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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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“Pára e pensa”. A Última Palavra

Hannah Arendt.jpg

 

Nunca tivemos tanto acesso à informação. Também nunca houve tantos meios de acesso, a ponto de aquilo que é um benefício poder tornar-se um verdadeiro desastre, como muitos especialistas chamam a atenção.

Por exemplo, no seu recente livro El arte de la felicidad, o médico e teólogo Alfred Sonnenfeld, escreve que nesta “era da distracção” corremos o risco de saltar de uma informação para outra sem reflectirmos nos conteúdos. Vivemos na sociedade do “ruído mental”, com bombardeamentos constantes de informações e publicidade, e tudo isto nos impõe um “estilo de vida no qual faltam a atenção e a concentração”. Se não houver capacidade de distanciamento, o risco é “perdermos as capacidades mais valiosas do pensamento humano: a criatividade, a reflexão e o pensamento crítico”. O neurocientista Michel Desmurget, no seu recente livro A fábrica de cretinos digitais, mostra inclusivamente que, por causa da cultura do ecrã e do dedar constante, se está a registar uma diminuição do Quociente de Inteligência (QI).

Aqui chegados, e perante a incapacidade de distinguir o essencial do superficial, impõe-se o apelo de Hannah Arendt: “Pára e pensa”. E há coisa mais essencial do que perguntas como estas: Donde vimos? Para onde vamos? O que é que verdadeiramente vale?  Qual o sentido da existência, Sentido último?

É do essencial que a Páscoa trata. E lá está Pascal: “Jesus estará em agonia até ao fim dos tempos; é preciso não dormir durante esse tempo.”

Na Paixão, estamos todos. Jesus não morreu vítima de Deus, que precisaria da sua morte para aplacar a Sua ira e assim poder reconciliar-se com a Humanidade. Pelo contrário, Jesus foi vítima da religião oficial e do poder imperial romano, porque a Sua mensagem, por palavras e obras - Deus é bom, Pai e Mãe de todos, a começar pelos mais pobres, abandonados, explorados, pecadores – punha em causa os seus interesses. Aí está o perigo do poder religioso e político, quando estão ao serviço da exploração. Lá estão os discípulos, que fugiram. Lá está Pedro, o amigo generoso, mas cobarde: bastou uma criada suspeitar que ele também era discípulo e logo negou; depois, arrependeu-se e chorou amargamente. Lá está Judas. Lá está Pilatos, que lavou as mãos. Lá está o cireneu, que ajuda. Lá estão os dois ladrões (talvez terroristas): um converteu-se, o outro continuou a blasfemar. Lá estão as mulheres, as únicas que não fugiram e acompanharam Jesus até à morte. E Jesus perdoou até àqueles que o matavam. E rezou aquela oração, uma pergunta que atravessa os séculos: “Meus Deus, meu Deus, porque é que me abandonaste?”. Mas continuou a confiar: “Pai, nas tuas mãos entrego o meus espírito”…

Jesus morreu na cruz, a morte horrenda que os romanos davam aos rebeldes e aos escravos. Aparentemente, foi o fim. O enigma histórico do cristianismo é que, pouco tempo depois, os discípulos voltaram a reunir-se e foram anunciar ao mundo que aquele crucificado é realmente o Messias, o Salvador. Fizeram a experiência avassaladora de fé, a começar por Maria Madalena, de que Jesus, que morreu para dar testemunho da Verdade e do Amor, está vivo em Deus para sempre, como desafio e esperança para todos. E deram a vida por essa fé, que chegou até nós.

Quando olhamos para a História, com todas as lutas, amores, sonhos, realizações, fracassos, esperanças, que a atravessam, ergue-se, do mais fundo, a pergunta: Foi tudo para nada? E há as vítimas inocentes que clamam por justiça, e quem pagará a dívida da História para com elas? Neste contexto, o agnóstico Jürgen Habermas, o maior filósofo vivo, escreveu, citando J. Glebe-Möller: “Se desejarmos manter a solidariedade com todos os outros, incluindo os mortos, temos de reclamar uma realidade que esteja para lá do aqui e agora e que possa vincular-nos também para lá da nossa morte com aqueles que, apesar da sua inocência, foram destruídos antes de nós. E a essa realidade a fé cristã chama Deus.”

A fé é um combate, como deu testemunho também o teólogo rebelde Hans Küng, ao aproximar-se do seu próprio fim – morreu em Abril de 2021. Confessou que uma das suas irmãs lhe perguntou com toda a seriedade: «Acreditas realmente na vida depois da morte?» E ele: «Sim”, respondi com convicção. Não porque tenha demonstrado racionalmente essa vida depois da morte, mas porque mantive a confiança racional em Deus e porque na confiança no Deus eterno também posso confiar na minha própria vida eterna. Devo ou não ter esperança em algo que seja a ultimidade de tudo? Uma vida eterna, um descanso eterno, uma felicidade eterna? Isso é problema da confiança, mas de modo nenhum de uma maneira irracional, mas de uma confiança responsável. É irracional a confiança em Deus? Não. A mim parece-me a coisa mais racional de tudo quanto o ser humano pode ser capaz. O que me parece absurdo é pensar que o ser humano morre para o nada. A passagem à morte e a própria morte são apenas estações a que se segue um novo futuro. A vida é mais forte do que a morte e o ser humano morre entrando na Realidade primeira e última, inconcebível e inabarcável, que não é o nada, mas sim a Realidade mais real. A vida transforma-se, não acaba. Eu defendo uma fé cristã em Deus e na vida eterna. Sem Deus, a fé na vida eterna não teria razões, careceria de fundamento. E vice-versa: a fé em Deus sem fé na vida eterna careceria de consequências, não teria um objectivo».

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 8 de abril de 2023

A BÍBLIA E A SUA LEITURA

Sacrifício de Isaac - Caravaggio_comlegenda.jpg

 

1.  O que é a Bíblia? A palavra deriva do grego, com o significado de «os livros». Em latim, e, por derivação, em português, o termo grego transformou-se num singular feminino — Bíblia —, designando o conjunto dos textos que formam o que também se chama a Sagrada Escritura. Abrange, na sua totalidade, o Antigo Testamento e o Novo Testamento, contendo 73 livros e constituindo, portanto, uma pequena biblioteca. A sua formação e redacção demorou mais de mil anos. É necessário ter isso em conta, pois não é um livro como o entendemos agora, escrito por um autor e num determinado tempo. Trata-se de uma obra de numerosos autores, muitos até desconhecidos, e alguns dos escritos são inclusivamente o resultado da compilação de tradições e textos anteriores.

Daqui conclui-se que, para a compreensão adequada da Bíblia, se impõe conhecer a história dos textos, as línguas, os lugares, os tempos, os géneros literários, os contextos em que apareceram e os destinatários a que se dirigiam. Decisivo é entender também a configuração final, pois foi enquanto totalidade e unidade que a comunidade cristã a recebeu como expressão e testemunho da sua fé. Neste sentido, a linha essencial da sua compreensão é a libertação e salvação plena de todos os homens e mulheres. Na Bíblia, encontram os crentes quem é Deus para a humanidade e o que é e representa a humanidade para Deus enquanto salvador e doador de sentido e sentido final para a existência humana, para o mundo e para a história. A Bíblia é a leitura da história do mundo e da humanidade à luz do desígnio salvador de Deus. Assim, o fio condutor da sua leitura e interpretação tem de ser sempre a liberdade, a humanização, a felicidade, a libertação e salvação plena de todos. Só a esta luz a Bíblia é verdadeira, de tal modo que o que nela se encontra de menos humano ou até de desumano é para dizer-nos o que Deus não é e o que o ser humano não deve ser.

A Bíblia é o livro mais traduzido e mais lido da História: no ano 2003, havia tradução, na totalidade ou em parte, para 2303 línguas e já se contavam 555 milhões de exemplares em todo o mundo. É também a obra mais estudada, havendo mesmo centros de investigação universitária com a finalidade exclusiva do seu estudo.

A Bíblia é, antes de mais, o livro de importância essencial para os crentes cristãos, pois nela encontram o núcleo da sua fé. Ao longo dos séculos, serviu de alimento espiritual, de esperança, de orientação, para a vida e para a morte, a um sem-número de homens e mulheres: judeus, cristãos e também não crentes. Ela é igualmente de valor fundamental no quadro da cultura. Porquê? Sem ela, não é possível compreender a história da cultura mundial, mas sobretudo a história da humanidade europeia. Dizia o filósofo Ernst Bloch, com quem tive o privilégio de conversar: sem o conhecimento da Bíblia, não podemos compreender muitas revoluções, que tiveram na sua base o messianismo e a proclamação da chegada do Reino de Deus, não podemos compreender as catedrais, o gótico, a Idade Média, Dante, Rembrandt, Haendel, Bach, Beethoven, a grande literatura, a grande pintura, a grande escultura, a grande música, os Requiem, a grande filosofia, «absolutamente nada».

Impõe-se, pois, pôr termo ao desconhecimento da Bíblia, já que esse desconhecimento constitui uma «situação insustentável», concluía Bloch, filósofo ateu e, ao mesmo tempo,  religioso: “onde há esperança há religião”…

Da Bíblia também disse Heinrich Heine: “Que livro! Grande e extenso como o mundo, enraizado nos abismos da criação e erguendo-se para os mistérios azuis do céu… Nascer do Sol e pôr do Sol, promessa e realização, nascimento e morte, o drama todo da humanidade: está tudo neste livro. É o livro dos livros, Bíblia.”

E Lídia Jorge: “A Bíblia é o poema colectivo mais longo criado até agora pela humanidade. Nele se espelham as várias batalhas que os homens engendram na sua demanda pelo amor absoluto. Não admira que a literatura ocidental nele tenha encontrado os seus modelos de narração amorosa mais fortes e que os seus mitos continuem a servir de moldura para o pensamento em torno da liberdade e da paz.”

 

2.  Como disse, é essencial saber lê-la, exige-se uma leitura histórico-crítica, pois, à letra, pode levar a desastres. Por exemplo, o livro do Génesis, quando se refere à criação do mundo e ao primeiro pecado, não pode ser tomado como se se tratasse de uma história, pois é de um mito que se trata. Foi porque se tomou à letra que a mulher ao longo da História foi vista como inferior, pois foi criada em segundo lugar e na dependência do homem e é a tentadora. E como é possível, hoje, à luz da evolução, pretender basear a doutrina do pecado original no pecado de Adão e Eva? E como não ler, aterrados, a ordem de Deus a Abraão para lhe sacrificar o filho Isaac? “Deus pôs Abraão à prova e chamou-o: ‘Abraão!’ Ele respondeu ‘Aqui estou’. Deus disse: ‘Pega no teu filho, no teu único filho, a quem tanto amas, Isaac, e vai à região de Moriá, onde o oferecerás em holocausto num dos montes que eu te indicar’(…) Abraão construiu um altar, dispôs a lenha, atou Isaac, seu filho, e colocou-o sobre o altar, por cima da lenha.” Embora tenha sido substituído por um carneiro, Isaac não se terá tornado ateu? Como aceitar à letra o Antigo Testamento na sua sequência de horrores e de guerras? E o Novo Testamento, quando discrimina a mulher? Apenas exemplos.

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 25 de março de 2023

NATAL: O EMMANUEL

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       Há já alguns anos, o meu bom e ilustre amigo, o eurodeputado Paulo Rangel, e eu tivemos uma conversa muito agradável para mim sobre (imagine-se) Deus e a tentativa de dizê-lo e nos relacionarmos com Ele. Dela resultou um texto de Paulo Rangel, com o significativo título “Deus é Aquele que está”. Numa longa entrevista recente a Inês Maria Meneses, voltou ao tema, confessando a sua fé no Deus de Jesus, o Emmanuel, o “Deus connosco”. Para ele, Deus é “Aquele que está”, Deus não é “esse ser distante e estático” construído a partir da ontologia grega, o Deus que é, “mas antes o ser próximo e interactivo que está e estará connosco, Aquele que acompanha, Aquele que não abandona. Deus é Aquele que está, o Emmanuel.”

      Concordando plenamente com o amigo Paulo Rangel, volto, já em pleno Natal, ao tema, essencial nesta data. De facto, corre-se permanentemente o perigo de esquecer o determinante, já não referindo sequer a ameaça de se ficar amarrado a um consumismo devorador e à concorrência dos presentes: tenho de dar isto e aquilo de presente, para não ficar mal; não posso esquecer este, esta, e aquele, aquela, porque no ano passado também deram…  É preciso parar e reflectir, em primeiro lugar, para se não ficar encerrado em dogmas, quando a fé cristã se dirige a uma pessoa, Jesus confessado como o Cristo (o Messias) e, através dele, a Deus que Jesus revelou como Pai e poderemos e deveremos também dizer como Mãe, com todas as consequências que daí derivam para a existência.

       O que diz o Credo cristão, símbolo da fé? “Creio em Jesus Cristo. Gerado, não criado, consubstancial ao Pai. Nasceu da Virgem Maria, padeceu sob Pôncio Pilatos, foi crucificado, ressuscitou ao terceiro dia.” Segundo a fé cristã, isto é verdade? Sim, é verdade. Mas segue-se a pergunta fundamental: o que deriva dessas afirmações para a nossa existência de homens e mulheres, cristãos ou não? O Credo é teologia dogmática, especulativa, em contexto linguístico da ontologia grega. Ora, a teologia dogmática tem que ver com doutrinas e dogmas, com uma estrutura essencialmente filosófica. Pergunta-se: os dogmas movem alguém, convertem alguém, transformam a existência para o melhor, dizem-nos verdadeiramente quem é Deus para os seres humanos e estes para Deus?

      Exemplos mais concretos, um do Antigo Testamento e outro do Novo, até para se perceber a passagem do universo hebraico em que Jesus se moveu e o universo grego no qual aparecem redigidos os Evangelhos. No capítulo 3 do livro do Êxodo aparece a manifestação de Deus na sarça ardente e Moisés dirige-se a Deus: se me perguntarem qual é o teu nome, que devo responder-lhes? E Deus: “Eu sou aquele que sou”. Dir-lhes-ás: “Eu sou” enviou-me a vós. A fórmula em hebraico: ehyeh asher ehyeh (“eu sou quem sou”, “eu sou o que sou”) é o modo de dizer que Deus está acima de todo o nome, pois é Transcendência pura, que não está à mercê dos homens, mas diz também (a ontologia hebraica é dinâmica) o que Deus faz: Eu sou aquele que está convosco na história da libertação, que vos acompanha no caminho da liberdade e da salvação. Depois, com a tradução dos Setenta, compreendeu-se este ehyeh asher ehyeh como “Eu sou aquele que é”, “Eu sou aquele que sou”, o Absoluto. Filosofando sobre Deus, a partir daqui, Santo Tomás de Aquino dirá que Deus é “Ipsum Esse Subsistens” (O próprio ser subsistente), Aquele cuja essência é a sua existência. Isto é verdade, mas significa o quê para iluminar a existência? Perdeu-se a dinâmica do Deus que está presente e acompanha a Humanidade na história da libertação salvadora.

     No Novo Testamento, João Baptista, preso, mandou os discípulos perguntar a Jesus se ele era o Messias. Jesus não afirmou nem negou. Mas deu uma resposta existencial, prática: “Ide dizer-lhe o que vistes e ouvistes: os coxos andam, os cegos vêem, a Boa Nova é anunciada, a libertação avança, a salvação está em marcha”.

     O que é que isto significa? A teologia, a partir da Bíblia, é, antes de mais, teologia narrativa e não dogmática. Quer dizer: tem uma estrutura existencial, histórica. Na teologia especulativa, o centro de interesse é o ser; na teologia narrativa, o decisivo é o que acontece. Assim, na perspectiva cristã, o essencial consiste na pergunta: O que é que acontece quando Deus está presente? Na linha dogmático-doutrinal, exige-se e até se pode dar um assentimento intelectual, subordinando-se, mas a existência continua inalterada. Corre-se então o perigo de uma “fé” em fórmulas doutrinais coisistas, petrificadas, sem qualquer transformação da vida. Ora, a vida cristã, se quiser ser verdadeiramente cristã, no discipulado de Jesus, tem de ser determinada mais pela ortopráxis do que pela ortodoxia (sem menosprezo, evidentemente, pela ortodoxia, segundo uma hermenêutica adequada): Jesus louvou a cananeia pela sua fé, que não era ortodoxa, deu como exemplo o samaritano, que não seguia a ortodoxia, mas praticava a misericórdia, e, sobretudo, leia-se o Evangelho segundo São Mateus, no capítulo 25 sobre o Juízo Final, no qual não há perguntas sobre fórmulas teóricas religiosas, mas sobre a prática: “Destes-me de comer, de beber, vestistes-me, visitastes-me na cadeia e no hospital...”.

     A Igreja só se justifica enquanto vive, transporta e entrega a todos, por palavras e obras, o Evangelho de Jesus, a sua mensagem de dignificação de todos, mensagem que mudou a História. Bom Natal!

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 24 de dezembro de 2022

A VIDA DOS LIVROS

  

De 14 a 20 de novembro de 2022


A publicação de “Valores e Religiosidade em Portugal – Comportamentos e Atitudes Geracionais” (Afrontamento, 2022) de Eduardo Duque constitui oportunidade para refletirmos sobre a necessidade de compreender a importância dos valores éticos e religiosos na sociedade contemporânea, para além de considerações superficiais sobre o tema.


O VAZIO DE VALORES
Importa recordar o que Hermann Broch (1886-1951) afirmou sobre o “vazio de valores”. que afeta a sociedade contemporânea e os seus efeitos na fragilização comunitária. Charles Taylor (1931) na sua análise sobre a “Era Secular” (2007) distingue três formas de secularização: a religião como questão privada e a sua ausência nos espaços públicos, o abandono das convicções e práticas religiosas e a ocorrência redutora de um humanismo antropocêntrico. Esta tripla dimensão leva a uma alteração na afirmação do fenómeno religioso, interna e externamente – centrando-se Taylor numa perspetiva intrarreligiosa. Neste sentido, a intensidade da secularização está ligada ao modo como a religião se manifesta na sociedade, sendo um fenómeno complexo. Há, assim, novas condições para a afirmação das crenças e convicções religiosas, para a ocorrência de novas considerações e contextos religiosos, bem como para novos questionamentos morais e espirituais, muitas vezes contraditórios. Deste modo, importa dar ênfase a questões como o “contexto de compreensão”, a perceção da “plenitude” e o sentido da própria noção de “religião”. Neste último termo, temos de salientar a dupla etimologia da palavra: como elemento de ligação (“religare”), essencial à coesão, por contraponto ao “vazio”, de que fala Broch, ou ao “egoísmo possessivo”, que constitui para Taylor um dos fatores do “mal-estar da modernidade”, e como fator de reflexão e de conhecimento (“relegere”), para que a sociedade possa pensar-se, no sentido de uma ética de realização pessoal e de partilha comunitária. Na obra de Eduardo Duque, encontramos um tempo de crescente complexidade, com importância significativa dada ao papel desempenhado pela educação como modo de reduzir resistências de integração e de respeito pela diversidade, com atenção à racionalidade funcional e ao reconhecimento de valores como a utilidade, a eficácia e o pragmatismo, mas também ao desencanto da modernidade e à ocorrência de um pensamento aberto à multiplicidade de perspetivas, capaz de integrar e de dialogar. Contudo, a pós-modernidade tem sido caracterizada por uma deificação do consumo, como se o poder da imagem se tornasse uma continuidade da cegueira do positivismo. Paralelamente, a dimensão religiosa abre novas perspetivas para o elemento espiritual, como resposta ao exclusivo da racionalidade instrumental, à margem das religiões tradicionais, como mera experiência emocional, que abre caminho à credulidade ingénua e ao universo das seitas. Ora, uma sociedade dotada de processos ativos de aprendizagem tem de saber ligar a consciência dos limites e a compreensão da complexidade – sendo que “o saber decisivo da sociedade contemporânea é a capacidade de gerar e organizar um conhecimento especialmente ativo e reflexivo” – na expressão de Giddens. Eis por que razão a fragmentação social e o salve-se quem puder têm de ceder lugar a uma verdadeira partilha de responsabilidades. É neste contexto que se coloca o problema do papel da Igreja Católica na sociedade contemporânea, como uma Igreja que não receia o presente e o futuro, aberta e com procedimentos inteligentes e em diálogo com a ciência. Daí a exigência de compreensão do papel crucial da dignidade humana, do lugar do outro, do exemplo, do cuidado e da atenção.


DESAFIO PARA OS CRISTÃOS
“O cristão está desafiado a sentir a presença de Deus na vida, a fazer a experiência da sua bondade e a oferecer um novo modo de falar de Deus aos homens contemporâneos”. Isto mesmo obriga a ligar a incerteza e a diversidade, a inovação e a criatividade. A sociedade oscila entre o egoísmo e o medo, e esse medo torna-se muitas vezes medo do outro e tentação da autossuficiência e do egoísmo, que levam à cegueira sobre a responsabilidade quer contemporânea quer perante as gerações futuras. E a resistência à tomada de medidas sobre a destruição da natureza e o aquecimento global ou sobre as emissões de CO2 torna-se suicida. Quando o Papa Francisco nos faz um apelo dramático na encíclica “Laudato Si’” é perturbador que haja tanta indiferença. É o “vazio de valores” que se manifesta, é a secularização sem compreensão da dignidade humana que se desenvolve. E Boaventura de Sousa Santos alerta oportunamente para a necessidade de atenção ao “sofrimento injusto a que tanta gente é submetida pela desigualdade e pela discriminação, gente digna a viver em condições tão indignas de fome, de guerra, de abandono”. Quando lemos a análise e interpretação dos dados sociológicos apresentados por Eduardo Duque percebemos que a evolução é semelhante às outras sociedades, quer no papel e dimensão das religiões, quer na atitude das pessoas. Importa, porém, não ceder a conclusões imediatistas ou precipitadas. A complexidade social leva-nos a lembrar o que Taylor refere relativamente à idade secular. Há fatores com consequências diversas que têm lugar. Os excessos relativamente à racionalidade funcional geram reações como o crescimento das seitas ou a coexistência de absolutismo e relativismo, com agravamento da indiferença e da intolerância. A consciência dos limites obriga, pelo exemplo e pelo cuidado, a novas formas de respeito e salvaguarda da dignidade humana, em nome da responsabilidade para com os outros e do cuidado do futuro. Daí a necessidade da recusa do fatalismo neste domínio. O futuro depende de nós. A integridade / dignidade, os valores, o respeito e a ética referidos na gravura da capa do livro correspondem à necessidade de dar atenção à coesão, à confiança, à justiça e à equidade. “Portugal precisa de romper com uma certa cultura de desconfiança que está instalada na sociedade e que nem sempre lhe permite ganhar consciência de que pertence a uma comunidade maior e universal…”. E, como afirma José Durán Vasquez da Universidade de Vigo, os inúmeros dados apresentados pelo autor “mostram que a religião não está em retrocesso, mas em processo de constante reconfiguração, como o presente livro ilustrou de uma forma profunda, brilhante e clara”.       

 

Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

SALMAN RUSHDIE E O DIÁLOGO INTER-RELIGIOSO

Ruhollah Khomeini
  Ruhollah Khomeini © Mohammad Sayyad

 

1.  Em 2006, realizou-se, em Santa Maria da Feira, o V Simpósio “Sete Sóis Sete Luas”, que teve como tema “Qual é o Deus do Mediterrâneo?” Foram conferencistas Salman Rushdie, Cláudio Torres e eu próprio. O debate, moderado por Carlos Magno, durou quatro horas, com uma assistência atenta, que esgotou todos os lugares disponíveis da auditório da Biblioteca Municipal.

       Evidentemente, a figura central era Salman Rushdie contra quem tinha sido lançada em 1989 pelo ayatollah Khomeini uma fatwa, isto é, um decreto religioso, condenando-o à morte por blasfémia. Trinta e três anos depois, no passado dia 12 de Agosto, Rushdie foi esfaqueado, quando se preparava para uma palestra em Nova Iorque. O atacante é Hadi Matar, um homem de 24 anos, de origem libanesa. A fatwa nunca foi levantada e havia até um prémio de mais de 3 milhões de dólares para quem assassinasse o acusado de blasfémia por causa do livro Os Versículos Satânicos.

     Quais são esses famosos versículos? Dois que não figuram nas versões ortodoxas do Alcorão. Lê-se, de facto, na sura (capítulo) 53, versículos 19 e 20, da Vulgata: “E que vos parecem al-Lat, Al-Uzz e a outra, Manat, a terceira?”. A estes versículos, na tradução francesa de Régis Blanchère, que sigo, acrescentam-se mais dois (20bis e 20ter), os “satânicos”: “Elas são as Deusas Sublimes e a sua intercessão é certamente desejada.” Tratava-se de divindades do politeísmo pré-islâmico, representando, portanto, aquilo que Maomé mais fustigou por causa do seu monoteísmo puro, “sem associados”.

    Se a negação do monoteísmo é o único pecado sem perdão, pergunta-se: como pôde o Profeta declarar sublimes aquelas deusas? A explicação está em que estes versículos foram transmitidos ao Profeta por Satanás, e o modo usado por Deus para acabar com eles, versículos ímpios, consiste em “abrogá-los”, de tal modo que não figuram na Vulgata. Mas então surge uma nova pergunta, segundo Quentin Ludwig: “Porque é que Deus não esteve à altura de ditar imediatamente o versículo perfeito? Porque é que Deus deixou Satanás exprimir-se? E se Maomé se deixou levar por Satanás uma vez, quem pode dizer que não existem outros versículos satânicos no Alcorão?”

 

2.  Aqui chegados, é fundamental relembrar Hans Küng: “Não haverá paz entre as nações sem paz entre as religiões. Não haverá paz entre as religiões sem diálogo entre as religiões. Não haverá diálogo entre as religiões sem critérios éticos globais. Não haverá sobrevivência do nosso planeta sem um ethos (attitude ética) global, um ethos mundial.”

    E impõe-se, em ordem a um debate sem confusões, uma distinção essencial. Há a religiosidade, que, no movimento de transcendimento que pergunta pelo fundamento último, sentido último, procurando salvação, se defronta com o Sagrado, o Mistério. Crente é aquele que se entrega confiadamente a esse Mistério-Sagrado, do qual espera precisamente sentido último, salvação. Depois, neste enquadramento, entende-se que apareçam as religiões institucionais, que são construções humanas enquanto mediações entre o Mistério ou Sagrado, Deus, e os homens e as mulheres e entre estes e o Mistério, Deus. Assim, as religiões têm de tudo: do melhor e do pior, como se constata através da História. Nesta distinção entre religiosidade, religiões, e Sagrado-Mistério, entende-se que as religiões estão referidas ao Sagrado, ao Mistério, Deus, mas não são Deus, o Sagrado, o Mistério, que todas tentam dizer, mas a todas transcende.

    A partir destes pressupostos, percebe-se que o diálogo inter-religioso, essencial para o futuro da Humanidade, tem de assentar nalguns pilares fundamentais. Todas as religiões, desde que não se oponham ao Humanum, mas, pelo contrário, o dignifiquem e promovam, têm verdade. Outro pilar diz que todas são relativas (do verbo irregular latino refero, relatum), num duplo sentido: nasceram e situam-se num determinado contexto histórico e social e, por outro lado, estão relacionadas, referidas ao Sagrado, ao Absoluto, Deus. Estão referidas ao Absoluto, Deus, mas nenhuma o possui, pois Deus enquanto Mistério último está sempre para lá de tudo quanto possamos pensar ou dizer dEle. Precisamente por isso, uma vez que nenhuma o possui na sua plenitude, devem dialogar para, todas juntas, tentarem dizer menos mal o Mistério, Deus, que a todos convoca.  Por isso, por paradoxal que pareça, do diálogo fazem parte também os ateus, porque, estando de fora, mais facilmente podem ajudar os crentes a ver a superstição e a inumanidade que tantas vezes envenenam as religiões.

   Exigência intrínseca da religião na sua verdade é a ética e o compromisso com os direitos humanos, a realização plena de todas as pessoas, a salvaguarda da Terra. A violência em nome da religião contradiz a sua essência, que é a salvação. Aliás, antes de sermos crentes ou não, o que a todos nos une é a humanidade comum e a dignidade de pessoas, de tal modo que, face a um Deus que legitimasse a violência, o ódio, mandasse matar em seu nome, impunha-se uma obrigação moral: ser ateu.  

    E dois princípios irrenunciáveis: a leitura não literal, mas histórico-crítica dos livros sagrados — Deus não falou directamente com ninguém —, e a laicidade do Estado — só mediante a neutralidade religiosa do Estado é possível garantir a liberdade religiosa de todos sem discriminação. Mas laicidade não é laicismo, que pretende retirar a religião do espaço público.

 

    Esta crónica despede-se com saudades até Outubro.

   

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 27 de agosto de 2022

 

     

 

O APOCALIPSE, AS DOZE ESTRELAS, SALMAN RUSHDIE

Por David Shankbone - Obra do próprio, CC BY 3.0, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=15049403

 

1. O Apocalipse, último livro da Bíblia, anda constantemente associado ao esotérico, à catástrofe, ao fim do mundo… Quem nunca ouviu falar da besta, do dragão, do número 666? Quando se quer aludir a catástrofes, horrores, guerras, fim do mundo, lá vem o adjectivo tenebroso “apocapítico”.

Quem quiser uma informação rápida, científica e séria, consulte as páginas que lhe dedicou o grande exegeta Padre Carreira das Neves na obra que escreveu a meu pedido: O que é a Bíblia. A título de exemplo, lá encontrará a explicação para os números: 3 é um número perfeito e o número de Deus; 3+4=7 ou 3x4=12, para simbolizar a plenitude (os dias da criação ou a aliança de Deus, respectivamente), os 144.000 assinalados são o múltiplo de 3x4x12x1.000 — 1.000 é o símbolo da universalidade — e simbolizam o novo povo de Deus. Em sentido contrário, a metade destes números só pode significar o não-tempo de Deus e a sua não-aliança, como é o caso de três e meio e de seis. Assim, 666 é o número da besta, um símbolo numérico do nome e título de Domiciano como imperador. A mulher pode designar a Igreja perseguida, a prostituta ou a noiva do Cordeiro…

 

2. Mas qual é a verdadeira intenção do Apocalipse, que é, repito, o último livro da Bíblia? Escrito durante a perseguição dos cristãos por Roma, é um livro que, em linguagem simbólica e cifrada, quer essencialmente dar ânimo aos que crêem: a última palavra não pertence ao mal, mas ao bem. Decisivo é compreender que o livro do Apocalipse tem o sentido exactamente contrário ao vulgarizado: trata do combate entre o Império romano e a Igreja de Deus, para animar os cristãos perseguidos, dando-lhes esperança: Deus e o seu Cristo triunfarão. Aliás, hoje os estudiosos pensam que a verdadeira estrutura do Apocalipse reside numa grande liturgia terrestre e celeste ao Cordeiro, que representa Cristo.

O Apocalipse não quer, portanto, anunciar o fim, ele é antes uma promessa. Com os melhores exegetas — lembrar, por exemplo, a correspondência epistolar pública entre o cardeal Martini, então arcebispo de Milão, e o escritor Umberto Eco, editada posteriormente  em livro: Em que é que crê quem não crê? --, deve-se ver no Apocalipse um tríplice objectivo: mostrar que a História tem uma finalidade, uma orientação, não é uma amálgama de acontecimentos sem sentido contada por um idiota, na expressão de Shakespeare; depois, que esse sentido já está presente no mundo, mas não é meramente imanente, pois só encontrará a sua realização plena meta-historicamente; finalmente, que este sentido meta-histórico se vai decidindo nos acontecimentos da história — daí, a responsabilidade ética do ser humano — e ao mesmo tempo não é da ordem do cálculo, mas objecto da esperança, já que o último salto para “um novo céu e uma nova terra” pertence ao Criador.

 

3. Seja como for, é bom e, diria mesmo, urgente reflectir sobre o Apocalipse enquanto extermínio do mundo. Basta pensar, por exemplo, no suicídio colectivo, se não forem tomadas medidas drásticas no que se refere à poluição, ao aquecimento global, às alterações climáticas… E agora está aí, bem à vista, a ameaça do horror nuclear… Como disse António Guterres, Secretário-geral da ONU, “se as armas nucleares forem usadas, provavelmente não vai haver ONU para responder, significaria a destruição do planeta.”

 

4. E seja permitida uma nota à margem, sugerindo esperança. Afinal, contactamos mais com o Apocalipse do que julgamos. O símbolo da Europa -- aquelas doze estrelas douradas sobre fundo azul, que encontramos na bandeira da União Europeia -- está em ligação com um passo célebre do Apocalipse (12, 1): "Depois, apareceu no céu um grande sinal: uma Mulher vestida de Sol, com a Lua debaixo dos pés e com uma coroa de doze estrelas sobre a sua cabeça." Afinal, um símbolo do povo de Deus, um símbolo da unidade na diversidade, um símbolo da perfeição (3x4) — lembrar, por exemplo, as doze tribos de Israel ou os doze Apóstolos.

De qualquer modo, a situação da Europa, no contexto da nova geoestratégia e geopolítica, é de uma temível fragilidade.

 

5. Estava eu na escrita desta crónica quando me chegou a notícia do ataque selvagem a Salman Rushdie. Quero manifestar-lhe a minha solidariedade, com o desejo vivo de que possa continuar a ser o símbolo do combate corajoso a favor da liberdade de opinião e expressão.

Encontrei-o em 2006 em Santa Maria da Feira para um debate sobre o choque das religiões. Ele ficou muito admirado por eu, padre católico, ter defendido que os livros sagrados exigem uma leitura histórico-crítica. Continuo a pensar isso, pois essa é uma condição essencial para a liberdade religiosa. Os livros sagrados não são ditados por Deus. Outra condição é a laicidade do Estado, a separação da Igreja e do Estado, isto é, o Estado deve ser confessionalmente neutro, para poder salvaguardar a liberdade religiosa de todos, incluindo os ateus. Mas laicidade não é laicismo, que pretende excluir a religião do espaço público.

No contexto de uma reflexão sobre o Apocalipse, quero sublinhar como decisivo o diálogo inter-religioso, em ordem a evitar uma catástrofe apocalíptica. Por paradoxal que pareça, desse diálogo fazem parte também os ateus — os ateus que sabem o que isso quer dizer —, pois, “de fora”, talvez mais facilmente se apercebam da superstição, idolatria, inumanidade, que tantas vezes envenenam as religiões. Voltarei ao tema.

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 20 de agosto de 2022

 

FRANCISCO OLHANDO PARA O FUTURO

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Com as tremendas responsabilidades que pesam sobre ele, o Papa Francisco olha para o futuro: o seu futuro, o futuro da Igreja, o futuro do mundo…

 

1. Qual o futuro de Francisco? Ele sabe que tem 85 anos e que anda em cadeira de rodas e que há rumores de renúncia no ar, tão desejada por alguns sectores ultraconservadores que anseiam por ver-se livres dele. De qualquer forma, mesmo sentindo-se um pouco diminuído, não está nos seus planos a renúncia para breve. Disse-o recentemente a duas jornalistas mexicanas, María Antonieta Collins e Valentina Alazraki: “Não tenho nenhuma intenção de renunciar. Para já, não.”

Repetiu a mesma coisa na conferência de imprensa no regresso da recente “peregrinação penitencial” ao Canadá. Confessou que uma eventual renúncia “não é uma catástrofe: pode-se  mudar de Papa, isso não é um problema”. De qualquer forma, acrescentou, “não pensei nessa possibilidade. Isso não quer dizer, porém, que não venha a pensar nisso num futuro próximo.” Evidentemente, não poderá “continuar com o mesmo ritmo de viagens de antes. Com a minha idade e com esta limitação, devo poupar-me um pouco para servir a Igreja ou até pensar na possibilidade de me afastar”. De qualquer forma, declarou: “continuarei a fazer viagens e a estar perto das pessoas, pois julgo que a proximidade é um modo de servir.” Deu como quase certa a sua viagem ao Kazaquistão em Setembro — “é uma viagem tranquila, é um congresso” — e reiterou a sua intenção de ir à Ucrânia e realizar a visita à República Democrática do Congo e ao Sudão do Sul, prevista para os princípios de Julho e adiada por causa da recuperação do joelho.

 

2. Entretanto, a ida ao Kazaquistão, de 13 a 15 de Setembro próximo, foi confirmada pelo Vaticano. Para participar no VII Congresso de Líderes de Religiões Mundiais e Tradicionais.

Precisamente aí poderia dar-se o tão desejado encontro com o Patriarca de Moscovo, Cirilo, que, desgraçadamente, continua a abençoar a invasão e a guerra da Ucrânia. Francisco, pelo contrário, com mais de 70 intervenções a favor da paz, tem manifestado disponibilidade para visitar tanto Kiev como Moscovo, colocando a diplomacia da Santa Sé ao serviço de uma mediação em ordem a uma paz justa e duradoura. Como acaba de declarar o Secretário de Estado, cardeal Pietro Parolin, à revista italiana de geopolítica “Limes”, “o Papa gostaria de ir a Kiev para levar consolação e esperança às pessoas afectadas pela guerra”, anunciando igualmente a sua disposição  para ir a Moscovo, “desde que haja condições que sejam realmente úteis para a paz.” Afirmou: “A diplomacia da Santa Sé não está vinculada a um Estado mas a uma realidade de direito internacional que não tem interesses políticos, económicos, militares. Põe-se ao serviço do bispo de Roma, que é o pastor da Igreja universal. A Igreja é pacifista porque crê e luta pela paz”. Parolin reconheceu que o diálogo entre Roma e Moscovo é “um diálogo difícil, que avança com pequenos passos e também experimenta altos e baixos”, mas “não está interrompido”.  

Francisco vive sobremaneira preocupado com o perigo nuclear. Por isso, não se cansa de declarar como doutrina oficial da Igreja que “o uso e a posse de armas atómicas são imorais”.

 

3. Francisco deixa uma marca indelével na Igreja. Ele não quer uma Igreja “autorreferencial”, ela tem de estar aberta ao mundo, “em saída”. A liturgia tem de ser viva, não um ritual seco. Contra uma Igreja piramidal, centrada na hierarquia, afirma uma Igreja sinodal, na qual todos têm voz, sem tabus. Certamente a Igreja tem de ser fiel à tradição, mas uma tradição viva, contra o imobilismo... E, aqui, voltando à citada conferência de imprensa, fica um exemplo de abertura. Uma das perguntas incidiu sobre os contraceptivos. E Francisco aproveitou para reflectir sobre o dogma e a moral em vias de desenvolvimento, citando S. Vicente de Lérins, no século X: “a verdadeira doutrina para avançar e desenvolver-se não pode ficar parada, isto é, consolida-se com o tempo, mas sempre em contínuo progresso”. “Uma Igreja que não desenvolve o seu pensamento em sentido eclesial é uma Igreja que recua, e este é o problema hoje de tantos que se dizem tradicionais”, impedindo que a Igreja avance, apenas “porque sempre se fez assim.” São “tradicionalistas”, “retrógrados”. Deste modo, Francisco mostrou a abertura actual à contracepção.

Ainda sobre a renúncia. Francisco é jesuíta, e há um ponto essencial para um jesuíta: o discernimento. Ele irá, portanto, segundo as circunstâncias, discernindo, para tomar a decisão certa. Como ficou dito, irá ao Cazaquistão em Setembro. Em 28 de Agosto, visitará Aquila, cidade italiana onde se encontra o túmulo de Celestino V, o último Papa, antes de Bento XVI, a renunciar. Mas, logo no dia seguinte, os cardeais todos do mundo estão convocados para uma reunião. Francisco quer aconselhar-se sobre a reforma da Cúria e, sobretudo, o processo sinodal.

É minha convicção que ele, excepto no caso de total incapacidade, não renunciará enquanto Bento XVI viver. E tudo fará para poder estar presente, em Outubro de 2023, no Sínodo sobre a sinodalidade. 

 

4. Como ele próprio disse, quando vir que “não posso continuar ou prejudico ou sou um estorvo”, espera “ajuda” para tomar a decisão de retirar-se. E, retirado, não será “Papa emérito”, mas “bispo emérito de Roma”. E que fará? “Gostaria de atender confissões e ir visitar os doentes”.

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 13 de agosto de 2022

É EM SÁBADO QUE VIVEMOS

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Celebrávamos anualmente a Paixão de Cristo, mas com o perigo de não ir além de ritos muito certinhos, tantas vezes secos e insignificantes. Esquecêramos Pascal nos Pensamentos: "Jesus estará em agonia até ao fim do mundo. Importa não dormir durante esse tempo.” Agora, com uma guerra tenebrosa em curso, sabemos que a Paixão continua, e as personagens da tragédia são exactamente as mesmas.

Como acontece quase sempre, o poder religioso e o poder político ao mesmo tempo que se guerreiam juntam-se na defesa dos seus próprios interesses, que são os da manutenção e aumento incessante do poder. Assim, lá estão o sumo sacerdote Caifás -- não se tinha Jesus erguido, na continuação dos profetas, contra o poder sacerdotal, que se servia de Deus contra o povo? -- e a razão de Estado: era preferível matar Jesus a pôr em perigo as relações com Roma. Pilatos, o representante do Império, convenceu-se da inocência de Jesus, mas a Realpolik não podia permitir o incêndio da sublevação do povo contra o Império. Por isso, lavou as mãos -- a proclamação da inocência hipócrita! -- e condenou-o à morte dos escravos: a cruz, com a morte mais horrenda. Nesse dia, Pilatos e Herodes, que eram inimigos, reconciliaram-se. O nome de Pilatos é dos nomes mais vezes pronunciados ao longo da História, pois está inscrito na confissão da fé dos cristãos. Mas é tal o desconforto que há aquele dito aplicado a quem se encontra fora do lugar, melhor, num lugar indevido: estás aí como Pilatos no Credo.

Os soldados cuspiram-lhe, puseram-lhe uma coroa de espinhos, açoitaram-no… Significativamente, quando um lhe deu uma bofetada, Jesus, que tinha dito para dar a outra face, ele próprio não o fez, pois é preciso manter a dignidade: “se disse mal, diz-me em quê; se disse bem, porque é que me bates?” A multidão -- essa, exactamente a mesma --, no Domingo de Ramos, clamou: "Hosana, hosana" e, na Sexta-Feira Santa, gritou: "Crucifica-o, crucifica-o". Não se pode confiar nas multidões, volúveis e manipuláveis.

Judas atraiçoou o Mestre. Vendeu-o por trinta moedas de prata. Ele faz parte da longa história dos traidores. Mas, pensando bem, não tinha sido ele próprio “atraiçoado”? De facto, ele esperava e empenhara-se com um Messias político, que tomasse o poder. Não podia entender que a revolução de Jesus era outra: a transformação radical do coração e a partilha e o serviço. Há sempre equívocos que levam ao desastre. Quando viu o seu erro, foi confessar o seu engano, mas não encontrou compreensão; arrependido, não quis ficar com o dinheiro que, esprimido, derramava sangue, atirou-o para o Templo, e enforcou-se.

Pedro, no momento da prisão, puxou pela espada. Jesus, porém, mandou que a metesse na bainha, ficando a ecoar através dos tempos a palavra da não violência activa: quem mata com ferros com ferros morre. Pouco depois, o mesmo Pedro também se acobardou: quando uma jovem insinuou que ele era discípulo de Jesus, começou a jurar que nem sequer o conhecia. Depois, tomou consciência, arrependeu-se e chorou amargamente, confiando no perdão do amigo que pregara o amor aos inimigos.

Entre Jesus, que representa o amor e a paz, e Barrabás, que representa a violência, a multidão foi incitada a escolher Barrabás.

Os discípulos de Jesus, quando viram tudo perdido, fugiram todos apavorados. Embora forçado, um homem de Cirene ajudou Jesus a levar a Cruz; na vida, pode haver sempre um Cireneu. Inesperadamente, um simpatizante tímido -- Nicodemos -- emprestou o túmulo. Os dois ladrões, que seriam dois terroristas, mesmo na iminência da morte, tiveram comportamentos diferentes: um arrependeu-se, o outro, desesperado, continuou a blasfemar. As mulheres foram quem manteve a dignidade: acompanharam-no até ao fim.

Antes de morrer, Jesus implorou o perdão para a Humanidade, também para aqueles que o torturavam e matavam: "Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem". E rezou aquela oração misteriosa que atravessa os séculos, transportando a dor e o clamor todo do mundo: "Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?"

Neste drama todo, o que mais impressiona é que Deus a quem Jesus tratava com ternura como Abbá -- Pai querido, Mãe --, não respondeu. As suas últimas palavras: “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito.”

Aparentemente, foi a derrota e o fim. Mais um crucificado.

Por isso, o enigma do cristianismo é este: Porque é que os discípulos, que, apavorados, tinham fugido, lentamente voltaram a reunir-se e foram anunciar, dando a vida por isso, que aquele Crucificado é o Messias, o Enviado de Deus e é nEle que está a salvação?

O que é que se passou? A revolução de Jesus é a revolução da imagem de Deus. Nunca ninguém tinha dito, por palavras e obras: Deus é bom, Pai e Mãe de todos. E não tolera a opressão da religião e do poder. Foi uma coligação de interesses religiosos e imperiais que assassinou Jesus. Ele não fugiu, não se desdisse, foi até ao fim, para dar testemunho da Verdade e do Amor.  Foi neste quadro que os discípulos, reflectindo sobre o modo como Ele se relacionava com Deus, sobre o modo como viveu, como morreu, foram fazendo uma experiência avassaladora de fé de que Ele, o Crucificado, está vivo em Deus para sempre. O Deus infinitamente poderoso e bom não podia abandoná-lo à morte.

Desde então, na expressão de George Steiner, é em Sábado que vivemos: entre a Sexta-Feira Santa, as suas dores, os seus horrores…, e o Domingo de Páscoa, com a esperança da vida plena para todos os crucificados.

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 16 de abril de 2022

 

NATAL: A DIGNIDADE INFINITA DE SER HOMEM

Presépio de Machado de Castro

 

A festa do Natal tem de ser, é, mais do que o festival do comércio natalício. Há pessoas que chegam à noite de Natal cansadas e desfeitas, por causa dos presentes. No último instante, ainda tiveram de ir à última loja aberta, por causa de mais uma compra. Há inclusivamente pessoas para as quais o tormento das compras natalícias começa logo em Janeiro, uns dias após o Natal: o que é que vão dar como presente àquele, àquela, no Natal seguinte?!...

A festa do Natal é infinitamente mais, e deve sê-lo. Porque o Natal é uma visita de Deus aos homens, às mulheres, aos jovens, às crianças. É Deus presente entre nós. E, ao contrário do que frequentemente fazemos com os nossos presentes, que pretendem ser uma manifestação de ostentação de poder junto dos outros, Deus veio, sem majestade, sem poder. Veio, humilde, na ternura de uma criança. De tal maneira que os mais pobres - os pastores – não se sentiram humilhados ao visitá-lo. Foram os pastores os primeiros que viram Deus visível num rosto de criança. Quem é que imaginaria que Deus, se algum dia viesse, viria assim: simples, pobre, precisamente para que ninguém se sentisse excluído?...

Quer se seja cristão quer não, quer se acredite quer não, é necessário reconhecer que foi através do cristianismo, isto é, mediante a fé no Deus feito Homem, que veio ao mundo a tomada de consciência explícita e clara da dignidade infinita do ser humano. Isso foi reconhecido por pensadores da estatura de Hegel, Ernst Bloch, Jürgen Habermas. Hegel afirmou expressamente que na religião cristã está o princípio de que "o Homem tem valor absolutamente infinito". Ernst Bloch, embora ateu, confessou que foi pelo cristianismo que veio ao mundo a consciência do valor infinito da pessoa humana, de tal modo que nenhum homem, mulher, jovem, criança, pode ser tratado como "gado". Jürgen Habermas, o mais importante filósofo vivo, escreveu que a democracia  não se entende sem a compreensão judaico-cristã da igualdade radical de todos os homens, por causa da "igualdade de cada indivíduo perante Deus": o princípio de “um homem um voto” é a tradução política da fé cristã de que cada homem, cada mulher, é filho, filha, de Deus, valendo todos como iguais. A própria ideia de pessoa enquanto dignidade inviolável e sujeito de direitos inalienáveis veio ao mundo através dos debates à volta da tentativa de compreender a pessoa de Cristo e o mistério do Deus trinitário cristão. Embora, desgraçadamente, tenham tido de impor-se contra a Igreja oficial, foi em solo de base cristã que foram germinando e se deram as grandes Declarações de Direitos Humanos.

Afinal, é uma alegria enorme dar um presente e receber um presente, concretamente na época de Natal. Mas essa alegria não provém tanto do valor material do presente como desse saber que consiste em sermos e estarmos nós próprios presentes uns aos outros: ele lembrou-se de mim, eu lembrei-me dele; eu lembrei-me dela, ela lembrou-se de mim...

O pequeno presente oferecido é sinal, símbolo, dessa presença calorosa, e exprime a alegria de se ser pessoa, cuja dignidade infinita reconhecemos em cada ser humano. Assim, celebrar o Natal tem de ser também contribuir para que se concretize o anúncio dos anjos aos pastores, que constituíam a classe baixa dos pequenos e pobres e que inclusivamente viviam à margem da prática religiosa: "Nasceu para vós um salvador; Paz na Terra aos homens amados por Deus". É uma vergonha para a Humanidade que hoje mais de 800 milhões de pessoas passem fome enquanto os gastos com armamento não cessam de aumentar.

José Tolentino de Mendonça escreveu: “O Natal do comércio chega de um dia para o outro. Fácil, tilintante, confuso, pré-fabricado. É um Natal visual. Um amontoado de símbolos. Dentro de nós, porém, sabemos que não é assim. Para ser verdade, o Natal não pode ser só isto. Não pode ser apenas para uma emoção social, para um corrupio de compensações, compras e trocas. Para ser verdade, o Natal tem de ser fundo, pessoal, despojado, interpelador, silencioso, solidário, espiritual. Acorda em nós, Senhor, o desejo de um Natal autêntico.”

Considero suicidário que os europeus menosprezem a sua herança cristã. Sinto como desastroso e ridículo, que, em nome da inclusão, uma vez que nem todas as religiões celebram a data, a Comissária Europeia para a Igualdade, Helena Dalli, tenha recomendado a abolição da palavra “Natal”, a substituir por “período de festas”, por exemplo. No guia distribuído aos funcionários da Comissão Europeia, chegou-se ao cúmulo de recomendar a substituição de nomes cristãos, como Maria e José... por outros. Pergunto: Será que alguém que não estima a sua cultura vai respeitar as dos outros? O ser humano, na e para a sua identidade, é ao mesmo tempo enraizado e aberto. Quem nega as suas raízes, perdendo a identidade, tem competências para se abrir ao diálogo são e enriquecedor com os outros? Significativamente, Ursula von der Leyen, Presidente da Comissão Europeia,  escreveu pessoalmente ao Papa Francisco assegurando que a União Europeia se inspira na “herança cultural, religiosa e humanista da Europa”.

Seja como for, é Karl Rahner, talvez o maior teólogo do século XX — tive o privilégio de ser seu aluno —, que tem razão: ”Quando dizemos ‘é Natal’, estamos a dizer: Deus disse ao mundo a sua última palavra, a sua mais profunda e bela palavra numa Palavra feita carne. E esta Palavra significa: Amo-vos, a ti, mundo, a vós, seres humanos.” Natal bom e feliz!

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 25 de dezembro de 2021

O ELOGIO DA ALEGRIA VERDADEIRA

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1  "Faço o elogio da alegria, porque o único bem do Homem é comer e beber e alegrar-se; isto acompanhá-lo-á durante os dias da vida que Deus lhe concede viver debaixo do Sol. Vai, come o teu pão com alegria e bebe contente o teu vinho, porque, desde há muito tempo, Deus aprecia as tuas obras. Em todo o tempo sejam brancas as tuas vestes, e não falte o perfume na tua cabeça. Goza a vida com a mulher que amas, todos os dias que dure a tua vida fugaz que Deus te concedeu debaixo do Sol, os anos todos da tua vida efémera."

Confrontados com este texto, quantos cristãos seriam capazes de identificá-lo como um texto que vem na Bíblia? Realmente, vem na Bíblia e pertence a um livro chamado Eclesiastes ou Qohélet.

Deus foi visto frequentemente como inimigo da vida e invejoso da felicidade dos homens e das mulheres. Já Platão e Aristóteles tiveram de insurgir-se contra essa ideia terrível e nefasta de um Deus que tem inveja da felicidade e alegria dos homens e mulheres neste mundo. E foi precisamente contra um Deus rival do Homem que se insurgiram os chamados filósofos da suspeita na modernidade. O Assim Falava Zaratustra, de Nietzsche, concretamente, contra este mundo como vale de lágrimas, pregou a fidelidade à Terra, à vida e às suas alegrias.

Mas o Deus cristão não é inimigo do Homem nem seu rival. Pelo contrário, é Força criadora, que faz ser tudo o que é e quer a plena realização de todas as criaturas. Alegra-se com a felicidade das pessoas, e está ao seu lado no combate contra tudo aquilo que as diminui.

Como escreveu Santo Ireneu, Deus não é interesseiro nem cioso da sua glória; pelo contrário, "a glória de Deus é o Homem vivo", isto é, a pessoa humana na sua plenitude, plenamente realizada em todas as suas dimensões.

A religião autêntica não é de modo nenhum inimiga da alegria nem do prazer. O que se passa é que também é necessário compreender que a felicidade não é, ao contrário do que se julga, a soma de determinada quantidade de prazeres. Pelo contrário, a felicidade verdadeiramente humana e a consequente alegria expansiva podem até exigir que se renuncie ao prazer imediato. E não se pode esquecer o que disse Jesus: “Dá mais alegria dar do que receber”.

Dito isto, podemos repetir o texto aparentemente pouco ortodoxo da Bíblia, concretamente do Qohélet, um livro melancolicamente pessimista, pois o tempo tudo devora: "Faço o elogio da alegria, porque o único bem do Homem é comer e beber e alegrar-se.” Aliás, exortações do género encontram-se também entre os egípcios, como esta que figura no túmulo de um sacerdote, na necrópole de Tebas: "Vive este dia em alegria, Neferhotep, excelente sacerdote de mãos puras! Mistura o bálsamo e o óleo fino, ornamenta a tua amada, sentada ao pé de ti, com uma coroa de flores de lótus! Que a música e os cânticos ressoem aos teus ouvidos! Afasta qualquer pensamento sombrio e pensa só na alegria até ao dia em que fores levado para o país do silêncio."

 

2  É preciso repetir constantemente: o Deus cristão não tem inveja da realização do ser humano. Pelo contrário. Ele não nos criou para a sua maior honra e glória, mas para que sejamos plenamente felizes. Ele é o Deus vivo e dos vivos. Por isso, em Cristo, promete a vida plena, eterna. Não seremos levados para “o país do silêncio”.

Foi pregado ao longo de demasiado tempo que Deus precisou do sangue do próprio Filho para aplacar a sua ira divina. Pergunta-se: como é que foi possível pregar e acreditar num Deus vingativo e sádico, um Deus pior do que um pai humano decente? ”Quem segue o pensamento da morte expiatória de Jesus tem de responder à pergunta: quem é e como é o Deus que exige a expiação e a aceitou. A resposta supõe que Deus Pai só com a morte de Jesus na cruz se reconciliou com a Humanidade culpada. Só através do sofrimento bárbaro e a morte aplacou a sua ira, um pensamento que à luz da mensagem de Jesus sobre Deus parece a muitos absurdo”, escreveu, com razão, o teólogo H. Vorgrimler. Jesus não morreu para aplacar a ira de Deus. Jesus foi vítima da maldade dos homens, dos sacerdotes do Templo e dos senhores do Império. A cruz de Cristo é a expressão suma do amor incondicional de Deus para com todos. Jesus, o excluído, é aquele que, em nome do Deus bom, não exclui ninguém. Pelo contrário, inclui a todos no amor sem condições. Jesus morreu para dar testemunho até ao fim do Evangelho: Deus é bom.

Então aprendemos a alegria verdadeira: o sacrifício pelo sacrifício é detestável, mas, por outro lado, nada vale realmente sem sacrifício. Por causa do império de uma banalidade mole hoje triunfante, é recusado a muitos o sabor da alegria que resulta da superação de obstáculos. Nada de grande, belo e valioso e digno se faz e constrói sem sacrifício. Os valores merecem que nos batamos por eles, e é esse sacrifício enquanto luta por aquilo que vale que nos engrandece como seres humanos.

Àqueles que o criticavam por participar em banquetes oferecidos por pecadores públicos Jesus respondeu: "Ide aprender o que significa: ‘O que eu quero é misericórdia e não sacrifício'". Jesus também disse: "Quem quiser seguir-me tome a sua cruz todos os dias". Referia-se àquela cruz que dá testemunho da verdade e que acompanha o combate pela liberdade, pela racionalidade, pela dignidade, pela justiça, pela criação, pelo amor, pela alegria de todos.

    Torna-se então pleno de sentido o que Bernard Shaw escreveu: “É uma felicidade enorme quando se tem a capacidade de poder alegrar-se.”

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 18 de setembro de 2021