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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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PALAVRAS PARA MIM. 2

  

 

Continuo com palavras que ao longo da vida me foram dirigidas e me marcaram positivamente.

Do teólogo Andrés Torres Queiruga. Para o crente, é a própria realidade, comum a todos, que, mediante certas características, como a contingência radical, a consciência da finitude, concretamente frente à morte e ao impulso radical  para transcendê-la, a exigência de Sentido último, se mostra implicando uma Presença como seu Fundamento primeiro e Sentido último. Assim, na estrutura íntima do processo religioso, “não se interpreta o mundo de uma determinada maneira porque se é crente ou ateu, mas é-se crente ou ateu porque a fé ou a não crença aparecem ao crente e ao ateu, respectivamente, como a melhor maneira de interpretar o mundo comum.”

Do filósofo Miguel Baptista Pereira. “Na leccionação da Antropologia Filosófica, nunca se esqueça da centralidade do homo dolens (o Homem sofredor)”.

Do sociólogo e político Jean Ziegler. “Actualmente, há o tabu da morte. Não se fala dela. Chamamos aos nossos mortos os defuntos (de-functi: os que deixaram de funcionar). Ora, o que dá à vida a sua individualidade, a sua especificidade irredutível é a consciência clara da finitude. Se não fôssemos mortais, o tempo que passa  não teria esse valor extraordinário, único, e não poderíamos construir um destino individual, uma biografia, uma história. É a morte que funda a liberdade,  uma história individual, é a morte que faz que você seja você e eu seja eu e que cada instante que passa só nos pertença a nós de modo totalmente específico, único”.

Do historiador Philippe Ariès. Ficou conhecido também pela sua história das atitudes face à morte — a do nosso tempo é o tabu. À minha pergunta sobre se acreditava na imortalidade, respondeu: “Sim, sem dúvida nenhuma. Aliás, nisso, não há nada de original, pois todos os homens acreditaram sempre que haveria qualquer coisa após a morte. A ideia de que com a morte acaba tudo é completamente recente.”. Como desejaria morrer? Ele: “É provável que não tenha a escolha. Mas gostaria de morrer como morreram os meus antepassados, os meus avós, que morreram como se morria outrora, dizendo adeus, pondo em ordem os assuntos do aquém e os da alma.”

De uma médica. “Sabe? Sou crente e gostava muito, muito, de poder comungar. Mas, em criança, falaram-me de tal modo da presença real de Jesus na Eucaristia, do corpo, da carne, do sangue, que ainda hoje se me revolta o estômago.”

Do filósofo Ernst Bloch. “O cristianismo em grande parte venceu graças à proclamação de Cristo: ‘Eu sou a Ressurreição e a Vida’.” ”É melhor desaparecer completamente do que ir para o inferno. Eu espanto-me como é que na Idade Média podiam acreditar na vida após a morte sabendo que era certa a alternativa: o purgatório era quase certo e o inferno muito provável. Seria melhor o nada ao inferno E todos no inferno estariam de acordo comigo. E também os do purgatório, que não passa de um inferno temporário.”

Do padre e psicanalista Marc Oraison. “É-me radicalmente impossível conceber-me como não sendo.” “Eu creio que, para se ser verdadeiramente crente, para se ter verdadeiramente acesso à fé, é preciso começar por ser ‘ateu’, isto é, é preciso destruir todas as representações imaginárias, todas as falsas imagens de Deus. Isto não impede, pelo contrário, vai desembocar na questão do mistério. A questão do mistério persiste. Portanto, poder-se-ia dizer que a démarche psicanalítica destrói todas as imagens de Deus, porque são construções humanas. Há uma frase de Lacan que me fez reflectir: ‘Os teólogos não crêem em Deus, pois falam dele”. “Cristo e a fé em Cristo o que fazem essencialmente é libertar-nos da contradição do tempo. A normalidade é poder amar. Ora, o amor está continuamente ameaçado pela morte. O nosso esforço de amor termina sempre num fracasso no tempo. É a fé que nos dá a certeza de que o amor, apesar de tudo, termina na realização e na plenitude. Eu tenho necessidade desse sentido. É uma realização e não uma compensação. É o Sentido último. E trata-se de uma plenitude do que faço e no que faço.” “Eu sou padre por causa da morte e por causa da vida. Sou padre para pôr no tempo a superação do tempo e da morte: a Ressurreição.” “O celibato pode ter um sentido, mas enquanto obrigatório não pode ser, é idiota.”

Do teólogo Kans Küng. “Quando na Sagrada Escritura se fala de Deus (em grego, hó Theós, o Deus pura e simplesmente), pensa-se sempre no Pai. Cristo é designado como o Filho de Deus. Filho de Deus é a expressão correcta para ele.” “Face à morte, há uma alternativa: Tudo vai parar ao nada ou o Homem, em vez de morrer para o nada, morre para a Realidade última, que é também a Realidade primeiríssima? A minha resposta é uma confiança radical racional em Deus, Fundamento e Sentido último. Eu confio e e é na medida em que me confio que vejo que se trata de uma resposta plena de sentido e que a vida tem sentido.”

De muitas pessoas. Quando, por causa da pandemia, fiquei em isolamento, várias pessoas souberam e escreveram-me ou telefonaram a desejar melhoras. Sobretudo, a perguntar: “Precisa(s) de alguma coisa? Já sabe: se precisar, diga. Estou (estamos aqui). É com gosto”. E eu senti verdadeiramente que a amizade está nesta pergunta: “Precisa(s) de alguma coisa?”. Pergunta central também para o cristão: “Precisa de alguma coisa? De ordem material, de ordem espiritual?” E responder com o coração e com actos.

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 5 de março de 2022

PALAVRAS PARA MIM. 1

Jean Guitton.jpeg

 

Ao longo da minha vida muitas palavras me foram dirigidas. Mas há aquelas que me marcaram. Positivamente. Ficam aí algumas.

Do meu pai. “Só é livre quem não deve nada a ninguém. Quem não tem de andar sempre com o chapéu na mão”.

Da minha mãe. “Quem é não precisa de parecer”. “Olha aquela folha de trevo, aquela pereira; ah! aquela pêra. Que beleza!”. “Queres saber? Andar e ler.” “Neste mundo, não há alegria perfeita.” Quando me escrevia, terminava assim: “Que o Divino Espírito Santo te ilumine!”

Do meu professor da escola primária. “Para a frente! Sempre para a frente, sem medo! Para trás m.ja a burra.”

Da minha irmã. “Como é que a gente não enlouquece?!”, disse-me, agarrada a mim, quando o caixão com o cadáver da nossa mãe desceu à terra.

De um grande amigo alemão, Anton Kaufmann. Muito jovem fora prisioneiro de guerra dos americanos e chegou a estar encostado à parede, como se fosse para ser fuzilado. Perguntei-lhe em que pensou naqueles instantes. “Pedi perdão a Deus e lembrei-me da minha mãe”. Ele era uma força da natureza. Da última vez que o vi, estava num lar, alquebrado. “Adeus, Anselmo. A vida passa tão depressa...”.

De outro grande amigo alemão, Anton Niklas, empresário de sucesso. “Eu trabalho, eu invisto como se tivesse de viver sempre aqui, neste mundo. Mas estou preparado para morrer a qualquer momento”.

De um jovem drogado, que arrumava carros e a quem eu, pela manhã, dera uma moeda. De regresso, à noite, pergunto-lhe: “Então, o seu dia, senhor João?!” E ele, sem caber nele de alegria: “O quê? Ainda se lembra do meu nome? Nunca mais precisa de me dar nada. Ai do filho da p.ta que tente estragar-lhe o carro!”

Do teólogo Karl Rahner. Ele ia ao aniversário  de um  sobrinho pequenito e tinha arranjado uma garrafa com uma moeda de um marco dentro: “Está a ver a alegria e a curiosidade do miúdo, a perguntar como é que a moeda entrou lá dentro?!” Também:  “Já alguma vez um padre ou alguém com responsabilidades especiais se confessou a si do pecado da ignorância culpada, pecado que pode ser grave e até mortal?”

De uma jovem que casei, feliz, três filhos, ainda pequenos, Francisca Espregueira Mendes. “Vivo como gostaria de ser recordada depois da morte. Gostava que me lembrassem como luz, acolhedora, leve e gentil.”

Do médico José Madureira. “Quando vi o meu neto recém-nascido, ajoelhei-me. O milagre da vida!”

De Eduardo Lourenço. “Todas as pessoas rezam.”

Do teólogo Edward Schillebeeckx. “Deus não é uma necessidade. Deus é gratuito. Como uma rosa que se dá a uma amiga.”

Do historiador Pierre Chaunu. “Há três palavras que não existem em mais nenhuma língua e em mais nenhuma cultura. Bereshit Bara Elohim, as três primeiras palavras da Bíblia (No princípio criou Deus). Repare, isto é fabuloso: há uma relação com o Deus criador, que é fonte de todas as coisas; Ele está imerso no mundo, mas não se confunde com o mundo. Em última análise, isso permite a História, porque dá a autonomia à criatura e, por outro lado, dá o sentido. É evidente que nenhuma sociedade pode viver sem o sentido. Aliás, nós neste momento afundamo-nos, morremos, precisamente pela falta de sentido. Quando se perde o sentido, morre-se colectiva e individualmente. Dito de outro modo, uma sociedade não pode viver, se não tiver qualquer coisa a dizer a respeito da morte, que é própria do fenómeno humano. Uma sociedade não pode viver, se não tiver  nada a dizer sobre o sentido global da existência, da História.” “O cristianismo é Bereshit Bara Elohim, é o Deus transcendente que encarna em Jesus Cristo e que conduz, através da morte, o tempo em que estamos para a Eternidade.”

Do teólogo M. Flick, meu professor na Universidade Gregoriana, 1968-1969. Conversei bastante com ele, perguntando-lhe uma vez porque é que não ia tão longe nas aulas como quando falava comigo. Como resposta, levou-me ao terraço, apontou para a Cúpula de São Pedro: “O que é aquilo além?”. “São Pedro”, respondi. “Não se esqueça: do Vaticano vê-se a Gregoriana!”

De Jean-Marie Domenach, Director da revista “Esprit”. “A partir do momento em que uma doutrina se confunde com o Poder, a partir do momento em que uma religião se confunde com o Poder, temos fatalmente fenómenos de clericalismo, fenómenos de terror, quer se trate da Inquisição ou do estalinismo. É necessário que aquele que crê deter a verdade não possua ao mesmo tempo todos os poderes do Estado. Os sábios (savants) e os padres não podem ter ao mesmo tempo a polícia à sua disposição.” Mais: “O clericalismo, digo-o, tenho-o dito e repetido, é uma coisa odiosa.”

Do filósofo Maurice Clavel. “No fundo, tudo está aqui: todo o pensamento totalizante é forçosamente totalitário.” Sobre a sua conversão ao cristianismo: “Repare, eu fui convertido, eu não me converti. Fui convertido, na passiva. Nós somos apanhados por dentro.”

Do filósofo Jean Guitton. “O problema que eu me pus não foi tanto o do tempo bergsoniano - a duração -, mas antes, uma vez que sempre estive animado pela fé cristã, católica, o problema da relação do tempo com a eternidade, com o que está para lá do tempo, embora sempre presente no tempo: a eternidade, o mistério do tempo enquanto a eternidade habita já no tempo. Visando mostrar que no interior do tempo que passa há um elemento intemporal que não passa.” “Com a bomba atómica, a Humanidade tomou consciência de que é mortal, não apenas os indivíduos.”

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 26 de fevereiro de 2022