.


“Sr. Putin, permita que lhe pergunte: afinal, quem é? Nasceu de pai e mãe? Tem coração que bate? Pensa? Sente? Já alguma vez sofreu? Já chorou? Como é possível sob o seu comando tanta gente perder a vida, perder a paz, ter de abandonar as suas casas, fugir das armas e tanques de guerra, tudo sob o seu comando? Como pode ver crianças a sofrer, a chorar assustadas, crianças mortas? Crianças a nascer em bunkers, mulheres a ver os seus maridos e filhos a morrer? Quem é afinal, Sr. Putin? Pense... Alguém lá acima, mas muito acima..., Esse, sim, a quem todo o poder pertence, Ele fará justiça e o Sr. Putin irá então encontrar-se consigo mesmo, dando conta da sua pequenez, ignorância, insignificância, frieza, crueldade e materialismo. A vida aqui tem um tempo limitado. Abra os olhos. Pare,  Sr. Putin, pois esta guerra não é dos russos, é do Sr. Putin. Deus, sim, Ele é o Senhor de tudo.”

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 12 de março de 2022

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

Minha Princesa de mim:

 

    É claro, também, no palco político-diplomático do mundo, que os discursos se assemelham, cada potência se declarando alvo de perseguição pela outra, e vítima de conspirações sucessivas. Estamos em pleno teatro trágico-cómico, de que o episódio Skripal (ainda por cima o homem, ao que consta, era espião duplo...) é lamentável cartaz e nem sequer serviu cabalmente para escamotear os vários e graves problemas, que o Reino Unido tem com o Brexit, quer internamente (Escócia e Irlanda do Norte, entre outros; ou o da crescente percentagem de votantes "sim" que hoje se sente aldrabada no referendo), quer externamente (se os parceiros europeus do RU se sentem desagradados, o Brexit encontra dois aliados (promotores?) estranhos: EUA e Rússia). Além disso, quiçá tivesse sido mais prudente, e certamente mais inteligente, apontar-se sem formar culpas o gravíssimo incidente de tentativa de homicídio com arma internacionalmente proibida e reclamar-se a condenação internacional do mesmo, solicitando-se a organização de esforços convergentes de investigação de responsabilidades, que envolvessem todos os possíveis suspeitos. Mas preferiu-se a precipitação e o arremesso de culpas não substancialmente provadas (ainda por cima, ao que consta, o tal gás também já poderá ter sido fabricado no RU...). Bem estiveram o Presidente da República e o Governo de Portugal, tal com muitos pensadores independentes, como Jaime Nogueira Pinto, que se pronunciaram pela independência de juízo portuguesa. Não sou, nem quero ser, comentador político. Ao conversar epistolarmente contigo, Princesa de mim, falando destes temas, procuro apenas olhá-los caleidoscopicamente. Assim, sobre o caso Skripal em geral, e a posição até agora assumida pela diplomacia portuguesa. E não esquecendo que Theresa May talvez se tenha lembrado de Margaret Thatcher que, nos finais dos anos 70, para distrair a opinião pública da dureza da sua política relativamente aos mineiros grevistas, ressuscitou o caso Anthony Blunt, que chegara a ser conservador das coleções de arte da Coroa britânica e professor consagrado e condecorado, mas fora comunista na juventude, e não só, mesmo chegando a ser espião por conta da URSS, em tempo de guerra.... [Ele pertencia, tal como Kim Philby e Guy Burgess, ao célebre Grupo dos Cinco de Cambridge]. Tal como tenho memória fresca de notícias sobre a brutalidade com que Putin pode tratar oponentes e adversários...

 

   A chamada "Guerra Fria" sinalizava um clima de tensão entre duas grandes potências e seus respetivos aliados, cada grupo constituindo um bloco ideológico, político, económico e militar, em que, felizmente, a diplomacia ia tendo umas oportunidades de intervenção, sobretudo devido à memória amarga que, de um lado como do outro, os povos guardavam da barbárie da 2ª Grande Guerra, bem como à consciência generalizada de que qualquer conflito à escala global poderia implicar o recurso a armas nucleares, cujo poder de destruição, até essa altura, "apenas" fora testado em Nagazaki e Hiroshima, pelos americanos. Foi-se, pois, fazendo friamente a guerra, como quem joga num tabuleiro de damas ou xadrez, colocando agentes e conflitos em palcos alheios. E fazendo batota, claro, cada jogador dispondo redes de espionagem e procedendo a "execuções" cirúrgicas, independentemente de se ser ditadura ou democracia a dar ordens: entre muitos outros, incluindo franceses e israelitas, e não só, foram-se celebrizando KGB, CIA ou M15 e 16... A autêntica competição, todavia, situava-se sobretudo na corrida ao armamento e no desenvolvimento das tecnologias inerentes ao complexo militar e industrial, designadamente no domínio espacial. Em tudo isto, o que contava era o campeonato, as ideologias eram para esquecer. O problema maior, para cada concorrente, era o financiamento da aventura. Neste capítulo, o capitalismo liberal mostrou-se mais capaz de resultados do que o capitalismo estatal. E, para o que ao tema nos traz, Princesa de mim, não foi despicienda a participação de um maior número de democracias na globalização e incremento das trocas comerciais. A vitória "ocidental" deveu-se ao desafogo económico conseguido, que não só beneficiou os países participantes, como fomentou um mimetismo político-económico na zona comunista, assim levada a promover glasnost e perestroika...

 

   "Roma e Pavia não se fizeram num dia", tampouco se desfazem, de hoje para amanhã, mazelas e cicatrizes deixadas pela "guerra fria"... Mesmo no subconsciente popular vão ficando referências como "Europa de Leste", mais com carga ideológica e política, e até de sinónimo de barbárie, do que simplesmente apontando um posicionamento geográfico... Por essa e outras se vai mantendo um clima mental de guerra fria, apesar do fim do bloco soviético e do crescimento de relações a vários níveis e em muitos campos, desde a agricultura ao comércio, das infraestruturas aos combustíveis energéticos, artes e futebol. Curiosamente, aliás, os maiores investimentos financeiros em clubes de chuta a bola muito populares em países como o Reino Unido, a França, etc., têm acentuada origem em magnates árabes, chineses e...russos! E olhemos para as bandeiras nacionais dos países de leste, alguns dos quais hoje membros da UE, que ostentam símbolos heráldicos de passadas monarquias e impérios (reparaste, Princesa, nas cruzes e águias bicéfalas exibidas sobre edifícios públicos de Moscovo e S. Petersburgo?), e prestemos atenção às razões que levam alguns deles a eleger governos nacionalistas que, no "ocidente", seriam de direita-direita. Sofreram quase meio século de dependência e humilhação, não tiveram, depois, como a RDA, uma outra metade abastada no lado de lá (de cá, para nós) que os ajudasse a mais fácil integração num regime socioeconómico diferente. Ainda por cima, tiveram de passar por crises de confiança e identidade... As sociedades não se transformam por toques mágicos nem eletrónicos ou informáticos. Os povos, além de resistentes, são resilientes (qualificativo que, como bem sabes, Princesa de mim, é hoje empregue pelos nossos políticos com significação algo confusa...). O fim da "guerra fria", Princesa, permitiu e promoveu uma corrida aos  armamentos mais alargada, a emergência de mais potências regionais, algumas com tentações evidentes de interferência a nível global... A guerra mundial de hoje é, como foi na "guerra fria", uma semear de conflitos parciais, com a diferença de que as grandes potências - que sofreram revezes, como os EUA no Vietnam e a URSS no Afeganistão  -  têm agora de procurar fomentar alianças ou blocos regionais, retirando os seus próprios peões da liça : pensa, Princesa, no recente entendimento russo-turco-iraniano sobre a Síria, em simultaneidade com o anúncio de retirada de Trump.

 

   Mas também guardo, para carta por seguir, uma reflexão sobre a Europa e o que nela já foi, é hoje, e poderá ser ocidente e oriente, sem esquecer essa ideia inicialmente alemã da Mitteleuropa (título do livro do geógrafo Joseph Partsch, publicado em 1904), que até serviu para desenhar um espaço político a separar a Europa da Rússia, nação europeia, cujo estado ocupa o maior território nacional do mundo, quase todo na Ásia, de que a Europa apenas é uma península dela separada pelos Urais... 

 

Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira

AS ARTES E O PROCESSO CRIATIVO

 

VII - CONSTRUTIVISMO

 

É uma das tendências da arte abstrata, desenvolvida em primeiro lugar na Rússia, em 1917/18, a partir do cubismo e do futurismo, com inclinação para a produção de objetos construídos e utilitários, anunciando o fim da arte pela arte e defendendo uma arte funcional em que a criação artística é colocada ao serviço da sociedade.

 

A arte deve ser útil, sem preocupações estéticas e espirituais, mas sim funcionais, apoiando-se na tecnologia e materiais de produção, estendendo-se às artes gráficas e aplicadas, concebendo cartazes, livros, mobília, vestuário, edifícios, produtos domésticos, papel de parede, pinturas, tipologias de letras ousadas, cenários e décors para teatro, cinema e bailado, design industrial, propaganda, sobressaindo na arquitetura e escultura.

 

O construtivismo ao acentuar os elementos técnicos e funcionais, dá menor importância ao decorativo.

 

Um dos seus cultores, Vladimir Tatlin, criou as suas obras de arte com materiais de construção modernos, usando o aço, o ferro e o vidro, preocupando-se com as propriedades físicas dos materiais que usava e com o modo como os dispunha. Os seus Contra-Relevos de Canto (1915), são uma revelação escultórica de vanguarda, com a sua folha de metal, esferas, curvas e arame esticado, antecipando a arquitetura de Frank Gehry, nomeadamente o telhado ondulado do Museu Guggenheim de Bilbau, além das suas influências em pontes suspensas, esculturas abstratas de Henry Moore e Barbara Hepworth e peças minimalistas de vários autores.

 

A sua paixão pela arquitetura levou-o a conceber a Torre de Tatlin, em ferro, aço e vidro, com 400 metros de altura, superior à Torre Eiffel, pretendendo consagrar mundialmente a União Soviética, a qual viria a chamar-se Monumento à Terceira Internacional, projetado e nunca construído.  

 

Aleksandr Rodchenko declarou a morte da arte burguesa do ocidente, decadente e capitalista, no seguimento da criação do estado socialista soviético, em que a arte devia ter por fim ser inteligível e útil para todos, servindo os interesses e necessidades do povo e do regime.

 

Os construtivistas aceitaram e associaram-se à criação de uma identidade visual para o comunismo, associando para sempre esta arte de vanguarda à esquerda, o que fizeram com eficácia e pioneirismo, de forma assertiva e psicologicamente chamativa. Em termos de género e iniciativa, as mulheres ocuparam posições proeminentes, em paralelo com os homens, sobressaindo Lyubov Popova, Aleksandra Ekster e Varvara Stepanova. Todos proporcionando ao ideal utópico comunista uma mensagem imediatamente reconhecível aplicando, por exemplo, com sucesso ao design gráfico as cores, formas geométricas e qualidades estruturais da arte construtivista, em que o branco, o preto e o vermelho berrante dos seus cartazes são no imediato reconhecidos. Derrota os Brancos com a Cunha Vermelha (1919), de Lissitzky, com forte impacto das formas e cores, jogando os amanhãs revolucionários, exemplifica-o como arte de propaganda não-objetiva e um dos cartazes mais fidedigno, representativo e simbólico de sempre, cuja imagem e estilo influenciou posteriormente designers gráficos, estilistas, grupos de música pop e eletrónica, com a sua herança duradoura e impactante até hoje.  

 

El Lissitsky propagou as ideias do construtivismo pela Europa, em especial na Alemanha, onde foi um dos movimentos mais importantes entre 1920 e 1930, representado por artistas da Bauhaus, Baumeister, Schwitters e Gabo.

 

Os seus artistas, dispersos pelo mundo, influenciaram a arte contemporânea, com os princípios do construtivismo a serem retomados por Max Bill e os artistas concretos suiços.

 

Representantes fundamentais do construtivismo: Naum Gabo, El Lissitzky, Tatlin, Malevitch, A. Pevsner, Popova, Pougny, Le Corbusier.

 

09.05.2017

Joaquim Miguel De Morgado Patrício