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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

   Minha Princesa de mim:

 

   Volto, repito, reitero, não me fico. Verifico que, ao longo de tantos anos (quatro décadas?) passados "fora", aí pelo mundo que não conhecia, por inconsciente razão fui olhando para Rembrandt. De muitos modos, de exposições a livros, com olhares diferentes e, todos, um mesmo olhar: este, o de querer ver... Terá sido por esse apelo, misterioso e tenaz, à transcendência de si, de nós mesmos  --  que as dezenas de autorretratos seus, pinturas, desenhos, gravuras, sempre perscrutantes, nunca narcísicos, incansavelmente nos gritam? Quiçá assim seja, já Van Gogh dizia que não se pode ver um Rembrandt sem acreditar em Deus... Ficou-me, fica-me sempre, calada no coração, esta impressão tão profunda de ser, mesmo eu, todos nós, uma casa de Deus. Até ouso dizer que Deus não existe sem o ser humano... Essência ontológica será o Ser enquanto ser... Mas existência, peço perdão, é mesmo existir, é estar aqui, é o Manuel, o Deus connosco. Aliás, a cena bíblica que, salvo erro meu - e muito me falha a memória, Princesa de mim! - Rembrandt mais pintou é a refeição partilhada pelo Cristo ressuscitado com os seus companheiros de caminho, em Emaús: o reconhecimento da presença de Deus pela partilha do pão. O cristianismo nada tem de feitiçaria, nem de ordens sacras. É, de modo divinamente simples, o sacramento do amor de Deus pelo amor dos homens. Antes de te contar cenas da convivência de Rembrandt com a sua Igreja e as de outros, incluindo judeus, deixa-me traduzir-te um trecho de Georges Bernanos: Ele amou como um homem, humanamente, a humilde herança do homem, a sua mesa, o seu pão, o seu vinho - os caminhos cinzentos e dourados depois das chuvas, as aldeias com seus fumos, as casinhas nas sebes de espinheiros, a paz da tarde que cai, e as crianças brincando à porta de casa... Tudo isso ele amou humanamente, à maneira de um homem, mas como nenhum outro amara nunca, nem amaria jamais. A ênfase de Bernanos, posta num francês tão tocante e bonito que nem sei como traduzi-lo, talvez se exagere: esse amor do Deus humano que nos habita, creio eu, qualquer de nós poderá pensarsenti-lo.     

  

Já te contei, Princesa de mim, que Rembrandt nasceu em Leyde, cidade universitária e calvinista, bastião da resistência ao domínio da Espanha católica. O pai do pintor convertera-se à Igreja Reformada de Calvino, a mãe talvez tenha permanecido fiel a Roma. Mas ele próprio era calvinista, claramente depois do seu casamento, em Amsterdam, com Saskia van Uylenburgh, que lhe deu quatro filhos, todos batizados na Igreja Reformada Holandesa, dos quais só um, Titus, chegou a adulto. Mesmo esse não sobreviveu ao pai, que enviuvara de Saskia, morta de tuberculose pouco depois do nascimento desse filho. Todavia, as relações do pintor com a puritana Igreja não foram pacíficas: escandalizava-a por viver em concubinagem (se voltasse a casar-se perderia o direito à herança de Saskia). Hendrickje, sua segunda companheira, foi excomungada por equiparação da sua concubinagem a prostituição, numa altura em que Rembrandt já não frequentava a igreja. Mas a casa em que vivia, na Rua Larga de Santo António (presumo que Antão), não só lhe dava vizinhança com católicos e protestantes, mas também com muitos judeus, designadamente sefarditas ibéricos, muitos deles portugueses que, aliás, ali perto construíram a Esnoga, a célebre sinagoga portuguesa de Amsterdam, onde, hoje ainda, a oração pela rainha é dita em português do século XVII: pela Rainha e a Madama sua Mãe, assim os ouvi rezar, no princípio dos anos 1970, quando por já andava em trabalho diplomático e, por ser português, me convidaram a assistir a um ofício. Ainda me lembro de alguns nomes portugueses que ali li, gravados em lápides tumulares e outras: Ribeiro, Osório, Pinto, Castro, Teixeira da Mota. Desta última família, recordo, um dos descendentes foi, há alguns anos, ministro dos Negócios Estrangeiros da Holanda...

 

   Vizinho próximo de Rembrandt foi o filósofo Bento (ou Baruch) Espinoza, judeu de Portugal, que, com o pintor, é das figuras mais gradas do Século de Ouro dos Países Baixos. E se as cenas bíblicas do Antigo e do Novo Testamento constituem temas para grande parte da obra pictórica de Rembrandt, muitos dos modelos que para elas pousaram foram judeus (e portugueses) daquele bairro, hoje, aliás, denominado Bairro Judeu. Além do diferendo com Daniel Pinto, que já te referi, Rembrandt teve, tanto quanto eu saiba, mais dois casos judiciais com judeus portugueses: um comerciante de arte chamado Samuel de Orta, e um destacado membro de rica família, Diego de Andrada. Neste caso, tratou-se da encomenda, ao pintor, do retrato de uma jovem familiar dos Andrada, quiçá hoje perdido, mas que alguns peritos identificam como a ainda existente, no Museu de Belas Artes de Montreal, Jovem Mulher, talvez retrato de Beatriz (Raquel) Nunes Henriques que contraiu matrimónio judaico, em Hamburgo, em 1654, com um Manuel Teixeira de Sampayo, de família com a qual os Andrada celebraram vários casamentos. Seriam também portugueses os modelos da famosa Noiva Judia? Não sabemos, como tampouco podemos afirmar se se trata de um retrato comemorativo, encomendado pelos próprios figurantes ou seu familiar, ou de uma cena bíblica (Isaac e Rebeca) com modelos contratados para o efeito.


Camilo Maria

Camilo Martins de Oliveira

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

Minha Princesa de mim:

 

   Conta-se que Vicente  van Gogh, ao ver pela primeira vez (em 1885) A Noiva Judia, de Rembrandt, terá dito a um amigo que daria dez anos de vida para poder sentar-se a ver o quadro durante quinze dias, comendo apenas pão duro. Sabe-se que, em carta a seu irmão Theo, escreveu, em 10 de outubro do mesmo ano: Que pintura tão íntima, tão infinitamente compassiva! O fundo da cena é escuro, a luz emana do próprio casal terna e silenciosamente abraçado. De Rembrandt disse um dia Eugénio Fromentin que foi com a noite que ele fez dia! E Claudel fala de sacramento da luz... É toda interior, vem-lhes da alma, a graça desse momento, que nos revela uma história e uma comoção que as mãos de Rebeca e Isaac tão bem contam! A direita dele sobre o peito dela, mais do que gesto erótico, que também é, é sinal de união e de fidelidade: diz-se que, de todos os homens da sua família, Isaac foi o único que só conheceu uma mulher, Rebeca. Mesmo Abraão, seu pai, teve concubinas e descendência delas... Pelo relato do livro do Génese (26, 1-11), uma fome levou o casal a partir para terras de filisteus, cujo rei, Abimelech, teria reparado na beleza de Rebeca. Para proteger a mulher, e fugir ele mesmo de possível ameaça de morte, Isaac declarou-se irmão de Rebeca. Mas o rei surpreendeu-os em ternuras mais conjugais do que fraternas e descobriu a verdade. Comovido, nem os castigou, apenas os admoestou pela mentira e proibiu os seus súbditos de importunarem o casal. Noutras ilustrações deste episódio, incluindo em desenhos do próprio Rembrandt, a cabeça de Abimelech surge sempre, à espreita.

No quadro, não. Aí, o rei está ausente, a presença que conta é a do amor do casal. Já te tinha falado, Princesa, da intimidade de si, de nós, onde afinal habita o motor da espiritualidade, que o pintor seiscentista holandês - que da Holanda nunca saiu, mas onde certamente recebeu a emocionante influência do Caravaggio - tão bem exprime por olhos cegos e pela ternura de mãos que se encontram ou abraçam...

   Neste quadro, a mão esquerda do noivo, pousada no ombro da amada, poderá dizer proteção - como narra a história - ou posse - como será legítimo deduzir e era normal entender-se no contexto da época. Mas essa posse é ali partilhada, é mútua: a mão esquerda dela, repousando sobre o seu próprio ventre, acaricia em suave acordo a direita dele. E a sua direita repousada está, no seu ventre, mais abaixo. Entre as três mãos está o ninho que criaram, onde nascerão, gémeos rivais, Esaú e Jacó. Nova história, que Machado de Assis também contará, imaginando-a no Rio de Janeiro. História intrigante - como também será a luta de Jacó com o anjo - de que, quiçá, noutro dia te falarei.


Camilo Maria

Camilo Martins de Oliveira

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

    Minha Princesa de mim:

 

   A história de Isaac e Rebeca vem contada no livro do Génese, no capítulo 24. O anterior é curto, regista a morte de Sara, mãe de Isaac, e a sua inumação na gruta do campo de Makpela, em Canaã, onde mais tarde também o corpo de Abraão, seu marido, será tornado à terra. Isaac será o único herdeiro universal de Abraão, o pai dos povos, é elo fundamental da linhagem dos eleitos. Por isso o Patriarca mandara o mais velho dos seus servos à cidade de Nahor, seu irmão, para aí escolher, entre as suas parentes, a que seria a mulher de seu filho. O sinal do reconhecimento de Rebeca é proposto, em oração, pelo próprio servo a Yahvé: será aquela que lhe der de beber, e aos seus camelos, quando lhe pedir água. Rebeca é filha de Nahor, prima, portanto, de Isaac. E irmã de Labão, que a autorizará a seguir com o servo de Abraão até à terra deste, em Canaã. Mais tarde, será o mesmo Labão que dará as suas filhas - Lia, primeiro, Raquel depois - em casamento a Jacó, filho de Isaac e Rebeca. Lembras-te do lindíssimo soneto de Camões? Sete anos de pastor Jacó servia / Labão, pai de Raquel, serrana bela / mas não servia o pai, servia a ela / que a ela só por prémio pretendia... Aí o tens, é esse mesmo.

 

   Quando o servo e a noiva chegaram ao país de Negeb, onde Isaac vivia, este, conta-nos a narrativa bíblica, saíra de casa para passear nos campos, ao cair do dia, e erguendo os olhos viu camelos a aproximarem-se. E Rebeca, erguendo os olhos, viu Isaac. Desceu do camelo e disse ao servo: "Quem é aquele homem que vem pelos campos ao nosso encontro?" O servo respondeu: "É o meu senhor"; então, ela pegou no véu e cobriu-se. O servo contou a Isaac tudo o que tinha feito. E Isaac levou Rebeca para a sua tenda. Tomou-a, ela tornou-se sua mulher e ele amou-a. E Isaac consolou-se da perda de sua mãe. Não sei dizer-te bem porquê, mas há neste texto algo de muito belo, que me comove. Rebeca cobre a cabeça e o rosto, como as noivas judias, em sinal de reserva, como quem embrulha um presente (perdoa-me, compreende a lhaneza da comparação). E depois de se unir à mulher, Isaac sente-se consolado da morte de sua mãe, porque realiza que volta a regressar às origens. Eis uma experiência erótica profundamente humana e mística. O que mais me choca na pornografia devassa que por aí tanto se vende, é o desvio, o encobrimento da beleza intrínseca do erotismo. No sentido que lhe deu Georges Bataille, e eu tantas vezes recordo: L´érotisme c´est l´affirmation de la vie jusque dans la mort. Um ser monocelular reproduz-se dividindo-se, morre um para resultarem vários. Nós fazemo-lo unindo-nos, essa união de dois - que inevitavelmente morrerão - afirma, continua a vida na sua descendência.

 

   O poema de David Mourão Ferreira, que Amália canta, é claramente erótico, inconscientemente místico. Cito de memória, perdoar-me-ás, Princesa, um qualquer lapso: Bebi por tuas mãos esta loucura / de não poder viver longe de ti... / És a noite que à noite me procura / és a sombra da casa onde nasci... // Deixa ficar comigo a madrugada / para que a luz do sol me não constranja, / numa taça de sombra estilhaçada / deita sumo de lua e de laranja... //  Só os frutos do céu que não existe / só os frutos da terra que me deste / irão fazer-te a ausência menos triste / tornar-me a solidão menos agreste... // Vou recolher à casa onde nasci / por teus dedos de sombra edificada... / Nunca mais, nunca mais longe de ti / se comigo ficar a madrugada!

 

   Na pintura da Noiva Judia de Rembrandt, a mão direita do noivo (Isaac) pousa levemente no ventre da noiva (Rebeca), cuja mão delicada se une à do seu eleito numa carícia. Ambos, afinal, acariciam o fruto do ventre dela, que é deles dois. Nós, humanos, somos, ontologicamente, relação. Por isso, o filho pródigo regressa sempre. Porque é de saudade que vivemos.

 

          Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira

 

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

    Minha Princesa de mim:

 

   No seu The Return of the Prodigal Son, Henri Nouwen refere-se, além do quadro de Rembrandt sobre o tema - e que está no Hermitage - a outras obras do pintor holandês: um desenho sobre o mesmo tema, um Simeão com o Menino Jesus, uma noiva judia, e uma evocação do deboche do pródigo - este uma cena de bordel (?) em que um homem abastado, já entusiasmado pela bebida, senta nos joelhos uma mulher vestida com algum luxo, e que, tal como o seu comparsa, também olha para o espectador. Tem-se pretendido que os modelos de tal par foram o próprio pintor e sua mulher Saskia. Se esta pode mostrar parecenças com a de outros retratos seus, confesso que não reconheço facilmente Rembrandt - que tantos autorretratos nos deixou - nesta ocasião. Mas não é importante, nem deixa de ser interessante acompanhar os motivos que o padre Nouwen apresenta para tais evocações.

 

   A comparação do esboço da chegada do filho regressado ao pai, desenhado em 1636, trinta e três anos antes do quadro a óleo sobre o mesmo tema, é assim feita pelo escritor: Mais do que qualquer outra história do Evangelho, a parábola do filho pródigo exprime a infinitude do amor compassivo de Deus. E quando me coloco, a mim mesmo, nessa história, à luz do amor divino, torna-se dolorosamente claro que o sair de casa está muito mais próximo da minha experiência espiritual do que o que eu jamais pudesse ter pensado. A pintura, por Rembrandt, do pai acolhendo o filho muito pouco movimento exterior expõe. Contrastando com o seu esboço do filho pródigo de 1636 - cheio de ação, com o pai correndo para o filho e este atirando-se aos pés do pai - a pintura do Hermitage, cerca de trinta anos depois, é intrinsecamente silenciosa. O pai tocando o filho é uma eterna bênção; o filho descansando encostado ao pai uma paz eterna. Christian Tümpel escreve: "O momento de acolher e perdoar, no silêncio da sua composição, dura sem ter fim. O movimento do pai e do filho fala de algo que não passa mas dura para sempre". Jakob Rosenberg resume lindamente esta visão, quando escreve: "O conjunto pai-filho é exteriormente imóvel, mas por isso mais movido interiormente... a história não trata do amor humano de um pai terreno... o que aqui está significado e representado é o amor divino e a misericórdia com o seu poder de transformar a morte em vida".

 

   Ao falar de visão, Henri Nouwen não diz apenas ver o quadro, apreciar a pintura. A visão de que fala é sobretudo a que, no prólogo do seu livro, prólogo que conta o Encounter with a painting, ele mesmo, no parágrafo intitulado Vision, assim refere: Com os meus pensamentos, sentimentos, emoções e paixões, eu estava constantemente longe do lugar que Deus escolhera para construir casa. Voltar para casa e quedar-me ali onde Deus habita, ouvindo a voz da verdade e do amor, eis, na verdade, a jornada que eu mais temia, porque sabia que Deus era um amante zeloso, que queria todas as partes de mim a tempo inteiro. Quando estaria eu preparado para aceitar tal amor?

 

  Este íntimo pensarsentir que a demanda de Deus é um regresso a casa, uma busca de Deus onde ele pode ser encontrado - no meu próprio santuário interior - prenuncia como o encontro com o pai é um regresso às origens apenas pressentidas, à alma inicial, essa alma de criança que Mauriac lembra em La Fin de la Nuit, hora do fim da vida, que  recupera essa alma. O retorno ao pai é o reencontro com quem é tudo em todos. Será por isso que Nouwen insiste em confundir o rosto de olhos cerrados do pai que se debruça para acolher, abraçando-o, aquele seu filho, este também fechando os olhos, com o rosto da cegueira de Rembrandt no fim da vida: porque se lembra de outro quadro, inacabado, do pintor, que nos mostra Simeão, velho e cego, com o Menino Jesus nos braços. Escreve: Tal como Simeão e o Menino Jesus, o Filho Pródigo mostra-nos a perceção que o pintor tem do seu próprio envelhecimento - uma perceção na qual a cegueira física e um profundo olhar interior estão intimamente conectados. O modo como o velho Simeão pega na vulnerável criança e o modo como o velho pai abraça o filho exausto revelam uma visão interior que nos recorda uma das palavras de Jesus aos seus discípulos: "Benditos os olhos que veem o que vós vedes." Ambos, Simeão e o pai do filho retornado, trazem dentro deles essa luz misteriosa por que veem. É uma luz interior, profundamente escondida, mas irradiando uma invasora e terna beleza. [Recordo-me do Nunc dimmitis, dessas palavras de Simeão repetidas no ofício monástico de completas: chama agora o teu servo, exclama o cego, porque viu a salvação do mundo...] E vai então o escritor debruçar-se sobre o percurso da vida do pintor, para o qual essa luz interior se manteve, e por muito tempo, escondida. Permaneceu muitos anos fora do alcance de Rembrandt. Só gradualmente, e através de muita angústia, ele chegou a conhecer essa luz dentro de si mesmo e, através de si, naqueles que pintou. Antes de se tornar como o pai, Rembrandt foi, muito tempo, o altivo jovem que "agarrou em tudo o que tinha e partiu para um país longínquo onde desbaratou o seu dinheiro"

 

   E Nouwen não hesitará em reconhecer o pintor na figura do aparatoso jovem gozando os prazeres de um bordel. Nem esquecerá o que uma amiga, Sue Mosteller, um dia lhe dissera acerca do quadro O Filho Pródigo: "Quer sejas o filho mais novo, ou o mais velho, tens de perceber que és chamado a ser o pai".  E o resumo do livro é o próprio autor que o tira desse pensamento: Tudo o que eu vivi desde o meu primeiro encontro com o quadro de Rembrandt não só me deu inspiração para escrever este livro, mas também me sugeriu a sua estrutura. Refletirei primeiro sobre o filho mais novo, depois sobre o mais velho e, finalmente, sobre o pai. Porque, na verdade, eu sou o filho mais novo; e sou o mais velho; e estou a caminho de me tornar no pai. E a todos vós que fizerdes esta jornada espiritual comigo, espero e rezo para que, vós também, descobris dentro de vós mesmos não só as crianças perdidas de Deus, mas também a mãe compassiva e o pai que Deus é.

 

   Aconselho-te, Princesa, a leres esse livro, escrito por um homem que, desde os seus seis anos de idade, quis ser padre - e assim foi toda a sua vida (morreu aos 65), fidelíssimo aos votos com que respondeu a uma vocação, apesar das muitas angústias e depressões por que passou. Foi brilhante professor universitário em Harvard, e não só, conferencista convidado em todo o mundo, autor de livros vários. Tudo deixou para se fazer capelão de um lar para deficientes mentais, recôndito no Canadá: L´Arche Daybreak, em Toronto. Daybreak, como sabes, quer dizer alvorada. Neste caso, também a de um homem que nascera na Holanda. Conterrâneo, portanto, de Rembrandt van Ryjn. 

 

   A este pintor calvinista, nascido e criado nesse bastião da Reforma nos Países Baixos, que foi a cidade universitária de Leyden, voltarei na próxima carta. Para te falar na Amsterdam que ele foi habitar, ao tempo da maior chegada de judeus portugueses, com quem se deu, que foram seus clientes e amigos, apesar de desavenças próprias da vida, como a que teve com o seu vizinho Daniel Pinto, na rua de Stº António. Mas também da pintura da Noiva Judia, que Nouwen refere, e onde foi descobrir a mão direita de Deus no abraço do pai ao pródigo, a tal mão de mulher... E talvez tudo isso ainda nos leve, se me der tempo, de regresso ao tal verso do Mourão Ferreira: vou recolher à casa onde nasci... E, quiçá, ao Georges Bataille. A Noiva Judia é um belo quadro, representa Isaac com Rebeca, sua mulher, chamada a continuar a descendência de Abraão, pelos dois gémeos que gerará em seu seio, Esaú e Jacob...  Sempre me encantou essa cena: Isaac com a mão esquerda no ombro esquerdo dela, como quem protege, enquanto a direita pousa sobre o ventre da mulher que era estéril - como Sara, mulher de Abraão e mãe de Isaac - mas, por vontade de Yahvé, também vai ser mãe. E, na pintura de Rembrandt, a mão direita de Rebeca gentilmente acaricia a de Isaac, mão de mulher cúmplice do homem no surto da vida. 

 

   Henri Nouwen, depois de referir que, em regra, as pessoas que olham para O Filho Pródigo, do mesmo pintor, apontam para o sábio ancião que perdoa ao filho, para o benevolente patriarca, comenta: Quanto mais olhava para "o patriarca", mais claro se tornava para mim que Rembrandt tinha feito algo diferente de deixar Deus posar como sábia idosa cabeça de uma família. Tudo começou pelas mãos. Elas são bem diferentes. A paterna mão esquerda, que toca o ombro do filho, é forte e musculada. Os dedos abrem-se para cobrir uma grande parte do ombro e das costas do filho pródigo. Posso ver uma pressão, sobretudo do polegar. Essa mão parece não só tocar, mas também agarrar. Mesmo havendo gentileza no modo como a mão esquerda do pai toca no filho, não lhe falta garra firme. Como é diferente a mão direita do pai! Essa mão não agarra nem apanha. É fina, suave, com muita ternura. Os dedos aproximam-se uns dos outros, e com jeito elegante. Pousa gentilmente no ombro do filho. Quer acariciar, ser leve, e oferecer consolo e conforto. É mão de mãe. Alguns comentadores sugeriram que a masculina mão esquerda é de Rembrandt mesmo, enquanto que a feminina mão direita parece a direita da Noiva Judia, pintada pela mesma altura. Gosto de acreditar em que isso seja verdade.

 

   E Nouwen confidenciará adiante que, no velhinho debruçado, abraçando o filho, começo a ver não só um pai que envolve o filho com os braços, mas também uma mãe que acaricia o filho, o agasalha com o calor do seu corpo, o aconchega ao ventre donde nasceu. Assim, o regresso do filho pródigo torna-se no retorno ao ventre de Deus, retorno às próprias origens de ser, e repercute a exortação de Jesus a Nicodemos, para que nasça de novo... 

                                

          Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira

 

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

 

   Minha Princesa de mim:

 

   Começo esta carta a penitenciar-me: a impagável cena da parelha Tintin-Haddock quebrando bilhas de barro ao nosso Oliveira da Figueira aparece no Coke en Stock, não no Tintin au Pays de l´Or Noir, como, erradamente, na altura lembrei. Peço-te desculpa do deslize de memória e, sobretudo, da minha preguiça em levantar-me do assento onde te escrevia para subir ao 3º piso cá de casa, onde guardo as minhas bandas desenhadas. Creio (lá estou eu outra vez a supor, confiante na minha memória desgastada) que foi Voltaire quem disse que "a mentira é detestável, por ser uma inexatidão". Deixa-me, com esta, o filósofo Arouet na dúvida de saber se será mesmo caso de sine qua non, isto é, se a condição necessária e suficiente da mentira será só a inexatidão. No caso vertente, foi só inexatidão e não mentira, não pretendi induzir-te em erro. Corrigiu-me um amigo, irmão do que, adiante, falo. Lera a carta no blogue do CNC, onde, pelo visto, tu publicas as que te escrevo. Todas?

 

   Feita a devida vénia, passo a falar-te de um livro que comecei a ler e não larguei: The Return of the Prodigal Son, do padre católico holandês Henri Nouwen (1932-1996), de que te falarei mais longamente, uma extraordinária meditação sobre o quadro de Rembrandt van Rijn, conservado no Hermitage, em S. Petersburgo. Foi-me dado pelo frei Eugénio de Paiva Boléo, que conheci oficial de marinha e reencontrei cinquenta anos depois do jantar de despedida que partilhámos na velha cervejaria Portugália, à Almirante Reis, em Julho de 1966, na véspera dele se tornar frade dominicano... 


   Mas deixa-me agora recordar um passo de François Mauriac - de que nunca o meu coração se separou - no seu La Fin de la Nuit, romance de 1935, que persegue o subterrâneo caminho da consciência de Thérèse Desqueyroux, nome da protagonista e título do primeiro que li desse autor católico francês. Ao fim de uma longa e dilacerante noite espiritual, em que Thérèse, que escapou à justiça dos tribunais - mas ficou prisioneira da sua consciência perplexa - pelo adultério cometido e pela tentativa de envenenamento do marido, algo se acende: Sob a camada espessa dos nossos atos, a nossa alma de criança permanece imutável; a alma escapa ao tempo.

 

   Nesse sentido, surpreendemo-nos na intimidade de nós, desse quem com cuja permanência nos identificamos e não queremos que morra. É o fiel da nossa balança, o centro da nossa existência. Chamamos-lhe alma ou anima, porque, sem sabermos o que é - nem ciência alguma a explicou ou sequer descreveu - sentimo-la como o que nos dá vida. Tanto, que, para uns será imortal a alma humana, outros falarão da alma do mundo, princípio único da vida diversa de tudo e todos... Mas ocorreu-me este trecho de Mauriac por nos falar de a nossa alma de criança, como se de essência nossa se tratasse, imutável ao longo da vida, incorruptível debaixo do peso dos nossos feitos. Como segredo onde habita a misericórdia de Deus. Assim, a peregrinação de Henri Nowen pelo Regresso do Filho Pródigo de Rembrandt é, de facto, um caminho de retorno à casa paterna. Mas o livro é tão rico e estimulante de demandas de memórias, intenções e entregas, que se torna difícil, quiçá pretensioso e desinteressante, fazer-lhe uma resenha ou um resumo. Para te dar uma ideia do que quero dizer, pensa só que o itinerário de Henri Nouwen, não é apenas o do filho pródigo, pois que também se descobre no irmão mais velho deste, no tal bem comportado. E no próprio pai, também visto como o próprio Rembrandt, no fim da vida, pobre e quase cego. Lembra-me muito algo que já várias vezes te disse: perdoar é, também e sempre, ser perdoado. A misericórdia de Deus é o regresso do Pai à sua humanidade, a festa por quem retorna é sobretudo a alegria de quem acolhe. Mistério central do cristianismo. Aliás, a Nouwen não escapa o pormenor das mãos do pai que abraça o pródigo: a esquerda é masculina, a direita é mão de mulher, de mãe. Deus é pai e mãe, é a casa onde nascemos - assim o podemos imaginar, e recordo que três dos últimos papas viram bem como tal imagem, servindo o nosso anseio de lar, não belisca o conceito de Deus inefável que, não sendo nem homem nem mulher, é, no seu amor, pai e mãe.

 

   Traduzo-te, hoje, apenas passos do 3º capítulo (The Younger Son´s Return) da parte I do livro (The Younger Son). O que mais me ocorra ficará para outras cartas. Se tiveres uma reprodução do quadro aí à mão, põe-na à tua frente. Ajuda.

 

   O jovem abraçado e abençoado pelo pai é um pobre, muito pobre, homem. Saiu de casa com muito orgulho e dinheiro, decidido a viver a sua própria vida, longe do pai e da sua comunidade. Regressa sem nada: sem dinheiro, sem saúde, sem honra, sem amor próprio, sem reputação... tudo foi desbaratado. Rembrandt não deixa dúvidas sobre a sua condição. Tem a cabeça rapada. Já não tem o cabelo comprido e ondulado que Rembrandt a si mesmo pintara, enquanto altivo, desafiador, filho pródigo num bordel. A cabeça é a de um preso cujo nome foi substituído por um número. Quando o cabelo de um homem é rapado, seja na prisão ou na tropa, num ritual obscuro ou num campo de concentração, ele é despojado de uma das marcas da sua individualidade. As roupas que Rembrandt lhe põe são roupas interiores, que mal lhe cobrem o corpo emagrecido. O pai e o homem alto que observa a cena vestem largos mantos vermelhos, que lhes conferem estatuto e dignidade. O filho ajoelhado não tem manto. O vestido interior, amarelo acastanhado, rasgado, mal lhe cobre o corpo exausto, desgastado, de que toda a força se foi embora. As solas dos pés contam a história de uma longa e humilhante jornada. O pé esquerdo, fora da sandália gasta, está ferido. O direito, só parcialmente calçado por uma sandália rasgada, também fala de sofrimento e miséria. Eis um homem despojado de tudo... menos de uma coisa, a sua espada. O único remanescente sinal de dignidade é a breve espada pendurada à cintura, rótulo da sua nobreza. Mesmo no meio da degradação, ele se agarrou à verdade de ser ainda filho de seu pai. Se assim não fosse teria vendido a valiosa espada, símbolo da sua filiação. A espada está ali para me mostrar que, apesar dele ter voltado falando como mendigo e excluído, não se esqueceu de que ainda era filho de seu pai. Foi essa recordada e apreciada filiação que o persuadiu a vir de volta. E chegamos então ao parágrafo - intitulado Claiming Childhood - que me evocou o trecho de Mauriac:

 

   Fosse o que fosse que ele tivesse perdido, dinheiro, amigos, reputação, amor-próprio, alegria interior e paz - uma dessa coisas ou todas elas - ainda assim ele permanecia o filho de seu pai. E por isso diz para consigo: "Quantos dos assalariados de meu pai têm todo o pão que quiserem e até mais, e eu para aqui a morrer de fome! Vou partir, vou ter com meu pai e dizer-lhe: Pai, pequei contra o céu e para contigo; já não mereço ser chamado teu filho; trata-me como a um dos teus assalariados!". Com tais palavras no coração, foi capaz de dar a volta, deixar aquele lugar e regressar a casa. O significado do retorno do filho mais novo está sucintamente expresso nas palavras: "Pai, eu já não mereço que me chamem teu filho...". Por um lado, o filho mais novo percebe que perdeu a dignidade da sua filiação, mas ao mesmo tempo esse sentido de dignidade perdida também lhe dá consciência de ser o filho que tinha uma dignidade para perder...

 

   O abraço do pai e do filho junto dele ajoelhado sela o regresso à casa. Vou recolher à casa onde nasci, / por teus dedos, de sombra edificada - verso de David Mourão Ferreira, que Amália canta, e a que voltarei em próxima carta... E disse o papa João Paulo II, em audiência de 8 de Setembro de 1999, falando, precisamente, sobre a parábola do filho pródigo, contada pelo evangelho de S. Lucas, e quiçá lembrado do quadro de Rembrandt, ou ainda do texto de Henri Nouwen, cuja primeira edição foi em 1992, das mãos do pai: As suas mãos sustêm, estreitam, dão vigor e, ao mesmo tempo, confortam, consolam, acariciam. São mãos de pai e de mãe, ao mesmo tempo. Tão poderoso de ternura, tal abraço surge iluminado no centro da pintura. Isaías (49, 15) pergunta, sobre Yahvé que consola o seu povo: Pode uma mulher esquecer o seu pequenino, não ter piedade do filho das suas entranhas?... ou ainda (66,13): Como mãe que consola, também eu vos consolarei! E canta o salmo (131, 2): Tenho a minha alma em paz e silêncio, como menino ao colo de sua mãe; / como menino, assim está a minha alma em mim. Assim possamos nós sentirmo-nos todos na hora do recolhimento, como a Traviatta que pressente a nova luz e Thérèse Desqueiroux que, depois de dizer que espera o fim da vida e lhe perguntarem "quer dizer o fim da noite?", responde:

Oui, mon enfant: la fin de la vie, la fin de la nuit.

 

   

   Camilo Maria

 

 

Camilo Martins de Oliveira