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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CADA TERRA COM SEU USO

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XXIV.  Democracia e opção europeia

 

Quando lembramos as datas fundamentais do constitucionalismo português (1820, 1834, 1910 e 1974), verificamos que correspondem à necessidade de concretizar a democracia como permanente atenção à liberdade, à responsabilidade e à participação, enquanto cidadania ativa, como respeito mútuo e defesa dos valores éticos. Em 1820 e na Constituição de 1822 o absolutismo cedeu lugar à soberania dos cidadãos e à separação, interdependência e limitação dos poderes. Depois da guerra civil, a causa de D. Pedro e de D. Maria da Glória viu reconhecida a vitória da liberdade em Évora Monte e a Carta Constitucional de 1826 pôde renovar o caminho para o Estado liberal, graças à Constituição de 1838 e ao Ato Adicional à Carta de 1852, que permitiram à Regeneração modernizar o País, aproximá-lo da Europa e pôr a tónica no primado da lei e na liberdade de opinião, sendo a proibição ocorrida nas Conferências do Casino de 1871 uma singular exceção, que levou à solidariedade entre os jovens amigos de Antero de Quental e a primeira geração romântica, representada por Alexandre Herculano. A República de 1910 e o republicanismo, de que foi símbolo a “Renascença Portuguesa”, representou a procura de um novo alento para os valores democráticos. Daí a necessidade de compreendermos o que Jaime Cortesão afirma sobre a importância dos fatores democráticos na formação de Portugal (envolvendo a independência da nação, a legitimidade das Cortes de Coimbra de 1385, a aclamação de D. João I, o municipalismo, os descobrimentos, a Restauração e a proclamação da liberdade) – consumados no constitucionalismo.

 

Após a ditadura (1926-1974), ao chegarmos a 25 de abril de 1974, tratou-se de fazer renascer a democracia em toda a sua vitalidade num contexto europeu e no concerto das nações, pela autodeterminação e independência dos países de língua oficial portuguesa. Em 1820, com todas as vicissitudes conhecidas, renovou-se a tradição portuguesa, a um tempo fiel ao espírito de independência de D. Afonso Henriques e de D. Dinis, e à audácia de 1383-1385 e da Ínclita Geração e dos Altos Infantes, mas também às tradições do povo e à expansão da língua portuguesa em todos os continentes. A democracia e o constitucionalismo não são obra do acaso, mas de trabalho persistente e de grandes responsabilidades. A opção europeia, a “Europa Connosco” de Mário Soares (1976), com a adesão de pleno direito a partir de 1986 às Comunidades Europeias, hoje União Europeia, e a entrada na moeda europeia, o Euro, depois de 2001 fazem pleno sentido no âmbito da afirmação da identidade democrática de Portugal no âmbito da cooperação entre Estados e cidadãos soberanos e livres, para quem a cultura é um fator de emancipação e desenvolvimento. Fiel às raízes históricas de uma identidade de nove séculos, Portugal, a cultura e a língua afirmam-se como realidades abertas e acolhedoras, em nome da diversidade matricial de um cadinho de várias influências. Língua de várias culturas, cultura de várias línguas – eis a chave desta convergência de fatores. Nas artes e na literatura, na educação, na cultura e na ciência, Portugal afirma-se através de nomes como Ferreira de Castro, Aquilino Ribeiro, Miguel Torga, Vitorino Nemésio, Vergílio Ferreira, José Régio, Alves Redol, José Cardoso Pires, António Ramos Rosa, Herberto Helder, Manuel Alegre, Sophia de Mello Breyner, Eugénio de Andrade, Ruy Belo, Eduardo Lourenço, David Mourão-Ferreira, Augusto Abelaira, José Saramago, António Lobo Antunes, Manuel António Pina, Lídia Jorge, Nuno Júdice ou de artistas como Maria Helena Vieira da Silva, Paula Rego, Júlio Pomar, Ângelo de Sousa, Graça Morais, Siza Vieira, mas também Agustina Bessa-Luís, Maria Judite de Carvalho, Fernanda Botelho, Isabel da Nóbrega, Maria Velho da Costa, Maria Teresa Horta e Maria Isabel Barreno. A atribuição a José Saramago do Prémio Nobel da Literatura em 1998 é corolário da afirmação da cultura da língua portuguesa como marca do Portugal democrático.

 

As marcas da contemporaneidade portuguesa são a abertura e a liberdade. O primado da lei, a legitimidade do voto, a legitimidade do exercício e a justiça como valor ético – distributiva e intergeracional – constituem os elementos cruciais de uma cultura de respeito mútuo, de solidariedade e de proximidade, centrada na dignidade da pessoa humana.

Agostinho de Morais

 

 

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CADA TERRA COM SEU USO

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XXII.  O século das guerras e o fim lento da autarcia

 

A partir da implantação da República em 5 de outubro de 1910, culturalmente a «Renascença Portuguesa» constituiu um exemplo de como o republicanismo, com diversas leituras, exerceu uma influência simbólica na evolução do século XX português. Recorde-se que no dealbar do movimento, Teixeira de Pascoaes e Raul Proença apresentaram dois projetos de manifesto que, apesar de diferentes, representaram uma imagem de renovação. «O fim da “Renascença Lusitana” – escrevia Pascoaes – é combater as influências contrárias ao nosso carácter étnico, inimigas da nossa autonomia espiritual, e provocar, por todos os meios de que se serve a inteligência humana, o aparecimento de novas forças morais orientadoras e educadoras do povo que sejam essencialmente lusitanas». Proença, por seu lado, falava “em pôr a sociedade portuguesa em contacto com o mundo moderno, fazê-la interessar-se pelo que interessa aos homens lá de fora, dar-lhe o espírito atual, a cultura atual, sem perder nunca de vista, já se sabe, o ponto de vista nacional e as condições, os recursos e os fins nacionais”. Como salientou José Augusto Seabra: “o ideal patriótico é idêntico, apenas os meios de o atingir divergem, embora sejam afinal complementares, como Pascoaes, aliás, n’A Águia, intentará mostrar”. Ambos se demarcam do positivismo ou de lógicas partidárias redutoras, estando em causa o que Jaime Cortesão propunha: «dar conteúdo renovador e fecundo à revolução republicana». Como dirá Pascoaes, havia que «criar um novo Portugal, ou melhor, ressuscitar a Pátria Portuguesa, arrancá-la do túmulo, onde a sepultaram alguns séculos de escuridade física e moral, em que os corpos definharam e as almas amorteceram».

 

As palavras Renascença e Regeneração são usadas no Portugal de influência liberal, pelo menos desde 1820. “Renascer é regressar às fontes originárias da vida, mas para criar uma nova vida” (Pascoaes). Vêm à memória os sinais renovadores provindos do Porto – 1820, o impulso de D. Pedro após o desembarque dos bravos do Mindelo (onde estiveram Garrett, e Alexandre Herculano), a influência portuense do Setembrismo (em que pontificaram os irmãos Manuel e José Passos), a Maria da Fonte e a Patuleia, a Regeneração de 1851, o movimento da “Vida Nova” (1885), o magistério de Rodrigues de Freitas, a presidência de Antero de Quental na Liga Patriótica do Norte, o 31 de Janeiro, o manifesto dos emigrados políticos, o “Porto Culto” de Sampaio Bruno… A “Renascença” e a revista “A Águia” procuram um pluralismo eclético e aberto, “no sentido profundo, verdadeiro, essencial, isto é, o sentimento ideia, a emoção refletida, onde tudo o que existe, corpo e alma, dor e alegria, amor e desejo, terra e céu, atinge a sua unidade divina”. Na “Renascença” estão Álvaro Pinto e Jaime Cortesão, Guerra Junqueiro, Antero de Figueiredo, António Carneiro, Leonardo Coimbra, mas também Afonso Lopes Vieira, António Correia de Oliveira, António Sérgio, Raul Proença, João de Barros, Mário Beirão, Câmara Reis e Afonso Duarte, além de Fernando Pessoa e Mário de Sá Carneiro. Compreende-se, pela diversidade de intervenientes, que a “Renascença Portuguesa” tenha sofrido diversos sobressaltos – no entanto, olhando o impulso fundamental, depressa descobrimos que, como movimento original representa o que de mais significativo encontramos na cultura portuguesa do século XX – de Pascoaes a Leonardo, de Cortesão a Pessoa, do simbolismo ao modernismo, do lirismo ao racionalismo. Afinal, como dizia Raul Proença, havia necessidade de «homens de inteligência e de direção espiritual», para dar dimensão à nova República. E Cortesão frisava: «a Renascença Portuguesa não era incompatível com as aspirações modernas». Leonardo Coimbra dizia ser fundamental “dar uma finalidade à vida nacional”, lembrando Cortesão que o berço da Renascença é o Porto: «foi, na verdade, pelas suas origens, carácter e tendências, um movimento portuense». Note-se a prevalência da elevação das ideias, o respeito mútuo e a serenidade da razão e do sentimento, contra a cegueira sectária. Estamos, de facto, perante uma convergência humanista universalista, desde a perspetiva espiritualista, representada por Pascoaes (e depois por Leonardo Coimbra) até à razão cosmopolita de António Sérgio e Raul Proença, passando pelo modernismo e pelo futurismo de Pessoa, Sá-Carneiro e Almada Negreiros. Pesam a herança de Herculano e Garrett, a vontade nacional e a tradição romântica, mas também o sentido renovador e revolucionário de Antero, Eça, Oliveira Martins e Junqueiro e da Geração de 1870, além do positivismo, do pensamento libertário e do socialismo cooperativo. E não pode ainda esquecer-se a influência inovadora de Cesário Verde e Camilo Pessanha, que, com Antero de Quental, constituem a antecipação do “Orpheu”.

 

No plano político, o regime republicano (1910-1926) caracterizou-se pela instabilidade, dos partidos, dos governos, da sociedade, agravada com a entrada na Grande Guerra e a emergência do presidencialismo de Sidónio Pais (1917-18) e com o regresso em 1919 da República velha. No campo económico, em lugar da fixação da riqueza e da produção, houve os efeitos da Grande Guerra com inflação galopante e crise monetária. Quanto à Constituição de 1911, o parlamentarismo e a subalternidade da figura do Presidente da República (contrariada por Sidónio) geraram instabilidade governativa. Na educação, houve muitas expectativas positivas, nas reformas de António José de Almeida (1911), de Leonardo Coimbra (1919) e de João Camoesas (1923) que, apesar de não terem tido efeitos imediatos na frequência escolar, definiram orientações no sentido da valorização da qualidade do ensino.

 

Fernando Pessoa e “Orpheu” (1915) representam um sobressalto, num curioso casamento entre a história de um povo que o poeta procura interpretar e uma reflexão cosmopolita, que torna fascinante a leitura de uma obra caleidoscópica. Contudo, sem ser redutora, a perceção da identidade é feita à luz de uma consciência universalista. Como disse Eduardo Lourenço (1923-2020) em «Pessoa revisitado», o poeta «foi uma espécie de aparição fulgurante descida das brumas culturais alheias ao nosso desterro azul, para nele inscrever em portuguesa língua o mais insubornável poema jamais erguido à condição exilada dos homens na sua própria pátria, o universo inteiro». Assim se podem entender os paradoxos e as contradições que encontramos e que mais não são do que a aceitação de que uma cultura é complexa e heterogénea, abarcando elementos diversos. Estamos perante a imperfeição de que fala Lourenço, que exige a abordagem de diversos caminhos, sobretudo evidente numa cultura como a portuguesa, nascida numa finisterra de múltiplas presenças e depois espalhada pelo mundo. A relação entre o ortónimo pessoano e os principais heterónimos (Alberto Caeiro, Álvaro de Campos, Ricardo Reis e o semi-heterónimo Bernardo Soares do “Livro do Desassossego”) corresponde, assim, à representação da pluralidade do universo. A modernidade de Pessoa tem, no fundo, a ver com essa projeção, que nos leva ambiguamente ao conceito de Quinto Império – incompreensível sem referência a Vieira, o imperador da língua portuguesa. Em vez de um projeto de domínio temporal, estamos diante da exigência de um diálogo, em busca da diferença.

 

«Desejo ser um criador de mitos, que é o mistério mais alto que pode obrar alguém da humanidade» - afirmou Pessoa. Ora, os mitos permitem interrogar as raízes e o desenvolvimento de uma identidade, e essa abordagem crítica abre as portas para a superação de uma mera lógica defensiva ou retrospetiva. Compreende-se que José Régio e a revista “Presença” (segundo modernismo) tenham lamentado a publicação da «Mensagem» antes do outro manancial poético de Pessoa. O poeta não deixou de concordar junto de Adolfo Casais Monteiro, mas preferiu falar de um momento crítico de «modelação do subconsciente nacional». Será Eduardo Lourenço quem melhor articulará a necessidade crítica da consideração dos mitos pessoanos com a interrogação de Antero de Quental sobre «as causas da decadência dos povos peninsulares», com a obrigação crítica da geração de 1870, com a vontade de renascimento de «A Águia» e com o ensaísmo de António Sérgio. A heterodoxia de Lourenço tem a ver, afinal, com a recusa das escolas dominantes ou dos grupos instalados, pretendendo obter liberdade para seguir a necessidade crítica não acomodada à lógica positivista – de modo a partir dos mitos, a fim de poder compreender a sociedade e a cultura na sua complexidade. Afinal, Pessoa dissera sobre «Orpheu» a Cortes-Rodrigues que tinha como objetivo «agir sobre o psiquismo nacional», trabalhando-o por «novas correntes de ideias e emoções», sendo uma espécie de «ponte por onde a nossa Alma passa para o futuro». Eis por que motivo qualquer leitura superficial ou unívoca da obra pessoana pode conduzir num sentido redutor e incapaz de a compreender. Alberto Caeiro, o mestre, assume o panteísmo naturalista, pelo que afirma Campos: «O meu mestre Caeiro não era um pagão: era o paganismo». «Passa a árvore e fica dispersa pela Natureza. / Murcha a flor e o seu pó dura sempre. / Corre o rio e entra no mar e a sua água é sempre a que foi sua. / Passo e fico, como o Universo». Ricardo Reis afirma a nostalgia dos deuses gregos e romanos, Álvaro de Campos é o cantor da civilização mais moderna. E Pessoa procura transcender, reunir, completar, num pequeno texto em «Sobre Portugal» trata do provincianismo. Do que se trata é da definição de uma atitude crítica contrária do conformismo. «O provincianismo consiste em pertencer a uma civilização sem tomar parte no desenvolvimento superior dela – em segui-la pois mimeticamente, com uma subordinação inconsciente e feliz. A síndroma provinciana compreende, pelo menos, três sintomas flagrantes: o entusiasmo e a admiração pelo progresso e pela modernidade; e, na esfera mental superior, a incapacidade da ironia». O poeta pensa na necessidade de haver escóis, de haver uma aristocracia comportamental, de se cultivar a abertura e o cosmopolitismo, de superar uma tripla camada de negativismo: a decadência, a desnacionalização e a degenerescência. A ilusão do progresso ilimitado, a tentação de não cuidar do futuro, o fatalismo e a indiferença – tudo isso está em causa. E o certo é que a ironia ganha uma especial importância. 

 

Agostinho de Morais

 

 

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CADA ROCA COM SEU FUSO...

 

UMA DATA PARA LEMBRAR…


Quando há alguns anos houve alguém, decerto por menos conhecimento (é o menos que pode dizer-se), acabou com o feriado do Primeiro de Dezembro, houve um justo coro de vozes a recordar que se tratava de tentar esquecer uma primeira data da nossa identidade histórica e por isso primeiro feriado civil da República. De facto, logo no ano de 1910, a primeira comemoração profana foi a da libertação da Pátria de 1640. E esse momento foi tão importante que, por exemplo, do alto de uma guarita no Largo do Carmo, Francisco de Sousa Tavares afirmou que a libertação de 25 de abril de 1974 era a data mais importante depois do Primeiro de Dezembro de 1640. A 1 de dezembro de 1910, simbolicamente, também nasceu o que viria a ser a origem da “Renascença Portuguesa”, através da revista “A Águia” de Álvaro Pinto, na continuidade da qual Raul Proença e Teixeira de Pascoais protagonizariam o debate essencial sobre o patriotismo – para um, prospetivo e futurante, para o outro, saudoso e poético, mas para ambos crucial para a definição da cultura portuguesa: lírica ou trágica, mas igualmente picaresca… Se a Revolução de 1820 invocou a Regeneração, que em 1851 daria lugar a um compromisso de acalmação política para quase sessenta anos, a República de 1910 arvoraria a ideia de Renascença, que viria (depois do interregno ditatorial) a tornar-se raiz da democracia do último quartel do século XX. Eis por que faz sentido a lembrança da Restauração da Independência invocada neste Primeiro de Dezembro! Sim, sobretudo quando a fragmentação das autonomias ibéricas do Reino de Espanha demonstra o bem fundado da decisão da independência do ocidente peninsular. Senão vejamos sete pontos sacramentais: 1) O caráter marítimo do ocidente ibérico (“terras de Espanha, areias de Portugal”) e a vontade dos portugueses, para usar a explicação de Herculano, dão a Portugal uma identidade própria que se projeta universalmente; 2) Filipe I, nas Cortes de Tomar, teve consciência disso mesmo ao reconhecer expressamente a independência e o estatuto de Portugal, que se perderia com Olivares; 3) Na guerra dos trinta anos (1618-1648), a casa de Habsburgo que governava a Espanha, levou-nos para um conflito europeu e global que contrariou claramente o interesse estratégico de Portugal; 4) O apoio da França de Richelieu a Portugal no conflito seiscentista permitiu romper com um caminho inexorável de agravamento da decadência através de uma Corte tornada de Aldeia; 5) Perante a ameaça global da Holanda, havia que romper com a tentação de Conde-Duque de Olivares de unificação peninsular num só reino, sem as prerrogativas da independência antiga de Portugal; 6) Os conjurados de 1640 recusaram assim a tal “Corte na Aldeia” e ao dar o golpe sabiam que iriam iniciar uma longa luta de sobrevivência nacional, que começou na tentativa de mobilizar recursos para fazer uma política colbertiana - ouvindo Luís Mendes de Vasconcelos, Conde da Ericeira, Severim de Faria, Ribeiro de Macedo, e seguindo as diligências diplomáticas na Holanda junto dos Cristãos-novos do Padre António Vieira) e terminou na exploração do ouro e dos diamantes do Brasil, sem o investimento na fixação, o que muito nos atrasou… ; 7) O certo é que Portugal seguiu um curso de independência, de acordo com a sua “maritimidade” e o desenvolvimento de uma língua, que se tornaria elemento congregador de várias culturas e alfobre de várias nações… Ao lermos alguns dos nomes dos quarenta conjurados, compreendemos que havia uma resistência, que se tinha solidificado perante a lógica autoritária de Madrid e a insensibilidade de Filipe III. Do mesmo modo, havia uma tomada de consciência de que o império iria desfazer-se, não só o do Índico (já fortemente enfraquecido), mas sobretudo o do Atlântico Sul e do Brasil. Eis os nomes: Antão Vaz de Almada, António Luís de Meneses (Marquês de Marialva), Francisco de Noronha, Francisco de Sousa (Marquês das Minas), D. Jerónimo de Ataíde (filho de D. Filipa de Vilhena e por ela armado cavaleiro com seu irmão Francisco Coutinho), Dr. João Pinto Ribeiro, João Sanches de Baena, Luís de Almada, Martim Afonso de Melo, Pedro Afonso Furtado, D. Rodrigo da Cunha (Arcebispo de Lisboa), Tomás de Noronha (Conde dos Arcos), Tomé de Sousa, Tristão da Cunha de Ataíde… Os nomes envolviam o clero, a nobreza e o povo – e reconstituíam a resistência que tinha levado ao trono o Mestre de Avis em 1385. Eis por que não se trata de uma celebração isolada, mas da afirmação perene de uma vontade de emancipação. E lembremos o que disse António Sérgio no pós Alcácer Quibir:  «Perante a vaga do trono português, sucedeu-lhe Filipe II de Espanha, que nas cortes de Tomar jurou as condições em que reinaria: a sua ideia não foi a absorção de Portugal, mas uma monarquia dualista, em que tínhamos perfeita autonomia, no mesmo pé do que Castela. Cumpriu religiosamente o que prometera; e foi seu neto Filipe IV, ou melhor o conde-duque de Olivares, quem, iludindo-as, provocou mais tarde a revolta dos Portugueses». Regressa à lembrança o sonho do Príncipe Perfeito, de um Império de base ibérica, com um rei português e Lisboa como centro de gravidade dessa realidade universal. Como salientou Vítor Sá:  «A restauração da independência de Portugal trouxe ao primeiro rei da nova dinastia, João IV, inimigos poderosíssimos, dificuldades diplomáticas e militares, que acabaram por ser vencidas nas linhas de Elvas, com o exército português já instituído por bons mestres (Schomberg). «Mostrou-se o povo, mais uma vez, como boa matéria-prima quando enquadrado por boa élite» — concede António Sérgio. Na conjuntura restauracionista teve lugar a primeira tentativa para se «assentar em bases firmes a economia da metrópole», com a política do conde da Ericeira. Mas essa tentativa resultou frustrada pela «sorte grande» que foi a descoberta das minas do Brasil».
 

Agostinho de Morais

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

 

48. UTILITARISMO, DIREITOS HUMANOS, ÉTICA E CONSEQUÊNCIAS

 

1. Face às teorias neoliberais dominantes, há uma tendência para a restrição dos direitos humanos a um núcleo duro e restrito.

 

Embora se admita que uma Constituição deve consagrar o que há de mais fundamental, especialmente, e em democracia, os direitos, liberdades e garantias no que toca à relação entre o indivíduo e o Estado, há quem defenda que quanto mais longe se vai na consagração de direitos económicos, sociais e culturais, entre outros, mais problemático é exigir-se o seu cumprimento.

 

Por razões de escassez de recursos, há o que se pode e não pode exigir, podendo chegar-se ao absurdo de exigir o impossível, porque está constitucionalmente consagrado.

 

Argumenta-se haver uma constitucionalização em excesso, como há quem o advogue em Portugal, em que a realidade, no seu todo, se tornou inconstitucional, dada a desconformidade entre o dever de cumprir exigido pela nossa Constituição e a alegada ausência de recursos que tornam materialmente impossível o seu cumprimento.   

 

A solução proposta é alterar a Constituição, mudá-la, quanto antes.

 

Apesar de se aceitar que a lei constitucional intervenha em matéria de questões económicas (princípio da concorrência, regras primárias e programáticas em sede de finanças públicas) e sociais (direito à saúde, ao trabalho, à educação, à habitação e correlativos deveres do Estado para que se concretizem), há que lhe impor limites em função dos recursos materiais e humanos disponíveis. 

 

É a conceção da intervenção do Estado mínimo, da secundarização do Estado social. Porque, como em tudo na vida, há o que se pode e não pode fazer.

 

Para esta visão utilitarista, os direitos económicos, sociais e culturais (direitos humanos de segunda geração), como o direito à saúde, educação, habitação, entre outros, trouxeram uma mudança de sentido para a noção de direitos humanos, dado que a sua efetivação passa a estar dependente do Estado, sendo determinados por opções políticas e dependentes dos recursos materiais e sociais disponíveis, realizando-se através do Estado, ao invés dos direitos humanos de primeira geração (ou direitos de abstenção estadual, como o direito à vida, à liberdade, à segurança pessoal, à constituição de família, a não ser escravizado ou torturado, a um julgamento justo).

 

Defende-se uma restrição dos custos em função da maximização do maior bem comum ou bem-estar geral, em antinomia com a justiça ligada à defesa e promoção dos direitos humanos, associados a ideias humanitárias, não dependendo do Estado, sendo-lhe anteriores, porque inatos a todo e qualquer ser humano. 

 

O que tem consequências em termos de ética. 

 

A ética prática ou utilitarista não parte de regras, mas de objetivos, avaliando as ações e os resultados na medida em que os fins e os objetivos desejados sejam favorecidos.

 

Para a teoria deontológica da ética, os fins não justificam os meios, a natureza ética de um ato não decorre de produzir ou não resultados positivos, sendo inaceitável sacrificar direitos humanos de uma só pessoa para salvar muitas outras.   

 

2. Uma prioridade absoluta e inegociável é o direito à vida, à saúde, salvar vidas. 

 

Todos temos direito à vida (art.º 24.º da CRP) e à saúde (art.º 64.º).

 

Face ao coronavírus há um problema grave de saúde pública, estando em causa a sobrevivência global de inúmeras pessoas em todos os países, em que escolher entre a vida e a morte é um drama pessoal, ético, humano e social para os médicos.

 

Ninguém, em circunstância alguma, quer que sejam médicos a decidir se devemos morrer ou viver por ausência de recursos (materiais e humanos) para combater o vírus da Covid-19, mesmo se idosos ou num grupo de risco, embora saibamos que pessoas mais novas merecem viver mais, e apesar de os mais velhos terem contribuído em grau superior, por força da idade, para a segurança social e serviço nacional de saúde. 

 

O que é aceitável e imperativo é esperar que todos se salvem, sendo  incompreensível que se decida em favor ou desfavor da vida de outrem por ausência de condições de tratamento adequado naquela circunstância, que alguém tenha de abdicar de um tratamento por ter 70 ou 80 anos (ou mais), estar num grupo de risco, ter deficiência física ou mental, por confronto com alguém sem deficiência ou mais novo, ou um pai e uma mãe com filhos que têm de ceder perante outros por serem mais jovens.

 

Este escalonamento humano pode abrir precedentes condenáveis e levar-nos a situações muito perigosas.   

 

Pela ordem natural das coisas é aceitável, se e quando esgotados todos os tratamentos adequados e exigíveis naquele contexto.   

 

Pela ordem artificial das coisas não o é.   

 

Não é legítimo culpabilizar quem deseja viver, nem querer que alguém seja herói, mártir ou uma referência orientadora dada a ausência ou escassez de meios e recursos, quando agudizados pela degradação e desinvestimentos num serviço público de saúde universal que não deve estigmatizar ninguém.

 

Porém, as notícias vindas de alguns países, suscetíveis de universalização, são preocupantes, mesmo assustadoras, quando os próprios médicos reconhecem, impotentes, que por ausência de meios e recursos são obrigados a ter de escolher entre a vida e a morte de doentes, dando preferência de sobrevivência aos mais novos, perante o dilema de salvar a vida, sem alternativa, entre um jovem e um idoso, mesmo que ambos úteis e, até aí, saudáveis.   

 

Gera-se um conflito de interesses, tendencialmente resolvido via utilitarismo, agudizado por uma maior contenção de recursos estaduais disponíveis, nomeadamente a nível dos alocados ao respetivo serviço nacional de saúde, o que é mais preocupante em países grandemente endividados, potenciando maior desadequação e desproporcionalidade entre a concretização prática e a consagração formal dos direitos humanos. 

 

Tudo em desfavor de um padrão ético, moral e humanista mais elevado, antepondo o sentido da vida ao dos negócios, indisponível para cortes cegos, prestando-se a adaptações só em último recurso, em oposição ao utilitarismo que se adapta e flexibiliza  permanentemente face à maior ou menor disponibilidade dos recursos existentes.  

 

24.04.2020
Joaquim Miguel de Morgado Patrício

A VIDA DOS LIVROS

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   De 22 a 28 de janeiro de 2018.

 

O ensaio de Jaime Cortesão “Os Fatores Democráticos na Formação de Portugal”, para servir de introdução à História do Regimen Republicano em Portugal, dirigido por Luís de Montalvor (1930), constitui ainda hoje uma peça referencial para a compreensão das mais importantes continuidades numa história antiga e complexa.

 

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ANALISTA CRITERIOSO

Jaime Cortesão foi um analista criterioso e atento das raízes de Portugal. Sobre a obra referida pode dizer-se que a sua perenidade se mantém viva – uma vez que, seguindo os passos de Herculano, mas superando-os em nome da crítica histórica, encontramos elementos que merecem atenção, até para que se constituam em incentivo ao aperfeiçoamento das instituições. De facto, a ideia moderna de mediação institucional encontra nas considerações de Cortesão uma base sólida à luz da qual podemos ver o constitucionalismo nos dias de hoje, no sentido do seu aperfeiçoamento. Releia-se o historiador: “Em Portugal é do próprio movimento das comunas que vai nascer o conceito supremo da Nação; e apenas desaparecidas as causas que entravam aqui, mais ainda do que no resto da Europa, o desenvolvimento político das classes populares, os princípios democráticos vão retomar a sua marcha até o advento da República. Os mesmos centros urbanos, que em 1383 elegeram o mestre da Avis e tão poderosamente contribuíram para assegurar a independência nacional, vão afirmar de novo a sua consciência política e capacidade nas lutas pela liberdade durante o período liberal e republicano”. Compreenda-se a importância da estratégia afonsina de mobilizar os municípios moçárabes, bem como o impulso audacioso do período dionisíaco na delimitação das fronteiras, na definição da língua e no reforço da aliança entre o poder real e os concelhos… E o modo como as Cortes de Coimbra (1385) com João das Regras definiram a nova legitimidade portuguesa torna evidente que aquilo que Cortesão designa como “fatores democráticos” constitui o pressuposto fundamental da independência portuguesa e da sua persistência multissecular – nas quais se aliam de modo indelével a vontade dos portugueses e a longa e omnipresente costa marítima, que se contrapõe à continentalidade da restante Península Ibérica. E Jaime Cortesão fala-nos de tendências universalistas, da afirmação da liberdade dos povos no sentido da boa organização e da satisfação justa das suas necessidades, que, “desenvolvidas durante a nossa Idade Média”, “eclodiram e triunfaram durante a revolução que levou ao trono o Mestre de Avis, determinando a formação social predominante, a missão histórica e o carácter ideal da Nação”… E, ao estudar o Brasil, o historiador pôde projetar globalmente a diversidade do mundo da língua portuguesa – num reforço inequívoco de uma identidade multímoda, caracterizadora do humanismo universalista. Sem idealização, e com a preocupação de reunir argumentos suficientemente claros e sólidos, Cortesão coloca-nos perante a necessidade de irmos, com uma vocação europeia e uma projeção global, aperfeiçoando pela experiência e pelo tempo as instituições, a representação democrática e a participação cívica.

 

UMA LIGAÇÃO NECESSÁRIA.

A invocação de Jaime Cortesão faz sentido quando se assinala o primeiro aniversário do falecimento de Mário Soares e quando se desenvolvem iniciativas ligadas ao bicentenário do constitucionalismo português, dentro de dias na cidade do Porto, para assinalarmos os duzentos anos do Sinédrio, e há bem pouco na invocação da pioneira abolição da pena de morte em Portugal e da condenação ilegal e ilegítima de Gomes Freire de Andrade e dos Mártires da Pátria - acontecimento justamente lembrado na representação na Assembleia da República da peça de Luís Sttau Monteiro Felizmente Há Luar. Tudo isto na perspetiva da celebração da Revolução de 1820 e da Constituição de 1822 – e do que se lhe seguiu em termos de consagração do Estado de direito, do primado da lei e das legitimidades do título ou da origem e do exercício. E se falo dos “fatores democráticos” e invoco a memória amiga e próxima de Mário Soares é para dar ênfase à continuidade e permanência da ideia democrática em Portugal – sobretudo num tempo em que somos chamados a aperfeiçoar e a reforçar as instituições baseadas na liberdade, na igualdade, no pluralismo e na cidadania livre e responsável. Mário Soares é um exemplo que tem de ser lembrado. O constitucionalismo moderno foi por si assumido como desafio e responsabilidade – a partir de um compromisso dinâmico de integração e de inclusão. Quantas vezes falámos dos desafios e da reflexão de Jaime Cortesão ou do grupo da “Seara Nova”, com António Sérgio, Raul Proença, Raul Brandão ou Rodrigues Migueis, como sinais de exigência? Quantas vezes invocámos a importância do respeito mútuo e da laicidade – num espaço público de respeito mútuo, de diversidade, de coesão social e de autêntica liberdade?

 

INCONFORMISMO E LIBERDADE.

Não esqueço o que o meu querido amigo António Alçada Baptista tanto gostava de lembrar – o inconformismo de Soares permitia que ele estivesse sempre do lado da liberdade, custasse o que custasse… Era uma garantia para todos, uma vez que as águas mornas podem tornar-se perigosas. Em nome desse magistério cívico, vem à lembrança a ideia necessária de “República Moderna”, como aquela por que Sérgio pugnou e que está bem evidenciada em textos do pós-guerra e na audaciosa apresentação da candidatura do General Humberto Delgado à Presidência da República. Essa dimensão histórica, assente, na herança da primeira geração romântica, com Garrett e Herculano e continuada pela grande geração das Conferências Democráticas, com a intervenção fundamental de Antero de Quental sobre as Causas da Decadência, e com a tentativa (de grande alcance) de implantar uma “Vida Nova”, que serviu para demonstrar que a sementeira de ideias podia ter consequências de larguíssimo prazo, desde que baseada no espírito crítico e na necessária superação do pessimismo e da decadência. Eça de Queirós e Oliveira Martins tornaram, assim, o sentido de ironia e a força da análise como tomada de consciência de que só a autocrítica e a desconstrução dos mitos poderiam ajudar à mobilização de energias contra o atraso como destino. E a cultura portuguesa do último século reforçou essa mesma ideia, designadamente com Eduardo Lourenço na sua psicanálise mítica do destino português. Hoje, no momento em que no horizonte há nuvens perturbadoras, em que a ideia da democracia como sinónimo de liberdade é posta em causa, em que se fala de pós-verdade, quando julgávamos que essa ideia estava sepultada na obra Orwell, ou quando os sinais de fragmentação europeia se constituem em ameaças a uma cultura de paz e de desenvolvimento – devemos lembrar a persistente voz determinada e crítica de Mário Soares, um intransigente defensor da liberdade da linhagem de Jaime Cortesão.  

      

Guilherme d'Oliveira Martins
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A VIDA DOS LIVROS

    De 24 a 30 de abril de 2017

 

 

«A República» de Platão está traduzida em português por Maria Helena da Rocha Pereira (Fundação C. Gulbenkian, 1972), constituindo um exemplo literário, pedagógico e científico de revivência de um grande clássico colocado ao alcance da sociedade contemporânea – que aqui invocamos na passagem do Dia Mundial do Livro, ontem assinalado.

 

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VIVIA COM OS CLÁSSICOS
Maria Helena da Rocha Pereira (1925-2017) é um símbolo do Porto Culto, dos Estudos Clássicos em Portugal no último quartel do século XX e uma das referências mais importantes de sempre. Num tempo em que, muito justamente, se procura uma relação mais rica e abrangente no âmbito das Humanidades, o exemplo da professora da Universidade de Coimbra, merece uma atenção especial. O seu desaparecimento deixa um vazio, mas sobretudo obriga a uma grande responsabilidade. Se houve por parte da grande Mestra uma preocupação de deixar escola, há um dever mais vasto no mundo da educação e na vida cultural e científica no sentido de ter de compreender-se que as raízes só podem enriquecer plenamente a capacidade criadora se puderem abranger o que de mais rico nelas existe. E, como recordava há dias Frederico Lourenço, homenageando a Professora, pouco antes do seu falecimento, só a valorização dos clássicos pode fazer-nos reencontrar na arte de educar a compreensão do humanismo integral da «paideia». É a «humanitas» de Cícero a ser chamada, não como o fechamento de uma área do conhecimento, mas como capacidade de diálogo e abertura de horizontes, em que os melhores exemplos da antiguidade clássica nos podem ajudar. E é verdade que nos poderemos compreender melhor se relermos Homero, Platão ou Aristóteles ou se nos reportarmos ao teatro helénico. E estamos a ouvir Maria Helena, que tive o gosto de conhecer e com quem colaborei (sempre beneficiando da sua amizade, do seu rigor e cuidado) – “Eu vivo com os antigos”… E assim foi, sempre com a preocupação de os trazer até nós, na exigente tarefa de percebermos a essência do género humano. “A dúvida é científica. Às vezes mais científica do que a verdade”. A educação era, assim, o seu domínio e o seu prazer.

 

HISTÓRIA DA CULTURA CLÁSSICA
Foi a primeira mulher doutorada pela Universidade de Coimbra, em 1956, e catedrática, em 1964. Antes, tinha sido de origem alemã a única professora – a célebre Carolina Michaëlis de Vasconcelos. A obra completa em dez volumes de Maria Helena da Rocha Pereira que está a ser publicada pela Fundação Calouste Gulbenkian e pela Imprensa da Universidade de Coimbra, graças à sua preciosa orientação (e coordenação de Delfim Leão), dá-nos conta de uma grande riqueza e de um cuidadoso sentido pedagógico e científico. E lembremo-nos ainda de Estudos de História da Cultura Clássica (FCG, vol. I, Cultura Grega, 1ª edição 1966, 11ª edição 2012; vol. II, Cultura Romana, 1ª edição 1984, 4ª edição, 2008) ou de A República de Platão (FCG, 1972), onde a tradução, as notas e a introdução são referenciais no mundo dos estudos clássicos. Isto, além das compilações de textos gregos e latinos (Hélade e Romana) ou das fundamentais traduções das grandes tragédias de Sófocles (Antígona) e Eurípedes (Medeia)… A aprendizagem das línguas pela grande mestra deveu-se à necessidade de ler os originais, para os compreender melhor. E começou pelo alemão, o que muito a ajudou na abertura aos clássicos. Até ao fim da vida, foi extraordinária a sua preocupação em se manter atenta e atualizada. Graças a essa atitude, muitos estudiosos puderam beneficiar de ferramentas de trabalho fantásticas, rigorosíssimas, que foi fazendo e aperfeiçoando. Em tudo o que realizava era de um método e de uma organização impressionantes, e fui, durante vários anos, testemunha disso mesmo, num júri por si presidido. Esse viver com os antigos, que gostava de lembrar, era, no entanto, o contrário de uma atitude passadista ou retrospetiva. Afinal, dizia, o género humano não mudou muito desde a Antiguidade clássica… Para si, a educação e a aprendizagem eram realidades do presente e de futuro. E pode dizer-se que as origens familiares do Porto ajudaram a que esta extraordinária mulher tenha sido marcante na sua influência e no exemplo – uma vez que para seus pais, a cultura não era algo desligado da vida, sendo a erudição um modo de melhor compreender o mundo, em vez de qualquer tipo de ostentação.

 

PIONEIRISMO E CORAGEM
Nesse tempo era difícil a uma mulher optar por um percurso científico. E as duas irmãs Rocha Pereira optaram pelos estudos clássicos e pela matemática – como pioneiras de uma nova mentalidade. Mas, como bem se nota na dissertação de doutoramento (Concepções Helénicas de Felicidade no Além, de Homero a Platão), as referências éticas foram essenciais para a coerência entre o magistério e o exemplo quotidiano. Para o pioneirismo foi, porém, necessária uma grande coragem. Não bastava ter 17 valores na licenciatura de Filologia Clássica, havia que superar preconceitos. Contra todas as resistências a jovem foi para Oxford em 1950 e aí estudou e preparou o tema do doutoramento. Todavia quando regressou a Coimbra não tinha júri para a julgar – em 666 anos era a primeira mulher (já que D. Carolina tinha vindo da Alemanha). Entretanto, especializara-se em vasos gregos (Greek Vases in Portugal, 1962)… A sua autoridade científica era reconhecida internacionalmente. Em 1964 é aprovada por unanimidade no concurso para catedrática – e não escondia o seu íntimo orgulho por ter podido ser acompanhada por seu pai nesse momento único. A partir da Universidade de Coimbra, mas como uma influência entre os diversos estudiosos da Antiguidade Clássica, refundou os estudos greco-latinos em Portugal, com repercussões em toda a Europa – lembre-se a Pausaniae Greciae descriptio, Edição crítica publicada em 3 volumes na prestigiada coleção Teubneriana (1978-81) de Leipzig. Coube, assim, a uma portuguesa a publicação moderna da obra completa do geógrafo Pausânias, o que demonstra o enorme prestígio adquirido. Quando Frederico Lourenço fala do terror que causava a presença de Maria Helena da Rocha Pereira num júri académico, tal devia-se menos à personalidade da professora, e mais à exigência extraordinária que praticava consigo mesma. Sendo uma pessoa integralmente dedicada à cultura e à educação, nada lhe escapava. No caso de A República de Platão continua a ser um best-seller em todo o mundo que fala português. Só uma pessoa de cultura superior poderia chegar a uma qualidade como a que aí se encontra – e que obrigou a profundos conhecimentos filosóficos, históricos, políticos, científicos, além de filológicos e linguísticos. Essa versatilidade e o conhecimento universalista também têm expressão em Portugal e a Herança Clássica (2004), onde é estudada a presença da cultura clássica em autores contemporâneos, como Sophia de Mello Breyner, Eugénio de Andrade e Miguel Torga, além da consideração de Camões e Camilo. Hoje percebemos que talvez não se tenha compreendido inteiramente o seu lugar extraordinário na cultura portuguesa. Mas não há dúvidas que o seu labor incansável continuará a produzir os seus frutos. Em verdade, a grande professora ensinou-nos algo custoso de entender plenamente: as coisas belas são difíceis. E a melhor arte está em tornar aparentemente fácil e natural essa qualidade… 

 

Guilherme d'Oliveira Martins
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