PALAVRAS PARA MIM. 2
Continuo com palavras que ao longo da vida me foram dirigidas e me marcaram positivamente.
Do teólogo Andrés Torres Queiruga. Para o crente, é a própria realidade, comum a todos, que, mediante certas características, como a contingência radical, a consciência da finitude, concretamente frente à morte e ao impulso radical para transcendê-la, a exigência de Sentido último, se mostra implicando uma Presença como seu Fundamento primeiro e Sentido último. Assim, na estrutura íntima do processo religioso, “não se interpreta o mundo de uma determinada maneira porque se é crente ou ateu, mas é-se crente ou ateu porque a fé ou a não crença aparecem ao crente e ao ateu, respectivamente, como a melhor maneira de interpretar o mundo comum.”
Do filósofo Miguel Baptista Pereira. “Na leccionação da Antropologia Filosófica, nunca se esqueça da centralidade do homo dolens (o Homem sofredor)”.
Do sociólogo e político Jean Ziegler. “Actualmente, há o tabu da morte. Não se fala dela. Chamamos aos nossos mortos os defuntos (de-functi: os que deixaram de funcionar). Ora, o que dá à vida a sua individualidade, a sua especificidade irredutível é a consciência clara da finitude. Se não fôssemos mortais, o tempo que passa não teria esse valor extraordinário, único, e não poderíamos construir um destino individual, uma biografia, uma história. É a morte que funda a liberdade, uma história individual, é a morte que faz que você seja você e eu seja eu e que cada instante que passa só nos pertença a nós de modo totalmente específico, único”.
Do historiador Philippe Ariès. Ficou conhecido também pela sua história das atitudes face à morte — a do nosso tempo é o tabu. À minha pergunta sobre se acreditava na imortalidade, respondeu: “Sim, sem dúvida nenhuma. Aliás, nisso, não há nada de original, pois todos os homens acreditaram sempre que haveria qualquer coisa após a morte. A ideia de que com a morte acaba tudo é completamente recente.”. Como desejaria morrer? Ele: “É provável que não tenha a escolha. Mas gostaria de morrer como morreram os meus antepassados, os meus avós, que morreram como se morria outrora, dizendo adeus, pondo em ordem os assuntos do aquém e os da alma.”
De uma médica. “Sabe? Sou crente e gostava muito, muito, de poder comungar. Mas, em criança, falaram-me de tal modo da presença real de Jesus na Eucaristia, do corpo, da carne, do sangue, que ainda hoje se me revolta o estômago.”
Do filósofo Ernst Bloch. “O cristianismo em grande parte venceu graças à proclamação de Cristo: ‘Eu sou a Ressurreição e a Vida’.” ”É melhor desaparecer completamente do que ir para o inferno. Eu espanto-me como é que na Idade Média podiam acreditar na vida após a morte sabendo que era certa a alternativa: o purgatório era quase certo e o inferno muito provável. Seria melhor o nada ao inferno E todos no inferno estariam de acordo comigo. E também os do purgatório, que não passa de um inferno temporário.”
Do padre e psicanalista Marc Oraison. “É-me radicalmente impossível conceber-me como não sendo.” “Eu creio que, para se ser verdadeiramente crente, para se ter verdadeiramente acesso à fé, é preciso começar por ser ‘ateu’, isto é, é preciso destruir todas as representações imaginárias, todas as falsas imagens de Deus. Isto não impede, pelo contrário, vai desembocar na questão do mistério. A questão do mistério persiste. Portanto, poder-se-ia dizer que a démarche psicanalítica destrói todas as imagens de Deus, porque são construções humanas. Há uma frase de Lacan que me fez reflectir: ‘Os teólogos não crêem em Deus, pois falam dele”. “Cristo e a fé em Cristo o que fazem essencialmente é libertar-nos da contradição do tempo. A normalidade é poder amar. Ora, o amor está continuamente ameaçado pela morte. O nosso esforço de amor termina sempre num fracasso no tempo. É a fé que nos dá a certeza de que o amor, apesar de tudo, termina na realização e na plenitude. Eu tenho necessidade desse sentido. É uma realização e não uma compensação. É o Sentido último. E trata-se de uma plenitude do que faço e no que faço.” “Eu sou padre por causa da morte e por causa da vida. Sou padre para pôr no tempo a superação do tempo e da morte: a Ressurreição.” “O celibato pode ter um sentido, mas enquanto obrigatório não pode ser, é idiota.”
Do teólogo Kans Küng. “Quando na Sagrada Escritura se fala de Deus (em grego, hó Theós, o Deus pura e simplesmente), pensa-se sempre no Pai. Cristo é designado como o Filho de Deus. Filho de Deus é a expressão correcta para ele.” “Face à morte, há uma alternativa: Tudo vai parar ao nada ou o Homem, em vez de morrer para o nada, morre para a Realidade última, que é também a Realidade primeiríssima? A minha resposta é uma confiança radical racional em Deus, Fundamento e Sentido último. Eu confio e e é na medida em que me confio que vejo que se trata de uma resposta plena de sentido e que a vida tem sentido.”
De muitas pessoas. Quando, por causa da pandemia, fiquei em isolamento, várias pessoas souberam e escreveram-me ou telefonaram a desejar melhoras. Sobretudo, a perguntar: “Precisa(s) de alguma coisa? Já sabe: se precisar, diga. Estou (estamos aqui). É com gosto”. E eu senti verdadeiramente que a amizade está nesta pergunta: “Precisa(s) de alguma coisa?”. Pergunta central também para o cristão: “Precisa de alguma coisa? De ordem material, de ordem espiritual?” E responder com o coração e com actos.
Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN | 5 de março de 2022