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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CADA TERRA COM SEU USO

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XXII.  O século das guerras e o fim lento da autarcia

 

A partir da implantação da República em 5 de outubro de 1910, culturalmente a «Renascença Portuguesa» constituiu um exemplo de como o republicanismo, com diversas leituras, exerceu uma influência simbólica na evolução do século XX português. Recorde-se que no dealbar do movimento, Teixeira de Pascoaes e Raul Proença apresentaram dois projetos de manifesto que, apesar de diferentes, representaram uma imagem de renovação. «O fim da “Renascença Lusitana” – escrevia Pascoaes – é combater as influências contrárias ao nosso carácter étnico, inimigas da nossa autonomia espiritual, e provocar, por todos os meios de que se serve a inteligência humana, o aparecimento de novas forças morais orientadoras e educadoras do povo que sejam essencialmente lusitanas». Proença, por seu lado, falava “em pôr a sociedade portuguesa em contacto com o mundo moderno, fazê-la interessar-se pelo que interessa aos homens lá de fora, dar-lhe o espírito atual, a cultura atual, sem perder nunca de vista, já se sabe, o ponto de vista nacional e as condições, os recursos e os fins nacionais”. Como salientou José Augusto Seabra: “o ideal patriótico é idêntico, apenas os meios de o atingir divergem, embora sejam afinal complementares, como Pascoaes, aliás, n’A Águia, intentará mostrar”. Ambos se demarcam do positivismo ou de lógicas partidárias redutoras, estando em causa o que Jaime Cortesão propunha: «dar conteúdo renovador e fecundo à revolução republicana». Como dirá Pascoaes, havia que «criar um novo Portugal, ou melhor, ressuscitar a Pátria Portuguesa, arrancá-la do túmulo, onde a sepultaram alguns séculos de escuridade física e moral, em que os corpos definharam e as almas amorteceram».

 

As palavras Renascença e Regeneração são usadas no Portugal de influência liberal, pelo menos desde 1820. “Renascer é regressar às fontes originárias da vida, mas para criar uma nova vida” (Pascoaes). Vêm à memória os sinais renovadores provindos do Porto – 1820, o impulso de D. Pedro após o desembarque dos bravos do Mindelo (onde estiveram Garrett, e Alexandre Herculano), a influência portuense do Setembrismo (em que pontificaram os irmãos Manuel e José Passos), a Maria da Fonte e a Patuleia, a Regeneração de 1851, o movimento da “Vida Nova” (1885), o magistério de Rodrigues de Freitas, a presidência de Antero de Quental na Liga Patriótica do Norte, o 31 de Janeiro, o manifesto dos emigrados políticos, o “Porto Culto” de Sampaio Bruno… A “Renascença” e a revista “A Águia” procuram um pluralismo eclético e aberto, “no sentido profundo, verdadeiro, essencial, isto é, o sentimento ideia, a emoção refletida, onde tudo o que existe, corpo e alma, dor e alegria, amor e desejo, terra e céu, atinge a sua unidade divina”. Na “Renascença” estão Álvaro Pinto e Jaime Cortesão, Guerra Junqueiro, Antero de Figueiredo, António Carneiro, Leonardo Coimbra, mas também Afonso Lopes Vieira, António Correia de Oliveira, António Sérgio, Raul Proença, João de Barros, Mário Beirão, Câmara Reis e Afonso Duarte, além de Fernando Pessoa e Mário de Sá Carneiro. Compreende-se, pela diversidade de intervenientes, que a “Renascença Portuguesa” tenha sofrido diversos sobressaltos – no entanto, olhando o impulso fundamental, depressa descobrimos que, como movimento original representa o que de mais significativo encontramos na cultura portuguesa do século XX – de Pascoaes a Leonardo, de Cortesão a Pessoa, do simbolismo ao modernismo, do lirismo ao racionalismo. Afinal, como dizia Raul Proença, havia necessidade de «homens de inteligência e de direção espiritual», para dar dimensão à nova República. E Cortesão frisava: «a Renascença Portuguesa não era incompatível com as aspirações modernas». Leonardo Coimbra dizia ser fundamental “dar uma finalidade à vida nacional”, lembrando Cortesão que o berço da Renascença é o Porto: «foi, na verdade, pelas suas origens, carácter e tendências, um movimento portuense». Note-se a prevalência da elevação das ideias, o respeito mútuo e a serenidade da razão e do sentimento, contra a cegueira sectária. Estamos, de facto, perante uma convergência humanista universalista, desde a perspetiva espiritualista, representada por Pascoaes (e depois por Leonardo Coimbra) até à razão cosmopolita de António Sérgio e Raul Proença, passando pelo modernismo e pelo futurismo de Pessoa, Sá-Carneiro e Almada Negreiros. Pesam a herança de Herculano e Garrett, a vontade nacional e a tradição romântica, mas também o sentido renovador e revolucionário de Antero, Eça, Oliveira Martins e Junqueiro e da Geração de 1870, além do positivismo, do pensamento libertário e do socialismo cooperativo. E não pode ainda esquecer-se a influência inovadora de Cesário Verde e Camilo Pessanha, que, com Antero de Quental, constituem a antecipação do “Orpheu”.

 

No plano político, o regime republicano (1910-1926) caracterizou-se pela instabilidade, dos partidos, dos governos, da sociedade, agravada com a entrada na Grande Guerra e a emergência do presidencialismo de Sidónio Pais (1917-18) e com o regresso em 1919 da República velha. No campo económico, em lugar da fixação da riqueza e da produção, houve os efeitos da Grande Guerra com inflação galopante e crise monetária. Quanto à Constituição de 1911, o parlamentarismo e a subalternidade da figura do Presidente da República (contrariada por Sidónio) geraram instabilidade governativa. Na educação, houve muitas expectativas positivas, nas reformas de António José de Almeida (1911), de Leonardo Coimbra (1919) e de João Camoesas (1923) que, apesar de não terem tido efeitos imediatos na frequência escolar, definiram orientações no sentido da valorização da qualidade do ensino.

 

Fernando Pessoa e “Orpheu” (1915) representam um sobressalto, num curioso casamento entre a história de um povo que o poeta procura interpretar e uma reflexão cosmopolita, que torna fascinante a leitura de uma obra caleidoscópica. Contudo, sem ser redutora, a perceção da identidade é feita à luz de uma consciência universalista. Como disse Eduardo Lourenço (1923-2020) em «Pessoa revisitado», o poeta «foi uma espécie de aparição fulgurante descida das brumas culturais alheias ao nosso desterro azul, para nele inscrever em portuguesa língua o mais insubornável poema jamais erguido à condição exilada dos homens na sua própria pátria, o universo inteiro». Assim se podem entender os paradoxos e as contradições que encontramos e que mais não são do que a aceitação de que uma cultura é complexa e heterogénea, abarcando elementos diversos. Estamos perante a imperfeição de que fala Lourenço, que exige a abordagem de diversos caminhos, sobretudo evidente numa cultura como a portuguesa, nascida numa finisterra de múltiplas presenças e depois espalhada pelo mundo. A relação entre o ortónimo pessoano e os principais heterónimos (Alberto Caeiro, Álvaro de Campos, Ricardo Reis e o semi-heterónimo Bernardo Soares do “Livro do Desassossego”) corresponde, assim, à representação da pluralidade do universo. A modernidade de Pessoa tem, no fundo, a ver com essa projeção, que nos leva ambiguamente ao conceito de Quinto Império – incompreensível sem referência a Vieira, o imperador da língua portuguesa. Em vez de um projeto de domínio temporal, estamos diante da exigência de um diálogo, em busca da diferença.

 

«Desejo ser um criador de mitos, que é o mistério mais alto que pode obrar alguém da humanidade» - afirmou Pessoa. Ora, os mitos permitem interrogar as raízes e o desenvolvimento de uma identidade, e essa abordagem crítica abre as portas para a superação de uma mera lógica defensiva ou retrospetiva. Compreende-se que José Régio e a revista “Presença” (segundo modernismo) tenham lamentado a publicação da «Mensagem» antes do outro manancial poético de Pessoa. O poeta não deixou de concordar junto de Adolfo Casais Monteiro, mas preferiu falar de um momento crítico de «modelação do subconsciente nacional». Será Eduardo Lourenço quem melhor articulará a necessidade crítica da consideração dos mitos pessoanos com a interrogação de Antero de Quental sobre «as causas da decadência dos povos peninsulares», com a obrigação crítica da geração de 1870, com a vontade de renascimento de «A Águia» e com o ensaísmo de António Sérgio. A heterodoxia de Lourenço tem a ver, afinal, com a recusa das escolas dominantes ou dos grupos instalados, pretendendo obter liberdade para seguir a necessidade crítica não acomodada à lógica positivista – de modo a partir dos mitos, a fim de poder compreender a sociedade e a cultura na sua complexidade. Afinal, Pessoa dissera sobre «Orpheu» a Cortes-Rodrigues que tinha como objetivo «agir sobre o psiquismo nacional», trabalhando-o por «novas correntes de ideias e emoções», sendo uma espécie de «ponte por onde a nossa Alma passa para o futuro». Eis por que motivo qualquer leitura superficial ou unívoca da obra pessoana pode conduzir num sentido redutor e incapaz de a compreender. Alberto Caeiro, o mestre, assume o panteísmo naturalista, pelo que afirma Campos: «O meu mestre Caeiro não era um pagão: era o paganismo». «Passa a árvore e fica dispersa pela Natureza. / Murcha a flor e o seu pó dura sempre. / Corre o rio e entra no mar e a sua água é sempre a que foi sua. / Passo e fico, como o Universo». Ricardo Reis afirma a nostalgia dos deuses gregos e romanos, Álvaro de Campos é o cantor da civilização mais moderna. E Pessoa procura transcender, reunir, completar, num pequeno texto em «Sobre Portugal» trata do provincianismo. Do que se trata é da definição de uma atitude crítica contrária do conformismo. «O provincianismo consiste em pertencer a uma civilização sem tomar parte no desenvolvimento superior dela – em segui-la pois mimeticamente, com uma subordinação inconsciente e feliz. A síndroma provinciana compreende, pelo menos, três sintomas flagrantes: o entusiasmo e a admiração pelo progresso e pela modernidade; e, na esfera mental superior, a incapacidade da ironia». O poeta pensa na necessidade de haver escóis, de haver uma aristocracia comportamental, de se cultivar a abertura e o cosmopolitismo, de superar uma tripla camada de negativismo: a decadência, a desnacionalização e a degenerescência. A ilusão do progresso ilimitado, a tentação de não cuidar do futuro, o fatalismo e a indiferença – tudo isso está em causa. E o certo é que a ironia ganha uma especial importância. 

 

Agostinho de Morais

 

 

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A VIDA DOS LIVROS

 

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     De 11 a 17 de setembro de 2017

 

Ler «A Renascença Portuguesa: um movimento cultural portuense» (1990) de Alfredo Ribeiro dos Santos constitui oportunidade para compreendermos a influência extraordinária que o Porto Culto teve no século XX português.

 

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CIDADE INVICTA, CIDADE CULTA

Alfredo Ribeiro dos Santos (1917-2012) é um símbolo do Porto Culto. Esta noção antiga de Sampaio Bruno cabe especialmente a este médico, discípulo de Leonardo Coimbra, para quem a tradição da “Renascença Portuguesa” não poderia caber numa qualquer noção estrita de escola ou de grupo fechado. Se lermos textos fundamentais de sua autoria como «A Renascença Portuguesa: um movimento cultural portuense» (1990), «Jaime Cortesão: um dos grandes de Portugal» (1996), «O Perfil de Leonardo Coimbra» (1998) ou «História Literária do Porto…» (2009) depressa e facilmente compreendemos que a riqueza e a fecundidade dessa plêiade coerente mas heterogénea (de Pascoaes a Proença e a Brandão) teve a ver com a fidelidade às raízes bem portuguesas de uma cultura aberta, multifacetada e complexa. Alfredo Ribeiro dos Santos foi cicerone privilegiado relativamente a esse movimento e a esse grupo de exceção – ensinando-nos que a sua atualidade se deve ao espírito aberto e persistente, baseado na autonomia enraizada da cidade do Porto, de onde houve nome Portugal, a única cidade-estado que houve em Portugal, pátria do Infante D. Henrique e também de Garrett (“nós, os do Porto, podemos trocar os b pelos v, mas nunca a liberdade pela tirania”), urbe invicta na guerra civil, fiel à causa da liberdade de D. Pedro – que, em preito de homenagem, deixou à cidade o seu próprio coração – sede da «Vida Nova» e da amizade entre Antero e Oliveira Martins, simbolizada nas Águas Férreas, ou de Soares dos Reis.

 

A «RENASCENÇA PORTUGUESA» COMO NINHO

Ribeiro dos Santos ensinou-nos que a «Renascença Portuguesa» constitui um exemplo de como o republicanismo teve diversas leituras e exerceu uma influência multifacetada e rica na evolução do século XX português. Recorde-se que no dealbar do movimento (em 1911), Teixeira de Pascoaes e Raul Proença apresentaram para ele dois projetos de manifesto que, sendo bastante diferentes, representam aos olhos de hoje a imagem significativa do que foi originalmente a ideia. «O fim da “Renascença Lusitana” – escrevia Pascoaes – é combater as influências contrárias ao nosso carácter étnico, inimigas da nossa autonomia espiritual, e provocar, por todos os meios de que se serve a inteligência humana, o aparecimento de novas forças morais orientadoras e educadoras do povo que sejam essencialmente lusitanas». Proença, por seu lado, falava “em pôr a sociedade portuguesa em contacto com o mundo moderno, fazê-la interessar-se pelo que interessa aos homens lá de fora, dar-lhe o espírito atual, a cultura atual, sem perder nunca de vista, já se sabe, o ponto de vista nacional e as condições, os recursos e os fins nacionais”. Como salientou José Augusto Seabra: “o ideal patriótico é idêntico, apenas os meios de o atingir divergem, embora sejam afinal complementares, como Pascoaes, aliás, n’A Águia, intentará mostrar”. Ambos se demarcam do positivismo ou de lógicas redutoras, estando em causa o que Jaime Cortesão propunha: «dar conteúdo renovador e fecundo à revolução republicana». Como dirá Pascoaes, havia que «criar um novo Portugal, ou melhor, ressuscitar a Pátria Portuguesa, arrancá-la do túmulo, onde a sepultaram alguns séculos de escuridade física e moral, em que os corpos definharam e as almas amorteceram».

 

ESPÍRITO MULTIFACETADO

Alfredo Ribeiro dos Santos encarna este espírito multifacetado! Fez os seus estudos secundários no Porto, no Liceu Rodrigues de Freitas, tornou-se discípulo de Leonardo Coimbra, colaborou ativamente na candidatura do General Norton de Matos à Presidência da República, foi frequentador das tertúlias literárias e políticas portuenses e colega do Dr. Veiga Pires, resistente de sempre, com quem estagiou no Hospital de Santo António, e com quem militou no MUNAF e no MUD. Mário Soares disse dele que «deixou sempre por onde passou um rasto de simpatia, de humanidade, de aprumo moral e de respeito verdadeiramente invulgares». Nesse sentido, devo insistir na ideia de que é um símbolo indelével do Porto culto. E não poderemos esquecer a sua ligação ao Professor Abel Salazar, referência maior da ciência e da arte, da medicina e da pintura – sobre quem escreveu em termos de uma justiça e de uma sensibilidade lapidares. Foi o meu saudoso amigo José Augusto Seabra quem primeiro me apresentou o Dr. Alfredo Ribeiro dos Santos, elo indispensável entre a Renascença Portuguesa antiga e a Nova Renascença. O seu exemplo era fundamental, já que nos permitiria compreender, com todas as suas consequências, a força e a durabilidade da mensagem renovada da ideia de Renascença, que se seguia à Regeneração constitucional de 1820. Afinal, o tempo veio a revelar que a velha revista «Águia», nascida na aurora da República portuguesa, constitui símbolo da perenidade do constitucionalismo – ligando os fatores democráticos desde a formação de Portugal que Jaime Cortesão e Leonardo Coimbra assumiram plenamente, à causa liberal de D. Pedro, à liberdade constitucional e ao melhor da causa republicana, com a orientação socializante da «Seara Nova», o modernismo do «Orpheu» de Fernando Pessoa e Almada Negreiros e a democracia moderna da revolução de 25 de abril e do constitucionalismo democrático da contemporaneidade. No centenário de Alfredo Ribeiro dos Santos, invocamos o seu exemplo, mas mais do que ele, toda a sua lição ligada aos grandes mestres modernos da democracia portuguesa – que o cidadão e intelectual sempre enalteceu. No fundo, a chave do «Porto Culto» tem a ver com a perenidade dos fatores democráticos da formação e afirmação de Portugal. Eis o que não pode ser olvidado!   

 

Guilherme d'Oliveira Martins
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