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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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BENTO XVI: O PAPA QUE ABDICOU

  

 
Tive uma vez um breve encontro com ele em Roma. A impressão que me ficou: um pessoa agradável, afável, reservada e tímida. E pude aperceber-me também da importância decisiva que tinha para ele o que se pode chamar a “pastoral da inteligência”, isto é, a reflexão sobre o diálogo entre a razão e a fé.


Joseph Ratzinger também teve o seu momento de rebeldia e de progressismo, no Concílio Vaticano II, como aqui expliquei em múltiplas crónicas,  concretamente em 2020, em cinco textos sobre “Bento XVI. Uma vida”. Não se deve esquecer o que, imagino, foi para ele, mais tarde, um escândalo: defendeu a possibilidade de pôr fim à lei do celibato obrigatório e ordenar como padres homens casados exemplares bem como de recasados poderem aceder à comunhão. Chegou a dizer nas aulas, em Tubinga: “em Roma, como sabem, não se faz boa Teologia”.


Durou pouco tempo este posicionamento. A sua orientação teológica agostiniana — Santo Agostinho não tinha em muito  boa consideração o mundo — inclinava-o mais para uma visão conservadora, místico-espiritual da Igreja. A mudança teve como ponto decisivo o medo dos excessos de 1968, com as transformações que então se puseram em marcha nos domínios da concepção da autoridade, da sexualidade, do radicalismo ateu de estudantes de Teologia, da “ditadura do relativismo”...


Reconhecido pela sua inteligência brilhante e uma rara cultura — dialogou com grandes intelectuais ateus e agnósticos, incluindo o filósofo Jürgen Habermas —, foi mais um intelectual e um professor do que um pastor, gestor. As circunstâncias fizeram com que ele, essa figura afável, tímida, honesta e  íntegra deixasse a vida académica, se tornasse arcebispo de Munique, seguisse para Roma como “inquisidor”, condenando muitas dezenas de teólogos, o seu maior pecado, participasse no retrocesso em relação ao Concílio, a ponto de o seu colega como perito conciliar, talvez o maior teólogo católico do século XX, Karl Rahner, terminar os seus dias com a mágoa da entrada no “inverno da Igreja”.  Não creio que o desejasse, mas acabou por ser eleito Papa — aquando da eleição, lembrou-se, disse-o ele, da guilhotina.


Não era um teólogo inovador, mas deixa uma obra teológica importante, nomeadamente, três encíclicas: a primeira, para dizer que a verdadeira “definição” de Deus é que é Amor; a segunda, para convocar os cristãos e todos os homens à esperança; a terceira é sobre “a caridade (o amor) na verdade”. Nela, condena as posições neoliberais, cujo único objectivo é o lucro;  reafirma a doutrina essencial de que a economia e o desenvolvimento só são verdadeiros se estiverem ao serviço do Homem todo e de todos os homens; que, em ordem ao seu correcto funcionamento, a economia precisa da ética, “uma ética amiga da pessoa”; que, para conseguir o governo da economia mundial, o desarmamento, a segurança alimentar e a paz, a salvaguarda do meio ambiente e a regulação dos fluxos migratórios, “urge a presença de uma verdadeira Autoridade política mundial, que deverá ser reconhecida por todos, gozar de poder efectivo para garantir a cada um a segurança, a observância da justiça, o respeito dos direitos”.


Ideia nuclear foi a do diálogo entre a fé e a razão. A fé, sem a razão, é cega e intolerante; a razão, sem a abertura à transcendência, pode enlouquecer. No cristianismo, acolhe-se a fé, dando lugar à descoberta do “Deus que é Razão criadora e ao mesmo tempo Razão-amor”. Aí está o vínculo indissolúvel entre Razão, Verdade e Bem.


Na Sexta-Feira Santa de 2005, ainda cardeal, declarou: “quanta porcaria na Igreja! A traição dos discípulos fere mais Jesus”. Referia-se certamente ao escândalo da pedofilia — removeu cerca de 400  padres culpados de abusos contra menores —, à figura sinistra do padre Maciel, fundador dos Legionários de Cristo, ao que se passava na Cúria. Quando assumiu funções como Papa, foi exemplar, pondo Maciel fora da vida pública, pedindo perdão às vítimas da pedofilia e tomando medidas drásticas e consistentes para que os crimes não se repitam.


Não conseguiu reformar a Cúria nem pôr termo às intrigas, ao carreirismo, às lutas pelo poder, aos escândalos, desde a corrupção à lavagem de dinheiro no Banco do Vaticano, ao Vatileaks. Sem forças “no corpo e no espírito”, abdicou, “em consciência e plena liberdade”, para que outro lhe sucedesse.


Foi talvez a lição maior de Ratzinger enquanto Papa. Houve quem o criticasse, também dentro da Igreja e pensando em João Paulo II: que não se desce da Cruz e que dessacralizou o papado. Mas, afinal, o Papa é mais do que um homem? Não se trata tão-só de um cristão que leva consigo a específica missão gigantesca de ser sinal e promotor de unidade entre os cristãos e a Humanidade?


Este foi o seu testamento: abandonou pacificamente o poder. Porque na Igreja, como aliás no mundo em geral, é preciso escolher entre o poder como dominação e a força do serviço. O Deus cristão não se revela como Poder-Dominação, mas Força Infinita de criar, no Amor. Bento XVI leu e recomendou que todos os Papas lessem a famosa carta de São Bernardo ao Papa Eugénio III: “Não pareces um sucessor de Pedro, mas de Constantino.”.


Retirou-se para o Mosteiro Mater Dei, no Vaticano, afirmando sempre, contra alguns cardeais opositores, que agora o Papa era Francisco, que na homilia do funeral, se despediu, citando-o: “Ser  pastor quer dizer amar, e amar quer dizer também estar dispostos a sofrer.” E agora? (continua).

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 14 de janeiro de 2023

EVANGELHOS DA INFÂNCIA: VERDADE HISTÓRICA E VERDADE TEOLÓGICA

  


Não há figura mais estudada do que Jesus Cristo e não há hoje nenhum historiador sério que ponha em causa a sua existência histórica.


Depois, é preciso saber que a história se lê de trás para a frente; a partir do princípio, evidentemente, mas tem sobretudo de ser lida do fim para o princípio. Portanto, com a história e a razão hermenêutica. No caso de Jesus e do cristianismo, essa leitura é essencial, para se não cair em alçapões mortais.


Os Evangelhos escrevem sobre realidade histórica, mas foram escritos por quem, à luz do fim, já acreditava que Jesus é, na confissão de São Pedro, “o Filho do Deus vivo”. Concretamente no que se refere aos Evangelhos da infância, é necessário ter em atenção a sua significatividade mais do que a historicidade. De facto, eles são construções teológicas, colocando no princípio a revelação do fim: Jesus é o Messias. Se é o Messias, nele realizam-se as profecias e as promessas de Deus. Assim:


1. O que é o Natal? É “um novo começo”, como bem viu o famoso teólogo Hans Küng, com quem falei várias vezes. Como se escreve no Evangelho segundo São João, “No princípio era o Logos (a Palavra) e o Logos (a Palavra) era Deus” — repare-se que não se diz que é ho theós, o Deus em si mesmo, mas theós, sem artigo, Deus, divino: “a Palavra é divina”. “E a Palavra fez-se carne”. Assim, Jesus é Deus presente, a revelação, a manifestação visível do Deus invisível: Deus fez-se humano, história, neste homem concreto que é Jesus de Nazaré.


Tive o privilégio de ter tido como professor o maior teólogo católico do século XX, Karl Rahner, que escreveu: “Quando dizemos ‘é Natal’, estamos a dizer: ‘Deus disse ao mundo a sua palavra última, a sua mais profunda e bela palavra numa Palavra feita carne’. E esta Palavra significa: amo-vos, a ti, mundo, e a vós, seres humanos.”


2. Como foi o seu nascimento? Maria é virgem? Jesus teve irmãos? Foi também a Karl Rahner que ouvi pela primeira vez que os Evangelhos e a teologia não são tratados de anatomia.
Diz o Evangelho segundo São Lucas, referindo a admiração dos seus conterrâneos, quando Jesus começou a pregar: “Donde é que isto lhe vem e que sabedoria é esta que lhe foi dada? Não é ele o carpinteiro, o filho de Maria e irmão de Tiago, de José, de Judas e de Simão? E as suas irmãs não estão aqui entre nós? E isto parecia-lhes escandaloso.”


O jesuíta, filósofo e teólogo, Juan Masiá, disse, neste contexto, o essencial: Maria é bem- aventurada “ao conceber com José a Jesus por cooperação com o Espírito Santo. Agraciada ao dar à luz Jesus e os seus irmãos e irmãs. Salve!, Maria e José, agraciados e abençoados, com todas as mães e pais que recebem como um dom do Espírito os filhos que procriam e, ao gerá-los, consumam a virgindade simbólica que se realiza na maternidade e na paternidade. Porque não é incompatível a união dos progenitores com a acção do Espírito: a criatura nasce pela união dos seus progenitores e pela graça, a força, do Espírito Santo”. Acrescenta: “Toda a criatura nasce em graça original. Maria não é uma excepção. O chamado pecado original não é originário nem mancha. O seu nome exacto é o pecado do mundo. A criatura, que nasce sem nenhuma mancha, vem à luz num mundo no qual já é vasta uma rede de pecado. Como quem entra numa sala de fumadores e se contamina com o fumo”.


3. Quando nasceu? Ninguém sabe exactamente, mas terá sido entre o ano 6 e o ano 4 a.C. Parece paradoxal, mas isso deve-se a um erro do monge Dionísio, o Exíguo, quando no século VI quis estabelecer precisamente a data do nascimento de Jesus.
Evidentemente, não se pode dizer que nasceu no dia 25 de Dezembro. Esse dia do Natal de Jesus foi fixado no século III em substituição da festa pagã do Sol Invicto, porque Jesus é que é o verdadeiro Sol, a Luz invencível.


4. Onde nasceu? É quase certo que Jesus nasceu em Nazaré, por isso lhe chamavam o Nazareno. Mas, se ele, segundo a fé, é o Messias, então ele é o verdadeiro rei, da linhagem de David, que era de Belém. E puseram-no a nascer em Belém.


5. Os pastores foram os primeiros avisados, porque Deus manifestou a sua salvação a todos, a começar pelos que constituíam a classe baixa dos pequenos e pobres e viviam à margem da prática religiosa.


6. E os magos vieram do Oriente? E quantos eram? E viram uma estrela sobre a manjedoura? Será inútil procurar nessa data algum sinal especial no céu, porque, mais uma vez, os Evangelhos também não são nenhum tratado de astronomia. Eles vêm do Oriente, porque “ex Oriente lux” e Jesus é a verdadeira luz. E o salvador veio para todos, também para os pagãos. E Herodes não precisava de preocupar-se com a notícia, porque Jesus é rei, mas o seu reino implica um reinado de serviço e não de domínio.


7. E, claro, a chamada fuga para o Egipto não aconteceu, é apenas uma metáfora para dizer que Jesus é que é o verdadeiro novo Moisés, porque é o Libertador definitivo de toda a escravidão e opressão, incluindo a libertação da morte. Como Jesus não morreu para o nada, mas para a plenitude da vida em Deus, com a fé nele nasceu para todos a esperança da vida plena e definitiva em Deus.


8. Natal também significa família. Permita-se-me, neste contexto, que manifeste a minha estranheza por não haver em Portugal um Ministério da Família. Na Alemanha, há muito que existe. Ursula von der Leyen, por exemplo, já foi Ministra da Família.


Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 7 de janeiro de 2023

NATAL: O EMMANUEL

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       Há já alguns anos, o meu bom e ilustre amigo, o eurodeputado Paulo Rangel, e eu tivemos uma conversa muito agradável para mim sobre (imagine-se) Deus e a tentativa de dizê-lo e nos relacionarmos com Ele. Dela resultou um texto de Paulo Rangel, com o significativo título “Deus é Aquele que está”. Numa longa entrevista recente a Inês Maria Meneses, voltou ao tema, confessando a sua fé no Deus de Jesus, o Emmanuel, o “Deus connosco”. Para ele, Deus é “Aquele que está”, Deus não é “esse ser distante e estático” construído a partir da ontologia grega, o Deus que é, “mas antes o ser próximo e interactivo que está e estará connosco, Aquele que acompanha, Aquele que não abandona. Deus é Aquele que está, o Emmanuel.”

      Concordando plenamente com o amigo Paulo Rangel, volto, já em pleno Natal, ao tema, essencial nesta data. De facto, corre-se permanentemente o perigo de esquecer o determinante, já não referindo sequer a ameaça de se ficar amarrado a um consumismo devorador e à concorrência dos presentes: tenho de dar isto e aquilo de presente, para não ficar mal; não posso esquecer este, esta, e aquele, aquela, porque no ano passado também deram…  É preciso parar e reflectir, em primeiro lugar, para se não ficar encerrado em dogmas, quando a fé cristã se dirige a uma pessoa, Jesus confessado como o Cristo (o Messias) e, através dele, a Deus que Jesus revelou como Pai e poderemos e deveremos também dizer como Mãe, com todas as consequências que daí derivam para a existência.

       O que diz o Credo cristão, símbolo da fé? “Creio em Jesus Cristo. Gerado, não criado, consubstancial ao Pai. Nasceu da Virgem Maria, padeceu sob Pôncio Pilatos, foi crucificado, ressuscitou ao terceiro dia.” Segundo a fé cristã, isto é verdade? Sim, é verdade. Mas segue-se a pergunta fundamental: o que deriva dessas afirmações para a nossa existência de homens e mulheres, cristãos ou não? O Credo é teologia dogmática, especulativa, em contexto linguístico da ontologia grega. Ora, a teologia dogmática tem que ver com doutrinas e dogmas, com uma estrutura essencialmente filosófica. Pergunta-se: os dogmas movem alguém, convertem alguém, transformam a existência para o melhor, dizem-nos verdadeiramente quem é Deus para os seres humanos e estes para Deus?

      Exemplos mais concretos, um do Antigo Testamento e outro do Novo, até para se perceber a passagem do universo hebraico em que Jesus se moveu e o universo grego no qual aparecem redigidos os Evangelhos. No capítulo 3 do livro do Êxodo aparece a manifestação de Deus na sarça ardente e Moisés dirige-se a Deus: se me perguntarem qual é o teu nome, que devo responder-lhes? E Deus: “Eu sou aquele que sou”. Dir-lhes-ás: “Eu sou” enviou-me a vós. A fórmula em hebraico: ehyeh asher ehyeh (“eu sou quem sou”, “eu sou o que sou”) é o modo de dizer que Deus está acima de todo o nome, pois é Transcendência pura, que não está à mercê dos homens, mas diz também (a ontologia hebraica é dinâmica) o que Deus faz: Eu sou aquele que está convosco na história da libertação, que vos acompanha no caminho da liberdade e da salvação. Depois, com a tradução dos Setenta, compreendeu-se este ehyeh asher ehyeh como “Eu sou aquele que é”, “Eu sou aquele que sou”, o Absoluto. Filosofando sobre Deus, a partir daqui, Santo Tomás de Aquino dirá que Deus é “Ipsum Esse Subsistens” (O próprio ser subsistente), Aquele cuja essência é a sua existência. Isto é verdade, mas significa o quê para iluminar a existência? Perdeu-se a dinâmica do Deus que está presente e acompanha a Humanidade na história da libertação salvadora.

     No Novo Testamento, João Baptista, preso, mandou os discípulos perguntar a Jesus se ele era o Messias. Jesus não afirmou nem negou. Mas deu uma resposta existencial, prática: “Ide dizer-lhe o que vistes e ouvistes: os coxos andam, os cegos vêem, a Boa Nova é anunciada, a libertação avança, a salvação está em marcha”.

     O que é que isto significa? A teologia, a partir da Bíblia, é, antes de mais, teologia narrativa e não dogmática. Quer dizer: tem uma estrutura existencial, histórica. Na teologia especulativa, o centro de interesse é o ser; na teologia narrativa, o decisivo é o que acontece. Assim, na perspectiva cristã, o essencial consiste na pergunta: O que é que acontece quando Deus está presente? Na linha dogmático-doutrinal, exige-se e até se pode dar um assentimento intelectual, subordinando-se, mas a existência continua inalterada. Corre-se então o perigo de uma “fé” em fórmulas doutrinais coisistas, petrificadas, sem qualquer transformação da vida. Ora, a vida cristã, se quiser ser verdadeiramente cristã, no discipulado de Jesus, tem de ser determinada mais pela ortopráxis do que pela ortodoxia (sem menosprezo, evidentemente, pela ortodoxia, segundo uma hermenêutica adequada): Jesus louvou a cananeia pela sua fé, que não era ortodoxa, deu como exemplo o samaritano, que não seguia a ortodoxia, mas praticava a misericórdia, e, sobretudo, leia-se o Evangelho segundo São Mateus, no capítulo 25 sobre o Juízo Final, no qual não há perguntas sobre fórmulas teóricas religiosas, mas sobre a prática: “Destes-me de comer, de beber, vestistes-me, visitastes-me na cadeia e no hospital...”.

     A Igreja só se justifica enquanto vive, transporta e entrega a todos, por palavras e obras, o Evangelho de Jesus, a sua mensagem de dignificação de todos, mensagem que mudou a História. Bom Natal!

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 24 de dezembro de 2022

AINDA É ADVENTO

  


Tive o privilégio, em Tubinga, de conversar longamente com Ernst Bloch, um dos filósofos maiores do século XX (morreu em 1977). Quando era professor na Universidade de Leipzig, na antiga República Democrática Alemã, Ernst Bloch, filósofo ateu, mas paradoxalmente, ateu religioso, na última aula antes das férias de Natal, desejava Boas Festas aos estudantes, falando-lhes do significado do Natal, e terminava assim: “É sempre Advento”.


Com esta expressão — é sempre Advento, ainda é Advento —, Ernst Bloch queria apelar para a esperança. O mundo e a humanidade continuam grávidos de ânsia e possibilidades, e a esperança está viva e há razões objectivas para esperar.


Quando se pensa nas raízes da Europa, é claro que, para quem está atento e não tem preconceitos, um dos fundamentos determinantes da Europa é o cristianismo. É necessário confessar os erros e crimes do cristianismo histórico, mas é indubitável que da compreensão dos direitos humanos e da democracia, da tomada de consciência da dignidade inviolável do ser humano, da própria ideia de pessoa, da história e do progresso, da separação da Igreja e do Estado, de tal maneira que crentes e ateus têm os mesmos direitos, faz parte inalienável a mensagem originária do cristianismo.


Ernst Bloch, embora se confessasse marxista e ateu, acabou por ter de deixar a Universidade de Leipzig e a República Democrática Alemã: as autoridades comunistas da altura acusaram-no de misticismo religioso. Ele  defendia-se, sublinhando o carácter único, na história das religiões, do judeo-cristianismo e do seu livro, a Bíblia. Para ele, "a Bíblia é o livro mais significativo da literatura mundial", pois responde à pergunta decisiva do homem, que é a questão do fim, do sentido e finalidade últimos do mundo e da existência. Ir ao encontro da Bíblia "não pode prejudicar" nenhum ser humano que queira bem à humanidade e a si próprio. Concretamente, não é possível compreender o homem europeu e as suas obras literárias e artísticas, sem um conhecimento aprofundado da Bíblia. Os nazis, por exemplo, ao rejeitar a Bíblia como algo estranho, que não devia ser estudado, não só não puderam compreender a cultura alemã como cairam na barbárie.


Sem a mitologia grega, não podemos entender a Antiguidade clássica. Assim também, sem o conhecimento da Bíblia, não podemos compreender as catedrais, o gótico, a Idade Média, Dante, Rembrandt, Haendel, Bach, Beethoven, os Requiem, "absolutamente nada", escrevia Ernst Bloch. Impõe-se pôr termo ao desconhecimento da Bíblia, porque este desconhecimento constitui uma "situação insustentável", pois produz bárbaros, que, por exemplo, perante a Paixão segundo São Mateus, de Bach, ficam como bois a olhar para palácios.


O Natal, mesmo que alguns já se não lembrem disso, é o aniversário natalício de Jesus Cristo. Sobre ele deixou escrito Ernst Bloch: Jesus agiu como um homem "pura e simplesmente bom, algo que ainda não tinha acontecido". Anunciou um Deus próximo, de amor, um Deus amoroso e amável, e o seu Reino: o Reino de Deus, reino da liberdade, da justiça, do amor, da fraternidade,  da paz, da igualdade de todos diante de Deus e diante dos homens, o Reino da realização plena de toda a esperança.


Também por isso, nos dias à volta do Natal, apesar de todos os horrores que nos abalam até à raiz de nós, sentimo-nos mais humanos, mais solidários, o amor é mais vasto, a esperança é maior. E lá está Bloch: “onde há esperança há religião”.


O Advento continua. Ainda é Advento, pois ainda não chegou plenamente o que esperamos. É preciso relembrar que, na bela expressão de Helena Buescu, “somos herdeiros e futurantes”. Advento é uma palavra que vem do latim e significa vinda, chegada: em sentido religioso, é a chegada, a vinda de Deus: Ele veio e mostrou-se em Jesus, Ele vem, Ele virá. Somos herdeiros, pois estamos enraizados no passado e vivemos no presente, sempre futurantes enquanto esperamos, alicerçados numa esperança sem limites, pela realização de todos os nossos sonhos, “sonhos acordados”, sublinhava Bloch.  


Face ao fim, nestes tempos de niilismo, com “subprodução de transcendência”, como se queixava Bloch, só resta uma alternativa:


Claude Lévi-Strauss conclui assim o seu L’homme nu: “Ao homem incumbe viver e lutar, pensar e crer, sobretudo conservar a coragem, sem que nunca o abandone a certeza adversa de que outrora não estava presente e que não estará sempre presente sobre a Terra e que, com o seu desaparecimento inelutável da superfície de um planeta também ele votado à morte, os seus trabalhos, os seus sofrimentos, as suas alegrias, as suas esperanças e as suas obras se tornarão como se não tivessem existido, não havendo já nenhuma consciência para preservar ao menos a lembrança desses movimentos efémeros, excepto, através de alguns traços rapidamente apagados de um mundo de rosto impassível, a constatação anulada de que existiram, isto é, nada.”


A Bíblia, no seu último livro, Apocalipse, que quer  dizer revelação, conclui assim: “Vi então um novo céu e uma nova terra. E vi descer do céu, de junto de Deus, a cidade santa, a nova Jerusalém. E ouvi uma voz potente que vinha do trono: ‘Esta é a morada de Deus entre os homens. Ele habitará com eles; eles serão o seu povo e o próprio Deus estará com eles e será o seu Deus. Ele enxugará todas as lágrimas dos seus olhos; e não haverá mais morte, nem luto, nem pranto, nem dor. Porque as primeiras coisas passaram.”

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 17 de dezembro de 2022

A IMACULADA CONCEIÇÃO E A ESPERANÇA

  


Santo Agostinho era um génio. Mas a sua influência foi ambígua,  para o bem e para o mal. Pense-se no seu pessimismo, que o levou à convicção de que o prazer sexual implica sempre algo de pecaminoso, pois a finalidade da relação sexual deveria ser unicamente a procriação.


Baseado na tradução latina da Carta de São Paulo aos Romanos, 5,12, referente a Adão: "no qual todos pecaram", Santo Agostinho, contra o texto original grego, que diz: "porque todos pecaram", interpretou que o pecado de Adão não é apenas o primeiro da série de todos os pecados cometidos pelas pessoas ao longo da história, mas que esse pecado é um pecado hereditário, de tal modo que é um pecado de todos os homens e mulheres, transmitido por geração pelo acto sexual. Portanto, o recém-nascido não é inocente, nasce em pecado, do qual, para evitar a condenação eterna, só o baptismo o pode libertar. Foi pelo pecado de Adão que veio todo o mal ao mundo, incluindo a morte. Esse pecado tornou a humanidade toda “massa damnata”, massa condenada, ao inferno, do qual só alguns são libertados pela graça imerecida de Deus. Pelo pecado, Adão destruiu um bem que podia ser eterno, tornando-se merecedor, ele e todos os homens nele, de um mal eterno: "Daqui - escreve ele -, a condenação de toda a massa do género humano, pois o primeiro culpado foi castigado com toda a sua posteridade, que estava nele como na sua raiz. Assim ninguém escapa a esse suplício justo e devido, a não ser por uma misericórdia e uma graça indevida. E é tal a disposição dos homens que nalguns aparece o valor de uma graça misericordiosa e nos outros o de uma justa vingança".


Assenta aqui a doutrina da dupla predestinação, que continuaria radicalizada sobretudo em Calvino. Na salvação de alguns, revela-se a misericórdia graciosa de Deus; na condenação eterna da maioria, manifesta-se a justiça do mesmo Deus.


É neste enquadramento que surge a festa que se celebrou no passado dia 8 de Dezembro, com feriado nacional: a Imaculada Conceição de Nossa Senhora: Maria, a mãe de Jesus, seria uma excepção, pois foi concebida sem pecado.


Hoje, o pecado original não é pensável. De facto, como se pode pensar no pecado original, causa de todos os males, incluindo a morte, no contexto da evolução, segundo a qual o ser humano aparece num processo imensamente lento? O pecado original dos primeiros homens — quem foram os primeiros? — implicaria um acto de liberdade plena, que eles, pensando precisamente na evolução, não tinham... E não havia morte, se não houvesse o primeiro pecado de Adão e Eva?  Mais: quem acredita verdadeiramente que uma criança acabada de nascer foi concebida em pecado e nasce com o pecado dentro dela?  


O chamado pecado original só faz sentido, se pensarmos que aquele menino, aquela menina, nascem inocentes, mas para um mundo onde já há pecado e, assim, vão ser contaminados por esse ambiente de pecado, como um não fumador é contaminado ao entrar num ambiente em que se fuma.  Aliás, as pessoas, postas a pensar, acreditam verdadeiramente no pecado original no sentido tradicional? Permita-se-me que conte uma pequena história que se passou comigo. Fui fazer uma palestra em Aveiro. Na altura das perguntas e esclarecimentos, uma senhora, embora eu não tivesse abordado sequer o tema, acusou-me: “Você negou o pecado original”. Eu disse-lhe que na palestra nem tinha abordado a questão, mas voltei-me para ela e perguntei-lhe: “A senhora é mãe?” E ela: “Sim, sou mãe de duas filhas”. Disse-lhe: “Parabéns! Agora diga-me: acredita sinceramente que elas foram geradas em pecado e que a senhora andou com o pecado dentro de si durante dezoito meses?” Ela: “Eu? Eu não.” Observei-lhe: “Está a ver? Afinal, quem nega o pecado original é a senhora, não eu.”


Com a doutrina do pecado original, chegava-se a esta contradição: por um lado, havia a obrigação moral de relações sexuais fecundas, em ordem ao cumprimento da ordem de Deus: crescei e multiplicai-vos; por outro, havia o receio de, precisamente desse modo, contribuir para o aumento de pessoas com o pecado original; havia ainda a agravante de contribuir para as condenações ao inferno, caso os recém-nascidos morressem antes de receber o baptismo: em muitas ocasiões Santo Agostinho afirma a condenação eterna das crianças que não foram baptizadas...  Lentamente, ele próprio apercebeu-se de que era tal o horror dessa doutrina que elaborou a doutrina do limbo para as crianças que morriam sem baptismo: não iam para o inferno, mas também não gozavam da plenitude da vida em Deus...


Portanto, se não há pecado original no sentido tradicional, qual é o sentido da festa da Imaculada Conceição? O que de facto se celebra é Maria como a primeira cristã e a esperança de que no final se realize o Reino de Deus na sua plenitude, pondo termo a todo o calvário do mundo, à ecúmena do sofrimento sem nome, a esse cortejo infindo de ódio, de malvadez, de vingança, de loucura, de pecado, que realizou guerras mundiais,  Auschwitz, o Goulag,  a Ucrânia...,  todo o mal e toda a tragédia e todas as lágrimas que causamos uns aos outros e o número incontável de vítimas inocentes...


Essas vítimas gritam, não por vingança, mas por justiça. E só Deus, força criadora infinita, pode responder, pela ressurreição dos mortos, a esse clamor da história do sofrimento humano. Para que a história do mundo e da humanidade não desemboque pura e simplesmente no absurdo do sem sentido.

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 10 de dezembro de 2022

ANTOLOGIA

  


SEXTA-FEIRA MAIOR…
por Camilo Martins de Oliveira


"Sinto hoje muito, minha Princesa de mim, esta partilha, íntima e secreta, do meu diálogo interior contigo. É quase hora de tércia, aqui em Nagasaki, madruga aí esta Sexta-Feira Santa. Diz-nos a tradição evangélica que à terceira hora morreu Jesus. E propõe-nos a liturgia católica das horas o capítulo 53 do livro judeu do profeta Isaías: "Ele suportou as nossas enfermidades e tomou sobre si as nossas dores. E nós víamos nele um homem castigado, ferido por Deus e humilhado. Foi trespassado por causa das nossas culpas e esmagado por causa das nossas iniquidades. Caiu sobre ele o castigo que nos salva. Pelas suas chagas fomos curados. Todos nós, como ovelhas, andávamos errantes; cada qual seguia o seu caminho. E o Senhor fez cair sobre ele as culpas de todos nós. Maltratado, resignou-se e não abriu a boca. Como cordeiro levado ao matadouro, como ovelha muda ante aqueles que a tosquiam, ele não abriu a boca". Um dos primeiros livros sobre os bombardeamentos atómicos cuja publicação, no Japão, foi autorizada pelo ocupante americano intitula-se "Kono Ko o Nokoshite" («Ao Deixar Estas Crianças»). Estas eram os filhos, uma e um, que lhe dera a mulher que a terrível bomba matara. A despedida anunciada, agora já só ele a podia dizer, sabendo bem que as radiações que o tinham atingido o matariam. Ao fim de quase seis anos, em 1951... Receberia a bênção papal, a visita de Helen Keller e do imperador Hiohito, em maio de 1949, já depois de ter publicado "Nagasaki no Kane" (Os Sinos de Nagasaki), que seria aproveitado pelo cinema. Sobre isto, como sobre a visita do imperador Showa (Hirohito), inibe-me um pudor quase religioso de dizer seja o que for. Mas deixo-te, Princesa da minha confidência, uma interrogação: oportunismo ou arrependimento? O Professor Takeshi Nagai era um respeitado médico radiologista e um cientista investigador que, já antes da explosão atómica, se expusera, por condição e dever de ofício, a raios X... Esse homem brilhante e considerado morre, vítima da força destruidora do átomo, aos 43 anos. É japonês, um dos muitos que, em Nagasaki, são cristãos católicos. Será, pelo misterioso lado bom dessa péssima ironia do destino - que tantos inocentes castiga - um dos inspiradores do profundo sentimento pacifista que crescentemente se irá apoderando da alma japonesa. De budistas e shintoístas, dos cristãos que são, quiçá,1% da população… A humilhação do Império do Sol Nascente tinha gerado, na circunstância condicionante da ocupação americana, a resignação. Mas a resignação não é um exercício de liberdade. Não é nobre. Tem propensão para a manha, para o "peut êt’e bien qu’oui,peut êt’e bien que non" dos "auvegnat"... ou o albiónico "wait and see"... A nobreza dos homens exige-lhes, não o oportunismo míope do bem-haver imediato, mas um esforço de entendimento do que somos, donde vimos, para onde vamos. A revolta - que tanto opomos à resignação - é certamente compreensível, muitas vezes legítima e até necessária. Mesmo S. Tomás de Aquino assim a entendeu. Mas pode sofrer de um excesso de propensão à violência destruidora. Daí a importância, para as nossas vidas, da harmonia, não como receita (a harmonia não se impõe), mas como procura. Como na música de Haydn, de que tanto gosto. Até nas "Sete palavras de Cristo na Cruz". Procurar a harmonia é abrir uma janela à angústia. Hoje, em Sexta-Feira Santa, recolhido na catedral de Urakami, em Nagasaki, cuja construção foi iniciada em 1895, na era Meiji, e terminada  -- qual obra das nossas catedrais medievais  - em 1925, para ser destruída pela bomba de 1945, e reconstruída em 1959, recordo essa abertura mística de Takeshi Nagai, cientista japonês: "Não terá sido Nagasaki a vítima escolhida, o cordeiro sem mancha, sacrificado numa fogueira total, num altar de sacrifício, respondendo pelos pecados de todas as nações durante a 2ª Guerra Mundial?". Ocorrem-me esses versículos do Apocalipse de S. João: "Digno é o Cordeiro sacrificado de receber o poder, a riqueza, a sabedoria, a força, a honra, a glória e o louvor!..." Mas que sabemos nós, Princesa de mim, dos misteriosos desígnios de Deus? Continuaremos a inventar milagres que O domestiquem e reduzam ao temor do nosso entendimento? Ou bradaremos aos céus, com gestos feios, que Ele não existe e o seu conceito vago apenas nos atormenta? Penso, neste dia, em Nagasaki, lembrando as frustrações de esforços missionários, os silêncios e desvios sincretistas de igrejas remotas, que foram sobrevivendo na fé exilada mas fiel dos seus santos. Sinto-me em comunhão com eles, talvez mais do que com tantos outros que, pela pressão de "lobbies beatos" por cúrias romanas foram sendo canonizados... Se Deus existe, são dele, e dele só, o poder e a glória, o segredo do absurdo e da redenção... E no coração de Deus habitarão todos os povos e religiões do mundo. Dou-lhe hoje graças por acreditar que Ele se me revelou em Jesus Cristo. Na contemplação do Deus humanizado e crucificado comungo o mistério da cosmogénese (diria Teilhard) que conhecemos como sofrimento do mundo E lá me volta, e dá voltas, o nosso Bernanos e sua alegria: "Tudo é graça!". Percorri, anos mais tarde, os mesmos passos de Camilo Maria em Nagasaki.


Camilo Martins de Oliveira

Obs: Reposição de texto publicado em 29.03.13 neste blogue.

HOMEM: O ANIMAL FALANTE E POLÍTICO

  


Lá está Ludwig Wittgenstein: a linguagem não serve apenas para descrever a realidade, usamo-la também para pedir um favor, para agradecer, para amaldiçoar, para saudar, para rezar...


E é preciso atender ao contexto, à situação, ao uso. «Chove» pode dizer a constatação de um facto: está realmente a chover. Mas suponhamos que a mãe, pela manhã, quando o filho se prepara para ir para escola, lhe diz: «Chove», ele sabe ao mesmo tempo que deve levar o guarda-chuva. Se, numa família de agricultores, após uma seca prolongada, como agora, a mulher abre a janela e diz ao marido: «Chove», é o contentamento que é dito. Mas, se estavam na expectativa de um passeio agradável e diz: «Chove», é a desilusão.


A linguagem tem três funções principais: a expressiva, a apelativa e a representativa. Essas funções têm que ver com as relações estabelecidas entre o emissor, o receptor e os objectos: há alguém (emissor) que se dirige a alguém (receptor) para lhe comunicar algo, tornando presente a realidade.


Há também a função fática, que tem apenas a missão de manter o contacto: «sim, sim...», «pois...», «claro...». Quando alguém fala de mais, vai-se tentando dizer que ainda se está lá a ouvir. Sabe Deus!...


Noutro sentido, é essencial a dimensão pragmática da linguagem. Segundo alguns filósofos, deveria tender-se para uma linguagem artificial, lógico-unívoca, interessando apenas as dimensões sintáctica (a relação dos signos entre si) e semântica (relação dos signos com a realidade) da linguagem e o princípio verificacionista das asserções. Mas, deste modo, esquecia-se a dimensão pragmática: falando, produz-se um efeito. Pense-se, por exemplo, na promessa de casamento: «Prometo e juro amar-te e ser-te fiel por toda a nossa vida» produz o efeito que é o próprio casamento. Esta dimensão foi sublinhada na Bíblia: Deus criou pela palavra, palavra eficaz. “Faça-se a luz”, e a luz apareceu.


Com a linguagem, pode-se arrastar multidões, levá-las à revolução, acalmá-las, exaltá-las, virá-las num sentido ou noutro.


A palavra cura. Uma vez, apareceu-me um homem com imensos problemas e apenas me pediu que o ouvisse, sem interrupção. Falou mais de hora e meia e, no fim, agradeceu-me muito, pois não imaginava quanto o tinha ajudado, que nunca me esqueceria. Com algumas palavras, podemos abrir futuro a uma pessoa. Com algumas palavras, podemos destruí-la para sempre: «És um burro, nunca farás nada na vida!»


Pela palavra, abrimo-nos ao mundo e o mundo abre-se a nós. Falando, damos razão disto ou daquilo, argumentamos, comprometemo-nos, formamos comunidade. Sendo a razão humana linguisticizada, só nos podemos compreender a nós próprios em corpo, com outros e na história. O Homem, pelo facto de ser zôon lógon échon, animal que tem linguagem, é também zôon politikón, animal social, político, diferentemente do animal, que é gregário, e a razão disso é a palavra, como bem viu Aristóteles na Política: «A razão de o Homem ser um ser social, mais do que qualquer abelha e qualquer outro animal gregário, é clara. Só o Homem, entre os animais, possui a palavra.» E continua: «A voz é uma indicação da dor e do prazer; por isso, têm-na também os outros animais. Pelo contrário, a palavra existe para manifestar o conveniente e o inconveniente, bem como o justo e o injusto. E isto é o próprio dos humanos face aos outros animais: possuir, de modo exclusivo, o sentido do bem e do mal, do justo e do injusto e das demais apreciações. A participação comunitária nestas funda a casa familiar e a cidade.» E é pelo diálogo (diá-lógon) que os conflitos se devem resolver.


A linguagem humana não se reduz à linguagem emotiva do prazer e do desprazer. É capaz de fazer juízos morais, de distinguir o bem e o mal, o justo e o injusto, partilhar e debater publicamente estas apreciações. Deste modo, como sintetizou Gabriel Amengual, «por esta dupla função, a linguagem funda a ética e funda eticamente a pólis».


Como faz falta voltar aos clássicos! Para acabar com a mentira e ir além da sofística...


Todos somos animais políticos e, consequentemente, responsáveis pela condução da pólis. Estou de acordo com o Papa Francisco, com a observação de que, embora ele se refira só aos cristãos, o aviso é para todos: "Envolver-se na política é uma obrigação para o cristão. Enquanto cristãos não podemos lavar as mãos como Pilatos. Temos de nos meter na política, porque a política é uma das formas mais altas da caridade, pois procura o bem comum. Os leigos cristãos devem trabalhar na política. A política está muito suja, mas eu pergunto: ‘Está suja porquê?’ Porque os cristãos não se meteram nela com espírito evangélico? É uma pergunta que eu faço. É fácil dizer que a culpa é dos outros... Mas eu o que é que faço? Isto é um dever! Trabalhar para o bem comum é um dever para um cristão."


Escrevi aqui muitas vezes que considero a política uma actividade nobre, das mais nobres. Quando isso acontece no quadro do trabalho para o bem comum, antepondo o interesse comum aos interesses próprios e dos partidos. Mas, sendo a política uma missão tão dura e exigente, quando observo a corrida tão interessada de tantos a cargos políticos, tenho de confessar, sinceramente, que não acredito que a maior parte o faça por amor à causa pública, ao serviço do bem comum. Que interesses, que vantagens, que cumplicidades, que incompetências, que privilégios, que compadrios, que subvenções, que benesses, que vaidades os movem?

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 26 de novembro de 2022

FRANCISCO SOBRE O DIÁLOGO, AS MULHERES, OS CATÓLICOS ALEMÃES...

  


Entre 3 e 6 deste mês de Novembro, o Papa Francisco esteve no Bahrain, no Fórum a favor do Diálogo: Oriente e Ocidente pela coexistência humana. No regresso, no avião, deu, como é hábito, uma conferência de imprensa. É sempre enriquecedor dar atenção a essas conferências, até porque há temáticas múltiplas da actualidade e uma espontaneidade acrescentada. Seguem-se alguns temas.


1. Referindo o diálogo, acentuou que é uma palavra-chave: "diálogo, diálogo". Já tinha sublinhado, aliás, que os animais é que não dialogam, os humanos têm de resolver os seus problemas através do diálogo. Condição para dialogar é que se tem de partir da identidade própria, ter identidade afirmada, não difusa. Quando alguém não tem a sua própria identidade ou ela não é firme, o diálogo torna-se difícil, até impossível. A sua viagem foi uma viagem de encontro, porque o objectivo era estar em diálogo inter-religioso com o islão e ecuménico com os ortodoxos. Ora, tanto o Grande Imã de Al-Azhar, no Cairo, Ahmed al-Tayeb, como o Patriarca de Constantinopla, Bartolomeu, "têm uma grande identidade" e as suas ideias vão no sentido de procurar a unidade, respeitando as diferenças, evidentemente, em ordem ao entendimento e ao trabalho conjunto para o bem e a paz da Humanidade. Também se chamou a atenção para a Criação e a sua protecção: "isto é uma preocupação de todos, muçulmanos, cristãos, todos". Os crentes das várias religiões "devemos caminhar juntos como crentes, como amigos, como irmãos."


2. Na sua viagem, lembrou outro jornalista, "falou sobre os direitos fundamentais, incluindo os direitos das mulheres, a sua dignidade, o direito a ter o seu lugar na esfera social pública"...


Resposta de Francisco. "Temos de dizer a verdade. A luta pelos direitos da mulher é uma luta contínua. Há lugares onde a mulher tem igualdade com o homem, mas noutros não. Pergunto: porque é que uma mulher tem de lutar tanto para manter os seus direitos?" E falou na ferida da mutilação genital feminina: "isto é terrível". Como é que a humanidade não acaba com isto, que é "um crime, um acto criminoso! As mulheres, segundo dois comentários que ouvi, são material "descartável" - isso é mau, claro - ou são "espécies protegidas". A igualdade entre homens e mulheres ainda não é universal, e existem estes incidentes: as mulheres são de segunda classe ou menos. Temos de continuar a lutar. Deus criou-os iguais, homens e mulheres. Todos os direitos das mulheres provêm desta igualdade. E uma sociedade que não é capaz de colocar a mulher no seu lugar não avança." As mulheres têm uma capacidade de gerir as coisas de outra maneira, que "não é inferior, mas complementar". E uma constatação: "Vi que no Vaticano sempre que entra uma mulher para fazer um trabalho as coisas melhoram: por exemplo, o vice-governador do Vaticano é uma mulher e as coisas mudaram para bem." Só um exemplo.


Igualdade de direitos, mas também igualdade de oportunidades; caso contrário, empobrecemo-nos. Há ainda muito caminho para percorrer. Porque "existe o machismo. Venho de um povo machista. Lutamos não só pelos direitos, mas porque precisamos que as mulheres nos ajudem a mudar."


3. Quanto à Ucrânia. "O Vaticano está permanentemente atento". Ele foi à embaixada russsa falar com o embaixador, "um humanista", está disposto a ir a Moscovo para falar com Putin, falou duas vezes ao telefone com o Presidente Zelensky... O que lhe chama a atenção é "a crueldade, que não é do povo russo... Tenho uma grande estima pelo povo russo, pelo humanismo russo. Basta pensar em Dostoievsky, que até hoje nos inspira... Sinto um grande afecto pelo povo russo e igualmente pelo povo ucraniano".


E atirou, desolado: "Num século, três guerras mundiais! A de 1914-1918, a de 1939-1945, e esta! Esta é uma guerra mundial, porque é certo que, quando os impérios de um lado e do outro se debilitam, precisam de fazer uma guerra para sentir-se fortes e também para vender armas. Hoje creio que a maior calamidade do mundo é a indústria armamentista. Por favor! Disseram-me, não sei se está certo ou não, que, se não se fabricassem armas durante um ano, acabar-se-ia com a fome no mundo." E contou que sempre que vai a cemitérios e encontra o túmulo de um jovem morto numa guerra, chora.


4. Sobre os abusos de menores, reconheceu que houve secretismo e encobrimento. Agora, é a "tolerância zero". "Nisto hoje a Igreja está firme, pois, mesmo que só tivesse havido um caso, seria trágico."


5. Mesmo a terminar, Francisco mostrou alguma preocupação com o "caminho sinodal" da Igreja na Alemanha: "Aos católicos alemães digo: a Alemanha tem uma grande e bela Igreja evangélica; não quero outra, que não será (nunca) tão boa como aquela; quero-a católica, em fraternidade com a evangélica."


A Conferência Episcopal Alemã esteve no Vaticano e o caminho sinodal foi um dos temas centrais nos encontros com o Papa e a Cúria. Os bispos alemães apelam à "unidade" da Igreja. Mas o Presidente da Conferência, G. Bätzing, também foi lembrando que Roma foi e é "ponto de referência para a fé católica e para toda a Igreja", mas "não é a origem e a meta do caminho que tomamos na fé"; "a origem e a meta desse caminho é Jesus Cristo".


Assim, pessoalmente, pergunto, por exemplo: o que impede acabar com o celibato obrigatório ou a ordenação de mulheres para presidirem à celebração da Eucaristia? Onde esteve afinal a igualdade de direitos?

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 19 de novembro de 2022

ADRIANO MOREIRA: "O EIXO DA RODA"

  

 

Estava no comboio e foi uma jornalista que me deu a notícia. Apesar de esperada, a morte de Adriano Moreira foi um choque  para mim. É sempre um choque a morte de um amigo: ah!, aquele nunca mais para sempre neste mundo!...


Éramos amigos, e tive com ele conversas e debates inesquecíveis, sempre iluminantes para mim. Até lhe devo um prefácio poderoso a um dos meus livros, Corpo e Transcendência, no qual apela, se a Humanidade hoje com excesso de poder quiser sobreviver, para a urgência do diálogo entre a cultura tecnocientífica e as Humanidades: “os temas da subjectividade, da solidão, do desespero, do nada, da ambiguidade, já não são problemas de um ou de cada homem, são problemas do género humano estarrecido com o poder que alcançou, só ultrapassado pela ignorância.” Neste contexto, apresentava a imagem da roda — “Os valores são o eixo da roda. A roda anda, passa por mudanças, e o eixo acompanha a roda, mas não anda” —, acrescentando: “Incluamos, cimeiros, os valores da relação com a transcendência.”


Era católico, católico praticante. Confessou-me que, sendo a mãe a grande teóloga da sua vida, algumas vezes, «sempre por razões fáceis de entender», lhe acudia ao temperamento «o anticlericalismo transmontano». Disse-lhe: “Não se preocupe, senhor Professor. Jesus também era anticlerical.” Evidentemente, tinha dúvidas, mas acreditava que na morte não acaba tudo – confiava em Deus. Continuava a pensar, ele que foi um marido e pai exemplar, que a fé é amparo das famílias. «Nunca adormeci sem rezar as orações que a minha mãe me ensinou», confessou-me.


Era católico também no sentido do étimo grego (katá, segundo; hólon todo): segundo o todo, ecuménico, universal. Cedo se apercebeu da urgência do diálogo ecuménico e inter-religioso – o que ele chamava o espírito de Assis, no contexto do Concílio Vaticano II –, nomeadamente com os muçulmanos, mas sem esquecer, e por isso mesmo, que não há identidade europeia sem os valores cristãos. Por outro lado, politicamente, impõe-se a urgência de pensar algo que aponte para uma governança mundial, global.


No quadro da necessidade da defesa de uma “ciência com consciência” e da “aproximação, diálogo e solidariedade das diversas crenças em face dos perigos a que o globalismo nos conduziu”, escreveu em 2015 uma carta ao Papa Francisco, da qual destaco a sugestão várias vezes feita: “Na ONU, em perda de autoridade, deveria ser criado, ao lado dos órgãos institucionais da Carta, um Conselho das Religiões, a estruturar segundo a experiência da ONU e a que tem sido ganha, sobretudo desde as reuniões de Assis, com as sucessivas iniciativas de encontros, conclusões, e acção, das Igrejas a bem da paz. Se a Igreja Católica tomasse a iniciativa, com respeito institucional, enriqueceria utilmente a contribuição que lhe pertence na doutrinação da paz, designadamente tendo enriquecido, com mestres, o património imaterial da Humanidade, tão descuidado e violado neste século sem bússola.”


A profissão cristã católica tem uma dupla face: a mística e a ético-política. O que Adriano Moreira mais criticava é o relativismo: o que acontece está legitimado porque aconteceu. Mas prevenia: ou o Ocidente reabilita a ética ou o prognóstico sobre esta área do mundo é reservado. É preciso trazer a ética para o governo, para o ensino, para as instituições.  


A sua conduta orientou-se pelo contributo a dar para o júbilo gratificante que seria podermos ter, «ao redor do mundo, uma força moral não-agressiva, convergente, praticante da regra da igualdade do género humano, cheia de amorosidade, cristãmente ecuménica, podendo ser extremamente eficaz pela observância da regra de que não são as nossas palavras, mas as nossas obras que rezam». Como académico insigne, exigia de si o que esperava dos mestres: “o esforço de ensinar para a incerteza”, e foi apontando caminhos para evitar o desastre.


A Igreja enfrenta grandes desafios. Hoje, o apelo à transcendência cresce desordenadamente. O sentido de pertença é cada vez mais frouxo. Os valores desmoronam-se. Aí está, pois, a imensa tarefa da evangelização. De qualquer modo, «a defesa da dignidade dos homens exige instituições poderosas». Entre elas, «uma Universidade realmente autónoma» e, precisamente, «as Igrejas independentes e respeitadas». E que concordava comigo, cito,  quando, enumerando os desafios para o século XXI, escrevi que o desafio essencial é a conversão de todos os membros da Igreja ao Evangelho, “a começar pelos que estão mais alto: papa, bispos, cardeais, padres, acreditar em Jesus e tentar segui-lo.”


Na sua vida longa, sempre vigilante e consciente de que «assumir responsabilidades no processo é imperativo absoluto», olhando para o mundo e também e sobretudo para Portugal, fez suas, com a imensa sabedoria que possuía, as palavras do padre António Vieira sobre os pecados do tempo: «Uma das coisas de que se devem acusar e fazer grande escrúpulo os ministros, é dos pecados do tempo. Porque fizeram o mês que vem o que se havia de fazer o passado; porque fizeram amanhã o que se havia de fazer hoje; porque fizeram depois o que se havia de fazer agora; porque fizeram logo o que se havia de fazer já. Tão delicadas como isto hão-de ser as consciências dos que governam, em matérias de momento. O Ministro que não fez grande escrúpulo de momentos não anda em bom estado; a fazenda pode-se restituir, a fama, ainda que mal, também se restitui, o tempo não tem restituição alguma.”

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 12 de novembro de 2022

HAVERÁ SEMPRE GUERRAS?

  


1. Quando olho para a tragédia que se abateu sobre a Ucrânia: bombas atrás de bombas, milhões de refugiados, valas comuns, mortos e mais mortos, crianças afogadas no pânico, mulheres sem palavras para chorar e gritar os horrores, hospitais, creches, escolas destruídos, ruinas, mais ruinas, um mundo a desabar, ameaças de guerra nuclear..., só poderia desejar, do fundo do coração, poder responder: Não, nunca mais haverá guerra. Mas sei que não é assim. Haverá sempre guerras, a não ser que se desse uma conversão radical da humanidade.


Neste sentido, há um texto que me foi enviado, cujo autor desconheço mas com o qual estou de acordo, até porque encontrou as palavras certas para descrever este mundo de loucura. Reza assim: “Nenhuma guerra tem a honestidade de confessar: ‘Eu mato para roubar’. As guerras invocam sempre motivos nobres: matam em nome da paz, em nome de Deus, em nome da civilização, em nome do progresso, em nome da democracia e, por causa das dúvidas de nenhuma destas mentiras ser suficiente, aí estão os meios de comunicação dispostos a inventar inimigos imaginários para justificar a transformação do mundo num grande manicómio e um imenso matadouro. Em Rei Lear, Shakespeare escreveu que neste mundo os loucos guiam os cegos, e, quatro séculos depois, os senhores do mundo são loucos enamorados da morte que transformaram o mundo num lugar onde a cada minuto morrem de fome ou doença curável dez crianças e a cada minuto se gastam três milhões de dólares, três milhões de dólares a cada minuto, na indústria militar, que é uma fábrica de morte. E as armas exigem guerras e as guerras exigem armas, e os cinco países que dominam as Nações Unidas, que têm direito de veto nas Nações Unidas, acabam também por ser os cinco principais produtores de armas. A gente pergunta: ‘Até quando? Até quando a paz do mundo estará nas mãos dos que fazem o negócio da guerra? Até quando continuaremos a acreditar que nascemos para o extermínio mútuo e que o extermínio mútuo é o nosso destino? Até quando?’ “.


2. O filósofo I. Kant escreveu que o ser humano se defronta com três impulsos fundamentais: o prazer, o poder e o ter. Por mim, penso que o mais forte é o poder enquanto domínio. De facto, o ser humano é carente e confronta-se com a morte, que o confronta com o nada. Através do poder, de poder em poder, cada vez com mais poder, alcançaria a omnipotência e mataria a morte.


Pascal, o grande Pascal, o matemático eminente, uns dos maiores de sempre, e também um dos maiores cristãos europeus de sempre, viu bem quando escreveu que a constituição do ser humano mora ali algures entre “le rien et l’infini” (o nada e o infinito). Por isso, a mais poderosa tentação, desde o início da humanidade, é a omnipotência. Embora se trate de uma estória mítica, ela diz o essencial: no Génesis, a serpente voltou-se para Eva e disse-lhe que, apesar da proibição por Deus, se comessem do fruto proibido, seriam como Deus, alcançariam a omnipotência. E deu a Adão, e ela também comeu. E aí estão as trágicas consequências: foram expulsos e, logo a seguir, Caim matou o irmão, Abel, inaugurando uma torrente de sangue sem fim.


Com o poder, vem o ter e cada vez mais teres, porque o desejo de ter é insaciável. E os teres precisam de ser aumentados sempre mais e defendidos, e aí estão a violência e a guerra, que, paradoxalmente, aumentam o poder e o ter. Neste nosso tempo, os gastos com novas armas rondam os dois milhões de milhões (2.000.000.000.000) de dólares, com a lógica de que as armas exigem guerras e as guerras exigem armas, também para gastar o armamento velho e produzir novas armas.


3. O poder fascina de tal modo que até há bem pouco tempo se cantava nas igrejas a Deus como “Senhor Deus dos exércitos” — aliás, ainda há um bispo das forças armadas, mas não um bispo da saúde e da cultura...— e a maior traição da Igreja foi ter-se transformado numa instituição de poder.


Jesus tem duas advertências essenciais. “Não podeis servir a Deus e a Dinheiro”. Ele conhecia bem a importância do dinheiro — não passou a maior parte da  vida a trabalhar? —, mas não se pode adorar Dinheiro (com maiúscula). Significativamente, os Evangelhos foram escritos em grego, mas mantiveram duas palavras em aramaico, a língua materna de Jesus: Abbá, Paizinho (era com esta ternura que Jesus se dirigia a Deus) e Mammôn, a deusa do dinheiro. Mammôn tem o radical mn, que significa confiar. A revelação de Jesus é que Deus é bom, Pai e Mãe de todos, e realmente não é possível confiar, entregar-se confiadamente a Deus e ao mesmo tempo confiar, entregar-se confiadamente a Dinheiro como salvador.


Jesus também disse: “Eu sou Senhor e Mestre”, mas “vim para servir, não para ser servido”; “quem quiser ser o primeiro seja servidor”. Deus é omnipotente? Sim, tem todo o poder, mas não enquanto dominação mas Força infinita de criar.


O latim pode ser iluminante. Mestre tem na sua origem magister, com base em magis, que significa mais, de tal modo que o mestre é o que está acima, o maior, em contraposição com ministro, que vem de minister, com base em minus, menos, e que é o servente, o que serve. (Quantos ministros — também os ministros da Igreja — se lembram que devem ser os que servem, os serventes?). E isso nada tem que ver com ser incompetente. O exemplo é Jesus: ele é o verdadeiro Mestre e Senhor, mas é servidor. Assim, todos devem levar o mais longe possível os seus dons, não para dominar, mas para a maior realização de todos.

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 15 de outubro de 2022