A VIDA DOS LIVROS
De 19 a 25 de agosto de 2024
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De 19 a 25 de agosto de 2024
Continuamos com os pedidos em nome de Deus feitos pelo Papa Francisco.
4. Em nome de Deus peço uma política que trabalhe para o bem comum.
Penso que a Política, com maiúscula, como diz Francisco, constitui um dos serviços mais prestimosos e também mais exigentes, que quase requer a santidade. Por isso, quando vejo tantos, tantos, tantos... na corrida para um lugar na política, prestando-se até a comportamentos por vezes ridículos, se me perguntam se eu acredito que a maior parte o faz para prestar esse serviço ao bem comum, respondo sinceramente: não. Há outros motivos; disse-o quem sabe, Henri Kissinger: “o poder é o maior afrodisíaco”.
Francisco escreve que acredita numa política que “nunca perde de vista o bem comum, o seu verdadeiro e primordial objectivo”, mas que também sabe que para alguns “a política se escreve com minúscula e se transformou numa má palavra”: “pensa-se nas vantagens, no “quanto me dá”, e aí está “um dos males que mais a danificam: a corrupção”. “Não é ilegal que um ser humano se sinta atraído pelo dinheiro, as viagens em primeira classe, as mansões, mas convoco a que na Política se envolvam só os que podem viver com sobriedade e austeridade no seu dia a dia.”
5. Em nome de Deus peço que se acabe com a loucura da guerra.
Cita Virgílio que há mais de dois mil anos escreveu que “na guerra não há salvação”, para acrescentar: “a guerra é o sinal mais claro da inumanidade”, “um flagelo, que nunca pode resolver os problemas entre as nações, uma matança inútil com a qual tudo se pode perder e que, em última análise, é sempre uma derrota da humanidade.” Pensa que “a sua persistência entre nós é o verdadeiro fracasso da política.” A guerra na Ucrânia mostra-nos “a crueldade do horror bélico.” A guerra “nunca será uma solução; é também uma resposta ineficaz, nunca resolve os problemas que pretende superar. Vemos que o Iémen, a Líbia ou a Síria, só para citar alguns exemplos contemporâneos, estão melhor do que antes dos conflitos?”
E o escândalo dos gastos mundiais com o armamento, “um dos maiores escândalos morais da actualidade”? “Com a guerra há milhões que perdem tudo, mas há muitos que ganham milhões.” Não podemos continuar “condenados ao medo da destruição atómica; ter armas nucleares e atómicas é imoral.” É “necessário repensar a ONU e especialmente o Conselho de Segurança para que estas instituições dêem resposta à nova realidade existente e sejam fruto de um consenso o mais amplo possível.”
6. Em nome de Deus peço que se abram as portas aos migrantes e refugiados.
Francisco lembra que a sua primeira saída de Roma como Papa foi a Lampedusa e diz aos migrantes e refugiados: “nunca vos esqueci”. O pedido que faz está nestes quatro verbos: “acolher, proteger, promover e integrar”: abrir a porta “dentro das possibilidades de cada país”. É realista e previne contra “as redes de traficantes” e a quem é acolhido pede-se “a aceitação indispensável das normas do país que recebe bem como o respeito pelos princípios de identidade deste”.
7. Em nome de Deus peço que se promova e anime a participação das mulheres na sociedade.
Essencial: “As mulheres têm a mesma dignidade que os homens. Em cada um dos cinco continentes. Em cada um dos países. A comunidade internacional não pode continuar a olhar com passividade para as consequências dramáticas de modelos de relação baseados na discriminação e na submissão, que estão na base de que milhares de mulheres e meninas sejam todos os anos submetidas a casamentos forçados, escravidão doméstica e outros ataques à sua dignidade. Outro drama extenso é a mutilação genital feminina. São cerca de três milhões as jovens que a cada ano sofrem esta intervenção”, acrescentando que “é importante que nos impliquemos todos na abertura de espaços às mulheres, se quisermos um futuro fecundo e criativo.”
Aqui, Francisco que me desculpe, mas é preciso perguntar para quando o fim da discriminação das mulheres católicas na Igreja.
8. Em nome de Deus peço que se permita e fomente o crescimento dos países pobres.
Clama contra o escândalo: “As dez pessoas mais ricas do mundo duplicaram as suas fortunas durante a pandemia. O 1% mais rico da população mundial concentra 32% da riqueza do planeta... enquanto a metade mais pobre do mundo, no seu conjunto, não chega aos 2% da riqueza, segundo os dados da Oxfam e do World Inequality Report 2022. Os ricos são cada vez mais ricos; os pobres cada vez mais pobres. Este sistema mata, exclui e concentra.” Este é um sistema doente, “calcula-se que um terço dos alimentos produzidos é desperdiçado”, “quase seis milhões de crianças morrem anualmente devido à extrema pobreza.”
9. Em nome de Deus peço que se universalize o acesso à saúde.
Cita G. K. Chesterton: “A coisa mais poética, mais poética que as flores, mais poética que as estrelas, a coisa mais poética do mundo é não estar doente.” Infelizmente, conclui com Romano Guardini: “o homem moderno não está preparado para usar o poder com acerto”, pois “o imenso crescimento tecnológico não foi acompanhado por um desenvolvimento do ser humano em responsabilidade, valores, consciência”.
10. Em nome de Deus peço que o seu Nome não seja utilizado para fomentar guerras.
Eu, em relação a um Deus que leve à guerra digo: em relação a esse Deus é obrigatório ser ateu.
N.B. Com os melhores desejos para todos, esta crónica despede-se até 7 de Outubro.
Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN | 26 de agosto de 2023
Na sequência da Jornada Mundial da Juventude, ficam aí algumas reflexões a partir de um livro de Francisco, “Os ruego en nombre de Dios. Por un futuro de esperanza” (Peço-vos em nome de Deus. Por um futuro de esperança). Soube que, entretanto, foi traduzido para português, na Editorial Presença: “O que Vos Peço, em Nome de Deus”. São dez pedidos.
Francisco, antes de referir esses pedidos, começa por apresentar a sua relação pessoal com Deus: “Uma relação como a de qualquer homem, muito humana”, acrescentando: “uma relação com Deus é boa quando avança de acordo com a idade, quando não se fica na infância e é aberta.” Confessa que nem sempre entende e há momentos de obscuridade: “Por vezes estou calado e deixo que Ele fale, que se faça sentir. É uma relação de convivência. Por vezes não o compreendo, tem os seus modos de proceder.” Mas o que sente é amor por Deus, acrescentando: “Não podes amar a Deus, se não te sentes amado.”
Para compreender os pedidos, adverte que é necessário entender que “mais do que numa época de mudanças encontramo-nos numa mudança de época.” E cita Bertrand Russell: “Entender o mundo actual como é e não como desejaríamos que fosse é o início da sabedoria.”
Vêm então os pedidos. “Peço-vos que me acompanheis a fazer juntos estes dez pedidos em nome de Deus.”
1. Em nome de Deus peço que se erradique na Igreja a cultura dos abusos.
Já aqui escrevi que, para mim, a Inquisição e a pedofilia por parte do clero são a pior catástrofe da Igreja. Francisco lembra que um caso é por si “uma monstruosidade”. Escreve: “As consequências dos abusos sexuais cometidos contra menores e adultos vulneráveis duram anos nas vítimas. Refiro-me a este crime como um homicídio psicológico, porque podem ter consequências irreparáveis na sua saúde mental”, causando “danos físicos, psicológicos e espirituais.”
Não há qualquer desculpa no facto de desgraçadamente os abusos serem um fenómeno historicamente presente em todas as culturas e sociedades e até o maior número acontecer nas famílias; de facto, “cometido por membros da Igreja não é só um crime atroz, é uma ofensa a Deus”.
“Uma das nossas maiores faltas, talvez a mais grave, foi não tomar em conta os relatos e denúncias das vítimas.” Trata-se não só de um pecado, mas de um crime, que se tem o dever de denunciar, colaborando com as autoridades civis. “Neste sentido, acrescenta, já em 2016 estabelecemos que a negligência em casos de abusos é causa para a destituição de bispos.”
Na recente visita a Portugal, Francisco recebeu 13 vítimas, ouviu-as, abraçou-as uma a uma, vergando-se à sua dor. O preceito inquestionável é: “Tolerância zero”, sem esquecer, evidentemente, “o princípio de in dubio pro reo, que não pode ser deixado de lado nem sequer para este tipo de delitos atrozes.”
2. Em nome de Deus peço que protejamos a casa comum.
Penso que, face às catástrofes, incêndios, tempestades, com mortes e consequências desastrosas que se sucedem, até os mais cépticos começam a tomar consciência de que são inegáveis as mudanças climáticas inauditas e a destruição massiva dos ecossistemas, colocando o planeta sob ameaça.
O Papa Francisco tem bem consciência disso, de tal maneira que, se não fosse por muitos outros — tantos, tantos — motivos, ficaria na História pela publicação da sua encíclica “Laudato Sí”, onde surge de modo claro o conceito de “ecologia integral”. “O nosso planeta está em perigo. Nos últimos decénios vivemos sob um sistema voraz, que não só empurrou para as margens do descarte milhões de seres humanos, mas também expôs a limites nunca antes vistos a nossa casa comum, a Mãe Terra.”
É preciso pôr termo a um paradigma socioeconómico baseado na ganância, na avidez, no lucro sem limites para alguns, descartando a outra maior parte e agredindo o ambiente, que está a chegar a limites irreparáveis. Viemos da natureza, que existiu durante a maior parte do tempo sem nós e que, se não mudarmos de rumo, pode acabar connosco. É preciso tomar consciência de que contra este modelo de depredação, “não há planeta B”.
Francisco é consequente, advertindo: “Mas também devemos prestar atenção a posições que defendem a natureza e, ao mesmo tempo, promovem o aborto ou a pena de morte.”
3. Em nome de Deus peço uma comunicação que combata as fake news e evite os discursos de ódio.
“Estamos todos obrigados a realizar uma cultura que combata as denominadas fake news ou notícias falsas, que evite os discursos de ódio e se desenvolva num quadro tecnológico que defenda os mais desprotegidos.”
Nunca houve tantas formas de comunicação e informação. As novas tecnologias permitem-no, mas, como tudo o que é humano, é necessário tomar consciência das suas vantagens e aproveitá-las ao mesmo tempo que se impõe perceber os seus perigos e ameaças e evitá-los. Aí estão os discursos de ódio, a calúnia e difamações, os aproveitamentos para enganos de pederastia, o linchamento mediático de pessoas e do seu bom nome, alienação com o uso obsessivo das redes sociais e a ilusão dos likes...
Nunca estivemos tão conectados e cada vez são mais as solidões. É urgente perceber que a comunicação virtual não pode substituir as relações e encontros presenciais. Francisco: “Que protecção podemos assegurar às crianças e aos jovens para que este novo mundo não atente contra o seu crescimento são e a sua vivência tranquila da meninice?”
(Continua...)
Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN | 19 de agosto de 2023
1. Só uma cegueira maldizente não reconheceria que a Jornada Mundial da Juventude em Lisboa foi um êxito. Houve muitas críticas à Igreja, umas justas, outras não, e ela só tem de reflectir, pois há imensos buracos negros na sua história — para mim, a maior tragédia são a Inquisição e a pedofilia do clero. Houve, por vezes, referências críticas aos gastos públicos, e é bom que se reflicta, mas, desde já, é fundamental pensar no retorno, e, quando se reflecte sobre o retorno, não se trata apenas de pensar que, por exemplo, o próprio altar servirá para eventos futuros e que o país acabou por ser publicitado por todo o mundo, pois impõe-se pensar também no retorno imaterial do evento: pense-se no que significa a vivência dos grandes valores, como a alegria, a amizade, a solidariedade, toda a mensagem transmitida pelo Papa, a fé. Por vezes, invocou-se uma possível agressão ao Estado laico. Penso que, evidentemente, é preciso estar criticamente atento, pois a laicidade enquanto Estado não confessional é essencial para garantir a liberdade religiosa de todos, incluindo a liberdade de não ter religião, mudar de religião — aliás, o Papa fez questão de receber representantes de várias religiões, pois o diálogo inter-religioso é essencial para a promoção da consciência da fraternidade universal e a paz—, mas, por outro lado, é preciso prevenir que não se pode confundir laicidade com laicismo, que pretenderia reduzir a religião à esfera privada, sem lugar no espaço público.
Reflectindo sobre a herança mais positiva do evento, penso que será a da vivência de que somos e formamos uma só humanidade. Agora, já não se trata só do que se sabe abstractamente, agora é uma realidade concreta, pois jovens vindos dos cinco Continentes, com cores, culturas, vivências, até credos diferentes, conviveram, falaram, dançaram, rezaram, emocionaram-se juntos, e é isso: somos todos seres humanos, diferentes, mas iguais, e é realmente possível uma só humanidade em alegria, em diálogo, em paz...
2. Evidentemente, o herói da Jornada foi o peregrino mais jovem em espírito: o Papa Francisco, um líder político-moral global. O fascínio que ele exerceu! Quem não tentou aproximar-se dele? Quando se pergunta a razão disso, ela é clara: ele é um cristão, nele vê-se alguém que é, nas palavras e nos actos, um discípulo de Jesus. E é um homem bom, com uma bondade inteligente e activa.
Deixou mensagens inesquecíveis. A primeira, na base de todas: Deus é bom, e “ama-te”. “Jesus a todos acolhe”. “Cada um é único e original, e somos amados como somos, sem maquilhagem.” “Não tenham medo, sejam corajosos.” “Somos chamados pelo nosso nome, não somos um número”. Sim, do que mais precisamos é de que alguém olhe para nós, confie em nós, nos dê ânimo, porque somos capazes, que reconhece que temos valor — eu nunca esqueço que em Maputo tentei um dia explicar isto e soube depois que um moçambicano fez quase 40 quilómetros para ir dizer a uma irmã de sangue: está aí um padre de Portugal que esteve a explicar que valemos para Deus, Deus reconhece o nosso valor; já viste? Valemos para Deus. Eu tinha de vir dizer-te isto.
A outra mensagem: “Na Igreja, há espaço para todos, todos, todos. Repitam comigo: todos, todos, todos.” Na capelinha das aparições em Fátima: “A Igreja não tem portas, para que todos possam entrar.” Por isso, continuou: “Caminhar sem medo. Não tenham medo.” Só tem sentido “olhar de cima para baixo”, para ajudar “alguém caído a levantar-se”.
Consequências? A política é uma forma nobre de caridade, se o seu objectivo for só o bem comum. Europa, para onde navegas, se não cuidas dos teus velhos e “os berços estão vazios”? E que futuro tens, se não és capaz de pôr termo à guerra na Ucrânia? E que política a tua para os migrantes e refugiados? A economia não pode ter como único objectivo o lucro, com ricos cada vez mais ricos e o número dos pobres a aumentar. E como salvar o planeta, a casa comum? E o escândalo dos gastos com armamentos, que deveriam ir para a educação e a superação da fome no mundo?...
E a Igreja vai acolher todos, todos, todos? Também os recasados, os homossexuais, os trans? E as mulheres não vão continuar discriminadas? Este é o desafio histórico, a tratar em próximas crónicas...
3. E tive um sonho, um sonho acordado. Na Missa do envio, na despedida, depois do Evangelho e da homilia do Papa e a oração por todos, bispos nada engalanados, padres também vestindo de modo simples, jovens (eles e elas), com cestos cheios de pão, deram a cada um dos peregrinos (milhão e meio) um pão. O Papa lembrou então a Última Ceia de Jesus e disse: “Tomai, comei todos. Isto é a minha vida entregue por vós e a vós. Sempre que fizerdes isto, lembrai-vos de mim, lembrai-vos do que eu vos disse, do que eu fiz por vós, lembrai-vos da minha morte, sabei que estou vivo na plenitude da vida em Deus como esperança e desafio para vós, sabei que não caminhais para o nada mas para a plenitude da vida em Deus. Sempre que fizerdes isto fazei-o em memória de mim. Mistério da fé.”
Todos responderam, cada um na sua língua: “Anunciamos, Senhor, a vossa morte, proclamamos a vossa ressurreição. Vinde, Senhor Jesus.” E todos comungaram. E comprometeram-se a fazer o possível e o impossível para acabar com a fome no mundo. E assumiram a missão de levar o Evangelho a outros, promover a fraternidade, uma economia solidária, combater pela salvaguarda da casa comum e da paz.
Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN | 12 de agosto de 2023
Nunca tivemos tanto acesso à informação. Também nunca houve tantos meios de acesso, a ponto de aquilo que é um benefício poder tornar-se um verdadeiro desastre, como muitos especialistas chamam a atenção.
Por exemplo, no seu recente livro El arte de la felicidad, o médico e teólogo Alfred Sonnenfeld, escreve que nesta “era da distracção” corremos o risco de saltar de uma informação para outra sem reflectirmos nos conteúdos. Vivemos na sociedade do “ruído mental”, com bombardeamentos constantes de informações e publicidade, e tudo isto nos impõe um “estilo de vida no qual faltam a atenção e a concentração”. Se não houver capacidade de distanciamento, o risco é “perdermos as capacidades mais valiosas do pensamento humano: a criatividade, a reflexão e o pensamento crítico”. O neurocientista Michel Desmurget, no seu recente livro A fábrica de cretinos digitais, mostra inclusivamente que, por causa da cultura do ecrã e do dedar constante, se está a registar uma diminuição do Quociente de Inteligência (QI).
Aqui chegados, e perante a incapacidade de distinguir o essencial do superficial, impõe-se o apelo de Hannah Arendt: “Pára e pensa”. E há coisa mais essencial do que perguntas como estas: Donde vimos? Para onde vamos? O que é que verdadeiramente vale? Qual o sentido da existência, Sentido último?
É do essencial que a Páscoa trata. E lá está Pascal: “Jesus estará em agonia até ao fim dos tempos; é preciso não dormir durante esse tempo.”
Na Paixão, estamos todos. Jesus não morreu vítima de Deus, que precisaria da sua morte para aplacar a Sua ira e assim poder reconciliar-se com a Humanidade. Pelo contrário, Jesus foi vítima da religião oficial e do poder imperial romano, porque a Sua mensagem, por palavras e obras - Deus é bom, Pai e Mãe de todos, a começar pelos mais pobres, abandonados, explorados, pecadores – punha em causa os seus interesses. Aí está o perigo do poder religioso e político, quando estão ao serviço da exploração. Lá estão os discípulos, que fugiram. Lá está Pedro, o amigo generoso, mas cobarde: bastou uma criada suspeitar que ele também era discípulo e logo negou; depois, arrependeu-se e chorou amargamente. Lá está Judas. Lá está Pilatos, que lavou as mãos. Lá está o cireneu, que ajuda. Lá estão os dois ladrões (talvez terroristas): um converteu-se, o outro continuou a blasfemar. Lá estão as mulheres, as únicas que não fugiram e acompanharam Jesus até à morte. E Jesus perdoou até àqueles que o matavam. E rezou aquela oração, uma pergunta que atravessa os séculos: “Meus Deus, meu Deus, porque é que me abandonaste?”. Mas continuou a confiar: “Pai, nas tuas mãos entrego o meus espírito”…
Jesus morreu na cruz, a morte horrenda que os romanos davam aos rebeldes e aos escravos. Aparentemente, foi o fim. O enigma histórico do cristianismo é que, pouco tempo depois, os discípulos voltaram a reunir-se e foram anunciar ao mundo que aquele crucificado é realmente o Messias, o Salvador. Fizeram a experiência avassaladora de fé, a começar por Maria Madalena, de que Jesus, que morreu para dar testemunho da Verdade e do Amor, está vivo em Deus para sempre, como desafio e esperança para todos. E deram a vida por essa fé, que chegou até nós.
Quando olhamos para a História, com todas as lutas, amores, sonhos, realizações, fracassos, esperanças, que a atravessam, ergue-se, do mais fundo, a pergunta: Foi tudo para nada? E há as vítimas inocentes que clamam por justiça, e quem pagará a dívida da História para com elas? Neste contexto, o agnóstico Jürgen Habermas, o maior filósofo vivo, escreveu, citando J. Glebe-Möller: “Se desejarmos manter a solidariedade com todos os outros, incluindo os mortos, temos de reclamar uma realidade que esteja para lá do aqui e agora e que possa vincular-nos também para lá da nossa morte com aqueles que, apesar da sua inocência, foram destruídos antes de nós. E a essa realidade a fé cristã chama Deus.”
A fé é um combate, como deu testemunho também o teólogo rebelde Hans Küng, ao aproximar-se do seu próprio fim – morreu em Abril de 2021. Confessou que uma das suas irmãs lhe perguntou com toda a seriedade: «Acreditas realmente na vida depois da morte?» E ele: «Sim”, respondi com convicção. Não porque tenha demonstrado racionalmente essa vida depois da morte, mas porque mantive a confiança racional em Deus e porque na confiança no Deus eterno também posso confiar na minha própria vida eterna. Devo ou não ter esperança em algo que seja a ultimidade de tudo? Uma vida eterna, um descanso eterno, uma felicidade eterna? Isso é problema da confiança, mas de modo nenhum de uma maneira irracional, mas de uma confiança responsável. É irracional a confiança em Deus? Não. A mim parece-me a coisa mais racional de tudo quanto o ser humano pode ser capaz. O que me parece absurdo é pensar que o ser humano morre para o nada. A passagem à morte e a própria morte são apenas estações a que se segue um novo futuro. A vida é mais forte do que a morte e o ser humano morre entrando na Realidade primeira e última, inconcebível e inabarcável, que não é o nada, mas sim a Realidade mais real. A vida transforma-se, não acaba. Eu defendo uma fé cristã em Deus e na vida eterna. Sem Deus, a fé na vida eterna não teria razões, careceria de fundamento. E vice-versa: a fé em Deus sem fé na vida eterna careceria de consequências, não teria um objectivo».
Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN | 8 de abril de 2023
1. O que é a Bíblia? A palavra deriva do grego, com o significado de «os livros». Em latim, e, por derivação, em português, o termo grego transformou-se num singular feminino — Bíblia —, designando o conjunto dos textos que formam o que também se chama a Sagrada Escritura. Abrange, na sua totalidade, o Antigo Testamento e o Novo Testamento, contendo 73 livros e constituindo, portanto, uma pequena biblioteca. A sua formação e redacção demorou mais de mil anos. É necessário ter isso em conta, pois não é um livro como o entendemos agora, escrito por um autor e num determinado tempo. Trata-se de uma obra de numerosos autores, muitos até desconhecidos, e alguns dos escritos são inclusivamente o resultado da compilação de tradições e textos anteriores.
Daqui conclui-se que, para a compreensão adequada da Bíblia, se impõe conhecer a história dos textos, as línguas, os lugares, os tempos, os géneros literários, os contextos em que apareceram e os destinatários a que se dirigiam. Decisivo é entender também a configuração final, pois foi enquanto totalidade e unidade que a comunidade cristã a recebeu como expressão e testemunho da sua fé. Neste sentido, a linha essencial da sua compreensão é a libertação e salvação plena de todos os homens e mulheres. Na Bíblia, encontram os crentes quem é Deus para a humanidade e o que é e representa a humanidade para Deus enquanto salvador e doador de sentido e sentido final para a existência humana, para o mundo e para a história. A Bíblia é a leitura da história do mundo e da humanidade à luz do desígnio salvador de Deus. Assim, o fio condutor da sua leitura e interpretação tem de ser sempre a liberdade, a humanização, a felicidade, a libertação e salvação plena de todos. Só a esta luz a Bíblia é verdadeira, de tal modo que o que nela se encontra de menos humano ou até de desumano é para dizer-nos o que Deus não é e o que o ser humano não deve ser.
A Bíblia é o livro mais traduzido e mais lido da História: no ano 2003, havia tradução, na totalidade ou em parte, para 2303 línguas e já se contavam 555 milhões de exemplares em todo o mundo. É também a obra mais estudada, havendo mesmo centros de investigação universitária com a finalidade exclusiva do seu estudo.
A Bíblia é, antes de mais, o livro de importância essencial para os crentes cristãos, pois nela encontram o núcleo da sua fé. Ao longo dos séculos, serviu de alimento espiritual, de esperança, de orientação, para a vida e para a morte, a um sem-número de homens e mulheres: judeus, cristãos e também não crentes. Ela é igualmente de valor fundamental no quadro da cultura. Porquê? Sem ela, não é possível compreender a história da cultura mundial, mas sobretudo a história da humanidade europeia. Dizia o filósofo Ernst Bloch, com quem tive o privilégio de conversar: sem o conhecimento da Bíblia, não podemos compreender muitas revoluções, que tiveram na sua base o messianismo e a proclamação da chegada do Reino de Deus, não podemos compreender as catedrais, o gótico, a Idade Média, Dante, Rembrandt, Haendel, Bach, Beethoven, a grande literatura, a grande pintura, a grande escultura, a grande música, os Requiem, a grande filosofia, «absolutamente nada».
Impõe-se, pois, pôr termo ao desconhecimento da Bíblia, já que esse desconhecimento constitui uma «situação insustentável», concluía Bloch, filósofo ateu e, ao mesmo tempo, religioso: “onde há esperança há religião”…
Da Bíblia também disse Heinrich Heine: “Que livro! Grande e extenso como o mundo, enraizado nos abismos da criação e erguendo-se para os mistérios azuis do céu… Nascer do Sol e pôr do Sol, promessa e realização, nascimento e morte, o drama todo da humanidade: está tudo neste livro. É o livro dos livros, Bíblia.”
E Lídia Jorge: “A Bíblia é o poema colectivo mais longo criado até agora pela humanidade. Nele se espelham as várias batalhas que os homens engendram na sua demanda pelo amor absoluto. Não admira que a literatura ocidental nele tenha encontrado os seus modelos de narração amorosa mais fortes e que os seus mitos continuem a servir de moldura para o pensamento em torno da liberdade e da paz.”
2. Como disse, é essencial saber lê-la, exige-se uma leitura histórico-crítica, pois, à letra, pode levar a desastres. Por exemplo, o livro do Génesis, quando se refere à criação do mundo e ao primeiro pecado, não pode ser tomado como se se tratasse de uma história, pois é de um mito que se trata. Foi porque se tomou à letra que a mulher ao longo da História foi vista como inferior, pois foi criada em segundo lugar e na dependência do homem e é a tentadora. E como é possível, hoje, à luz da evolução, pretender basear a doutrina do pecado original no pecado de Adão e Eva? E como não ler, aterrados, a ordem de Deus a Abraão para lhe sacrificar o filho Isaac? “Deus pôs Abraão à prova e chamou-o: ‘Abraão!’ Ele respondeu ‘Aqui estou’. Deus disse: ‘Pega no teu filho, no teu único filho, a quem tanto amas, Isaac, e vai à região de Moriá, onde o oferecerás em holocausto num dos montes que eu te indicar’(…) Abraão construiu um altar, dispôs a lenha, atou Isaac, seu filho, e colocou-o sobre o altar, por cima da lenha.” Embora tenha sido substituído por um carneiro, Isaac não se terá tornado ateu? Como aceitar à letra o Antigo Testamento na sua sequência de horrores e de guerras? E o Novo Testamento, quando discrimina a mulher? Apenas exemplos.
Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN | 25 de março de 2023
Há já alguns anos, o meu bom e ilustre amigo, o eurodeputado Paulo Rangel, e eu tivemos uma conversa muito agradável para mim sobre (imagine-se) Deus e a tentativa de dizê-lo e nos relacionarmos com Ele. Dela resultou um texto de Paulo Rangel, com o significativo título “Deus é Aquele que está”. Numa longa entrevista recente a Inês Maria Meneses, voltou ao tema, confessando a sua fé no Deus de Jesus, o Emmanuel, o “Deus connosco”. Para ele, Deus é “Aquele que está”, Deus não é “esse ser distante e estático” construído a partir da ontologia grega, o Deus que é, “mas antes o ser próximo e interactivo que está e estará connosco, Aquele que acompanha, Aquele que não abandona. Deus é Aquele que está, o Emmanuel.”
Concordando plenamente com o amigo Paulo Rangel, volto, já em pleno Natal, ao tema, essencial nesta data. De facto, corre-se permanentemente o perigo de esquecer o determinante, já não referindo sequer a ameaça de se ficar amarrado a um consumismo devorador e à concorrência dos presentes: tenho de dar isto e aquilo de presente, para não ficar mal; não posso esquecer este, esta, e aquele, aquela, porque no ano passado também deram… É preciso parar e reflectir, em primeiro lugar, para se não ficar encerrado em dogmas, quando a fé cristã se dirige a uma pessoa, Jesus confessado como o Cristo (o Messias) e, através dele, a Deus que Jesus revelou como Pai e poderemos e deveremos também dizer como Mãe, com todas as consequências que daí derivam para a existência.
O que diz o Credo cristão, símbolo da fé? “Creio em Jesus Cristo. Gerado, não criado, consubstancial ao Pai. Nasceu da Virgem Maria, padeceu sob Pôncio Pilatos, foi crucificado, ressuscitou ao terceiro dia.” Segundo a fé cristã, isto é verdade? Sim, é verdade. Mas segue-se a pergunta fundamental: o que deriva dessas afirmações para a nossa existência de homens e mulheres, cristãos ou não? O Credo é teologia dogmática, especulativa, em contexto linguístico da ontologia grega. Ora, a teologia dogmática tem que ver com doutrinas e dogmas, com uma estrutura essencialmente filosófica. Pergunta-se: os dogmas movem alguém, convertem alguém, transformam a existência para o melhor, dizem-nos verdadeiramente quem é Deus para os seres humanos e estes para Deus?
Exemplos mais concretos, um do Antigo Testamento e outro do Novo, até para se perceber a passagem do universo hebraico em que Jesus se moveu e o universo grego no qual aparecem redigidos os Evangelhos. No capítulo 3 do livro do Êxodo aparece a manifestação de Deus na sarça ardente e Moisés dirige-se a Deus: se me perguntarem qual é o teu nome, que devo responder-lhes? E Deus: “Eu sou aquele que sou”. Dir-lhes-ás: “Eu sou” enviou-me a vós. A fórmula em hebraico: ehyeh asher ehyeh (“eu sou quem sou”, “eu sou o que sou”) é o modo de dizer que Deus está acima de todo o nome, pois é Transcendência pura, que não está à mercê dos homens, mas diz também (a ontologia hebraica é dinâmica) o que Deus faz: Eu sou aquele que está convosco na história da libertação, que vos acompanha no caminho da liberdade e da salvação. Depois, com a tradução dos Setenta, compreendeu-se este ehyeh asher ehyeh como “Eu sou aquele que é”, “Eu sou aquele que sou”, o Absoluto. Filosofando sobre Deus, a partir daqui, Santo Tomás de Aquino dirá que Deus é “Ipsum Esse Subsistens” (O próprio ser subsistente), Aquele cuja essência é a sua existência. Isto é verdade, mas significa o quê para iluminar a existência? Perdeu-se a dinâmica do Deus que está presente e acompanha a Humanidade na história da libertação salvadora.
No Novo Testamento, João Baptista, preso, mandou os discípulos perguntar a Jesus se ele era o Messias. Jesus não afirmou nem negou. Mas deu uma resposta existencial, prática: “Ide dizer-lhe o que vistes e ouvistes: os coxos andam, os cegos vêem, a Boa Nova é anunciada, a libertação avança, a salvação está em marcha”.
O que é que isto significa? A teologia, a partir da Bíblia, é, antes de mais, teologia narrativa e não dogmática. Quer dizer: tem uma estrutura existencial, histórica. Na teologia especulativa, o centro de interesse é o ser; na teologia narrativa, o decisivo é o que acontece. Assim, na perspectiva cristã, o essencial consiste na pergunta: O que é que acontece quando Deus está presente? Na linha dogmático-doutrinal, exige-se e até se pode dar um assentimento intelectual, subordinando-se, mas a existência continua inalterada. Corre-se então o perigo de uma “fé” em fórmulas doutrinais coisistas, petrificadas, sem qualquer transformação da vida. Ora, a vida cristã, se quiser ser verdadeiramente cristã, no discipulado de Jesus, tem de ser determinada mais pela ortopráxis do que pela ortodoxia (sem menosprezo, evidentemente, pela ortodoxia, segundo uma hermenêutica adequada): Jesus louvou a cananeia pela sua fé, que não era ortodoxa, deu como exemplo o samaritano, que não seguia a ortodoxia, mas praticava a misericórdia, e, sobretudo, leia-se o Evangelho segundo São Mateus, no capítulo 25 sobre o Juízo Final, no qual não há perguntas sobre fórmulas teóricas religiosas, mas sobre a prática: “Destes-me de comer, de beber, vestistes-me, visitastes-me na cadeia e no hospital...”.
A Igreja só se justifica enquanto vive, transporta e entrega a todos, por palavras e obras, o Evangelho de Jesus, a sua mensagem de dignificação de todos, mensagem que mudou a História. Bom Natal!
Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN | 24 de dezembro de 2022
De 14 a 20 de novembro de 2022
A publicação de “Valores e Religiosidade em Portugal – Comportamentos e Atitudes Geracionais” (Afrontamento, 2022) de Eduardo Duque constitui oportunidade para refletirmos sobre a necessidade de compreender a importância dos valores éticos e religiosos na sociedade contemporânea, para além de considerações superficiais sobre o tema.
O VAZIO DE VALORES
Importa recordar o que Hermann Broch (1886-1951) afirmou sobre o “vazio de valores”. que afeta a sociedade contemporânea e os seus efeitos na fragilização comunitária. Charles Taylor (1931) na sua análise sobre a “Era Secular” (2007) distingue três formas de secularização: a religião como questão privada e a sua ausência nos espaços públicos, o abandono das convicções e práticas religiosas e a ocorrência redutora de um humanismo antropocêntrico. Esta tripla dimensão leva a uma alteração na afirmação do fenómeno religioso, interna e externamente – centrando-se Taylor numa perspetiva intrarreligiosa. Neste sentido, a intensidade da secularização está ligada ao modo como a religião se manifesta na sociedade, sendo um fenómeno complexo. Há, assim, novas condições para a afirmação das crenças e convicções religiosas, para a ocorrência de novas considerações e contextos religiosos, bem como para novos questionamentos morais e espirituais, muitas vezes contraditórios. Deste modo, importa dar ênfase a questões como o “contexto de compreensão”, a perceção da “plenitude” e o sentido da própria noção de “religião”. Neste último termo, temos de salientar a dupla etimologia da palavra: como elemento de ligação (“religare”), essencial à coesão, por contraponto ao “vazio”, de que fala Broch, ou ao “egoísmo possessivo”, que constitui para Taylor um dos fatores do “mal-estar da modernidade”, e como fator de reflexão e de conhecimento (“relegere”), para que a sociedade possa pensar-se, no sentido de uma ética de realização pessoal e de partilha comunitária. Na obra de Eduardo Duque, encontramos um tempo de crescente complexidade, com importância significativa dada ao papel desempenhado pela educação como modo de reduzir resistências de integração e de respeito pela diversidade, com atenção à racionalidade funcional e ao reconhecimento de valores como a utilidade, a eficácia e o pragmatismo, mas também ao desencanto da modernidade e à ocorrência de um pensamento aberto à multiplicidade de perspetivas, capaz de integrar e de dialogar. Contudo, a pós-modernidade tem sido caracterizada por uma deificação do consumo, como se o poder da imagem se tornasse uma continuidade da cegueira do positivismo. Paralelamente, a dimensão religiosa abre novas perspetivas para o elemento espiritual, como resposta ao exclusivo da racionalidade instrumental, à margem das religiões tradicionais, como mera experiência emocional, que abre caminho à credulidade ingénua e ao universo das seitas. Ora, uma sociedade dotada de processos ativos de aprendizagem tem de saber ligar a consciência dos limites e a compreensão da complexidade – sendo que “o saber decisivo da sociedade contemporânea é a capacidade de gerar e organizar um conhecimento especialmente ativo e reflexivo” – na expressão de Giddens. Eis por que razão a fragmentação social e o salve-se quem puder têm de ceder lugar a uma verdadeira partilha de responsabilidades. É neste contexto que se coloca o problema do papel da Igreja Católica na sociedade contemporânea, como uma Igreja que não receia o presente e o futuro, aberta e com procedimentos inteligentes e em diálogo com a ciência. Daí a exigência de compreensão do papel crucial da dignidade humana, do lugar do outro, do exemplo, do cuidado e da atenção.
DESAFIO PARA OS CRISTÃOS
“O cristão está desafiado a sentir a presença de Deus na vida, a fazer a experiência da sua bondade e a oferecer um novo modo de falar de Deus aos homens contemporâneos”. Isto mesmo obriga a ligar a incerteza e a diversidade, a inovação e a criatividade. A sociedade oscila entre o egoísmo e o medo, e esse medo torna-se muitas vezes medo do outro e tentação da autossuficiência e do egoísmo, que levam à cegueira sobre a responsabilidade quer contemporânea quer perante as gerações futuras. E a resistência à tomada de medidas sobre a destruição da natureza e o aquecimento global ou sobre as emissões de CO2 torna-se suicida. Quando o Papa Francisco nos faz um apelo dramático na encíclica “Laudato Si’” é perturbador que haja tanta indiferença. É o “vazio de valores” que se manifesta, é a secularização sem compreensão da dignidade humana que se desenvolve. E Boaventura de Sousa Santos alerta oportunamente para a necessidade de atenção ao “sofrimento injusto a que tanta gente é submetida pela desigualdade e pela discriminação, gente digna a viver em condições tão indignas de fome, de guerra, de abandono”. Quando lemos a análise e interpretação dos dados sociológicos apresentados por Eduardo Duque percebemos que a evolução é semelhante às outras sociedades, quer no papel e dimensão das religiões, quer na atitude das pessoas. Importa, porém, não ceder a conclusões imediatistas ou precipitadas. A complexidade social leva-nos a lembrar o que Taylor refere relativamente à idade secular. Há fatores com consequências diversas que têm lugar. Os excessos relativamente à racionalidade funcional geram reações como o crescimento das seitas ou a coexistência de absolutismo e relativismo, com agravamento da indiferença e da intolerância. A consciência dos limites obriga, pelo exemplo e pelo cuidado, a novas formas de respeito e salvaguarda da dignidade humana, em nome da responsabilidade para com os outros e do cuidado do futuro. Daí a necessidade da recusa do fatalismo neste domínio. O futuro depende de nós. A integridade / dignidade, os valores, o respeito e a ética referidos na gravura da capa do livro correspondem à necessidade de dar atenção à coesão, à confiança, à justiça e à equidade. “Portugal precisa de romper com uma certa cultura de desconfiança que está instalada na sociedade e que nem sempre lhe permite ganhar consciência de que pertence a uma comunidade maior e universal…”. E, como afirma José Durán Vasquez da Universidade de Vigo, os inúmeros dados apresentados pelo autor “mostram que a religião não está em retrocesso, mas em processo de constante reconfiguração, como o presente livro ilustrou de uma forma profunda, brilhante e clara”.
Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença
Ruhollah Khomeini © Mohammad Sayyad
1. Em 2006, realizou-se, em Santa Maria da Feira, o V Simpósio “Sete Sóis Sete Luas”, que teve como tema “Qual é o Deus do Mediterrâneo?” Foram conferencistas Salman Rushdie, Cláudio Torres e eu próprio. O debate, moderado por Carlos Magno, durou quatro horas, com uma assistência atenta, que esgotou todos os lugares disponíveis da auditório da Biblioteca Municipal.
Evidentemente, a figura central era Salman Rushdie contra quem tinha sido lançada em 1989 pelo ayatollah Khomeini uma fatwa, isto é, um decreto religioso, condenando-o à morte por blasfémia. Trinta e três anos depois, no passado dia 12 de Agosto, Rushdie foi esfaqueado, quando se preparava para uma palestra em Nova Iorque. O atacante é Hadi Matar, um homem de 24 anos, de origem libanesa. A fatwa nunca foi levantada e havia até um prémio de mais de 3 milhões de dólares para quem assassinasse o acusado de blasfémia por causa do livro Os Versículos Satânicos.
Quais são esses famosos versículos? Dois que não figuram nas versões ortodoxas do Alcorão. Lê-se, de facto, na sura (capítulo) 53, versículos 19 e 20, da Vulgata: “E que vos parecem al-Lat, Al-Uzz e a outra, Manat, a terceira?”. A estes versículos, na tradução francesa de Régis Blanchère, que sigo, acrescentam-se mais dois (20bis e 20ter), os “satânicos”: “Elas são as Deusas Sublimes e a sua intercessão é certamente desejada.” Tratava-se de divindades do politeísmo pré-islâmico, representando, portanto, aquilo que Maomé mais fustigou por causa do seu monoteísmo puro, “sem associados”.
Se a negação do monoteísmo é o único pecado sem perdão, pergunta-se: como pôde o Profeta declarar sublimes aquelas deusas? A explicação está em que estes versículos foram transmitidos ao Profeta por Satanás, e o modo usado por Deus para acabar com eles, versículos ímpios, consiste em “abrogá-los”, de tal modo que não figuram na Vulgata. Mas então surge uma nova pergunta, segundo Quentin Ludwig: “Porque é que Deus não esteve à altura de ditar imediatamente o versículo perfeito? Porque é que Deus deixou Satanás exprimir-se? E se Maomé se deixou levar por Satanás uma vez, quem pode dizer que não existem outros versículos satânicos no Alcorão?”
2. Aqui chegados, é fundamental relembrar Hans Küng: “Não haverá paz entre as nações sem paz entre as religiões. Não haverá paz entre as religiões sem diálogo entre as religiões. Não haverá diálogo entre as religiões sem critérios éticos globais. Não haverá sobrevivência do nosso planeta sem um ethos (attitude ética) global, um ethos mundial.”
E impõe-se, em ordem a um debate sem confusões, uma distinção essencial. Há a religiosidade, que, no movimento de transcendimento que pergunta pelo fundamento último, sentido último, procurando salvação, se defronta com o Sagrado, o Mistério. Crente é aquele que se entrega confiadamente a esse Mistério-Sagrado, do qual espera precisamente sentido último, salvação. Depois, neste enquadramento, entende-se que apareçam as religiões institucionais, que são construções humanas enquanto mediações entre o Mistério ou Sagrado, Deus, e os homens e as mulheres e entre estes e o Mistério, Deus. Assim, as religiões têm de tudo: do melhor e do pior, como se constata através da História. Nesta distinção entre religiosidade, religiões, e Sagrado-Mistério, entende-se que as religiões estão referidas ao Sagrado, ao Mistério, Deus, mas não são Deus, o Sagrado, o Mistério, que todas tentam dizer, mas a todas transcende.
A partir destes pressupostos, percebe-se que o diálogo inter-religioso, essencial para o futuro da Humanidade, tem de assentar nalguns pilares fundamentais. Todas as religiões, desde que não se oponham ao Humanum, mas, pelo contrário, o dignifiquem e promovam, têm verdade. Outro pilar diz que todas são relativas (do verbo irregular latino refero, relatum), num duplo sentido: nasceram e situam-se num determinado contexto histórico e social e, por outro lado, estão relacionadas, referidas ao Sagrado, ao Absoluto, Deus. Estão referidas ao Absoluto, Deus, mas nenhuma o possui, pois Deus enquanto Mistério último está sempre para lá de tudo quanto possamos pensar ou dizer dEle. Precisamente por isso, uma vez que nenhuma o possui na sua plenitude, devem dialogar para, todas juntas, tentarem dizer menos mal o Mistério, Deus, que a todos convoca. Por isso, por paradoxal que pareça, do diálogo fazem parte também os ateus, porque, estando de fora, mais facilmente podem ajudar os crentes a ver a superstição e a inumanidade que tantas vezes envenenam as religiões.
Exigência intrínseca da religião na sua verdade é a ética e o compromisso com os direitos humanos, a realização plena de todas as pessoas, a salvaguarda da Terra. A violência em nome da religião contradiz a sua essência, que é a salvação. Aliás, antes de sermos crentes ou não, o que a todos nos une é a humanidade comum e a dignidade de pessoas, de tal modo que, face a um Deus que legitimasse a violência, o ódio, mandasse matar em seu nome, impunha-se uma obrigação moral: ser ateu.
E dois princípios irrenunciáveis: a leitura não literal, mas histórico-crítica dos livros sagrados — Deus não falou directamente com ninguém —, e a laicidade do Estado — só mediante a neutralidade religiosa do Estado é possível garantir a liberdade religiosa de todos sem discriminação. Mas laicidade não é laicismo, que pretende retirar a religião do espaço público.
Esta crónica despede-se com saudades até Outubro.
Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN | 27 de agosto de 2022
1. O Apocalipse, último livro da Bíblia, anda constantemente associado ao esotérico, à catástrofe, ao fim do mundo… Quem nunca ouviu falar da besta, do dragão, do número 666? Quando se quer aludir a catástrofes, horrores, guerras, fim do mundo, lá vem o adjectivo tenebroso “apocapítico”.
Quem quiser uma informação rápida, científica e séria, consulte as páginas que lhe dedicou o grande exegeta Padre Carreira das Neves na obra que escreveu a meu pedido: O que é a Bíblia. A título de exemplo, lá encontrará a explicação para os números: 3 é um número perfeito e o número de Deus; 3+4=7 ou 3x4=12, para simbolizar a plenitude (os dias da criação ou a aliança de Deus, respectivamente), os 144.000 assinalados são o múltiplo de 3x4x12x1.000 — 1.000 é o símbolo da universalidade — e simbolizam o novo povo de Deus. Em sentido contrário, a metade destes números só pode significar o não-tempo de Deus e a sua não-aliança, como é o caso de três e meio e de seis. Assim, 666 é o número da besta, um símbolo numérico do nome e título de Domiciano como imperador. A mulher pode designar a Igreja perseguida, a prostituta ou a noiva do Cordeiro…
2. Mas qual é a verdadeira intenção do Apocalipse, que é, repito, o último livro da Bíblia? Escrito durante a perseguição dos cristãos por Roma, é um livro que, em linguagem simbólica e cifrada, quer essencialmente dar ânimo aos que crêem: a última palavra não pertence ao mal, mas ao bem. Decisivo é compreender que o livro do Apocalipse tem o sentido exactamente contrário ao vulgarizado: trata do combate entre o Império romano e a Igreja de Deus, para animar os cristãos perseguidos, dando-lhes esperança: Deus e o seu Cristo triunfarão. Aliás, hoje os estudiosos pensam que a verdadeira estrutura do Apocalipse reside numa grande liturgia terrestre e celeste ao Cordeiro, que representa Cristo.
O Apocalipse não quer, portanto, anunciar o fim, ele é antes uma promessa. Com os melhores exegetas — lembrar, por exemplo, a correspondência epistolar pública entre o cardeal Martini, então arcebispo de Milão, e o escritor Umberto Eco, editada posteriormente em livro: Em que é que crê quem não crê? --, deve-se ver no Apocalipse um tríplice objectivo: mostrar que a História tem uma finalidade, uma orientação, não é uma amálgama de acontecimentos sem sentido contada por um idiota, na expressão de Shakespeare; depois, que esse sentido já está presente no mundo, mas não é meramente imanente, pois só encontrará a sua realização plena meta-historicamente; finalmente, que este sentido meta-histórico se vai decidindo nos acontecimentos da história — daí, a responsabilidade ética do ser humano — e ao mesmo tempo não é da ordem do cálculo, mas objecto da esperança, já que o último salto para “um novo céu e uma nova terra” pertence ao Criador.
3. Seja como for, é bom e, diria mesmo, urgente reflectir sobre o Apocalipse enquanto extermínio do mundo. Basta pensar, por exemplo, no suicídio colectivo, se não forem tomadas medidas drásticas no que se refere à poluição, ao aquecimento global, às alterações climáticas… E agora está aí, bem à vista, a ameaça do horror nuclear… Como disse António Guterres, Secretário-geral da ONU, “se as armas nucleares forem usadas, provavelmente não vai haver ONU para responder, significaria a destruição do planeta.”
4. E seja permitida uma nota à margem, sugerindo esperança. Afinal, contactamos mais com o Apocalipse do que julgamos. O símbolo da Europa -- aquelas doze estrelas douradas sobre fundo azul, que encontramos na bandeira da União Europeia -- está em ligação com um passo célebre do Apocalipse (12, 1): "Depois, apareceu no céu um grande sinal: uma Mulher vestida de Sol, com a Lua debaixo dos pés e com uma coroa de doze estrelas sobre a sua cabeça." Afinal, um símbolo do povo de Deus, um símbolo da unidade na diversidade, um símbolo da perfeição (3x4) — lembrar, por exemplo, as doze tribos de Israel ou os doze Apóstolos.
De qualquer modo, a situação da Europa, no contexto da nova geoestratégia e geopolítica, é de uma temível fragilidade.
5. Estava eu na escrita desta crónica quando me chegou a notícia do ataque selvagem a Salman Rushdie. Quero manifestar-lhe a minha solidariedade, com o desejo vivo de que possa continuar a ser o símbolo do combate corajoso a favor da liberdade de opinião e expressão.
Encontrei-o em 2006 em Santa Maria da Feira para um debate sobre o choque das religiões. Ele ficou muito admirado por eu, padre católico, ter defendido que os livros sagrados exigem uma leitura histórico-crítica. Continuo a pensar isso, pois essa é uma condição essencial para a liberdade religiosa. Os livros sagrados não são ditados por Deus. Outra condição é a laicidade do Estado, a separação da Igreja e do Estado, isto é, o Estado deve ser confessionalmente neutro, para poder salvaguardar a liberdade religiosa de todos, incluindo os ateus. Mas laicidade não é laicismo, que pretende excluir a religião do espaço público.
No contexto de uma reflexão sobre o Apocalipse, quero sublinhar como decisivo o diálogo inter-religioso, em ordem a evitar uma catástrofe apocalíptica. Por paradoxal que pareça, desse diálogo fazem parte também os ateus — os ateus que sabem o que isso quer dizer —, pois, “de fora”, talvez mais facilmente se apercebam da superstição, idolatria, inumanidade, que tantas vezes envenenam as religiões. Voltarei ao tema.
Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN | 20 de agosto de 2022