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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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AS ARTES E O PROCESSO CRIATIVO

 

XIV- SURREALISMO - I

RAÍZES E SURGIMENTO

 

1. A expressão surrealismo popularizou-se e entrou no vocabulário quotidiano sob a forma de um adjetivo: surreal. Estando para além do real, expressa o irracional, a desrazão, o fantástico, o oculto, o absurdo, o estranho, o excêntrico, o esoterismo, a alucinação, resultando da interpretação da realidade à luz do sonho, da imaginação e dos processos psíquicos do inconsciente.

 

Movimento literário e artístico nascido em Paris, em 1924, sob a teorização de André Breton no Primeiro Manifesto do Surrealismo, onde surge como: “um puro automatismo psíquico pelo qual se pretende exprimir, quer verbalmente, quer por escrito, quer por outro meio seja ele qual for, o verdadeiro funcionamento do pensamento. Um ditado do pensamento, sem que a razão exerça sobre ele qualquer controlo e para além de qualquer preocupação estética ou moral”. 

 

Se como influências e modelos culturais podemos recuar às alucinações de Bosch, a Rimbaud, Lautréamont, ao simbolismo e alguns pintores expressionistas, é o dadaísmo e a metafísica de Chirico que agarram mais de perto, como precursores mais diretos, os ideais surrealistas, via associações e metáforas incoerentes, eventos estranhos, resultados absurdos, delirantes, extravagantes, sombrios e viagens excêntricas. Na pintura, por exemplo, o surrealismo foi beber inspiração aos ready-made de Duchamp e aos Interiores Metafísicos de De Chirico.

 

Mas enquanto o movimento Dadá era totalmente destruidor, negativo e nihilista, o surrealismo começou por ser um movimento comprometido politicamente com o partido comunista, entendendo que a missão dos intelectuais revolucionários num  regime capitalista era a de condenar os valores burgueses, servindo os mesmos objetivos que os revolucionários políticos.

 

Mas existia uma contradição insanável entre o espírito boémio, libertário e liberticida, entre uma irrestrita liberdade de expressão, de pensamento e de imaginação dos surrealistas e o dogmatismo, autoritarismo e disciplina exigida pela ortodoxia cultural comunista. A aliança não foi duradoura, havendo cisões, dissidências, excomunhões e ruturas. Dos grandes escritores surrealistas apenas Louis Aragon permaneceu sempre fiel ao partido comunista.  

 

O essencial, para os surrealistas, era explorar o mundo novo revelado pela psicanálise baseada na teoria psicanalítica de Freud, defendendo a autonomia da imaginação e a capacidade do inconsciente se exprimir sem limites, baseando a literatura e a pintura na associação de imagens produzidas pelo subconsciente dos artistas. Uma liberdade total de imaginação e expressão permitiu uma imensa diversidade e que este movimento não apresentasse um caráter unitário, com as suas influências anarquistas, marxistas e freudianas, em que estas últimas predominaram.

 

O papel do inconsciente já tinha sido explorado por artistas como Kandinsky, Malevitch e Mondrian, ao pretenderem provocar uma sensação de fantasia, quimera, sonho e utopia na nossa mente com o abstracionismo das suas telas. Só que os surrealistas queriam ir mais longe, exprimindo o seu subconsciente sem qualquer intervenção, limitação ou censura, confrontando-nos com imagens e palavras chocantes, indecorosas, macabras, subversivas, expondo cruelmente a depravação do nosso íntimo e das nossas mentalidades, destapando pensamentos e segredos íntimos que haviam sido decalcados e proibidos por uma questão de decência e pudor.

 

Embora apoiando ideias fundamentais do dadaísmo, como a destruição do sistema e a negação do fazer artístico e da arte pela arte, havia que ir mais longe, havendo necessidade de integrar, no que de original e contundente tinham os dadaístas, conceitos freudianos sobre o desempenho do inconsciente na conduta humana, que se revelava através dos sonhos e da escrita automática e espontânea da consciência. Superava-se, assim, o dadaísmo, já esgotado, pela adesão às descobertas da psicanálise e pela afirmação da importância do sonho na criação artística.

 

2. Afirmando que o surrealismo é um meio de libertação do espírito, os surrealistas representaram cenas absurdas, fantásticas, grotescas, macabras, sonhos e alucinações chamativas em excentricidade e insolência, libertando-se de tabus vigentes no campo da sexualidade, de interferências racionais, morais ou estéticas.  

 

Os surrealistas franceses, por exemplo, criaram o jogo Cadavre Exquis (Cadáver Esquisito), em cada um dos intervenientes escrevia o que desejasse numa folha de papel em branco, que dobrava, ocultando o que escreveu. Entregava-a, parcialmente dobrada, ao segundo jogador, que escrevia o que queria, dobrava-a e entregava-a ao terceiro jogador, e assim sucessivamente, até ao fim da folha. Desdobrado o papel, as linhas e frases desunidas eram lidas por todos, desde o cume da folha, como se fossem uma única peça criativa. Seguia-se uma análise, por entre considerações cuidadas, humor e gargalhadas relacionadas com as associações absurdas obtidas, em comunhão com a real personalidade dos jogadores, tida por convincentemente manifestada. Dado que a primeira frase, da primeira vez que se jogou, foi “O cadáver esquisito beberá o vinho novo”, o nome do jogo resulta do primeiro dos cadáveres esquisitos conhecidos. Que viria a ser recuperado pelos surrealistas portugueses, a vários níveis, como o exemplifica a antologia de Mário Cesariny de Vasconcelos. Emergem, também aqui,   influências da pintura metafísica, perante a ideia de desenvolver e misturar temas ao acaso. Bem como do dadaísta Tristan Tzara ao propor que se recortassem palavras de um texto de jornal e se juntassem ao acaso, tirando-as de um saco onde foram guardadas.

 

A passagem da folha escrita para a tela era mais complexa e menos imediata. Joan Miró é tido como um dos artistas que melhor o conseguiu, ao interiorizar o surrealismo através das suas imagens automáticas. A sua tela Carnaval do Arlequim, é um exemplo, com as combinações e formas aleatórias pautadas por uma imaginação infantil não racional, despida de uma estrutura explícita, em que bichos, peixes, insetos, balões, serpentinas, modelos biomórficos, notas e instrumentos musicais flutuam no ar e andam pelo chão, em que o protagonista é uma bola com bigodes (rosto), cujo pescoço comprido se desdobra numa guitarra decorada com a estampa axadrezada de um arlequim, numa hipotética festança de um dia de carnaval, em que não falta um inesperado olho aberto. Eis um universo mágico e lírico de códigos, signos e associações surreais.

 

Max Ernst exemplifica a sua produção automática na tela Célebes, em que peixes nadam no céu, um gigante elefante cinzento, tipo máquina, lembra um tanque de guerra, monopolizando a pintura, enquanto uma figura feminina decapitada levanta o braço direito na direção da tromba, em que uma coluna metálica, à direita, apresenta conotações fálicas.

 

Ernst viria a realizar, em 1935, as suas primeiras frottages, associadas à escrita automática, que implicava transferir a impressão de superfícies texturadas para o papel, friccionando-as com lápis ou lápis de cera, daí resultando formas nodosas ou espinhosas que representavam coisas estranhas, produzindo imagens tidas como uma forma de surrealismo automático. Mason realiza os seus primeiros desenhos automáticos  e inventa os quadros de areia.

 

Porém, outros artistas que aderiram ao surrealismo, recriaram a atmosfera de indefinição e de uma arte livre criadora do desejo, sugerida e teorizada por André Breton.  

 

18.07.2017 
 Joaquim Miguel De Morgado Patrício