Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

A FORÇA DO ATO CRIADOR

  


A precariedade espacial do centro comercial domina a condição urbana contemporânea.


Em 1999, na conferência ‘The Impact of shopping on the Urban Condition’ Rem Koolhaas, na Architectural Association, dá a entender que a precariedade espacial do centro comercial domina a condição urbana contemporânea.


Na opinião de Koolhaas, comprar é a derradeira atividade do ser humano e corresponde a uma fase final do processo de modernidade. O ato de comprar e consumir muda parâmetros espaciais, cria uma supersaturação irreversível e corrói tudo o que se relaciona com ideias de civilização e de progresso. Para Koolhas, foi Jane Jacobs - que ao identificar aspetos da vida urbana que considerava significativos - redescobriu a rua como sendo o único lugar onde se pode encontrar verdadeira diversidade e implementou uma urbanidade que incorporava inerentemente as capacidades de consumir em permanência. 


É através do marketing e da psicologia que se define o espaço urbano atual. O ato de comprar faz com que a cidade se defina como um grande parque temático de gratificação individual imediata, permanente continuidade e constante interação entre as outras diversas atividades.


A cidade que vive só do consumo está em constante processo de erosão. Vive dos desejos de controlo e previsibilidade dos seus consumidores e transforma-se numa marca que é explorada ininterruptamente. Koolhaas explica, por exemplo, que Singapura abandonou o modelo de cidade e substituiu-o pelo modelo de um centro comercial. Este modelo é propositadamente não é estável, não fixo e não constante e por isso mesmo baseia-se numa imprecisão e numa neblina sem forma. Singapura transformou assim o seu plano urbano numa coleção de palavras e conceitos, em vez de uma coleção de formas. 


Também Koolhaas esclarece que, Las Vegas, segundo Venturi, é o sistema do centro comercial que prevalece sobre uma circunstância urbana sem forma e sem configuração. Não é arquitetura de que se trata mas de uma ecologia - uma nova condição de completa artificialidade, inteiramente interna e iconograficamente ininteligível.


Para Koolhaas, o sistema comercial é uma ecologia, isto é, um sistema que estuda as relações intrínsecas dos seres com o seu meio. E o comportamento das formas dedicadas somente ao consumo tem sempre um núcleo com tentáculos que enriquecem o seu perímetro e que o tornam mais recetivo à interação. Este sistema tem um efeito denominado replascape, que consiste na interseção entre o design e a paisagem e cria automaticamente uma natureza interior falsa. São talvez estas leis da ecologia que, segundo Koolhaas, expliquem as formas excêntricas e hiperformalistas da nova condição urbana.


Desta nova condição urbana, baseada nas formas do consumo, resulta um novo tipo de espaço que Koolhaas chama de junk space. Para Koolhaas, junk space é aquilo que resta após a modernidade ter feito seu curso. Junk space é o lixo tóxico da modernidade. Junk space parece um rearranjo de uma condição espacial pré-ordenada. Pensa-se que seja uma aberração, mas, na verdade é a essência da condição contemporânea e da cultura do descartável. Junk space é intrincado e ambicioso, é incompreensível e imemorável, é overdose e ao mesmo tempo fragilidade que o torna impossível de ser descrito como espaço.


Para Koolhaas, Junk space é assim um novo modelo que existe não só além da geometria, mas além do padrão. Não pode ser compreendido, nem pode ser relembrado. Recusa-se a congelar, é amnésia contínua e é conversão permanente. Junk space é tão débil e inconstante que obriga a abandonar qualquer expectativa de estabilidade. A condição do junk space é sempre provisória, em permanente estado de se tornar e em constante movimento. Na regra clássica a materialidade era baseada numa condição definitiva, que só poderia ser modificada através da destruição parcial ou total. Junk space é sempre provisório e sempre pronto a ser consumido - esta condição é a norma e dita a sua materialização. Matéria e componentes agora são escolhidas pela sua maior capacidade de mutabilidade, flexibilidade, rompimento e maleabilidade.


Sendo assim, a essência do espaço atual é profundamente alterada por causa do excesso de consumo, e por consequência todo o modo de pensar arquitetura é moldado por esta condição.

 

Ana Ruepp

A FORÇA DO ATO CRIADOR

  


Na opinião de Rem Koolhaas, a cidade contemporânea é desconexa e vive da interrupção permanente. 


‘I believe in uncertainty. In order to be really convinced of something you need a profound dislike for almost everything else, so that it’s crucial in certain projects to explore your phobias in order to reinforce your convictions.’, Rem Koolhaas (Finding Freedoms: Conversation with Rem Koolhaas, El Croquis 53+79, 2005)


Na conversa com Alejandro Zaera publicada na revista El Croquis 53+79, lê-se que Rem Koolhaas embora, no início dos anos oitenta pensasse a arquitetura como um eco, como um processo de réplica, que faz parte de um manifesto retroativo e que cria continuidade, acredita agora no potencial da invenção.


Um projeto depende intrinsecamente das condições existentes. Mas a capacidade crítica e decisiva tem de ser subjetiva, específica e única. Projetar sim sem juízos prévios, mas de modo a contradizer a desconstrução e a inevitabilidade, de modo a não ser caos nem representação. Para Rem, projetar é um ato simultaneamente intuitivo e explícito, ambíguo e literal, subentendido e manifesto. É um ato que se faz sem pensar nas consequências, mas existe para encontrar soluções e propor conceitos - por isso a ideia de tábula rasa de Le Corbusier é uma noção importante para Koolhaas porque nem tudo tem a capacidade de ser eterno. O culto da paranoia e a interpretação do delírio, para Koolhaas poderá ser o estímulo que despoleta novas ideias e novas maneiras de ver o mundo: ‘…it is for me as important to create a kind of unconscious, some disturbance in the realization of any process, as to work very precisely on the definition of our building experience.’, Rem Koolhaas, 2005


Rem Koolhaas discorda com a ideia de que a arquitetura é por definição caótica. A arquitetura, por ser concreta e real, mas não pertence à ideia de que tudo é desordem, confuso e descontrolado. A cidade contemporânea, de facto, é um conjunto de elementos construídos e desconexos, mas a arquitetura poderá afirmar-se contra a eliminação da necessidade de lugar e contra o triunfo da fragmentação. Koolhaas refere a importância sobre como tentar encontrar uma solução para aquilo que o Team X deixou em aberto, isto é, como relacionar a indeterminação de um contexto real com a especificidade arquitetónica. A constante crítica e o julgamento permanente poderão prejudicar o processo de projeto. Rem acredita que o arquiteto é um veículo sujeito a desvios, progressões, tropismos, tendências e mutações e que se deve mover num espaço amoral e experimental.


‘Our intention could be synthesized in how to turn all that garbage of the present system into our advantage. A kind of democratic King Midas: try to find the concept through which the worthless turns into something, where even the sublime is not unthinkable.’, Rem Koolhas, 2005


Rem deseja entender como infraestruturas incoerentes e díspares podem funcionar em conjunto e como encontrar o sublime naquilo que resta. Na sua opinião, a larga escala provoca a artificialidade, a separação e a quebra que procura. Através das suas palavras percebe-se que é a própria grandeza de um projeto que se torna o antídoto contra a fragmentação. Cada uma dessas entidades gigantes poderá adquirir a pretensão de uma realidade completamente envolvente, com uma autonomia e liberdade absoluta - são universos únicos que podem até resistir a coexistir.


‘But nevertheless it is extremely exciting, after the kind of unbearable and completely melancholic targets of the european urbanism of the 70s and 80s, to introduce those kind of formulas. In the urban models, to explore an urbanism that is based on disassociation, disconnection, and complementarity, contrast, rupture,… I find interesting to understand the city no longer has a tissue, but more as a ‘mere’ coexistence, a series of relationships between objects that are almost never articulated and visual or formal ways no longer ‘caught’ in architectural connections.’, Rem Koolhaas, 2005


Na opinião de Rem Koolhaas, é preciso entender que a cidade contemporânea é desconexa e que vive da interrupção permanente. Vivemos entre extremos, entre contentores gigantes e objetos pequenos dispersos e disformes. As cidades estão cada vez mais iguais - cada vez mais se está a passar do específico para o genérico. Na opinião de Koolhaas, a paisagem natural poderá ter um papel muito poderoso e a arquitetura um papel libertador, ao serem a apoteose do único e do específico que não visa o universal. 


‘We are seduced; we feel simultaneous glee and horror (…) how so many mediocre buildings together can generate a fantastic architectural spectacle? Or, how can so much ‘badness’ sometimes lead to a kind of intelligence? It is not complacency but fascination, and in fascination there is always an element of surrender.’, Rem Koolhaas, 2005


Ora, a ambiguidade do discurso de Rem Koolhaas pode levar a uma certa resignação estratégica mas pode sobretudo levar a aceitar mais facilmente o que existe, a trabalhar com o incómodo, com o imprevisto, com o que não tem controlo e com o que não é planeado. E por isso o arquiteto ao não ter dogmas, programas, ambições ou manifestos poderá estar mais preparado para concretizar sistemas especulativos que ponham a realidade a descoberto e que desencadeiem novas lógicas e novas soluções.

 

Ana Ruepp

A FORÇA DO ATO CRIADOR

  


A Metrópole é o lugar por excelência onde as contradições do utopismo moderno se concretizam.


“If Manhattan is still is search of a theory, then this theory, once identified, should yield a formula for an architecture that is at once ambitious and popular.”, Rem Koolhas (Hays 2000, 320)


Uma Metrópole é um lugar irresistivelmente não natural e sintético que resulta da junção entre máquinas, pessoas e edifícios. Apresenta extrema densidade de população e de infraestruturas. A essência da vida na Metrópole é ambivalente, pois, reúne simultaneamente constrangimento e euforia, submissão e intoxicação, isolamento e convívio, confiança e hesitação, certeza e engano. A Metrópole é o lugar por excelência onde as contradições do utopismo moderno se concretizam e encontra o seu objeto mais perfeito em Manhattan.


No texto “Life in the Metropolis” or “The Culture of Congestion”, Rem Koolhaas escreve que Manhattan é assim considerado o arquétipo da condição metropolitana. Representa a apoteose de um ideal de densidade, de consumismo e de todo o tipo de mundanismo - e a sua arquitetura promove um estado permanente de acumulação excessiva, a todos os níveis, e em todas as suas possíveis camadas. Koolhaas ao olhar para Manhattan demonstra que a “cultura da congestão” põe em relação a arquitetura comercial e o programa vanguardista de aceleração de todo e qualquer efeito tecnológico.


Para Koolhaas, foi a experiência de Coney Island que testou a nova arquitetura metropolitana democratizada - através de máquinas e infraestruturas que produziam lugares, alimentos e atrações (só disponíveis até então para alguns) em massa e até se possível em funcionamento durante 24 horas por dia. Muitas destas atividades pretendiam, através da mais avançada artificialidade, converter o natural, num intrincado simulacro. Todos os elementos naturais da ilha foram substituídos por um avançado serviço técnico que pretendia compensar sentimentos de solidão, alienação e ansiedade, inerentes à vida moderna. A tecnologia não é aqui, agente de melhorias objetivas e quantificáveis ​​é, antes um substituto superior da realidade natural derrotada pela imensa densidade de consumidores humanos. Esta realidade alternativa é fabricada, inventada e planeada, em vez da realidade natural, acidental e arbitrária. Coney Island é uma realidade alternativa que se executa em instrumentos de modernidade pura, e que possibilita a existência de situações nunca antes vistas - verdadeiro resultado da fantasia mental humana.


No texto lê-se ainda que a invenção do elevador se transformou também num sinal da condição metropolitana. A essência da invenção de Elisha Otis atualiza-se simplesmente na habilidade de prevenir o elevador de cair. Ora, na verdade, na Metrópole cada invenção técnica está impregnada de uma dupla imagem: a maneira de evitar um possível desastre é tão importante quanto a invenção original.


O elevador torna-se assim no grande libertador de todos os andares que estão acima da terra. Revela a sua maior importância ao introduzir um novo paradoxo metropolitano - quanto maior a distância do chão e mais antinatural a localização, mais próxima será a ligação à natureza que resta (luz, ar, céu e paisagem). Por isso, quanto mais o elevador sobe, mais desejáveis serão os acontecimentos e as circunstâncias.


Sendo assim, o elevador, em conjunto com a estrutura de aço, permitiu a multiplicação infinita da Metrópole - introduzindo inumeráveis camadas à superfície do mundo. O arranha-céus transformou-se, desde então, no instrumento primordial da arquitetura da densidade e da artificialidade.


Cada um desses níveis artificiais é tratado como um lugar cheio de potencial para a construção de um domínio privado. A criação dos arranha-céus é, desde logo, muito bem sucedida porque um único edifício é capaz de integrar e respeitar cada uma das parcelas isoladas e de promover a sua convivência sem interferir em nenhum dos seus conteúdos. O arranha-céus é assim uma superestrutura gigante, perene, estável e silenciosa que permite a acumulação de ilimitadas existências privadas, nunca dadas a conhecer antes da construção: “Villas go up and collapse, other facilities replace them, but that does not affect the framework.”, Rem Koolhas (Hays 2000, 325)


Para Koolhaas, nunca antes da existência do arranha-céus, um edifício tinha sido um intenso contentor e eficaz laboratório intelectual e emocional. Através do arranha-céus, cada lugar da Metrópole acomoda combinações instáveis e imprevisíveis, de muitas atividades sobrepostas e simultâneas cujo planeamento está fora do controlo do arquiteto.


Edifícios como Downtown Athletic Club e o Radio City Music Hall são verdadeiramente revolucionários porque oferecem uma alternativa às grandes mudanças técnicas e psicológicas causadas pela vida na Metrópole. A sua existência permite uma distribuição incrível e impensável de experiências fictícias, complexas e aleatórias num só lugar. Esta forma de arquitetura revela a verdadeira e a pura intenção modernista de planear a coreografia da humanidade através de elementos técnicos e psíquicos experimentais que transcendem o tempo.


A indeterminação do arranha-céu permite que, na Metrópole, uma função específica não exista nunca num só lugar. O arranha-céus é, para Koolhaas, o elemento fundamental e ideal para a desestabilização e transformação urbana, porque a reorganização contínua e incessante das funções não afeta nunca a estrutura do próprio edifício.


Os edifícios da Metrópole são assim enclaves protegidos, herméticos e autocontidos que oferecem abrigo emocional à população em massa, através da metáfora e da criação de mundos ideais, paralelos e transcendentes. Em conjunto, todos estes fragmentos utópicos formam uma fonte de fórmulas poéticas - o planeamento urbano tradicional é assim substituído, na Metrópole, por um planeamento metafórico de navegação ideológica.


“Exteriors and interiors of such structures belong to two different kinds of architectures. The first-external-is only concerned with the appearance of the building as a more or less serene sculptural object, while the interior is in a constant state of flux-of themes, programs, iconographies-in which the volatile metropolitan citizens, with their overstimulated nervous systems, combat the perpetual threat of ennui.”, Rem Koolhas (Hays 2000, 328)


Na opinião de Koolhas, a verdadeira ambição da Metrópole é assim modernista, porque consiste em criar um mundo totalmente fabricado pelo ser humano, ao dar a possibilidade real de se viver dentro da fantasia humana. A fantasia é então matéria e fica a fazer parte da realidade do mundo.


A cultura do congestionamento e a vida na metrópole é uma forma subconsciente, espontânea e eficaz de combate contra a arquitetura de doutrina explícita e oficial (de espaços e formas dignas e decentes feitas para garantir um determinado número de relações sociais) e avessa à metáfora (que exorciza o medo pelo caos através do planeamento objetivo e previsível, que dispersa a sua massa, que isola os seus componentes e que quantifica as suas funções).


É o efeito acumulativo do arranha-céus que facilita a existência dos inúmeros episódios fictícios, e que fazem cair por terra a ideia de que a realidade é uma presença segura, imutável e indestrutível na nossa vida imperfeita. Todas as estruturas artificiais da Metrópole representam, por isso, uma queda livre no espaço da imaginação humana, uma queda com desfecho imprevisível.

 

Ana Ruepp