Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
164. QUEM QUER EXERCER O PODER NO PRESENTE TEM DE DESTRUIR O PASSADO?
1. Com o desumano assassinato de George Floyd gerou-se uma vaga de indignação global contra o racismo. Aproveitando a ocasião grupos radicais ativaram uma guerra cultural contra o que têm como símbolos do colonialismo e opressão, através do apeamento, desmembramento e vandalização de memoriais e monumentos tidos como colonialistas, opressores e racistas.
Ao longo da História humana sempre foram destruídos patrimónios civilizacionais, em nome de Deus, da fé, de ideologias, de poderes instituídos, de direitos tidos como inalienáveis, de utopias compensadoras, redentoras e salvíficas.
Impõe-se referir que a destruição do passado em termos culturais, patrimoniais e civilizacionais tem sido transversal a todos os poderes e civilizações, uma caraterística constante e permanente que tem atravessado todos os conquistadores e vencedores, desde o Ocidente ao Oriente, do Norte a Sul, não sendo um exclusivo ocidental.
Jerusalém, com a sua simbologia de cidade sagrada, é um exemplo, com as suas sucessivas ocupações e destruições (a começar pela destruição do Templo de Salomão e Herodes), desde a ocupação Judaica, Babilónica, Grega, Ptolemaica, do Reino Asmoneu, Romana, Bizantina, Persa, Islâmica, das Cruzadas, de Saladino, dos Mamelucos, Otomana, Britânica, Israel/Jordânia e Israel.
Só que o repúdio e revolta, mesmo que legítimos, por atos praticados contra a raça ou a cultura daqueles que se têm por vencidos, oprimidos ou explorados, não justificam, quanto a nós, que se destruam os símbolos de identidade cultural e patrimonial dos que têm como vencedores, por maioria de razão quando estes lhes permitem, na sua própria casa, manifestar-se e protestar, ao invés de países não democráticos, que não censuram, onde nunca poderiam exercer o direito à indignação e de opinião que exercem no Ocidente.
Se o presente interpela o passado, se aceitamos uma pluralidade de visões e diferentes memórias civilizacionais, a História tem de ser, no mínimo, a visão do vencedor e do vencido, o que levanta a questão, no nosso tempo e circunstâncias, do que é tolerável e intolerável na nossa memória coletiva.
Em regimes autocráticos, ditatoriais e totalitários, apela-se a uma visão única da História, do tudo ou nada. Apelidar obras de arte de “degeneradas”, como Goebbels, durante o nazismo, a arte ocidental de “decadente, burguesa, capitalista e reacionária”, como Lenine na União Soviética, de “contaminadas”, no Estado Novo, a artes miscigenadas no âmbito da colonização e do império, lembra a linguagem de um poder supremacista sobre afirmações culturais tidas como desprezíveis ou indignas.
2. Defendemos que os monumentos e memoriais, incluindo as letras e as artes em geral, são património histórico e cultural e, como tal, devem ser preservados, contra tudo e todos, o que exige às democracias saber o que fazer de uma memória tida como tolerável e intolerável, no seu tempo e nas suas circunstâncias, sendo inadmissível que se brutalizem, destruam ou vandalizem, tomando como arma de arremesso causas justas ou princípios universalmente consagrados, como o da justiça igualitária e social.
Se aceitamos que todas as obras de arte, incluindo a sua história, a museologia e as ciências do património, são um testemunho de uma História comum, do tempo em que foram produzidas, do que se seguiu e do atual, assim contribuindo para a configuração cultural e espiritual do mundo, também temos de aceitar que são permanentemente transcontemporâneas, não se esgotando na temática que representam.
Nesta sequência, o questionamento crítico sobre se uma determinada estátua, por exemplo, pode ser retirada, deslocalizada, armazenada, transferida para um museu, discutida, historicamente contextuada e enquadrada, até por razões meramente estéticas ou de gosto, pode ser exequível e ser aceite pela comunidade, mas não ser adulterada, apeada, brutalizada, destruída, vandalizada, muito menos quando a iconoclastia integra uma agenda de protesto. O mesmo quanto à remoção, destruição ou vandalização de esculturas ou pinturas que só num determinado enquadramento previamente programado se justificam, que são transcontextuais e isentas de culpa dos desmandos humanos, mas que podem, a todo o tempo, ser contextualizadas e confrontadas com esculturas e pinturas contemporâneas sobre os mesmos temas.
Mesmo que ideológica, política e socialmente comprometidos, os monumentos, memoriais e a arte em geral são sempre um testemunho vivo que suscita debate, controvérsia, seja no espaço público, museus, bibliotecas, igrejas, edifícios estatais ou civis, porque portadoras dos olhares do passado, do presente e do futuro.
E ao abrir e reconhecer uma parte oculta da História, pode-se enriquecer a narrativa, torná-la mais verídica.
Daí que quem quer exercer o poder sobre o presente não tem que destruir o passado. Mais fácil, sem dúvida, em sociedades onde se aceita o respeito por uma pluralidade de visões e de diferentes memórias, onde há liberdade de expressão, de manifestação e de protesto, amiúde não reconhecida por quem dela aí beneficia, por confronto com países onde a intolerância é a regra.
1. Agora, a seguir ao almoço e ao jantar, vou dar a minha volta junto ao mar, caminhando num passadiço de quilómetros na areia. Dali, contemplo o mar, sempre o mesmo e sempre novo, uma das mais belas imagens do infinito, e o Sol a incidir sobre ele ou a pôr-se (para onde irá ele?) e aquele esplendor de beleza em movimento que deslumbra (quem é que pinta lá no horizonte aquelas cores e figuras que nenhum pintor sabe pintar?). Encontro gente e medito e até organizo os textos que aqui publico e outros...
Mas, quando estava em Roma a estudar, a seguir ao almoço, ia à Basílica de São Pedro. Para parar e contemplar a Pietà de Miguel Ângelo. Está ali, e nunca se esgota, porque a beleza nunca acaba, pois é outro nome do divino, a compaixão toda do mundo. Não é em vão que se chama a Pietà, a Piedade. Naquela mãe, Maria, com o Filho Jesus morto nos braços, ele que foi vítima de um assassinato político-religioso, a gente vê a ternura toda, as lágrimas todas, de todos, e fica imóvel e mudo, enternecendo-se também, e é outro.
Veio-me à mente esse tempo, porque há dias a Pontifícia Academia para a Vida postou no Twitter uma fotomontagem da escultura de Miguel Ângelo com um Cristo negro no regaço de Maria. Choveram as reacções, contraditórias: uns elogiaram o gesto, numa mensagem forte contra o racismo; outros indignaram-se com a “blasfémia”: “O que querem com isto? Onde está o nosso Jesus?” Que não se deve tocar em Miguel Ângelo: não há um “Jesus negro” nem “um Jesus branco”, “Cristo é um só”.
Foi uma provocação? Foi. Mas não tocou em Miguel Ângelo nem na sua famosa escultura. Trata-se tão-só de uma provocação chamando a atenção de todos para que a vida de todos importa, evidentemente também a dos negros. Não sabem os cristãos que Jesus se identificou com todos, a começar pelos mais abandonados? “Destes-me de comer, de beber, de vestir, fostes visitar-me ao hospital e à cadeia...”. Maria, a mãe de Jesus, acolhe nos seus braços maternos todas as vítimas, como acolheu Jesus. E não há nenhum problema na associação com o movimento Black Lives Matter. Todas as vidas merecem respeito. Com esta imagem estamos, está-se a dizer que as vidas dos negros são importantes, como todas as outras vidas. Não foi através do cristianismo que veio ao mundo a ideia de pessoa e da dignidade infinita, porque divina, de todas as pessoas? E não foi com base no cristianismo que nasceu a consciência dos direitos humanos? Onde foram proclamados? Não foi em Pequim nem na Arábia Saudita.
Nós não temos nenhuma fotografia do Jesus histórico, real. Por isso, há muitas possibilidades de o imaginar. Esta fotomontagem é também uma forma de dizer que Jesus Cristo é o Salvador universal e, como Homem universal, tem muitos rostos. É absolutamente natural que em África o representem negro, na Ásia apareça com rosto asiático... O ser humano é sempre o resultado de uma herança genética e de uma cultura em história, e é preciso, como acentua o Papa Francisco, que o Evangelho se insira e encarne nas várias culturas.
2. Eu não sabia. Fiquei a saber por Júlio Machado Vaz que, em conexão com a luta contra o racismo, há também uma “campanha mundial contra a discriminação pela idade”. São quarenta as organizações de todo o mundo que lançaram a Old Lives Matter contra o idadismo. Foi também por Júlio Machado Vaz que soube que a Sociedade Francesa de Geriatria e Gerontologia veio sublinhar que afinal o idadismo é “a discriminação mais universal e aumentou durante a pandemia, sobretudo pela ausência de diálogo com os interessados e as suas famílias quanto às medidas tomadas, em particular no quadro das instituições. Acrescentam os investigadores que os mais velhos discriminados vivem, em média, menos sete a oito anos.”
A vida dos idosos — a campanha não teve receio em dizer dos velhos — também importa, vale, como todas as vidas. Por isso, quando observo o tratamento que lhes é dado, até porque vivemos numa sociedade economicista e do descarte, só posso estar em total acordo com Machado Vaz, quando, criticamente, num apelo dramático à solidariedade, ergue estas perguntas: “Estaremos condenados a olhar com angústia o tempo suplementar de que dispomos, oferecidos pela ciência e por estilos de vida mais saudáveis? Não apenas pelos achaques normais da idade, mas por força de uma sociedade que recusa a cidadania plena a gentes cujas rugas invadem a pele e por vezes, dramaticamente!, os neurónios, mas não o coração?”
3. É neste contexto das campanhas que gritam: “as vidas dos negros importam”, “as vidas dos idosos importam”, que é necessário e urgente levantar a questão, que esteve apenas suspensa (com medo de quê?, não era oportuno porquê?, quando é que é oportuno?), referente ao debate parlamentar na especialidade e votação das leis da eutanásia aprovadas em Fevereiro. Afinal, não importam as vidas de todos? Estou com Miguel Oliveira da Silva: eu também “gostava de saber, dos mais de 1970 doentes que morreram com covid-19, quantos pediram para serem eutanasiados ou falaram disso com os médicos.” All Lives Matter: todas as vidas são importantes, valem.
Que legitimidade tem o Parlamento, se os dois maiores Partidos não incluíram a eutanásia nas campanhas eleitorais? Poderá ter legitimidade legal, mas não tem legitimidade ética, moral. E seria uma vergonha se, num regime democrático, a Assembleia da República ousasse ignorar o pedido de referendo sobre a questão com 95.287 assinaturas.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 3 OUT 2020