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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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SALMAN RUSHDIE E O DIÁLOGO INTER-RELIGIOSO

Ruhollah Khomeini
  Ruhollah Khomeini © Mohammad Sayyad

 

1.  Em 2006, realizou-se, em Santa Maria da Feira, o V Simpósio “Sete Sóis Sete Luas”, que teve como tema “Qual é o Deus do Mediterrâneo?” Foram conferencistas Salman Rushdie, Cláudio Torres e eu próprio. O debate, moderado por Carlos Magno, durou quatro horas, com uma assistência atenta, que esgotou todos os lugares disponíveis da auditório da Biblioteca Municipal.

       Evidentemente, a figura central era Salman Rushdie contra quem tinha sido lançada em 1989 pelo ayatollah Khomeini uma fatwa, isto é, um decreto religioso, condenando-o à morte por blasfémia. Trinta e três anos depois, no passado dia 12 de Agosto, Rushdie foi esfaqueado, quando se preparava para uma palestra em Nova Iorque. O atacante é Hadi Matar, um homem de 24 anos, de origem libanesa. A fatwa nunca foi levantada e havia até um prémio de mais de 3 milhões de dólares para quem assassinasse o acusado de blasfémia por causa do livro Os Versículos Satânicos.

     Quais são esses famosos versículos? Dois que não figuram nas versões ortodoxas do Alcorão. Lê-se, de facto, na sura (capítulo) 53, versículos 19 e 20, da Vulgata: “E que vos parecem al-Lat, Al-Uzz e a outra, Manat, a terceira?”. A estes versículos, na tradução francesa de Régis Blanchère, que sigo, acrescentam-se mais dois (20bis e 20ter), os “satânicos”: “Elas são as Deusas Sublimes e a sua intercessão é certamente desejada.” Tratava-se de divindades do politeísmo pré-islâmico, representando, portanto, aquilo que Maomé mais fustigou por causa do seu monoteísmo puro, “sem associados”.

    Se a negação do monoteísmo é o único pecado sem perdão, pergunta-se: como pôde o Profeta declarar sublimes aquelas deusas? A explicação está em que estes versículos foram transmitidos ao Profeta por Satanás, e o modo usado por Deus para acabar com eles, versículos ímpios, consiste em “abrogá-los”, de tal modo que não figuram na Vulgata. Mas então surge uma nova pergunta, segundo Quentin Ludwig: “Porque é que Deus não esteve à altura de ditar imediatamente o versículo perfeito? Porque é que Deus deixou Satanás exprimir-se? E se Maomé se deixou levar por Satanás uma vez, quem pode dizer que não existem outros versículos satânicos no Alcorão?”

 

2.  Aqui chegados, é fundamental relembrar Hans Küng: “Não haverá paz entre as nações sem paz entre as religiões. Não haverá paz entre as religiões sem diálogo entre as religiões. Não haverá diálogo entre as religiões sem critérios éticos globais. Não haverá sobrevivência do nosso planeta sem um ethos (attitude ética) global, um ethos mundial.”

    E impõe-se, em ordem a um debate sem confusões, uma distinção essencial. Há a religiosidade, que, no movimento de transcendimento que pergunta pelo fundamento último, sentido último, procurando salvação, se defronta com o Sagrado, o Mistério. Crente é aquele que se entrega confiadamente a esse Mistério-Sagrado, do qual espera precisamente sentido último, salvação. Depois, neste enquadramento, entende-se que apareçam as religiões institucionais, que são construções humanas enquanto mediações entre o Mistério ou Sagrado, Deus, e os homens e as mulheres e entre estes e o Mistério, Deus. Assim, as religiões têm de tudo: do melhor e do pior, como se constata através da História. Nesta distinção entre religiosidade, religiões, e Sagrado-Mistério, entende-se que as religiões estão referidas ao Sagrado, ao Mistério, Deus, mas não são Deus, o Sagrado, o Mistério, que todas tentam dizer, mas a todas transcende.

    A partir destes pressupostos, percebe-se que o diálogo inter-religioso, essencial para o futuro da Humanidade, tem de assentar nalguns pilares fundamentais. Todas as religiões, desde que não se oponham ao Humanum, mas, pelo contrário, o dignifiquem e promovam, têm verdade. Outro pilar diz que todas são relativas (do verbo irregular latino refero, relatum), num duplo sentido: nasceram e situam-se num determinado contexto histórico e social e, por outro lado, estão relacionadas, referidas ao Sagrado, ao Absoluto, Deus. Estão referidas ao Absoluto, Deus, mas nenhuma o possui, pois Deus enquanto Mistério último está sempre para lá de tudo quanto possamos pensar ou dizer dEle. Precisamente por isso, uma vez que nenhuma o possui na sua plenitude, devem dialogar para, todas juntas, tentarem dizer menos mal o Mistério, Deus, que a todos convoca.  Por isso, por paradoxal que pareça, do diálogo fazem parte também os ateus, porque, estando de fora, mais facilmente podem ajudar os crentes a ver a superstição e a inumanidade que tantas vezes envenenam as religiões.

   Exigência intrínseca da religião na sua verdade é a ética e o compromisso com os direitos humanos, a realização plena de todas as pessoas, a salvaguarda da Terra. A violência em nome da religião contradiz a sua essência, que é a salvação. Aliás, antes de sermos crentes ou não, o que a todos nos une é a humanidade comum e a dignidade de pessoas, de tal modo que, face a um Deus que legitimasse a violência, o ódio, mandasse matar em seu nome, impunha-se uma obrigação moral: ser ateu.  

    E dois princípios irrenunciáveis: a leitura não literal, mas histórico-crítica dos livros sagrados — Deus não falou directamente com ninguém —, e a laicidade do Estado — só mediante a neutralidade religiosa do Estado é possível garantir a liberdade religiosa de todos sem discriminação. Mas laicidade não é laicismo, que pretende retirar a religião do espaço público.

 

    Esta crónica despede-se com saudades até Outubro.

   

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 27 de agosto de 2022

 

     

 

CARTAS PARA A OUTRA MARGEM

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   Minha Princesa de Além:

 

   Caiu-me outra vez em cima aquele anúncio da RTP, empresa pública de televisão, a propagandear a possibilidade dos seus espectadores poderem ver os melhores programas em directo ou on demand... No nosso tempo, Princesa ainda de mim, dir-se-ia a pedido... Mais claramente, e em português. Mas "eles" é que são o serviço público...

   Tal possidónia advertência calhou no meio de entrevistas e comentários acerca dos recentes acontecimentos no Afeganistão. Para além dos muitos habituais erros de português dos "nossos" locutores(as) em directo ou "on demand" (de quem?), apenas se foram repetindo os cansados discursos ideológicos que teimosamente pretendem saber analisar e explicar as situações dramáticas em que se encontram milhões de vidas humanas, sobretudo porque as chamadas grandes potências persistem em perspectivar e realizar as suas políticas de acordo com critérios ordenados por considerações exclusivas do que entendem ser os seus imediatos interesses próprios. Tenho para comigo que a complexidade da presente questão islâmica, e, sobretudo, o crescente poder disruptor dos movimentos extremistas (quiçá mentecaptos) sobre a necessária convivialidade das comunidades e culturas que integram a nossa sociedade global, não podem ser enfrentadas por perspectivas imediatistas, quer na nossa reflexão, quer no labor da construção de pontes e entendimentos. Aliás, não esqueçamos que Portugal, por exemplo, não tem de seu qualquer centro capaz de estudos islâmicos, nem de línguas e culturas orientais (do médio ao extremo oriente)...

   Quando falo ou escrevo sobre Serge de Beaurecueil, dominicano francês, saído do Instituto Dominicano de Estudos Orientais do Cairo e professor de mística persa na universidade de Cabul, poucos portugueses sabem quem ele foi, menos ainda saberão falar sobre essa matéria ou acerca da poesia persa que teve no Afeganistão alguns dos seus melhores cultores. Foi aliás aí, na pátria da primeira religião monoteísta (a de Zoroastro) que, ao longo dos tempos, foram surgindo muitos - e dos maiores - místicos muçulmanos da Ásia ocidental. Não foi por acaso que um padre católico foi titular de uma cátedra de mística persa na universidade da capital afegã. Sem que houvesse sincretismo, a convivência de várias religiões foi-se desenvolvendo em espírito ecuménico.

   O professor Thomas Sizgorich, no seu Violence and  Belief in Late Antiquity - Militant Devotion in Christianity and Islam (Filadélfia, 2009) aponta bem como o Islão parece ter conhecido, desde os seus primórdios, a coexistência do combate bélico com uma luta ascética contra as fraquezas humanas. E Sizgorich relaciona o Islão nascente com antecedentes da antiguidade tardia, através da figura do monge cristão, voluntariamente violento por Deus e contra os seus próprios vícios. Philippe Buc, professor nas universidades de Viena (Áustria) e Stanford (EUA), no seu Holy War, Martyrdom and Terror - Christianity, Violence and the West (Filadélfia, University of Pennsylvania Press, 2015), explica: Maomé e aqueles que, com ele, contribuiram para criar a tradição viviam, de facto, numa ecumenecidade abraâmica, em que lado a lado estavam todos os géneros de monoteísmos, entre os quais várias seitas cristãs. Para estas, os monges desempenhavam o papel de figuras exemplares, portadoras de sentido, guardiãs da identidade e da pureza religiosa dos seus grupos, em razão da sua capacidade de sofrer o martírio e de reagir com força contra o que consideravam desvios dogmáticos. Assim surge, muito precocemente, um dispositivo análogo à combinação combate material/combate espiritual, característica das trajectórias ocidentais. O jihad dito «maior», equivalente da «militia spiritualis», todavia, só foi teorizado nos séculos  X-XI, sobretudo por sufis desejosos de proclamar a superioridade dos combates interiores contra os vícios. A direcção primeira da elaboração teológica muçulmana iria assim de uma revelação complexa a uma simplificação que daria prioridade à espada, enquanto que o jihad «maior», equivalente islâmico da guerra espiritual cristã apenas obteve um estatuto comparável (e, até, superior) ao do jihad material, já relativamente tarde. 

   Convém recordar aqui que a expansão islâmica inicial foi uma "guerra santa" de conquista, em que o proselitismo religioso sustentava políticas e guerras conduzidas pelos primeiros califas que, aliás, nas suas escolas corânicas (em que o ensino se fazia em árabe, a «língua de Alá») iam acrescentando, conforme os seus objectivos e estratégias, os hadith ou ditos do profeta, que hoje desempenham um papel fundamental na pregação da facção sunita do Islão. A prioridade da espada, por outro lado, também pode explicar o estatuto das mulheres nas comunidades mais radicais, designadamente nos reinos e emiratos da Arábia e Golfo Pérsico e nos movimentos extremistas como os talibã. E se considerarmos o martírio da morte em guerra santa numa perspectiva apocalíptica, melhor perceberemos porque são virgens que aguardam a chegada dos mártires à outra margem. Mas disso falaremos em próxima carta.

 

   Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira

 

A VIDA DOS LIVROS

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   De 26 de abril a 2 de maio de 2021

 

Hans Küng, há pouco desaparecido, deixou-nos a obra fundamental “Religiões do Mundo - Em busca dos pontos comuns”, publicado entre nós na editorial Multinova (2005). Lembramos a colaboração ativa do teólogo na revista “Concilium” portuguesa, animada por Helena Vaz da Silva, e o facto de ter estado entre nós numa iniciativa da nossa saudosa presidente.

 

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HOMEM DE TODAS AS ESTAÇÕES

O teólogo católico Hans Küng (1928-2021) morreu a 6 de abril em Tubinga e deixou uma herança intelectual, filosófica e teológica de grande valor. Pode dizer-se que as suas reflexões e a sua obra constituem elementos perenes, para além do horizonte do nosso tempo e do catolicismo. O futuro se encarregará, por certo, em especial no domínio da cultura da paz e do diálogo inter-religioso, de demonstrar como a cultura moderna se enriquece graças à compreensão de que a razão e o sentimento, a ciência e a espiritualidade se completam permitindo que a humanidade se aperfeiçoe e se emancipe, assumindo os limites do conhecimento e a necessidade de fazer do diálogo entre civilizações uma verdadeira troca de experiências, devendo cada qual ser capaz de se colocar no lugar do outro. Só com essa capacidade será possível criar uma verdadeira consciência comum, que impeça a violência ou a intolerância por motivos religiosos ou culturais. Longe de entender o mundo das religiões como imóvel, silencioso e estático, incoerente e contraditório, importa partir de uma informação séria e bem comprovada, de uma orientação que possa servir de ajuda para enfrentar a complexidade e a multiplicidade das religiões e de uma motivação que estimule uma atitude nova frente à religião e às religiões – de forma a reconhecer a dimensão universal do respeito mútuo e da dignidade humana. Daí a exigência de paz entre os homens, num momento em que há a tentação para o fechamento e a intolerância, centrados em novos dogmatismos. E assim o teólogo afirmou: “Não haverá paz entre as nações, se não existir paz entre as religiões; não haverá paz entre as religiões, se não existir diálogo entre as religiões; não haverá diálogo entre as religiões, se não existirem padrões éticos globais; o nosso planeta não irá sobreviver se não houver um ethos global, uma ética para o mundo inteiro”. E não se julgue que é fácil levar este entendimento à prática.

 

CATOLICIDADE CRÍTICA

Na sequência do Concílio Vaticano II, o teólogo desempenhou um papel de grande importância, persistindo numa “catolicidade crítica”, exercida a partir de dentro da Igreja – uma vez que só uma voz que persista no espírito dos apóstolos pode contrariar eficazmente a deserção dos lugares de culto, a secularização crescente da sociedade, a rarefação de candidatos a funções religiosas e a revelação de abusos dos clérigos. Daí invocar na sua obra os exemplos de Erasmo, de Tomás Morus ou de Monsenhor Romero – e a partir deles assumir a ideia de liberdade teológica, exercida com rigor. E foi essa fundamentação sólida do pensamento que lhe permitiu ser respeitado, mesmo pelos seus críticos – que, aliás, sempre afirmou respeitar e considerar. Por outro lado, contra um certo “restauracionismo” ou recuo em relação aos avanços conciliares, defendeu um cristianismo fiel a uma ideia de serviço, mais próximo da Bíblia e de Jesus e menos subordinado à organização em pirâmide da Igreja. Como suíço, Hans Küng procurou articular catolicismo e democracia, dando ao “povo de Deus” um sentido de liberdade e responsabilidade – invocando nas suas “Memórias” (2006-2010) o exemplo do educador Franz Xavier Kauffmann, que encontrou quando tinha 12 anos, e que foi um apelo irreversível no sentido da vivência e do exemplo das bem-aventuranças. Assim, a democracia e a colegialidade, foram para o teólogo elementos fundamentais e de uma grande pertinência. Por isso, distinguiu, como corolário lógico do seu pensamento, fidelidade à vontade de Deus, Jesus, e obediência ou submissão total às regras, devendo a fidelidade prevalecer relativamente à obediência. Estudioso sistemático da “nova teologia francesa” de Teilhard de Chardin, Henri de Lubac e Yves Congar, o padre, ordenado em 1954, desenvolveu, de forma pioneira, a noção aberta e moderna de ecumenismo – dialogando ainda com Rudolf Bultmann e Karl Barth, a partir da compreensão de um Jesus histórico, da vivência do Seu exemplo e de um compromisso necessário em nome da dignidade humana. Foi, assim, muito relevante a criação do Instituto de Investigações Ecuménicas em Tubinga (1960-1996) e os passos corajosos que deu no sentido de mobilizar vontades num esforço de verdadeira compreensão mútua.

 

A FORÇA DA GRAÇA DIVINA

Em lugar de uma atitude conformista, indiferente ou pessimista, Hans Küng centra-se na capacidade criadora e na força da Graça divina, livre e corajosa, à imagem dos Atos dos Apóstolos. Como espírito atento ao mundo e aos sinais dos tempos, salientou a importância das artes e da arquitetura contemporânea. Os novos caminhos artísticos permitiriam uma vivência religiosa mais autêntica e uma melhor inserção na cultura contemporânea. Não escondeu, assim, de modo persistente, a enorme esperança depositada no Concílio Vaticano II, a partir da audácia de João XXIII, invocando ainda as ideias lançadas nos anos sessenta, designadamente na “Nova Fronteira” de John Kennedy. Estudou os cinco paradigmas da História da Igreja: o original judaico-cristão, o helenístico, o romano-católico medieval, o da Reforma e o da modernidade – afirmando a recusa de uma atitude retrospetiva ou medieval no pensamento religioso. Depois de 1965, foi, assim, um dos animadores da revista internacional “Concilium”, com grande repercussão internacional, lançada em língua portuguesa por António Alçada Baptista e Helena Vaz da Silva. Hans Küng realizou, aliás, duas conferências em Portugal em 5 e 7 de abril de 1967, ambas muito concorridas, a primeira na Igreja de Santa Isabel, com a assistência de cerca de mil pessoas e ainda no Colégio do Rosário do Porto, com cerca de quinhentas. O tema foi “A liberdade dentro da Igreja”, a merecer um grande interesse de cristãos e não cristãos, havendo até uma nota da PIDE sobre a iniciativa. Infelizmente, a revista não durou muito, pela censura e pelas condicionantes políticas e económicas.

O pensador suíço-alemão, apesar de lhe ter sido retirado o mandato canónico para ensinar em Tubinga, nunca foi impedido de exercer o seu múnus sacerdotal – tendo-se dedicado nos últimos anos ao projeto “Ética planetária – Paz mundial pela paz entre as religiões”. Nessa causa foi inspirado por Lorde Menuhin, que lançara a ideia de diálogo universal na série televisiva “The Music of Man”. A partir daí, o teólogo suíço avançou para as religiões. “Yehudi Menuhin precisava apenas de pegar no seu violino ou na sua batuta para, mesmo a ignorantes ou a ouvidos talvez pouco musicais, abrir o coração para o fascinante mundo da música. Mas como seria possível abrir os ouvidos e os corações para o mundo igualmente misterioso e diferente da religião?”. Hans Küng levou a iniciativa adiante e desse conjunto de programas resultou o livro  “Religiões do Mundo – Em busca dos pontos comuns”, publicado entre nós na editorial Multinova (2005), pelo meu saudoso amigo Manuel Bidarra de Almeida. Ao longo destas páginas, encontramos alguém que procurou sempre fazer do “misterioso e imenso mundo das religiões” uma oportunidade para a descoberta partilhada da importância da liberdade religiosa e da liberdade de consciência como fatores essenciais para que a causa da paz se torne pedra angular das democracias.

 

Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

PAZ ENTRE AS RELIGIÕES, PAZ ENTRE AS NAÇÕES


1. A Basílica de Santa Sofia, em Constantinopla/Istambul, inaugurada pelo imperador Justiniano no século VI e dedicada a Cristo, Sabedoria de Deus, foi durante quase mil anos o maior templo cristão, impondo-se pela sua beleza e majestade. Muitos que lá entraram e contemplaram a cúpula, com 55 metros de altura e 30 de diâmetro, e o Cristo Pantocrator a olhar do alto disseram ter feito uma experiência do Céu.

A sua história tem sido atribulada. Foi realmente durante quase um milénio (537-1453) o santuário mais significativo da cristandade; a seguir ao Grande Cisma (1054), tornou-se a igreja mais importante dos cristãos ortodoxos, que os católicos, no tempo das cruzadas, conquistaram e dominaram (1204-1261); depois, durante quase 500 anos (1453-1931), tornou-se, com a conquista de Constantinopla, a mesquita “imperial” mais importante do islão, tendo Constantinopla passado a chamar-se Istambul, pois era tal o esplendor e a força de Constantinopla que não se dizia “ir a Constantinopla” mas “ir à cidade” (em grego: eis tên polín). Em 1931, depois da dissolução do império otomano,  Mustafá Kemal Atatürk, fundador da Turquia moderna, como sinal da laicidade do Estado, dessacralizou-a e transformou-a num “museu oferecido à Humanidade”, aberto ao público em 1935 já com os vitrais e os ícones cristãos, que tinham sido cobertos com gesso, porque o islão proíbe as imagens, e, em 1985, declarado património mundial da Humanidade pela Unesco. O actual presidente da Turquia, Recep Erdogan, decretou, no passado dia 10, que voltasse a mesquita, recomeçando a ser lugar de oração a partir de ontem, dia 24. Entretanto, o Governo turco assegurou que terá os mosaicos com imagens cristãs tapados durante as orações e que continuará aberta ao turismo, nacional e estrangeiro, com entrada gratuita (até agora, as visitas rendiam 50 milhões de euros anuais).

 

2. As reacções à reconversão em mesquita por Erdogan choveram de todo o lado. A Grécia, a Unesco, a Rússia, os Estados Unidos manifestaram inquietação. O governo grego foi dos primeiros a reagir, qualificando a decisão de “provocação ao mundo civilizado”. O Papa Francisco, logo no dia 12, na oração do Angelus, disse: “O meu pensamento vai para Istambul, penso em Santa Sofia e sinto muita dor”. É natural que os cristãos ortodoxos se exprimam de modo mais contundente, pois Santa Sofia é simbolicamente para a Igreja ortodoxa o que São Pedro é para os católicos. Assim, a Igreja da Grécia, antes ainda da reconversão, lembrou que Santa Sofia é uma “obra-prima, mundialmente reconhecida como um dos monumentos eminentes da civilização cristã. Toda a mudança provocará um vivo protesto e a frustração entre os cristãos de todo o mundo, e prejudicará a própria Turquia.” Sua Beatitude Jerónimo II, arcebispo de Atenas, qualificou a decisão de “insulto à ortodoxia, ao cristianismo em geral e a toda a pessoa sensata”, instrumentalizando a religião para conveniências partidárias, geopolíticas e geoestratégicas. A Igreja ortodoxa russa antevê que possa ter “graves consequências para toda a civilização humana”. O patriarca Cirilo de Moscovo declarou que “uma ameaça a Santa Sofia é uma ameaça ao conjunto da civilização cristã.” O Conselho Ecuménico das Igrejas, que reúne 350 Igrejas cristãs no mundo, exprimiu o seu “pesar e consternação”; para o seu secretário-geral, I. Sauca, Santa Sofia era uma bela prova da “ligação da Turquia à laicidade”. A França “deplorou” a mudança, enquanto a Unesco poderá rever o seu estatuto, considerando “lamentável” a decisão tomada “sem diálogo nem notificação prévia”.

3. Sempre que se fala em religião/religiões vem inevitavelmente à mente a declaração célebre do teólogo Hans Küng: “Não haverá paz entre as nações sem paz entre as religiões. Não haverá paz entre as religiões sem diálogo entre as religiões. Não haverá sobrevivência do nosso planeta sem um ethos (atitude ética) global, sem um ethos mundial.”

Condição essencial para a paz entre as religiões e  para que haja liberdade religiosa é a laicidade do Estado, a não confundir evidentemente com laicismo. O Estado não pode ser confessional, não pode ter nenhuma religião, precisamente para garantir a liberdade religiosa de todos. Erdogan, porque está a perder poder, quer apoiar-se nos sectores mais islamistas e ultranacionalistas. De facto, como disse o turco Ohran Pamuk, Nobel da Literatura, “esta reconversão é dizer ao resto do mundo que, infelizmente, não somos um Estado laico”. Deste modo, acabou por dar um duro golpe no diálogo inter-religioso, que tem a sua prova de verdade no combate comum pela paz, pela justiça, por aquele ethos que Hans Küng refere e que está presente no documento histórico, a que aqui me referi amplamente, “A Fraternidade Humana”, assinado em Abu Dhabi pelo Papa Francisco e pelo Grande Imã da Universidade Al-Azhar, no Cairo. Não há dúvida de que, transformando Santa Sofia em mesquita e aliando religião e nacionalismo, Erdogan “pode criar um terreno fértil para a intolerância religiosa e a violência”, alertou a Conferência de Igrejas Europeias.

Erdogan foi perigosamente muito longe, ao celebrar, no discurso oficial em árabe —a referência não é mencionada nem na versão em turco nem em inglês —, esta reconversão como um primeiro passo de um “renascimento” islâmico, que deve ir de Bucara, no Uzbequistão, a Al Andalus, Espanha: ele “é o símbolo do regresso do sol nascente da nossa civilização islâmica”.

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 26 JUL 2020

RELIGIOSIDADE, SAGRADO, RELIGIÕES. 2

 

  Retomando a reflexão da semana passada sobre o tema em epígrafe, parece-me fundamental acentuar que é essencial distinguir aquele tríplice plano: religiosidade (religioso), Sagrado e religiões. Como escreveu J. de Sahagún Lucas, quando se fala de religião/religiões, religioso e Sagrado não se identificam, “não são sinónimos”. Trata-se de realidades distintas, pois religioso refere-se ao pólo subjectivo, isto é, ao movimento de transcendimento e entrega confiada a uma realidade sagrada – o pólo objectivo —, o Sagrado ou Mistério. Diferenciam-se do profano, já que o religioso indica o modo concreto e peculiar de assumir a existência toda nas suas várias dimensões na perspectiva do Sagrado. As diferentes formas de religião — a religião implica inevitavelmente pluralidade de religiões, surgindo cada uma num determinado contexto histórico, geográfico, sócio-económico, cultural... — coincidem no facto de remeterem o Homem para essa Realidade superior a ele e que, num primeiro momento, se pode caracterizar como um supra (acima) e um prius (anterior) (U. Bianchi). O referente último de todas as religiões é o mesmo: o Sagrado ou Mistério, essa Realidade superior.

 

   Na tentativa de explicitar a definição apresentada, J. Martín Velasco, um dos maiores especialistas no domínio da fenomenologia da religião, desenvolve, na sua obra Introducción a la fenomenología de la religión, os elementos ou traços essenciais do conteúdo dessa realidade misteriosa. Em primeiro lugar, deve-se sublinhar a sua “absoluta transcendência” em relação ao homem e ao mundo. Essa transcendência exprime-se nas várias religiões, referindo a sua “outridade”: “totalmente outro”; a sua inacessibilidade: “altíssimo”; invisibilidade: “tu és um Deus escondido”; incognoscibilidade: “superincognoscível”; radical e absoluta diferença: “distinto do conhecido e do desconhecido”; a inefabilidade: dele só se pode dizer: “não é assim, não é assim”; a sua superioridade absoluta: “superior summo meo” (superior e mais alto do que a minha altura máxima). Por isso, o homem religioso, na sua presença, sente pavor e tremor, indignidade radical. Trata-se do mysterium tremendum (mistério terrível), que é ao mesmo tempo fascinans (fascinante), como referiu R. Otto. Mas, por paradoxal que pareça, o Mistério compreende simultaneamente “a sua mais perfeita imanência” ao homem e ao mundo. É próximo – o Alcorão diz que Alá é mais próximo ao homem do que a sua própria jugular – e íntimo – interior intimo meo (mais íntimo do que a minha máxima intimidade), diz Santo Agostinho, no interior da transcendência, a suma imanência e identidade: atman é Brahman (eu é o Absoluto), diz o budismo, “o centro da alma é Deus”. Estas duas características implicam-se mutuamente. De facto, “só o absolutamente transcendente pode ser imanente de forma absoluta” ou, como diz Nicolau de Cusa, só o totalmente outro é non aliud, não outro.

 

  Outro traço essencial do Mistério é “a sua condição de sujeito activo”. Ele revela-se, dá-se a conhecer, interpela o homem, atrai-o. A sua presença é anterior à procura do Homem, de tal maneira que Pascal pôde, com razão, pôr Deus a dizer: “não me procurarias, se não me tivesses já encontrado”. Na sua presença, o Homem experiencia que não é por si nem dispõe de si, pois só é verdadeiramente no encontro e na entrega confiada a esse Mistério último. Mas, mais uma vez, paradoxalmente, esta entrega não significa de modo nenhum alienação, autoaniquilamento ou sujeição a uma heteronomia, pois, “devido à abertura radical do ser humano ao Infinito, o consentimento neste Além de si mesmo é a condição da sua realização plena”.

 

  Explicitando, dever-se-á, portanto, distinguir entre religiosidade/religioso, Sagrado e religiões. Religiosidade tem a ver com o movimento de transcendimento, sendo religioso aquele ou aquela que se entrega confiadamente ao Sagrado ou Mistério, do qual espera salvação. As religiões são mediações entre os homens e mulheres e o Sagrado/ Mistério, e entre o Sagrado/Mistério e os homens e mulheres. Enquanto mediações, as religiões têm, inevitavelmente, muito de humano e, consequentemente, são habitadas pelo melhor e pelo pior. São mediações necessárias e inevitáveis. Referem-se ao Mistério/Sagrado, estão referidas ao Absoluto; o seu perigo permanente é pretenderem tornar-se elas próprias o Absoluto.

 

  As diferentes religiões configuram de modo diferente o Sagrado ou Mistério. Nelas, há, por princípio, uma dimensão doutrinal teológica, que tenta dizer o Sagrado ou o Mistério; uma dimensão ético-moral; uma dimensão litúrgico-celebrativa; e, evidentemente, um mínimo de organização.

 

   Esta distinção entre religioso, Mistério/Sagrado e religiões é fundamental, pois pode acontecer que alguém seja religioso no sentido autêntico e profundo de uma experiência viva e consequente do Sagrado ou Mistério e tenha e mantenha distanciamento face às religiões instituídas, como pode haver quem não teve nem tem vivência autenticamente religiosa e, no entanto, viva da religião institucional, se sirva dela para fins políticos, económicos, de ascensão social. Pode-se viver da religião institucional em altos cargos eclesiásticos, por exemplo, e não ser consequente com uma verdadeira experiência religiosa, se é que se fez esta experiência. O que acontece também muito frequentemente na política: há quem se confesse ateu e participe em festas religiosas, porque isso pode dar votos...

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 9 FEV 2020

RELIGIOSIDADE, SAGRADO, RELIGIÕES. 1

 

Quando, no domínio religioso, não há conceitos claros, entra-se inevitavelmente em confusões deletérias, que impedem a mútua compreensão e o autêntico diálogo inter-religioso.

 

Será, pois, necessário, em primeiro lugar, perguntar: qual é o critério decisivo para determinar o que é realmente a religião?

 

Há hoje acordo entre os especialistas no sentido de verem esse critério na referência e relação com uma realidade última salvífica. São fundamentais estes dois elementos: entrada em contacto com a ultimidade, que se apresenta como dando sentido último e salvação. Ao contrário da ideia corrente, no domínio religioso, Deus não é figura primeira e determinante a não ser para um determinado tipo de religião: a religião monoteísta. Deus, no quadro do monoteísmo, apareceu tarde. O conteúdo central da religião é o absoluto, o transcendente, o abrangente, o numinoso. O homem religioso depara-se com o Sagrado, o Mistério.

 

Para os fenomenólogos da religião, como J. Martín Velasco, por exemplo, o homem religioso é aquele que assume uma determinada atitude face ao Sagrado, entendendo-se por Sagrado aquele âmbito de realidade que se traduz por termos como “o invisível”, “a ultimidade”, “a verdadeira fonte do valor e sentido últimos”, “a realidade autêntica”. A religião não é em primeiro lugar ordo ad Deum (relação com Deus), mas ordo ad Sanctum (relação com o Sagrado). Antes da sua configuração como deuses e Deus, o “objecto” da religião é o Sagrado, que também dá pelo nome de Mistério, que é ao mesmo tempo absolutamente transcendente e radicalmente imanente. O homem religioso faz a experiência do Sagrado ou Mistério enquanto Presença originante e doadora de toda a realidade. É Presença enquanto Transcendência radical no centro da realidade e da pessoa e, assim, Imanência, isto é, Presença mais íntima à realidade e à pessoa do que a sua própria intimidade. Para o homem religioso, a realidade não se esgota na sua imediatidade empírica: como explica o teólogo Andrés Torres Queiruga, para a sua compreensão adequada, a realidade mesma aparece-lhe como incluindo uma Presença que não se vê em si mesma, mas implicada no que se vê. Mediante certas características – a contingência radical, a morte e o protesto contra ela, a exigência de sentido, sentido último –, a própria realidade se mostra implicando essa Presença sagrada, divina, como seu fundamento e sentido últimos.

 

Neste quadro, é decisiva a experiência da contingência radical do mundo, de cada homem e cada mulher, mas, como escreveu R. Panikkar, precisamente assim: contingência deriva do latim cum-tangere, com o sentido de que “tocamos (tangere) os nossos limites” e, no mesmo acto, “o ilimitado toca-nos (cum-tangere) tangencialmente”. Hegel também o disse: só no Infinito o finito encontra a sua verdade.

 

A estrutura comum do fenómeno religioso, presente na variedade das religiões, pode ser resumida, segundo J. Martín Velasco, nestes termos: um facto humano específico, presente numa pluralidade de manifestações históricas, que têm em comum: “estar inscritas num âmbito de realidade original designado pelo termo o Sagrado; constar de um sistema de mediações organizadas – crenças, práticas, símbolos, lugares, tempos, objectos, sujeitos, etc. –, nas quais se expressa uma experiência humana de reconhecimento, adoração, entrega, referida a uma Realidade transcendente, ao mesmo tempo que imanente, ao homem, e que intervém na sua vida para dar-lhe sentido e salvá-lo”. A religião enquadra-se na experiência radical de dependência, implicando, portanto, na sua compreensão estrita, um núcleo com dois pólos: um pólo objectivo, constituído pela presença de uma Realidade superior, absoluta, de que se depende, e um pólo subjectivo, que consiste na atitude de reconhecimento dessa Realidade por parte do homem. Neste contexto, P. Schebesta apresenta uma definição paradigmática: “A religião é o reconhecimento consciente e operante de uma verdade absoluta (‘sagrada’) da qual o homem sabe que depende a sua existência”. É a partir deste núcleo que se entendem os múltiplos elementos visíveis das religiões: crenças, ritos, instituições, espaços e tempos sagrados, etc., diferentes segundo as culturas e tempos históricos humanos e unidos pelo facto de constituírem mediações religiosas. Na sua variedade, as diferentes definições de religião têm um elemento comum que as caracteriza e autentica: “apontam para uma entidade meta-empírica determinante da atitude humana como base da estrutura da religião. É o último necessário que adopta formas e nomes distintos: o santo, o misterioso, o divino, o sobrenatural. Numa palavra, um algo outro que não é coberto inteiramente com os termos que designam as coisas que o homem tem à mão.”

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 2 FEV 2020

A MÍSTICA DO QUOTIDIANO 

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Há uma história que Aristóteles narra sobre uma palavra do filósofo Heráclito a uns forasteiros que queriam chegar até ele. Aproximando-se, viram como se aquecia junto a um fogão. Detiveram-se surpreendidos, enquanto ele lhes dava ânimo: "Também aqui estão presentes os deuses."

 

Os visitantes ficaram frustrados e desconcertados na curiosidade que os levou a irem ao encontro do pensador. Julgavam ter de encontrá-lo em circunstâncias que, ao contrário do viver dos homens comuns, deveriam mostrar em tudo os traços do excepcional e do raro e, por isso, excitante.

 

Em vez disso - e estou a transcrever o comentário do filósofo Martin Heidegger à história relatada por Aristóteles -, os curiosos encontraram Heráclito junto ao fogão. É um lugar banal e bastante comum. Ver um pensador com frio que se aquece tem muito pouco de interessante. A situação é mesmo frustrante para os curiosos. Que farão ali? Heráclito lê essa curiosidade frustrada nos seus rostos. Ele sabe que a falta de algo de sensacional e inesperado é suficiente para fazer com que os recém-chegados se vão embora. Por isso, infunde-lhes ânimo. Pede-lhes que entrem: "Também aqui estão presentes os deuses." Também ali, naquele lugar corriqueiro, é o espaço para a presentificação de Deus.

 

A mística Santa Teresa de Ávila também dizia que Deus anda na cozinha no meio das panelas. Para sublinhar que quem julga encontrar Deus fora do mundo lida apenas com as suas ilusões.

 

E há muitas formas de ilusão e pseudomística. Escreveu, com razão, o então cardeal Joseph Ratzinger: "A curiosa magia dos estupefacientes apresenta-se como atalho para o Paraíso, aquele atalho que nos pouparia todo o "penoso" caminho da ascética e da moral. A droga é a pseudomística de um mundo que não tem fé, mas que de modo algum pode prescindir da ânsia da alma pelo Paraíso. A droga é, por conseguinte, um sinal indicador de algo mais profundo: não só descobre na nossa sociedade um vazio, que esta não é capaz de preencher com os seus próprios meios, como chama a atenção para uma exigência íntima do ser humano, que, se não encontrar a resposta acertada, se manifesta de forma pervertida."

 

Santo Agostinho viu bem, quando rezou: "Senhor fizeste-nos para ti e o nosso coração está inquieto enquanto não repousar em ti." Jesus, que é quem terá feito a máxima experiência mística, já tinha prevenido: quem quiser salvar a sua vida perde-a; quem a perder por amor de Deus e dos outros ganha-a. É preciso ir até ao mais fundo e mais íntimo, porque é lá que se encontra Deus. Mas é sempre a dialéctica do perder e ganhar. Onde está o nosso eu verdadeiro? Dou um exemplo: onde está o nosso eu, quando escutamos uma daquelas sinfonias que nos exaltam e extasiam? Aparentemente, perdemo-lo, pois, na exaltação da sinfonia, não pensamos em nós, até nos esquecemos de nós, mas, precisamente aí, suspende-se o tempo e a morte e somos verdadeiramente nós.

 

Então? Qual é a mística verdadeira? É aquela que, em Deus, o Bem e a Beleza, leva a tratar dos irmãos e a transformar o mundo. Há, de facto, muita religião falsa, que os filósofos da suspeita justamente apelidaram de ópio. Mas também os estupefacientes são pseudomística. Por um lado, repito, eles exprimem, numa sociedade em que se experimenta o vazio, a necessidade de salvação e de sentido. Mas, por outro, na droga, o que acontece é a alienação. Pretende-se superar os problemas, mas os problemas continuam lá, e mais graves. A droga leva a "viagens" aparentemente felicitantes, mas, como aquilo é produto da química, quando se regressa da viagem, reencontra-se os problemas e está-se com menos força e energia para enfrentá-los. O critério da mística autêntica tem, portanto, que ver com a força e energia para enfrentar a existência e transformá-la e contribuir para uma sociedade mais justa, fraterna e livre.

 

Na união com Deus, Mistério último da realidade, o crente continua no mundo, embora o veja, precisamente por causa dessa união, a uma luz nova. Por isso, mística, sem o compromisso com os outros, concretizado também no amor político, que inclui o amor cósmico-ecológico, é auto-engano. Como escreveu o filósofo Henri Bergson, "a mística completa é acção"; o místico autêntico, "através de Deus, por Deus, ama a humanidade inteira com um amor divino". Aliás, para Bergson, a prova da existência de Deus são os místicos.

 

Por isso, todas as religiões acentuam o vínculo indissolúvel entre mística e ética. São João escreveu de modo forte e pregnante: "Se alguém possuir bens deste mundo e, vendo o seu irmão com necessidade, lhe fechar o seu coração, como é que o amor de Deus pode permanecer nele?" São Tiago não é menos explícito: "De que aproveitará a alguém dizer que tem fé, se não tiver obras? Acaso essa fé poderá salvá-lo? Se um irmão ou irmã estiverem nus e precisarem de alimento quotidiano e um de vós lhe disser: "Ide em paz, aquecei-vos e saciai-vos", sem lhes dar o que é necessário ao corpo, de que lhes aproveitará? Assim também a fé: se a fé não tiver obras, está completamente morta.

 

O Evangelho deixa qualquer leitor perplexo. De facto, referindo-se ao Juízo Final, não à maneira de Miguel Ângelo, na Capela Sistina, mas no sentido mais profundo da revelação definitiva do que é a realidade verdadeira na sua ultimidade, de quem é Deus para o ser humano e o ser humano para Deus, não pergunta aos homens e às mulheres, em ordem à salvação, se praticaram actos religiosos de culto, mas se deram de comer ao famintos e de beber aos que têm sede, se vestiram os nus, se trataram os doentes e os abandonados, se foram à cadeia visitar os presos (e supõe-se que estavam lá justamente condenados)... E os salvos, que não sabiam, ficam a saber que foi ao próprio Cristo que deram de comer, de beber, que vestiram, que acolheram, que visitaram no hospital ou na cadeia, que trataram em todas as dificuldades, que promoveram, que foi a ele que deram a mão. Apresenta-se, pois, como critério de juízo sobre a história a humanitariedade, isto é, o interesse real, prático, eficaz, pelo ser humano necessitado, na unidade do amor de Deus e do próximo.

 

O místico Ruysbroek disse: "Se estiveres em êxtase e o teu irmão precisar de um remédio, deixa o êxtase e vai levar o remédio ao teu irmão; o Deus que deixas é menos seguro do que o Deus que encontras." Também Buda, depois de ter lavado e tratado de um monge doente e abandonado, disse aos seus monges: "Quem quiser cuidar de mim cuide dos enfermos." São João da Cruz tem aquela expressão famosa: "Ao entardecer desta vida examinar-te-ão no amor."

 

Aí está, em síntese, a missão da Igreja: ser a multinacional do sentido, sentido último, que se encontra no Mistério, em Deus, e o espaço do combate, lúcido e eficaz, pela humanitariedade, num mundo justo e livre. A vida na sua dupla vertente: vida contemplativa e vida activa.


Anselmo Borges

Padre e professor de Filosofia
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN | 01 SET 2018