Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Estes dias desde a morte do Papa Francisco em que os meios de comunicação social estiveram concentrados no Vaticano, infelizmente muitas vezes nem sempre pelas melhores razões cristãs no sentido fundo da palavra, pois lembrava-se por vezes mais a pompa e o fausto das cortes imperiais dos antigos impérios, deveriam ter sido uma ocasião para reflectir de modo fundo sobre o cristianismo na sua profundidade essencial, a melhor mensagem que alguma vez chegou à Humanidade na sua História e, dessa reflexão, tirar necessárias e urgentes conclusões, para voltar precisamente ao essencial.
1. É confrangedor e mesmo horripilante saber que há ainda quem pregue e até ensine na catequese que Jesus veio ao mundo, enviado por Deus, para ser crucificado como vítima expiatória pelos pecados. Por causa do pecado dos primeiros pais, a Humanidade tinha uma dívida infinita para com Deus, que Jesus pagou na cruz, e assim Deus pôde aplacar a sua ira e reconciliar-se com a Humanidade.
Em relação a este Deus bárbaro e macabro, pior do que qualquer ser humano decente e que faz lembrar os deuses a quem as pessoas sacrificavam os seus filhos primogénitos como vítimas para os aplacar e implorar bens e graças, eu pessoalmente sou ateu.
2. Na realidade, foi o contrário que se passou. Jesus anunciou exactamente o contrário. Este é o seu Evangelho, notícia boa e felicitante: Deus é bom, Abbá (querido Papá), Pai/Mãe. E todos são seus filhos e filhas e ele só quer o bem deles, a sua alegria, felicidade e realização plena de todos. Essa foi a mensagem de Jesus por palavras e obras, seguindo-se que, se todos são filhos e filhas, todos são irmãos e irmãs e devem agir em consequência…
Era evidente que essa mensagem ia contra os interesses do Templo. Jesus enfrentou concretamente o sacerdócio judaico — parece que havia uns 20 000 sacerdotes e levitas e Flávio Josefo refere que numa páscoa degolaram 255 600 cordeiros. Segundo Jesus, é preciso aprender que o que Deus quer é justiça e misericórdia, dizia-lhes: "Ide aprender: Deus não quer sacrifícios rituais de vítimas, quer justiça e misericórdia". A mensagem de Jesus também ia contra os interesses de Roma, pois os impérios não existem para a fraternidade, mas para a exploração...
Jesus sabia, portanto, que punha em risco a sua vida, mas não se acobardou. Pelo contrário, foi até ao fim para dar testemunho da Verdade e do Amor. Assim, foi julgado e condenado à morte e morte de Cruz: o horror pura e simplesmente. Ele, o inocente, foi vítima não de Deus, mas dos homens, vítima de um assassinato. Deus, porém, ressuscitou-o: Jesus, na morte, não encontrou o nada, mas a plenitude da vida, e os discípulos acreditaram e foram anunciar a Boa Nova e surgiram comunidades de cristãos e cristãs. Eles amavam como Jesus mandara: “Dou-vos um mandamento novo: amai-vos uns aos outros como eu vos amei.”. E reuniam-se em banquetes festivos e fraternos para recordar a Última Ceia e outros banquetes de Jesus, a sua mensagem, a sua morte, a sua ressurreição, celebrar e aprofundar a fé e a esperança, animar a caridade, o amor... E a celebração acontecia na casa de um cristão ou cristã com uma casa maior e melhor, e quem presidia era o dono ou a dona da casa.
3. Com o tempo (século III) — quem explicou isso bem foi Herbert Haag, Professor da Universidade de Tubinga, talvez o maior exegeta do século XX, que tive o privilégio de ter como querido amigo —, também porque os cristãos iam sendo acusados de ateus por não oferecerem sacrifícios à divindade, a Eucaristia foi perdendo esse carácter de banquete festivo e fraterno e surgiu a sua interpretação como sacrifício — o manual de Teologia por que estudei em jovem ainda falava na Missa como “mactatio mystica Christi” (matação, imolação mística de Cristo, discutindo-se se a imolação era real, moral, sacramental) e, quando presentemente nas igrejas se olha para os altares laterais, vem à lembrança o tempo ainda recente em que vários sacerdotes iam oferecendo, só com um acólito, que nada entendia, até porque era em latim, o “santo sacrifício da Missa” por diversas intenções, e ainda não se acabou com o absurdo dos “Trintários de Missas” — e, com a interpretação da Eucaristia como sacrifício de expiação pelos pecados, começou a ordenação sacerdotal e, assim, na Igreja apareceram duas classes: o clero com todos os seus privilégios e os leigos. Totalmente contra o que Jesus queria: "sois todos irmãos". E nem Jesus nem os Apóstolos ordenaram sacerdotes. Mas, com a ordenação sacerdotal, apareceu não só uma Igreja com duas classes — o clero e o povo —, mas foi-se também impondo o celibato, e as mulheres, que antes também tinham presidido, foram excluídas, por causa da impureza ritual…
E nem Francisco abriu a porta à ordenação presbiteral — intencionalmente, não utilizo a palavra sacerdotal — das mulheres nem à ordenação de homens casados e ao fim da lei do celibato…
4. Para voltar a Jesus, impõe-se uma mudança na Constituição da Igreja, uma verdadeira revolução, que implica, como explico longamente no meu mais recente livro: O Mundo e a Igreja. Que Futuro?, "pôr fim à ordenação de sacerdotes".
Evidentemente, na Igreja — não sou anarquista — haverá, como desde o início houve, funções, ministérios e serviços ordenados, que até podem ser temporários, de homens e mulheres, mas não com a ordenação sacerdotal, com ordens sacras, o que é completamente diferente.
De facto, segundo a doutrina oficial, a ordenação sacerdotal implica uma transformação ontológica do ordenado, fazendo dele um "alter Christus", "outro Cristo", só ele podendo presidir à Eucaristia e perdoar os pecados na confissão. Com a ordenação sacerdotal, a Igreja não tem reforma possível, por causa da sua divisão automática em duas classes, repito: clero e povo, de tal modo que, quando se fala em Igreja, o que se está normalmente a referir é menos de 1% da Igreja: a chamada hierarquia. E Jesus tinha dito: "sois todos irmãos".
E aí estão a peste do clericalismo e a pompa e o luxo destes dias. E, quando se entrou em conclave para eleger o novo Papa, lá esteve aquele “extra omnes”: “fora todos”, todos os que não pertencem ao conclave, ao qual só pertence o topo da hierarquia, aliás num sistema endogâmico, pois aqueles 133 cardeais eleitores são purpurados criados por Papas anteriores, portanto, evidentemente, sem nenhuma mulher, mesmo se mais de metade dos católicos são mulheres...
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia
As primeiras palavras do Papa Leão XIV na sua primeira bênção Urbi et Orbi 8 de Maio de 2025
A paz esteja com todos vós!
Caríssimos irmãos e irmãs, esta é a primeira saudação de Cristo Ressuscitado, o Bom Pastor que deu a vida pelo rebanho de Deus. Eu também gostaria que esta saudação de paz entrasse nos vossos corações, chegasse às vossas famílias, a todas as pessoas, onde quer que estejam, a todos os povos, a toda a terra. A paz esteja convosco!
Esta é a paz de Cristo Ressuscitado, uma paz desarmada e uma paz desarmante, humilde e perseverante. Ela vem de Deus, Deus que nos ama a todos incondicionalmente. Ainda conservamos nos nossos ouvidos aquela voz fraca, mas sempre corajosa, do Papa Francisco que abençoava Roma!
O Papa que abençoava Roma concedia a sua bênção ao mundo, ao mundo inteiro, naquela manhã do dia de Páscoa. Permitam-me prosseguir com essa mesma bênção: Deus ama-nos, Deus ama a todos vós, e o mal não prevalecerá! Estamos todos nas mãos de Deus. Portanto, sem medo, unidos, de mãos dadas com Deus e entre nós, sigamos em frente. Somos discípulos de Cristo. Cristo precede-nos. O mundo precisa da sua luz. A humanidade precisa dele como ponte para ser alcançada por Deus e pelo seu amor. Ajudai-nos também vós, pois, uns aos outros, a construir pontes, com o diálogo, com o encontro, unindo-nos todos para sermos um só povo, sempre em paz. Obrigado, Papa Francisco!
Quero também agradecer a todos os meus irmãos cardeais que me escolheram para ser o Sucessor de Pedro e caminhar convosco, como Igreja unida, sempre procurando a paz, a justiça, procurando sempre trabalhar como homens e mulheres fiéis a Jesus Cristo, sem medo, para proclamar o Evangelho, para sermos missionários.
Sou um filho de Santo Agostinho, agostiniano, que disse: «Convosco sou cristão e, para vós, bispo». Neste sentido, podemos todos caminhar juntos rumo àquela pátria que Deus nos preparou.
À Igreja de Roma, uma saudação especial! Devemos procurar juntos como ser uma Igreja missionária, uma Igreja que constrói pontes, dialoga, sempre aberta para receber, como esta praça com os braços abertos, a todos, a todos aqueles que precisam da nossa caridade, da nossa presença, do diálogo e do amor.
(em espanhol)
E se também me permitem, uma palavra, uma saudação a todos aqueles, e em particular à minha querida diocese de Chiclayo, no Peru, onde um povo fiel acompanhou o seu bispo, compartilhou a sua fé e deu muito, muito para continuar a ser Igreja fiel de Jesus Cristo.
A todos vós, irmãos e irmãs de Roma, da Itália, do mundo inteiro, queremos ser uma Igreja sinodal, uma Igreja que caminha, uma Igreja que procura sempre a paz, que procura sempre a caridade, que procura sempre estar próxima, especialmente daqueles que sofrem.
Hoje é o dia da Súplica a Nossa Senhora de Pompeia. Nossa Mãe Maria quer sempre caminhar connosco, estar próxima, ajudar-nos com a sua intercessão e o seu amor.
Agora, gostaria de rezar convosco. Rezemos juntos por esta nova missão, por toda a Igreja, pela paz no mundo e peçamos esta graça especial a Maria, nossa Mãe.
Ave-Maria...
(Texto original em italiano)
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia
Visita do Papa Francisco a Lampedusa, Foto: AFP/Getty Images
Várias vezes Eduardo Lourenço me confessou que o grande mistério que gostaria de ver desvendado era o de saber o que Jesus Cristo teria escrito com o dedo no chão, no episódio da mulher adúltera. Esse é o único momento do “Novo Testamento” em que o Filho de Deus escreve. E compreende-se que para o intelectual e o ensaísta fosse muito importante desvendar esse lado oculto do Nazareno. Tal circunstância tem tudo a ver com a personalidade do Papa Francisco, que em vários momentos nos lembrou a importância dessa passagem. “Quem de vós estiver sem pecado seja o primeiro a lançar-lhe uma pedra! E inclinando-Se novamente recomeçou a escrever no chão. Eles, porém, quando isto ouviram, foram saindo um a um, a começar pelos mais velhos, e ficou Jesus com a mulher, que continuava ali no meio…” (Jo, 8, 7-9). Em diversas circunstâncias o Papa Francisco recordou este episódio, não como gesto teórico, mas como exemplo de vida.
A marca da diferença foi o sinal único de um magistério que perdurará por certo, qualquer que seja o desenvolvimento histórico. Serão inúteis as especulações sobre o que irá acontecer agora, a verdade é que presenciámos o lançamento à terra de pequenas sementes, como grãos de mostarda, de simplicidade e de sobriedade. O contraste com os gestos de barbárie, de ódio e de caos que presenciamos é evidente – e sentimos a angústia do Papa nos seus últimos dias de vida perante a inaudita violência da guerra mundial aos pedaços que, antes de tudo, oportunamente diagnosticou. Com grande coragem defendeu os temas fundamentais de uma cultura humanista: uma Ecologia integral, uma Economia justa, o papel da mulher, uma Solidariedade com os pobres, os excluídos, os migrantes.
A viagem a Lampedusa está na memória de todos. E a palavra todos tornou-se para o Papa uma bandeira que congrega os projetos de renovação, que se tornaram essenciais na Jornada Mundial da Juventude de 2023. Laudato Si’ (2015) e Fratelli Tutti (2020) constituem gritos de alerta que suscitaram contestação de quantos preferem o dogmatismo e a intolerância que o Papa combateu até ao último dia. Só uma cultura respeitadora da liberdade e da responsabilidade, da memória e do conhecimento poderá encontrar caminhos de autonomia, emancipação, dignidade e paz – eis a grande lição de alguém que usou as palavras e o exemplo para fazer um mundo melhor. E esse projeto de responsabilidade e de coragem foi defendido tenazmente em diversos domínios, razão pela qual a sua herança é muito rica. Assim, o seu desaparecimento não é só uma perda para os cristãos, mas uma perda para o mundo.
O encontro com o Grande Imã da Mesquita de Al Azhar, Ahmed Mohamed El-Tayeb, no Abu Dhabi, constituiu um momento de rara importância no âmbito do diálogo entre as religiões, envolvendo a assinatura do Documento sobre a Fraternidade Humana (4.2.2019), que permitiu a afirmação de uma cultura de paz fundada no respeito mútuo, na liberdade de consciência e na necessidade de uma compreensão mútua baseada no conhecimento e na sabedoria. Frederico Lourenço faz uma síntese com que concordo plenamente e que subscrevo: “Com Francisco foi-nos dada a visão daquilo que a Igreja poderá ser. Desse ponto de vista, foi um Papa que veio do futuro” (Expresso, 25.4.2025). Todos os sinais do seu percurso e as suas palavras merecem, pois, especial atenção e cuidado. E desejamos que não fiquem no esquecimento ou votadas à indiferença.
O famoso filósofo Johann G. Fichte tem um texto com perguntas que todo o ser humano, minimamente atento à vida, alguma vez fez, pois são perguntas que ele transporta consigo, melhor, que ele é.
O filósofo alemão escreveu que o ser humano não deixará facilmente de resistir a uma vida que consista em “eu comer e beber para apenas logo a seguir voltar a ter fome e sede e poder de novo comer e beber até que se abra debaixo dos meus pés o sepulcro que me devore e seja eu próprio alimento que brota do solo”; como poderei aceitar a ideia de que tudo gira à volta de “gerar seres semelhantes a mim para que também eles comam e bebam e morram e deixem atrás de si outros seres que façam o mesmo que eu fiz? Para quê este círculo que gira sem cessar à volta de si?... Para quê este horror, que incessantemente se devora a si mesmo, para de novo poder gerar-se, gerando-se, para poder de novo devorar-se?”
Também Ernst Bloch, o filósofo ateu religioso, escreveu que o ser humano nunca há-de contentar-se com o cadáver.
Há aquelas perguntas in-finitas: Quem sou? Para onde vou? Onde estarei quando cá já não estiver?
E o dramático é que, por um lado, a vida depois da morte é completamente não figurável – para lá do espaço e do tempo, não é possível qualquer representação. Nunca poderei dizer: morri, estou morto -serão outros a dar a notícia.
Por outro lado, é insuportável acabar, andar, na vida, de sentido em sentido e, no fim, afundar-se no nada – não ir para lado nenhum. Sendo o ser humano “alguém”, quem afirma o nada no termo vê-se confrontado com a pergunta: como se passa de “alguém” a “ninguém”? Como conceber uma consciência morta? Afinal, o que era antes de morrer? Se tudo desembocasse no nada, qual seria, em última análise, a distinção entre bem e mal, honestidade e desonestidade, honradez e mentira, verdade e falsidade, já que no fim tudo se afundaria no nada e tudo seria o mesmo: precisamente nada?
Nos seus inícios, o cristianismo triunfou, porque a uma sociedade angustiada com a morte se apresentou com a promessa inaudita da esperança na ressurreição. Mas hoje a morte é tabu, e a ressurreição dos mortos e a vida eterna tornaram-se não plausíveis e sem interesse. Parece que as pessoas se contentam com o consumo diletante, entretidos na corrida louca de uma agitação paralisante, desfrutando instantes e entregando-se à morte inevitável, numa espécie de melancolia resignada.
E não será assim porque hoje se ama pouco, pois só o amor requer eternidade? Mas então, numa sociedade sem eternidade, o que resta são só instantes, que não podem fazer texto nem encontrar sentido último, porque se devoram uns aos outros.
Para quem se não perdeu na superfície da banalidade, a Páscoa, no seu sentido de passagem, é a experiência do transcender constitutivo do ser ser humano. O Homem nunca se contenta com o dado nem com os factos brutos: vai sempre além, num além sem limites, transgredindo, pela esperança, as próprias fronteiras da morte.
A primeira Páscoa é a do Antigo Testamento e consiste na libertação da escravidão no Egipto: Deus não aceita a opressão. A segunda Páscoa é a culminação da primeira: Deus não tolera a morte. Jesus crucificado para dar testemunho da Verdade e do Amor não morreu para o nada, mas para o interior de Deus, que é a Vida eterna. Como diz São Paulo na Carta aos Romanos, o Deus que cria a partir do nada ressuscita os mortos.
É tão próprio do ser humano saber que é mortal como esperar para lá morte. Mas é mesmo de esperança que se trata, pois a morte é a experiência de que o Homem não pode dar a si mesmo a salvação – ela é dom de Deus. O Novo Testamento só utiliza a palavra imortalidade duas vezes: uma em que se diz que só Deus possui a imortalidade, e outra em que se afirma que o nosso corpo mortal há-de revestir-se da imortalidade da ressurreição, o que significa que a imortalidade é um dom.
Então o crente dirá ao não crente, como escreveu o teólogo J. I. González Faus, recentemente falecido: espero que no fim, para lá da morte, encontrarás esse Pai ou Mãe ou essa Luz de braços abertos para ti, encontrarás esse Mistério último acolhedor.
Mas o não crente poderá responder ao crente: verás a surpresa que vais ter quando vires que não há nada.
Aí, ao crente só resta a resposta: valeu a pena viver como vivi, se vivi no bem. Acreditando, a minha vida foi mais humana, abriu-se a mais dimensões da realidade, encontrou Fundamento e Sentido último. A prova de que a fé dos crentes não é vã só pode ser a luta contra todas as formas de morte: a fome, a guerra, a injustiça, e a favor da liberdade, da dignidade, da paz, da realização plena de todos os seres humanos.
Páscoa feliz!
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia 19 de Abril de 2025
Na crónica anterior, reflectimos sobre o cuidado. Ora, a saúde está intrinsecamente vinculada ao cuidado. Viver é ser cuidado, é ter cuidado, é cuidar. Cuidar de nós, cuidar dos outros — a solidão mata —, cuidar da natureza, dos amigos — a vida sem amigos não presta, já observou Aristóteles —, cuidar da natureza, cuidar do Sagrado, da Transcendência, do sentido, Sentido último... Significativamente, o étimo de saúde é salus, salutis, que está na base também de salvação... E também dizemos que alguém está são, utilizando a mesma palavra para santo — por exemplo São José.
Vamos, pois, continuar a reflexão, retomando reflexões anteriores e chamando, desde já, atenção para que, quando se fala de saúde, devemos fazê-lo no sentido holístico (do grego, hólon: todo enquanto mais do que a soma das partes). No inglês, saúde diz-se health e santo diz-se holy, provindo as duas palavras de the whole — de novo o todo enquanto mais do que a soma das partes.
A saúde tem, portanto, um carácter pluridimensional. No sentido autenticamente humano inclui vários níveis:
a) a saúde somática: o bom estado físico, portanto, um organismo capaz de desempenhar normalmente as suas funções;
b) a saúde psíquica: autonomia mental para enfrentar as dificuldades do meio e capacidade para estabelecer relações gratificantes interpessoais e com o ambiente;
c) a saúde moral: se não se cuida da honra, da dignidade, da justiça, dos valores éticos— não se deve ignorar que valor vem do latim: vale!, que era a palavra usada pelos romanos para a saudação: vale!, passa bem,! —, o que se poderá esperar senão a hecatombe?
d) a saúde sócio-política: se não se cultiva uma política autêntica do diálogo leal para o bem comum e não da pura conquista do poder e interesse próprio, se não se cuida do cumprimento integral dos direitos humanos, da educação, da justiça, do meio ambiente, da habitação, da alimentação, da harmonia social, da saúde pública, como salvaguardarão as pessoas a sua saúde e a saúde dos outros? No meio dos horrores indescritíveis das guerras e da fome, onde e como poderão encontrar a saúde?
e) a saúde ecológica: se o homem é solidário da biosfera em geral, a sua saúde dependerá também da saúde ambiental: ar puro e não-contaminado, água limpa, ambiente belo, sem poluição sonora;
f) a saúde espiritual e religiosa: a dimensão de transcendência do ser humano tem de ser salvaguardada, num duplo sentido: a interioridade e a transcendência são elementos constituintes da saúde plenamente humana, mas será necessário prevenir contra crenças e ideias neuróticas, que prejudicam o ser humano...
Neste contexto, Francisco J. Alarcos, depois de considerar todos estes níveis e dimensões, esboçou a seguinte tentativa de definição: “A saúde é a capacidade de realizar eficazmente as funções requeridas num dado meio, e como este meio não deixa de evoluir, a saúde é um processo de adaptação contínua a múltiplos micróbios, contaminações, tensões e problemas que o Homem diariamente tem de enfrentar. Mas o sujeito humano está também em constante evolução. A saúde é a capacidade de adaptar-se a um meio ambiente que muda; capacidade de crescer, de envelhecer, de sarar, por vezes com sofrimentos inevitáveis, e finalmente de esperar a morte em paz.”
A saúde comporta viver com sentido e, portanto, estar a salvo de tudo o que desumaniza e impede a realização adequada e plenamente humana. Por exemplo, saudar (de salutem dare) significa que estar são inclui “dar saúde” a quantos nos rodeiam, viver em solidariedade com todos, na alegria e na dor. No sentido íntegro da palavra, saúde é sinónimo de viver humana e harmoniosamente, com inclusão da esperança e da abertura à transcendência. Há hoje imensos estudos científicos que mostram a relação positiva entre uma prática sadia da religião e a saúde e até maior longevidade.
Mas acontece que ficamos doentes. Então socorremo-nos dos médicos. Também aqui a etimologia das palavras é iluminante. Significativamente, o radical med., donde deriva em latim mederi, com o sentido de ponderar, curar, cuidar de, restabelecer o equilíbrio, está na base de moderação, medicina e meditação. Aí está, pois, a saúde com o sentido holístico de harmonia, e o médico e o doente não se encontram como um técnico e uma máquina (o corpo) desarranjada, mas como dois seres humanos em diálogo, estabelecendo um pacto: o doente entrega-se à solicitude de outro ser humano, que, afectado por um pedido, escuta compassivamente e põe a sua arte ao serviço de uma existência ameaçada.
Isso acontece, em princípio, numa clínica, num hospital. Veja-se, mais uma vez, a etimologia. Clínica provém do grego klínein, inclinar-se. Hospital relaciona-se com hóspede. Um hospital deveria ser, portanto, sempre o lugar da hospedagem acolhedora e amiga. Mas é-o realmente? Veja-se a conexão entre as palavras latinas hospes e hostis (hóspede e inimigo — hostil —, respectivamente), como pode ver-se, por exemplo, hoje na palavra hostal, como se o hóspede, enquanto estranho, fosse ou pudesse tornar-se alguém hostil. Nos hospitais, hoje, para lá da efectividade, torna-se, pois, urgente recuperar a afectividade da hospedagem, para que o doente e o moribundo possam ser reconhecidos na sua dignidade e não como alguém estranho e hostil.
É bom saber do sentido holístico de saúde — sem esquecer o filósofo Immanuel Kant dizendo que O Céu, para aliviar as muitas dificuldades, nos deixou três coisas: “A esperança, dormir bem, rir com alegria” —, que implica também, no meio da agitação constante, capacidade para parar e não esquecer o melhor e poder pensar e meditar e ouvir música e contemplar a beleza de uma simples folha de erva, de um pôr-do-sol e do céu estrelado na sua quietude exaltante... Outra vez a etimologia: pensar vem do latim pensare, pesar razões, mas de pensare provém também o penso sanitário: pensar cura. Aí está, pois, a ameaça hoje das redes sociais e do “dedar” constante e absorto nos ecrãs e as nefastas consequências desse brutal consumo para o cérebro ao nível da saúde mental e da capacidade para ler, reflectir, estudar...
Repetindo, a saúde está intrinsecamente vinculada ao cuidado. Viver é ser cuidado, é ter cuidado, é cuidar..., em ordem à plena realização humana.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia 29 de março de 2025
Entre as grandes obras filosóficas do século XX, figura uma do filósofo alemão Martin Heidegger: Sein und Zeit (Ser e Tempo). Nela, retoma a célebre fábula sobre o Cuidado, de Higino, um escravo culto (64 a. C.-16 d. C.). Fica aí, traduzida literalmente.
“Uma vez, ao atravessar um rio, ‘Cuidado’ viu terra argilosa. Pensativo, tomou um pedaço de barro e começou a moldá-lo. Enquanto contemplava o que tinha feito, apareceu Júpiter. ‘Cuidado’ pediu-lhe que insuflasse espírito naquela figura, o que Júpiter fez de bom grado. Mas, quando ‘Cuidado’ quis dar o próprio nome à criatura que havia formado, Júpiter proibiu-lho, exigindo que lhe fosse dado o seu. Enquanto ‘Cuidado’ e Júpiter discutiam, surgiu também a Terra (Tellus) e também ela quis conferir o seu nome à criatura, pois fora ela a dar-lhe um pedaço do seu corpo. Os contendentes invocaram Saturno como juiz. Este tomou a seguinte decisão, que pareceu justa: ‘Tu, Júpiter, deste-lhe o espírito; por isso, receberás de volta o seu espírito por ocasião da sua morte. Tu, Terra, deste-lhe o corpo; por isso, receberás de volta o seu corpo. Mas, como foi ‘Cuidado’ a ter a ideia de moldar a criatura, ficará ela na sua posse enquanto viver. E, uma vez que entre vós há discussão sobre o nome, chamar-se-á ‘homo’ (Homem), já que foi feita a partir do húmus (Terra)’.”
Martin Heidegger, um dos maiores filósofos do século XX, retoma a fábula e reflecte sobre o cuidado enquanto estrutura essencial do ser humano. Cuidar e ser cuidado são determinantes da sua constituição. O que seria de nós, se, ainda dentro do ventre materno, não houvesse cuidado, se, ao nascermos e depois do nascimento, não cuidassem de nós? O cuidado nunca nos pode abandonar. Sem o cuidado ao longo da vida toda, do nascimento à morte, o ser humano desestrutura-se, sente-se perdido, só, não encontra sentido e acaba por morrer, entregue ao abandono.
O cuidado tem uma dupla vertente. Por um lado, significa preocupação mais ou menos ansiosa e a consequente prevenção. É assim que os pais dizem aos filhos, ameaçados por perigos: tem cuidado, filho; tem cuidado, filha! E prevenimos os amigos que nos pedem conselho: eu não iria por aí, tem cuidado, tenha cuidado, acautele-se! Por outro lado, e sobretudo, tem a ver com a entrega abnegada aos outros, cuidando deles em todas as dimensões, pois a perfeição do ser humano na realização das suas possibilidades mais próprias é tarefa do cuidado.
Cuidar de quem e de quê?
Claro, cuidar de nós, cuidar dos familiares e amigos, cuidar dos mais frágeis, cuidar da natureza, cuidar da espiritualidade, da transcendência..., de Deus em nós.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia 22 de março de 2025
1. No Dia Internacional da Mulher, solidarizando-me com todas as que lutam contra a misoginia da Igreja, retomo o que já aqui escrevi em 2011: “As mulheres têm motivo para estar zangadas com a Igreja, que as discrimina. Jesus, porém, não só não as discriminou como foi um autêntico revolucionário na sua dignificação, até ao escândalo.”
Veja-se a estranheza dos discípulos ao encontrar Jesus com a samaritana, que tinha tudo contra ela: mulher, estrangeira, herética, com o sexto marido, mas foi a ela que se revelou como o Messias. Condenou a desigualdade de tratamento de homens e mulheres quanto ao divórcio. Fez-se acompanhar — coisa inédita e mesmo escandalosa na época — por discípulos e discípulas. Acabou com o tabu da impureza ritual. Estabeleceu relações de verdadeira amizade com algumas. Maria Madalena constitui um caso especial nessa amizade: ela acompanhou-o desde o início até à morte e foi ela que primeiro intuiu e fez a experiência avassaladora de fé de que o Jesus crucificado não foi entregue à morte para sempre, pois é o Vivente em Deus, como esperança e desafio para todos os que crêem nele, a ponto de Santo Tomás de Aquino e outros, apesar da sua misoginia, a declararem a “Apóstola dos Apóstolos”, precisamente por causa do seu papel fundamental na convocação dos outros discípulos para a fé na Ressurreição: na morte, não caímos no nada, pois entramos na plenitude da vida em Deus, Deus de vivos e não de mortos. Aliás, já São Paulo, na Carta aos Romanos, pede que saúdem Júnia, “Apóstola exímia”.
2. Num dos seus últimos escritos, o teólogo José M. Castillo veio lembrar a mesma coisa. Quando se lê os Evangelhos, o que constatamos é que Jesus teve conflitos e confrontos com vários grupos, desde as mais altas autoridades religiosas até aos discípulos que o acompanhavam: a Pedro, por exemplo, chegou a chamar-lhe Satanás. Mas há um dado que “chama poderosamente a atenção: as mulheres são o único grupo com o qual Jesus não teve problema algum, inclusivamente naquele caso da mulher cananeia que suplicava a cura da sua filha doente; parece que Jesus lhe deu uma má resposta, mas o carinho daquela mãe foi tão intenso que até fez Jesus dizer: ‘Mulher, como é grande a tua fé!’. E a filha ficou curada.”
Castillo insiste que Jesus esteve sempre do lado das mulheres, mesmo quando eram adúlteras ou prostitutas. Jesus deixou que uma mulher o perfumasse com perfume caro, ou lhe beijasse os pés com lágrimas e lhos enxugasse com os cabelos. E foram as mulheres que se mantiveram sempre fiéis no caminho do Calvário e depois da morte, diante da Cruz. E foram as primeiras testemunhas do Ressuscitado, do Jesus vivo em Deus para sempre.
E, atravessando a história da Igreja, lança a pergunta: “Como é possível o que está a acontecer? Se há tantos bispos que vivem em palácios, usam vestimentas que já ninguém usa, têm privilégios que ninguém mais tem, julgam ter poderes que Deus lhes deu a eles e a mais ninguém, não é lógico e inevitável que na Igreja esteja a acontecer o que todos vemos?” E conclui: “Como é possível que as mulheres continuem nesta Igreja que as marginaliza, as exclui, as anula em tantas coisas...? Porque é que hão-de continuar numa Igreja que, apoiada em séculos, nega e resiste a que celebrem Missa ou que possam ser esposas de padres? Se Jesus não proibiu nada disso, porque é que havemos de ser nós a proibir e, para cúmulo, ficando com a consciência do dever cumprido? O que é mais importante: agradar a uns tantos cardeais ou servir toda a gente?”
3. A Igreja continua a ser um dos maiores esteios da sociedade patriarcal. Até inconscientemente, com a doutrina tradicional, embora esta não encontre apoio no Evangelho.
Dou três exemplos.
Eva, que estaria, segundo a doutrina tradicional, a partir de uma leitura literal da Bíblia, na base do “pecado original”, criou a imagem da mulher tentadora, associada ao pecado.
Quando João Paulo I se referiu a Deus como Mãe foi um escândalo tal que não faltaram os protestos, clamando que Deus é Pai e não Mãe. Para esta visão, contribuiu também o desconhecimento da biologia. De facto, o óvulo feminino só foi descoberto em 1827. Por isso, na geração, a mulher era passiva e não activa. Neste quadro, nunca se poderia rezar o Credo, começando assim: “Creio em um só Deus, Mãe toda-poderosa, criadora dos céus e da terra...” nem rezar o “Pai Nosso”, dizendo “Mãe Nossa”. Mas, em relação a esta concepção, é preciso tomar consciência de que Deus está para lá da determinação sexual e, por isso, tanto nos podemos dirigir a Ele como Pai ou como Mãe, melhor: Pai/Mãe...
Também se diz que Deus encarnou no homem Jesus. Sim, esta afirmação é clara para a fé cristã, desde que não se ignore que, no Evangelho de São João, se lê que o Logos, que é Deus, se fez carne, no sentido de humanidade frágil. De facto, a palavra utilizada no original grego é “sárx”, que significa precisamente a humanidade enquanto frágil, e não “anér, andrós”, que se refere ao homem masculino (daí, andrologia e androcentrismo). Deus manifestou-se, revelou-se a todo o ser humano, na humanidade frágil do homem Jesus.
Neste contexto, pergunta-se: a mulher não poderá presidir à Eucaristia? Já há anos, o então cardeal-patriarca de Lisboa, José Policarpo, que sabia Teologia, fez uma declaração que teve muito eco nos média, inclusive estrangeiros: “Teologicamente não há nenhum obstáculo fundamental” à ordenação de mulheres. A recusa baseia-se apenas na tradição. É evidente que, perante esta afirmação, os protestos choveram e o meu amigo cardeal José Policarpo, por pressão do Vaticano, teve de recuar, dando esclarecimentos. Mas, evidentemente, era ele que tinha razão, como também outros cardeais reconhecem.
Para contrapor, invoca-se que na Última Ceia não houve mulheres. Ora, esta afirmação é contestada por grandes exegetas. De qualquer modo, onde é que está que Jesus ordenou alguém “in sacris” naquela noite? Mais: o famoso biblista, talvez o maior exegeta do século XX, Herbert Haag, da Universidade de Tubinga, com quem tive o privilégio de privar, ironizou: como eram só judeus os presentes, então a Igreja devia ordenar só homens judeus!... Sobretudo: é sabido que as primeiras comunidades cristãs — não havia igrejas nem capelas nem basílicas ou catedrais — se reuniam na casa de cristãos mais abastados, pois sempre teriam uma casa mais ampla, e quem presidia era o dono ou a dona da casa. Então, se já foi possível mulheres presidirem à Eucaristia...
A questão da mulher na Igreja tem, pois, de ser revista. Para não ferir o que Jesus disse: “Sois todos irmãos e iguais” nem este princípio fundamental do Concílio Vaticano II: “Toda a forma de discriminação nos direitos fundamentais da pessoa por razão do sexo deve ser vencida e eliminada, por ser contrária ao plano divino.”
Afinal, a linguagem que nos leva a dizer: “a Igreja discrimina as mulheres” revela bem onde reside o nervo do problema. Que Igreja é que discrimina? Quem é a Igreja? Evidentemente, ao dizer que a Igreja discrimina as mulheres, estamos a referir-nos à Igreja hierárquica: Papa, cardeais, bispos, padres, cónegos, monsenhores — com duas classes: clero e leigos —, quando o que Jesus queria era a Igreja como comunidade de comunidades, que obriga a dizer: “a Igreja somos nós”, a comunidade dos baptizados, homens e mulheres, uma comunidade de iguais, com carismas e ministérios vários ao serviço de todos, entre eles, o da presidência da Eucaristia, exercido por homens ou mulheres.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia 8 de março de 2025
Estátua do Imperador Constantino I. Foto: Angelina Dimitrova / Shutterstock.com
Nos Estados, há cerimónias oficiais, sendo natural que se estabeleça um protocolo de Estado. Em Portugal, já houve um debate à volta disso, e a Igreja católica e as outras confissões religiosas deixaram de ter lugar no protocolo.
É assim que deve ser. De facto, a que título é que as autoridades religiosas haveriam de surgir na lista de precedências no protocolo, concretamente num Estado regido pelo princípio da não confessionalidade, portanto, da separação da(s) Igreja(s) e do Estado?
“Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”, foi programaticamente declarado por Jesus Cristo. Esta separação do político e do religioso não tinha sentido na Grécia, que não separava o cívico e o cultual, nem para o judaísmo, que unificava nação e religião. Como escreveu Régis Debray, em Jerusalém, Atenas e Roma, “o ritual cívico é religioso, e o ritual religioso é cívico”. Para as três culturas que estão na base da nossa, alguém que estivesse fora da religião estava fora da Cidade.
Contra o preceito de Cristo que delimitou campos de poder, Constantino, apesar da sua “conversão” ao cristianismo, não esqueceu a divinização imperial e intrometeu-se nas questões da Igreja, convocando concílios, condicionando ou mesmo determinando as suas decisões. O Papa Bonifácio VIII formulou a teoria das duas espadas, segundo a qual o Papa detém o poder espiritual e o temporal, mas, se exerce o primeiro directamente, delega o segundo nos príncipes, que o exercem em representação do Papa. Para se defenderem dos Papas, os monarcas reivindicaram o direito divino dos reis. Mesmo Lutero afirmou o carácter divino de toda a autoridade estabelecida.
A modernidade impôs a secularização, pondo fim a equívocos próprios da Cristandade e de césaro-papismos. Mesmo que se não esteja completamente de acordo com autores que sustentam que a secularização é um fenómeno produzido pela fé cristã, é necessário afirmar que, ainda que, de facto, tenha tido de impor-se contra a Igreja oficial, a secularização, no sentido da autonomia das realidades terrestres e concretamente da separação da Igreja e do Estado, tem raízes bíblicas.
O monoteísmo desdivinizou a política e os detentores do poder político. O profeta Ezequiel advertiu o rei de Tiro: “Tu és um homem e não um deus”. Jesus deixou aquela palavra decisiva sobre Deus e César. Por isso, os cristãos opuseram-se frontalmente à divinização do imperador, proclamando que “só Deus é o Senhor” e recebendo em troca a acusação de ateísmo.
Em ordem à dessacralização da política e à consequente separação da Igreja e do Estado, foram decisivas as guerras de religião na Europa. De facto, só mediante essa separação, que significava a neutralidade religiosa do Estado, era possível a garantia da liberdade religiosa de todos os cidadãos sem discriminação. Com a desconfessionalização do Estado, os cidadãos tornaram-se livres de terem esta ou aquela religião ou nenhuma.
É, porém, importante perceber que essa exigência não deriva apenas da necessidade do estabelecimento da paz política e civil, mas da natureza do cristianismo. A própria fé impõe essa separação. De facto, sem ela, espreita constantemente o perigo de idolatria, isto é, de confusão ou até de identificação entre Deus e a política.
Um Estado confessional põe em causa a transcendência divina. Por outro lado, acaba por impor politicamente o que só pode ser objecto de opção livre. Ninguém nasce cristão, mas as pessoas podem livremente escolher o cristianismo. Só homens e mulheres verdadeiramente livres podem aderir à fé religiosa e a Deus.
Jesus recusou a tentação de ser um Messias político, embora tenha sido condenado à morte como blasfemo e subversivo social e político, pois a sua mensagem, que não se confunde com a política, tem consequências sócio-políticas. E é aqui que reside o núcleo da questão. A Igreja não pode fazer política partidária. Mas isso não significa que deva ou possa remeter-se para a tranquilidade beata das sacristias. O seu interesse e caminho é o Homem, e isso exige uma intervenção pública na denúncia das injustiças e na defesa e promoção da dignidade humana toda.
A Igreja não precisa nem quer privilégios, pois apenas pede para si o que exige para todos: liberdade. Antes de mais, liberdade para defender os mais desfavorecidos, os velhos, os reformados pobres... Aliás, de um modo ou outro, a factura das precedências no protocolo do Estado e dos privilégios em geral acabaria sempre por chegar, tolhendo-lhe a independência crítica. Isto não significa que não possa e até deva haver uma colaboração sadia entre a Igreja e o Estado para o bem comum, concretamente no referente a questões sociais.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia 18 de fevereiro de 2025
Santo Agostinho é um génio. E a sua influência foi determinante para o homem europeu, e, depois, com a missionação, para a humanidade, sendo necessário acrescentar que esta influência foi para o bem e para o mal. Como exemplo da influência negativa pense-se no seu pessimismo, que o levou à convicção de que o prazer sexual está sempre ligado ao pecado, pois a finalidade da relação sexual devia ser unicamente a procriação.
Baseado na tradução latina da Carta de S. Paulo aos Romanos, 5,12, referente a Adão: "no qual todos pecaram", Santo Agostinho, contra o texto original grego, que diz: "porque todos pecaram", interpretou — ele não sabia grego — que o pecado de Adão não é apenas o primeiro da série de todos os pecados cometidos pelos homens e mulheres ao longo da História, mas que esse pecado é um pecado hereditário, de tal modo que é um pecado de todos, transmitido por geração no acto sexual. Portanto, o recém-nascido não é inocente, nasce em pecado, do qual, para evitar a condenação eterna, só o baptismo o pode libertar. Foi pelo pecado de Adão que veio todo o mal ao mundo, incluindo a morte. Esse pecado tornou a humanidade toda "massa condenada" ao inferno, do qual só alguns são libertados pela graça imerecida de Deus. Pelo pecado, Adão destruiu um bem que podia ser eterno, tornando-se merecedor, ele e todos nele, de um mal eterno: "Daqui — escreve ele —, a condenação de toda a massa do género humano, pois o primeiro culpado foi castigado com toda a sua posteridade, que estava nele como na sua raiz. Assim ninguém escapa a esse suplício justo e devido, a não ser por uma misericórdia e uma graça indevidas. E é tal a disposição dos homens que nalguns aparece o valor de uma graça misericordiosa e nos outros o de uma justa vingança". Assenta aqui a doutrina da dupla predestinação, que continuaria radicalizada sobretudo em Calvino.
É neste enquadramento que surge a festa que se celebra dia 8 de Dezembro, com feriado nacional: a Imaculada Conceição de Nossa Senhora. Quer dizer, Maria, a mãe de Jesus, seria uma excepção, pois teria sido concebida sem pecado original.
É claro que, como já aqui expliquei, não há pecado original como o entendeu Santo Agostinho. Jesus não falou no pecado original, e que mãe acredita que o seu bebé acabado de nascer foi gerado em pecado? Assim, o que de facto se celebra é a esperança de que no final se realize o Reino de Deus na sua plenitude, pondo termo a todo o calvário do mundo, ao horror do sofrimento sem nome, a esse cortejo infindo de ódio, de malvadez, de vingança, de loucura, de pecado, que realizou todo o mal e toda a tragédia e todas as lágrimas que causamos uns aos outros e o número incontável de vítimas inocentes...
Do ponto de vista filosófico, Theodor Adorno, agnóstico, exprimiu assim a ânsia de redenção, que habita no coração de todos os homens e mulheres: "Face ao desespero, o único modo que ainda resta à filosofia de responsabilizar-se é a tentativa de considerar todas as coisas como aparecem desde o ponto de vista da redenção. A única luz do conhecimento é a que brilha no mundo desde a perspectiva da redenção": tudo o mais é apenas técnica.
No fundo, o que se celebra é a “santa esperança”, como dizia Péguy, a esperança de que a paz, a justiça, a fraternidade, a salvação, a vida eterna, um dia irrompam no mundo para todos. Para que a história do mundo e da humanidade não desemboque pura e simplesmente no sem sentido.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 8 de dezembro de 2024
É preciso ver o invisível e vê-lo precisamente no visível. É necessário voltar à terra e ver aí e daí os sinais que Deus nos faz: no céu estrelado, na rosa que dá perfume sem porquê, como escreveu Angelus Silesius, sobretudo no sorriso de uma criança e na visita de qualquer rosto de homem ou mulher e seja qual for a sua origem ou cor...
Mas não basta aprender a ver. É necessário igualmente saber ouvir. Não será por isso que a arte, cujo referente é o invisível no visível, tem as suas supremas expressões na pintura, na escultura e na música? A grande música está aí essencialmente para dizer o indizível, dando-lhe voz...
Entre os primeiros sons que teremos ouvido, está o do bater do coração da nossa mãe. Por isso é que há aquele brinquedo simples, dos japoneses, segundo creio, cuja única façanha é imitar o bater do coração humano. Quando o bebé chora, ao ouvir o bater desse brinquedo, que lhe recorda o coração materno, deixa de chorar, tranquiliza-se. Depois, deram-nos um nome, e, ainda hoje, ouvindo o nosso nome, sabemos que é a nós que chamam. Aprendemos a falar, ouvindo e imitando outros humanos que proferiam sons articulados...
No século XVIII, dizia-se que, se um macaco falasse, estariam dispostos a baptizá-lo: de facto, é pela linguagem que o Homem verdadeiramente é humano. Mas não é suficiente falar. É ouvindo-nos mutuamente que tomamos consciência da nossa igualdade radical enquanto seres humanos. Não há, não pode haver de um lado aqueles que falam e do outro aqueles que apenas ouvem. Portanto, os estudantes devem ouvir os professores, mas os professores também têm que ouvir os estudantes. Que os cristãos ouçam o papa, os bispos, os padres, mas que o papa, os bispos, os padres ouçam também os outros cristãos, que não podem ficar reduzidos à passividade… Os empregados ouvirão os encarregados e patrões, mas estes deverão igualmente ouvir os operários, pois têm algo a dizer e eventualmente direitos legítimos a reclamar. Onde é que estaria a democracia, se os governantes não escutassem os outros cidadãos?
O bebé reencontra a tranquilidade, recordando o bater do coração materno. Todo o ser humano precisa de ouvir palavras de afecto. Mas hoje quem lhas dirige? Todo o ser humano tem necessidade de desabafar, mas quem está disposto a ouvir os velhos, os doentes, os moribundos? E não encontramos pessoas a falar sozinhas nas ruas?
Afinal, a vida familiar não se afunda frequentemente, porque o marido não tem tempo ou disposição para ouvir a mulher e a mulher ouvir o marido? E não será também porque os pais não escutam os filhos nas suas histórias, nas suas perguntas, nos seus anseios, que os jovens seguem por caminhos que levam ao abismo? Ah! Todos a dedar nos smartphones… E quem fala? Quem ouve?
Precisamos de aprender a ouvir o marulho do mar naquele seu desdobrar-se imemorial, e o bater de asas dos pássaros, e o leve murmúrio das folhas das ervas e das árvores tocadas pela brisa... Precisamos de aprender a ouvir música, a grande música, para reencontrar a paz e a voz do essencial indizível.
Se tivéssemos tempo para nos sentarmos e meditar e escutar o silêncio e a voz da consciência, teríamos evitado tantos erros e disparates e tragédias!... Anda por aí um barulho ensurdecedor, mas quem ouve o silêncio no qual se acendem as palavras da sabedoria?
E se um dia nos dispuséssemos também a ouvir o Divino, que permanentemente se nos dirige?... E a pergunta pelo sentido da vida?
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 1 de dezembro de 2024