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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

PARECER, APARECER, TER, PODER... E DEPOIS?

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      Afinal, não há padrões absolutos de beleza: ser bonito é relativo. Hoje, procura-se a elegância até aos limites da anorexia. Mas nalgumas aldeias do interior ainda hoje os mais antigos dirão a uma pessoa jovem mais corpulenta vinda da cidade: “Como está bonita!”... Segundo o dito: gordura é formosura. É que, tradicionalmente, não era necessário cultivar a elegância, pois a carestia, o trabalho braçal duro e a miséria encarregavam-se de impor a magreza por vezes esquelética. Cá está: os gordos, em princípio, eram ricos. Nesses tempos também, a maioria das pessoas trabalhava nos campos, de sol a sol: a pele era fatalmente tisnada. Por isso mesmo, a beleza andava associada à pele branca. Ficaram famosos os banhos com leite de burra na antiga Roma. A alvura da pele significava ser senhor, estar em casa, não precisar de trabalhar no campo...

       Depois, com a revolução industrial, a maioria começou a trabalhar em grandes fábricas e escritórios, longe do sol. Por isso, dominava a pele branca. A pele bronzeada tinha então agora a ver com férias e a possibilidade de viajar...

       Na base destes comportamentos e critérios está o impulso de marcar a diferença e impor-se aos outros. É daí que surge também a importância dada à marca do carro, ao tipo de cartão de crédito, ao modelo do telemóvel... Mesmo as crianças exigem vestir segundo a marca a, b ou c, a ponto de um miúdo se ter virado para os pais que não podiam comprar roupa de marca: era preferível ter tido outros pais mais ricos...

      Também já não se escolhe o local de férias tanto em função do descanso, da tranquilidade, do repouso, da cultura, como da publicidade, da moda, do poder contar aos amigos, aos vizinhos, aos colegas de trabalho, deslumbrando-os..., a ponto de a oração mais frequente antes de se partir para férias ser: Senhor, que, quando regressarmos, encontremos alguém disponível para contemplar as fotografias e os vídeos que fizermos!...

       É preciso parecer e aparecer. Corremos até o risco de nos afundarmos numa civilização do aparecer e do parecer, que já não procura o sentido da autenticidade da existência...

       A filosofia nasceu da necessidade constitutiva do ser humano de distinguir entre a opinião e a verdade, entre o parecer e o ser, entre a aparência e a realidade. O que é a realidade verdadeira? Também a religião só se compreende na medida em que se confronta não com aparências, mas com a realidade e a verdade. Por exemplo, os místicos sempre perceberam que a realidade mais profunda, eterna, não se confunde de modo nenhum com o banal, a superfície das coisas: o visível é a visibilidade do invisível e é lá no invisível que se encontra o verdadeiro, o bem, o belo, a eternidade e o que salva. Por isso, Jesus preveniu: “De que vale ao Homem ganhar o mundo inteiro, se vier a perder a sua vida?”. Como disse também recentemente numa entrevista à “Visão” o best-seller Yuval Noah Harari, somos indomáveis, porque “por um lado somos mais poderosos do que qualquer outro animal do mundo, por outro, isso também tem que ver com o facto de sermos insaciáveis. Não interessa o que tenhamos conseguido alcançar, queremos sempre mais. Se temos um milhão, queremos dois milhões, se temos dois milhões, queremos dez milhões. O mesmo em relação ao poder: nunca estamos satisfeitos com o que temos porque, na verdade, não sabemos como traduzir esse poder em felicidade. Somos milhares de vezes mais poderosos do que éramos na Idade da Pedra, mas não somos significativamente mais felizes. Se não aprendermos a parar, a desacelerar, o mais provável é que nos destruamos a nós, e a todo o ecossistema.”

       Hoje desconfia-se da razão e da possibilidade de alcançar a verdade: estamos, mais uma vez, sob o comando da banalidade e a ameaça do relativismo céptico e da retórica sofística, em que o decisivo já não é a verdade e o bem, mas o êxito a qualquer preço, a conquista a todo o custo do dinheiro, do prazer, da fama, a procura desenfreada do poder, da notoriedade, do triunfo social e mediático: quem não aparece não existe. E não se teoriza até sobre a pós-verdade?  Ah! E as redes sociais!... e o constante dedar... E, assim, como encontrar a verdade? Na vertigem do dedar, um diz uma coisa, outro diz o seu contrário, o terceiro nem uma coisa nem outra... Mais: hoje estão aí, cada vez mais gigantescos, o poder e a ameaça da Inteligência Artificial. De facto, numa conversa online, já começa a não se poder ter a certeza de que do outro lado se encontra outro ser humano ou um bot. Os perigos são tantos e de tal grandeza que investigadores, incluindo criadores eles próprios da Inteligência Artificial, estão a chamar a atenção para o perigo do fim da civilização humana, pedindo, por isso, uma moratória nos avanços desta tecnologia.  O linguista Noam Chomsky advertiu: “É o ataque mais radical” ao pensamento, à inteligência. De novo Harari:  a IA “é uma bomba atómica para a política”, que pode acabar com a democracia. O Papa Francisco, representantes do G7 e a União Europeia esperam encontrar, antes que seja tarde, acordos para travar perigos e ameaças incontroláveis.

      Pelo caminho da vulgaridade, da falta da busca da verdade, com a ameaça nuclear e ecológica, pondo fim ao humanismo, o que vai restar?  Afinal, o que queremos? Não precisaremos de parar, reflectir, para podermos ir ao encontro do essencial? E onde se encontrará o essencial?

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 10 de junho de 2023

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

 

72. A CULTURA E O QUESTIONAMENTO PERMANENTE DA REALIDADE


É um lugar comum questionar como foi possível o nazismo florir num país como a Alemanha, pátria de filósofos, compositores, escritores, cientistas, intelectuais, artistas e pensadores de vanguarda, num território tido como culto e exemplo, à data, de uma nação civilizada.
Sabemos bem, a começar pela História, que nem a educação, o saber ou o conhecimento intelectual nos oferecem qualquer garantia de um juízo moral ou de uma ética melhor.
A desumana tirania das ideias sempre teve o apoio de intelectuais e de pessoas da cultura.    
Ditadores e regimes totalitários sempre tiveram muitos admiradores e simpatizantes intelectuais e das artes em geral.
Alguns desses mentores legitimaram e institucionalizaram a violência terrorista.
Legitimaram e fomentaram a prática de crimes contra a humanidade.
O mundo pode ser modificado pela força do intelecto, para o bem e para o mal.
Mas é a cultura que nos permite distinguir entre a barbárie e a civilização.  
Foi a cultura que nos permitiu compreender a distinguir a barbárie dos totalitarismos.
Só uma cultura enquanto questionamento constante e permanente da realidade nos liberta.
Só uma cultura essencialmente crítica permite distinguir tiranos, ideias, doutrinas e regimes totalitários da democracia baseada no espírito crítico.  
É esse espírito e sentido crítico   que nos pode libertar da ameaça de uma ditadura tecnológica, num mundo de cidadãos convertidos em autómatos, ou numa mera cultura de entretenimento e diversão.     
Se é verdade que graças à força das ideias se pode criar um mundo melhor, pondo de lado despotismos e tiranias em desfavor da pessoa e dos direitos humanos, também é verdade que o desaparecimento da cultura enquanto questionamento permanente da realidade é o melhor amigo de utopias fraudulentas sempre prontas a suprimir a verdade pela causa da pretensa verdade maior que defendem.  

30.04.2021
Joaquim Miguel de Morgado Patrício

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

Vasarely

 

14. A ANTECIPAÇÃO MENTAL DA PROCURA E A SUA REALIDADE

 

Não se encontra o que se procura, mas o que se encontra.

 

Não encontro o que procuro, mas o que encontro.

 

Não encontramos o que procuramos, mas o que encontramos.

 

Mas é usual dizer que só encontramos o que procuramos.


Qual a relação entre a antecipação mental da procura e a sua realidade?

 

Entre a imaginação e a realidade?

 

Entre a realidade imaginada, mental, espiritual e a realidade física, material, real?

 

Entre o modo como imaginamos uma pessoa e o que acontece quando a conhecemos na realidade?

 

Entre o modo como imaginamos um lugar e o que sucede quando lá chegamos?

 

Entre o modo como imaginamos uma coisa e quando temos contacto com ela?


A realidade é diferente daquilo que antecipamos mentalmente.

 

Não se encontra aquilo que se procura, mas o que se encontra.

 

O que pressupõe estarmos abertos, totalmente disponíveis para a descoberta, a viagem, o desconhecido, o desconhecido conhecido, o conhecido desconhecido.

 

A antecipação da realidade tem uma linguagem própria.

 

A antecipação mental do real tenta suprir a realidade factual, se possível através da fotografia, vídeo, gravuras e impressos sobre coisas, pessoas e viagens, locais de chegada, partida e de passagem, tentando ser uma cópia fiel da realidade.

 

Ou ser como um sonho, se anteciparmos algo que nunca imaginámos e sem auxiliares como a fotografia, filme, ou similares, como numa viagem de total libertação dos sentidos, num imaginário total e libertador, como quem lê um livro exótico ou extravagante e antecipa e ficciona mentalmente algo que nunca viveu ou imaginou.

 

Esta antecipação mental da procura que não corresponde com a sua realidade, quando confrontados com esta, é um lado da vida, da nossa realidade humana.

 

É parte integrante do lado espiritual, imaterial, impalpável, que não se fotografa, nem filma, é uma liberdade de expressão e de pensamento universal, pessoal e intransmissível, libertária e que liberta.

 

Faz parte do lado mais importante da nossa vida.

 

04.09.2018

Joaquim Miguel de Morgado Patrício