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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A CRIAÇÃO, A RESSURREIÇÃO, O MAL E DEUS

  


Passados dez anos sobre um aviso — na prática, para a opinião pública, a condenação de Andrés Torres Queiruga, pelo episcopado espanhol —, vem ele, numa entrevista a “Vida Nueva”, esclarecer que a sua teologia quis ser sempre “um seviço livre ao Evangelho” e que, com o Papa Francisco, aparece, felizmente, cada vez mais como “legítima uma crítica sã e livre na Igreja”.


Retomo o que então escrevi sobre quem considero —  e não sou o único — um dos maiores teólogos católicos vivos. Para mim, A. Torres Queiruga  foi e é o teólogo que de modo mais profundo e conseguido enfrentou o cristianismo com a modernidade e a modernidade com os cristianismo.  Deixo aí três aspectos que considero nucleares do seu pensamento.


1. Tudo aranca da fé, com razões, no Deus que cria por amor. Deus não criou por causa dEle, da sua maior honra e glória, mas apenas por causa das criaturas e da sua felicidade.


Tomada no seu sentido radical, a criação por amor, a partir do nada, implica, por um lado, a presença suma de Deus à sua criação, de tal modo que, se Ele se retirasse, tudo voltava ao donde veio, isto é, ao nada, e, por outro, a autonomia das criaturas. Assim, a ciência, a política, a economia, a própria moral, não vão buscar a sua legitimação à religião, pois devem reger-se pelas suas próprias leis.


Segue-se que, sendo tudo milagre - o que existe podia pura e simplesmente não existir -, não há milagres no sentido da suspensão das leis que regem a natureza. De facto, os milagres supõem o que não é pensável: um Deus "intervencionista", que está fora do mundo e que, de vez em quando e de forma arbitrária, vem dentro. Ora, Deus ao mesmo tempo que é infinitamente transcendente ao mundo é infinitamente presente ao mundo, e é, enquanto Anti-mal, sempre Força infinita criadora e potenciadora das possibilidades das criaturas.


2. Deste modo, torna-se inteligível o conceito fundamental das religiões, a revelação: como sabem os crentes que Deus falou? Tudo o que é autenticamente religioso é resposta humana a perguntas profunda e radicalmente humanas. O que a especifica é o facto de descobrir nela a presença viva de Deus que quer manifestar-nos o seu amor e salvação. Há uma só realidade para crentes e não crentes. O que acontece é que o crente tem a convicção de que a realidade não se esgota na sua imediatidade empírica, e essa convicção não surge porque é crente, mas porque a própria realidade, para a sua compreensão adequada, se apresenta incluindo uma Presença divina, que não se vê em si mesma, mas está implicada no que se vê. Mediante certas características — a contingência radical, a morte e o protesto contra ela, a exigência de sentido último —, a própria realidade se mostra implicando essa Presença divina como seu fundamento e sentido último. Assim, cito, na estrutura íntima do processo religioso, "não se interpreta o mundo de uma determinada maneira porque se é crente ou ateu, mas é-se crente ou ateu porque a fé ou a não crença aparecem ao crente e ao ateu, respectivamente, como a melhor maneira de interpretar o mundo comum".


3. A fé na ressurreição de Jesus é central no cristianismo. Mas ela não é a reanimação do cadáver nem pode ser constatável pelos historiadores. Ela é real, mas não é um facto da história empírica. Se o fosse, seria constatável empiricamente e não era precisa a fé nem seria ressurreição.


Os discípulos que, como Jesus, confessavam cada dia, na Shemoné Eshré, a fé no “Deus que ressuscita os mortos” e que tinham acreditado em Jesus continuaram a crer n'Ele, após a sua morte, uma morte que testemuhava o que foi o centro da sua mensagem por palavras e obras: que Deus é amor. Mais uma vez, reflectindo, aprofundaram a convicção avassaladora de fé de que Jesus não morreu para o nada, mas para o interior da vida de Deus, que é a vida plena e eternal. E disso deram testemunho até à morte.


4. "Ou Deus quer tirar o mal do mundo, mas não pode, ou pode, mas não quer. Se quer e não pode, é impotente; se pode e não quer, não nos ama; se pode e quer, donde vem o mal real e porque é que não o elimina?”


Quando se considera este famoso dilemma de Epicuro, é preciso ser consequente. De facto, não é legítimo invocar o mistério de modo cego, pois não pode ir contra a razão. Que diríamos de alguém que, podendo aliviar as dores de outra pessoa, o não fizesse? Não seria um sádico?


Assim, ou há alguma falha no dilema ou só resta a alternativa do ateísmo.  O que falha é o pressuposto de que é possível um mundo perfeito. Ora, um mundo finito perfeito não é possível, pois é contraditório. Um mundo finito "não pode existir sem que no seu funcionamento e realização apareça também o mal".


Mas então ergue-se a pergunta: como pode Deus dar-nos a salvação plena que esperamos após a morte, se continuaremos finitos e a finitude é que torna inevitável a existência do mal? Este mundo é finito, mas perfectível… O tempo pertence à estrutura do ser finito. O crente é aquele que espera — e o ser humano é constitutivamente esperante —, após o tempo do crescimento e da maturação na história, a salvação plena por dom gratuito do Deus. Então, já para lá dos limites da História, "não se pode afirmar que seja contraditório que, ao intensificar-se a presença criadora fora dos limites do espaço e do tempo, a criatura participe, de algum modo, com tal força na infinitude divina, que resulte livre do mal", conclui Andrés Torres Queiruga. 

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 04 de fevereiro de 2023

A PROPÓSTO DE «DESTE LADO DA RESSURREIÇÃO»

  


Entre a primeira e a segunda cenas do segundo ato da sua ópera Thaïs, Jules Massenet introduz um "intermezzo" musical que intitulou "Méditation Religieuse": é nesse momento que se dá a conversão da prostituta em santa nascente, enquanto Athanaël, o monge que a motivou ao arrependimento e à busca do amor espiritual de Deus, começa a sofrer a fortíssima tentação de Eros. A "Méditation" soa-nos aí como o fluir sereno de uma alma que, renunciando aos prazeres ruidosos do mundo, se vai refugiando na doçura silenciosa do misterioso amor de Deus. Mas o mesmo tema musical se repetirá, primeiro, na cena inicial do terceiro ato, quando Thaïs, ingressando no mosteiro do deserto, diz para sempre adeus a Athanaël e este, ao som da "Méditation", dolorosamente compreende que jamais voltará a vê-la. E, depois, já no fim desse terceiro e último acto da ópera, no dueto final, quando Thaïs entra na morte e na visão de Deus, Athanaël mais não pode do que gritar o amor erótico que apaixonadamente o submergiu. Assim, da novela homónima e intencionalmente anticlerical de Gustave Flaubert, mais do que o libreto que dela Louis Gallet escreveu para a ópera, é a música de Massenet que nos encaminha para uma meditação sobre a condição humana, dividida entre "La Pesanteur et la Grâce" como a definiu Simone Weil. Nesta história, há duas pessoas que se encontram e seguem em direções opostas, mas o mesmo mistério marca o destino dos seus percursos.


Afinal, estamos, como no filme de Joaquim Sapinho, "Deste lado da Ressurreição". Aqui, entre a terra e o céu, entre o amor humano e a força telúrica do Guincho, que conduz ao silêncio sombrio, à austeridade acolhedora para além de qualquer acolhimento sensível de uma serra de Sintra enclausurada no Convento dos Capuchos, também não é a flagelação castigadora do corpo de Rafael que o libertará. Frente à tentação da transcendência, e no silêncio de Deus sobre a terra, as águas iniciais, o espírito também chama ao Agapè, ao amor dos outros, em que incarnou o que era o Outro absoluto, para ser tudo em todos. "Deste lado da Ressurreição" é uma Peregrinação Interior" - diria o nosso António Alçada Baptista - contada com um pudor manso e secreto: entre a gravidade e a graça, sentimos, misteriosamente, como Bernanos, que "tudo é graça". Os vislumbres de amores humanos são, uns, superficiais e fugitivos, enamoramentos sem mais; mas outros, consubstanciados nas relações familiares, ganham a densidade (que é outra "pesanteur") que o amor, a única virtude intemporal, tem de aguentar do lado de cá do Apocalipse. Lembro-me dessa imagem de S. Tomás de Aquino, aureolado de sabedoria e santidade, mas com o indicador sobre os lábios, impondo à boca o silêncio da contemplação. A história de Santa Thaïs é recolhida das "Vitae Patrum" pelo dominicano genovês Tiago Voragino, que a inclui na sua "Legenda Aurea". Aí, Athanaël chama-se Padre Panúcio que, contrariamente ao monge de Flaubert, se mantém fiel à sua vocação e votos. Mas a versão mais antiga que dela se conhece é em grego do séc. V, em que o nosso monge se chama Serapião. Esta "vida" pode ser facilmente comparada a outra, cuja versão mais antiga, em grego também, data do séc. VII: a de Santa Maria Egipcíaca, cortesã que se converte e vai viver 47 anos no deserto. Esta hagiografia inscreve-se na tradição de Maria Madalena, pecadora arrependida, que data dos primeiros séculos do cristianismo e tem a ver com a conversão pela função salvífica da penitência. Curiosamente, nas histórias de que falamos, à luxúria da carne associa-se a acumulação de riquezas, fruto daquela. Todavia, porque é que a fraqueza carnal será, ao longo da vida bimilenária da Igreja, mais estigmatizada como pecado do que a ganância ou a injustiça social? Haverá algum paganismo nessa demonização de Eros? "O pagão - diz Denis de Rougemont em "O Amor e o Ocidente" na belíssima tradução do saudoso João Bénard da Costa - não podia deixar de fazer de Eros um deus: era o seu poder mais forte, o mais perigoso e o mais misterioso, o mais profundamente ligado ao facto de viver." (Ocorre-me aqui essa definição de Georges Bataille: "L’érotisme c’est l’afirmation de la vie jusque dans la mort"...). E, depois de dizer de Agapé, do amor cristão, que ele é "a afirmação do ser em ato", Rougemont escreve: «Foi Eros, o amor-paixão, o amor pagão, quem espalhou no nosso mundo ocidental o veneno da ascese idealista - tudo o que um Nietzsche injustamente censura ao cristianismo. Foi Eros e não Agapè que glorificou o nosso instinto de morte e quis "idealizá-lo". Mas Agapè vinga-se de Eros salvando-o. Porque Agapè não sabe destruir e não quer destruir nem sequer aquilo que destrói. Não quero a morte do pecador, mas a sua vida».

 

Camilo Martins de Oliveira

 

Obs: Reposição de texto publicado em 23.11.12 neste blogue.

CARTAS NOVAS À PRINCESA DE MIM


Minha Princesa de mim:


   Tumular me surge a manhã deste Sábado Santo. Acordo e levanto-me num dia cinzento, silencioso e quieto. Da varanda larga do meu quarto, avisto os campos inumados numa atmosfera incolor até ao horizonte. Não bole uma folha nas árvores dos pomares que acompanham a encosta até à estrada deserta de carros e pessoas. Desço ao meu gabinete, ponho-me à escuta das Lamentações de Jeremias, em composições de vários autores, de Alexandre Agricola a Orlando di Lasso, passando por Cristobal de Morales e Jacob Arcadelt, interpretadas pelo Egidius Kwartet, em julho de 2007 na Laurentius Kerk Mijnsheerenland, na Holanda. Cada Lamento é rematado pela conhecida exortação: Jerusalem convertere ad Dominum Deum tuum... Abro os olhos e, cá em baixo, já vejo, no quadro desta janela, a minha sakura florida e viçosa, a lembrar-me lição sage da natureza onde a permanência se descobre na humildade da constante mutação das coisas. No pensarsentir humano, chamamos-lhe conversão ou metanoia. Associamos-lhe, em regra, a ideia de arrependimento e penitência, ou renúncia (para melhor troca?). Mas nesta manhã cinzenta de Sábado Santo, quando o nosso silêncio ecoa o do Senhor Jesus, envolto em panos no segredo do seu sepulcro, e ainda o sofrimento e morte que vai ferindo tantos humanos por esse mundo fora, a flor da cerejeira que trouxe do Japão sorridente me acena com a promessa da alegria maior que encontrarei na simples contemplação do amor redentor de Deus, se assim o quiser também seguir a fidelidade do meu pensarsentir. Medito em como o próprio transitório pode, em silêncio, revelar-nos, num só vislumbre que seja, a inesgotável permanência... E ocorre-me essa resposta de Higuchi Ichiyo (1872-1896), jovem escritora (e autor clássico das letras japonesas, morta tuberculosa com apenas 24 anos) à pergunta sobre o que a faz mais feliz: Desde logo, não são roupas de brocado. O que me faz feliz é a natureza. Há uma verdade, uma honestidade na natureza que por vezes me traz o sentimento de comunicar com as flores silenciosas e a lua tranquila. Esqueço então completamente o mundo flutuante (ukiyo). É como se dançasse no centro de uma esplêndida flor, a propósito criada para aquele instante. Eis como são os meus momentos de felicidade.


   
Acontece-me recordar palavras de Jesus, ao dar comigo em busca de comunhão e paz: Não quero sacrifício, mas misericórdia. A ideia de sacrifício, aliás, traduz sobretudo, vezes demais, a do pagamento duma obrigação ou dívida para com a divindade, como se cumprir um dever ou uma renúncia fosse, em si e por si, ato sacralizante e sempre meritório, transformador do profano em sagrado. Menos vezes entendemos que a misericórdia não é um ato individual, nem qualquer renúncia à espera de compensação. Misericórdia é partilha de coração, com tristezas e alegrias, vida e afetos, êxitos e fracassos, na comunhão do amor. Isto é, anima-se, vive por todos, com todos e em todos. Ninguém pode amar sozinho. Nem sequer perdoar é solitário, o perdão é sempre recíproco: assim leio a parábola do filho pródigo, em que vejo como o pai, ao perdoar o filho, procura também perdão para si. A misericórdia é, necessariamente, uma relação indissociável. O ofertório maior do sacrifício do próprio Filho de Deus só tem sentido no vínculo indestrutível ao Verbo redentor. No seu sepulcro, Jesus inumou consigo a humanidade inteira, para dali ela surgir nova. Qual flor que desabrocha, a meditação sobre o Santo Sepulcro é também momento de alegria. Faz-me feliz pensar que todos podemos comungar na esperança que só o amor partilhado traz.


   Este Domingo de Páscoa surge-me solar, caloroso, criador. É certo que ninguém assistiu à Ressurreição, apenas alguns poucos viram o túmulo vazio, só Maria Madalena viu e falou com o Mestre que, aliás, primeiro confundiu com um jardineiro... Interpelando este, confessou que buscava o seu Senhor, e é essa procura que veicula e realiza o primeiro encontro. Contudo, não pode tocar-lhe: Jesus já não é uma presença física, torna-se naquele que, em comunhão eucarística, os seus seguidores deverão, ao longo da história, reconhecer e anunciar através da partilha do pão. O "sagrado" cristão viverá pela fraternidade humana: as bem aventuranças são bênção do Cristo glorioso descendo sobre quem der de comer ao faminto, de beber ao sedento, praticar a justiça e construir a paz. O beneficiário dessa solidariedade é o próprio Jesus, que, com cada um de nós, vive no coração do Pai. Na celebração eucarística e comungante da Páscoa, mesmo quando solitária, mais do que muitos, estamos todos unidos na alegria da libertação da morte pela comunhão fraterna. A Boa Nova não veio para nos ensimesmar. Veio para nos anunciar a vida que é essa alegria de nos amarmos uns aos outros. Efetivamente, na busca e construção da justiça e da paz. 


   Assim este teu amigo, Princesa de mim, foi refletindo na celebração confinada desta Páscoa cristã.

 

Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira

FELIZ PÁSCOA!

 

   Páscoa é designação que nos remete para a língua, a história e a cultura religiosa do povo de Judá e Israel ou, melhor dizendo, para a sua libertação e saída do território e do jugo egípcio e sequente passagem à terra prometida. Na versão latina da Vulgata, o pertinente salmo de celebração canta: In exitu Israel de Aegypto / Jacob de populo barbaro / facta est Judea sanctificatio ejus / Israel potestas ejus. Afinal é ao poder santificante de Deus que se deve a libertação. Mas na ação de Deus está implícita a vontade passiva e activa do ser humano, como tão bem ilustra o episódio da luta com Deus (ou de Jacob com o Anjo) relatado no capítulo 32 do Génesis (versículos 23 e seguintes): alguém lutou contra ele até ao alvorecer. Vendo que não conseguia dominá-lo, bateu-lhe na articulação da anca, e a anca de Jacob deslocou-se enquanto lutavam. Disse-lhe: «larga-me, porque já se levantou a aurora». Mas Jacob respondeu: «Não te largarei, sem que me tenhas abençoado». - «Como te chamas?» - «Jacob». Então prosseguiu: «Não mais te chamarão Jacob, mas Israel, porque foste forte contra Deus e contra os homens, e levaste a melhor». Jacob fez-lhe este pedido : «Revela-me o teu nome, por favor». Mas respondeu-lhe o outro: «Porque me perguntas o meu nome?» E ali mesmo o abençoou.


   Seria ele mesmo o inominável, o que respondeu a Moisés dizendo «Eu sou aquele que é» e o mandou dizer aos israelitas que «Eu sou enviou-me até vós»? Aquele que, quiçá até para todos nós - e não só para incréus ou agnósticos - em qualquer momento surge misterioso, interrogação ainda quando se nos afirma e connosco luta, o Quem ou o Quem? que nos defronta em inesperado instante da vida?


   Nesta celebração da Páscoa como festa da Ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo, talvez pelo clima de pandemia, muita incerteza e tanta aflição que a envolve, proponho-me pensarsenti-la como se me investisse daquele Jacob que lutou com a presença não evidente de Deus. Por Jesus, com Jesus e em Jesus, Ele partilha connosco um destino que só pode ser o nosso próprio. Chama-nos ao combate, à luta contra a limitação das nossas fraquezas e vulnerabilidades, resignações e preconceitos. A Páscoa de Cristo é passagem, sim, o nosso passo para a liberdade que nem o tempo, nem espaço algum, por muito confinado, poderá diminuir. 


   Feliz Páscoa!

Camilo Martins de Oliveira

 

CARTAS NOVAS À PRINCESA DE MIM

 

Minha Princesa de mim:

 

   Domingo da Ressurreição do Senhor, e esta segunda-feira de Páscoa, neste confinamento largo pelo privilégio de já viver exilado e isolado no campo, feito anacoreta (ou retirado no deserto) e monge (em grego, monachos significa sozinho), têm sido dias de nova reflexão sobre o Jesus histórico e o Ressuscitado. Até escrevi, em breve mensagem a uma querida amiga, precisamente em Dia de Aleluia: «A Páscoa é sempre - para mim - um passo difícil, na medida em que nos (me) leva a ir do histórico ao cerne da fé... Os únicos testemunhos coevos  que conheço da Ressurreição de Jesus são os constantes de textos neotestamentários. Tenho pensado na escrita de um texto sobre isto, apesar de, provavelmente, poder interessar a muitos poucos».

 

   Mas, Princesa de mim, sem me esquecer da promessa que te fiz de falar sobre Pôncio Pilatos, Tácito e Anatole France, aproveito esta oportunidade para te traduzir o início do artigo Ponce Pilate do Dictionnaire amoureux de Jésus do historiador francês Jean-Christian Petitfils (Paris, Plon, 2015): Penso muitas vezes na extraordinária e sulfurosa fama póstuma desse prefeito da Judeia que condenou Jesus ao suplício da cruz, quando afinal a gente tudo ou quase tudo esqueceu da vida dos poderosos Césares romanos. Todos os domingos, centenas de milhões o mencionam ao recitar o Símbolo dos Apóstolos ou Credo de Niceia-Constantinopla: «Padeceu sob Pôncio Pilatos, foi crucificado, morto e sepultado...»

 

   Sub Pontio Pilato: tal referência nada tem de despicienda. É mesmo essencial para os dados da fé. Significa que a Incarnação não é um mito, um conto de fadas, aquilo, precisamente, que dela dizia o filósofo incréu Paul-Louis Couchoud no seu "Mystère de Jesus" (1924). Pois que, para ele, Jesus não é uma personagem histórica, mas uma figura mítica idealizada, um ser divino paulatinamente elaborado pela consciência cristã. «Admito todo o Credo, escrevia ele a Jean Guitton, menos essa inclusão de sub Pontio Pilato.» A presença intempestiva do prefeito romano num texto cristão incomodava-o. Já que ela é, pelo contrário, uma caução histórica da existência de Jesus.

 

   Apoiando-se nos escritos coevos de cronistas como Flavius Josephus, Fílon de Alexandria  e sobretudo Tácito, os historiadores durante muito tempo consideraram que Pilatos era "procurador" na Judeia. [Na verdade, como se veio a verificar depois, por uma lápide descoberta no teatro romano de Cesareia, o seu título (e sua função ali), no reinado de Tibério, ao tempo de Jesus, era o de "Prefeito", isto é, administrador público exercendo poderes militares e judiciais, sendo nessa sua capacidade que interveio no processo do Nazareno].

 

   Não sabemos bem se a aposição do Titulus damnationis  (razão da condenação), inscrito numa tabuinha de madeira no alto da cruz, era prática corrente. No caso de Jesus, o título INRI (Iesus Nazarenus Rex Iudeorum), terá sido redigido por Pôncio Pilatos. Tal redação consta do Evangelho de João, transcrevendo o que testemunhas oculares observaram. É interessante reproduzir nesta carta para ti, Princesa de mim, um comentário de Jean-Christian Petitfils. Traduzo:

 

   Foi intencionalmente que os sumos-sacerdotes Anás e Caifás denunciaram Jesus como perigosos Nazareno, não enquanto habitante da insignificante aldeia de Nazaré, na baixa Galileia, mas antes como membro do clã davídico que tinha esse nome que assim fazia dele um pretenso Messias político.

 

   Ao interrogar Jesus, Pilatos tinha-se dado perfeitamente conta de que o prisioneiro nada tinha a ver com qualquer chefe de bando com aspirações a uma realeza temporal. Tinha-lhe dito: «O meu reino não é deste mundo». E vira bem como os sumos-sacerdotes o procuravam manipular. Mas, fingindo segui-los, ordenou que o texto fosse inscrito nas três línguas utilizadas na Judeia: em aramaico, língua corrente; em latim, língua oficial do império; e em grego, usado nos meios comerciais e trocas internacionais.

 

   Estigmatizando assim a expectativa messiânica de Israel, Pilatos troçava dos sumo-sacerdotes e dos que haviam tentado obrigar a condenar Jesus. Escreve S. João que «essa tabuleta foi lida por muitos judeus porque o lugar onde crucificaram Jesus era próximo da cidade». Quando perceberam que tinham sido enganados, Anás e Caifás protestaram: «Não devias escrever "Rei dos Judeus" mas que "ele disse que era Rei dos Judeus"». Pilatos logo arrumou a questão: «O que escrevi está escrito».

 

   Petitfils, e outros historiadores nossos contemporâneos deduzem da leitura do texto grego original, em que essa resposta de Pilatos, dita em grego, sofre todavia de latinismo, terá si registada por testemunhas presenciais, entre as quais estava o próprio João Evangelista, que seria membro da alta aristocracia de Jerusalém e assim a teria recolhido da própria boca do Prefeito romano.

 

   Aliás, em muitos passos do seu Evangelho João insiste em referir testemunhos presenciais, muitos deles seus próprios. No relato da Paixão e Morte de Jesus é meticuloso na nomeação das pessoas presentes aos atos sucessivos que vai narrando, bem como no próprio silêncio em redor da Cruz. O texto de João é surpreendentemente magnífico pela sua íntima densidade, oferecida num cenário quase cinematográfico: ao assistirmos a uma cena, simultaneamente vamos descobrindo e pensarsentindo um mistério que apocalipticamente nos penetra. 

 

   Ao lermos o capítulo 19, Princesa de mim, vimos com minúcia o exterior aparente dos atos e dos factos, e podemos imaginar os rostos dos presentes, mas também sentimos o que tantos silêncios nos dizem da perplexidade e do sofrimento anímico das pessoas. É uma reportagem.

 

   Mas o capítulo 20 "apenas" interpela o íntimo dessa gente e de nós mesmos perante a revelação e manifestações posteriores de um facto único, que ninguém presenciou nem podia presenciar: a Ressurreição do mesmo Jesus que víramos morrer e ser sepultado. É um apelo à metanoia.

 

   Pois muitas vezes pensossinto que uma coisa é a nossa compreensão, outra será o poder de Deus. Aliás, este nem sequer poderá bem ser o que por poder entendemos. Tenho para mim, desde a minha mais tenra adolescência, que o poder de Deus não é qualquer faculdade de impor sem interrogar, de obrigar sem consulta.  Antes me soa como um apelo, uma chamada a sair dos meus limites, para ir ao encontro do que não conheço, ou ainda não sei entender. Nesse sentido se abre para mim a religião como espaço e tempo de libertação. Isto que te escrevo agora, Princesa de mim, ocorre-me neste instante como sendo aquilo que tantas vezes te disse quando te falava de me sentir simultaneamente no tempo mensurável e fora dele.

 

   O tal João Evangelista - de que não tenho foto alguma, nem sei ao certo, nem cientificamente, quem foi exatamente - é meu companheiro e irmão, sei que vivo com ele todos os dias. Confio nele porque me diz o que viu e ouviu presencialmente, e assinala o que ouviu dizer e testemunhar. Afinal, todos nós, seres humanos e limitados, somos honestamente assim: até os cientistas vão tendo cada vez mais de considerar o adquirido por quem os antecedeu. O início do capítulo 20 do conto evangélico de João refere: No primeiro dia da semana, Maria Madalena chega cedo ao túmulo, estando ainda escuro. E vê a pedra retirada do túmulo. Então desata a correr e vai ter com Simão Pedro e com o outro discípulo, o que Jesus amava, e diz-lhes: «Levaram o Senhor do túmulo e não sabemos onde o puseram!» Saíram então Pedro e o outro discípulo e foram até ao túmulo. Corriam juntos, e o outro discípulo correu mais depressa do que Pedro e chegou primeiro ao túmulo; e, espreitando, vê depostos os panos. Porém não entrou. Chega então também Simão Pedro, seguindo atrás dele, e vê os panos depostos, e vê que o sudário, que estivera à volta da cabeça dele, não jazia juntamente com os panos, mas dobrado à parte em lugar próprio. Então o outro discípulo, o que chegara primeiro ao túmulo, entrou e viu, e acreditou. Ainda não  tinham entendido o passo da Escritura, segundo o qual ele tinha de ressuscitar dos mortos. Os discípulos voltaram de novo para junto dos seus.

 

   Maria Madalena ficou de pé a chorar no exterior do túmulo. Enquanto chorava, espreitou para dentro do túmulo e viu dois anjos sentados, vestidos de branco, um à cabeça, outro aos pés, no sítio onde jazera o corpo de Jesus. E eles dizem-lhe: «Mulher, porque choras?» Ela diz-lhes: «Porque levaram o meu Senhor, e não sei onde o puseram». Enquanto ela dizia isto, voltou-se para trás e vê Jesus de pé, e não sabia que era Jesus. Jesus diz-lhe: «Mulher, porque choras? Quem procuras?» Ela, pensando que era o jardineiro, diz-lhe: «Senhor, se o levaste, diz-me onde o puseste e eu levo-o.» Diz-lhe Jesus : «Maria!» Ela, voltando-se, diz-lhe em hebraico: «Rabbouni!» (o que quer dizer Mestre). Jesus diz-lhe: «Não me toques. Ainda não ascendi para o Pai. Vai para junto dos meus irmão e diz-lhes: "Subo para meu Pai e vosso, Deus meu e Deus  vosso.»

 

   A cena do "Noli me tangere" encontra-se largamente representada na iconografia cristã. A tradução literal da expressão latina da Vulgata será "Não queiras tocar-me". O corpo de Jesus ressuscitado é já um corpo glorioso, isto é, incorruptível, intocável. Não é como o de Lázaro  -  que Jesus tirara do reino dos mortos para devolver à vida terrena - um corpo restituído à animação da sua própria carne, como que apenas arrancado à dormição em que se encontrara. O Corpo de Cristo está já noutro mundo, onde nem sequer os seus discípulos poderão ir agora, e no mundo presente é o Corpo Místico que formam, na Eucaristia comum, aqueles que acreditam e se reconhecem pelo amor fraterno. Por isso mesmo se celebra, na Eucaristia, o Mistério da Fé como anúncio da morte, proclamação da ressurreição e esperança no regresso do Senhor Jesus, na hora em que todos seremos glorificados com ele.

 

   Mas não deixa de ser curioso que, no mesmo capítulo 20 de João, a seguir ao relato do "Noli me tangere!" e do anúncio feito por Maria Madalena, bem como da presença inesperada de Jesus que surge no meio dos seus discípulos reunidos numa casa totalmente fechada (pois tinham medo dos judeus), atravessando barreiras físicas e apresentando o seu corpo glorioso, seja também narrado o episódio da permissão dada a Tomé, uma semana depois, de tocar as feridas visíveis no mesmo corpo, para que, assim confirmando a sua realidade, acredite que é o corpo ressuscitado que tanto padecera... «Meu Senhor e meu Deus!» - exclama o desconfiado discípulo. «Porque me visteacreditasteBem aventurados os que não viram e acreditaram».

 

   Tal como quem não experimentou ainda a sua morte, não sabe o que esta é e apenas pode sofrer com a de outros, assim também quem ainda não ressuscitou terá de se contentar com acreditar na Ressurreição e esperar a sua. O próprio Tomé, mesmo depois de ter visto e tocado, terá tido que acreditar. A divina misericórdia interroga a nossa esperança.

 

Camilo Maria


Camilo Martins de Oliveira

CARTAS DERRADEIRAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA - VII

 

Minha Princesa de mim:

 

   Não há testemunhas presenciais do levantamento de Jesus Cristo do chão dos mortos. Não há relatos, reportagens, desse momento fundamental, fundador, da fé cristã. As narrativas existentes do sucesso, ou acontecimento, dessa Ressurreição apenas nos contam a descoberta do sepulcro vazio. O capítulo XVI do Evangelho de Marcos - que a seguir te transcrevo na tradução de Frederico Lourenço - é curta, incisiva, interrogadora, quiçá cheia de uma verdade que, todavia, para a condição humana do leitor, poderá não ser assim tão evidente:

 

   Passado o sábado, Maria Madalena, Maria, mãe de Tiago, e Salomé compraram perfumes para irem embalsamá-lo. E muito cedo de manhã, no primeiro dia da semana, elas vão até ao sepulcro tendo já nascido o sol.

 

   E diziam entre si: «Quem rolará para nós a pedra da entrada do sepulcro?» E tendo olhado à sua volta, veem que a pedra tinha sido rolada para o lado; e era muito grande. E entrando elas no sepulcro, viram um jovem sentado à direita, vestido com uma túnica branca, e ficaram apavoradas.

 

   Ele diz-lhes: «Não vos assusteis. É Jesus, o Nazareno, que procurais, o crucificado? Ressuscitou. Não está aqui. Vede o lugar onde o depuseram. Mas ide e dizei aos seus discípulos e a Pedro: "Ele vai à vossa frente, a caminho da Galileia; lá o vereis, tal como ele vos disse.»

 

   E elas, saindo, fugiram do sepulcro, pois dominava-as um tremor e um êxtase. E nada disseram a ninguém: tinham medo, pois.

  

   Assim termina uma das quatro narrativas canónicas da Boa Nova de Jesus Cristo, esta sendo, provavelmente, a mais antiga. Como se fossem todos saduceus ou, noutra hipótese, considerassem que a ressurreição dos mortos fosse algo só imaginável no após fim do mundo, do tempo e do espaço, quando rebentassem inúmeras catástrofes. Tinham medo dos fantasmas, como todos nós, nas nossas culturas, ao longo de milénios... Qualquer contacto com os espíritos dos mortos seria necessariamente obra do maligno, ou como descer aos infernos, ao Hades donde nem Orfeu logrou tirar Eurídice, mas apenas o castigo que o levou a quedar-se explodido na abóboda estelar...

 

   Já o mais tardio dos evangelhos, o de João, no seu penúltimo capítulo (o XX), reportando embora o túmulo vazio e a ausência imediata de Jesus, conta que Maria Madalena desatou a correr e foi ter com Pedro e o discípulo que Jesus amava: «Levaram o Senhor do túmulo e não sabemos onde o puseram!» Ambos então acorreram ao local, entraram no túmulo e encontraram e viram que os panos que envolviam o corpo estavam depostos, e o sudário que estivera à volta da cabeça dele não jazia juntamente com os panos, mas dobrado à parte em lugar próprio. Então, o outro discípulo, que chegara primeiro ao túmulo, entrou e viu e acreditou. Ainda não conheciam o trecho da Escritura, segundo o qual ele tinha de ressuscitar dos mortos. Os discípulos voltaram de novo para junto dos seus. E o Evangelho segundo S. João prossegue o relato da cena que nos deixa adivinhar o mistério da Ressurreição e nos põe a interroga-lo. Não só sobre o que será ou possa ser ressurgir dos mortos, mas, desde logo, sobre os modos como nos poderemos relacionar com essa eventualidade anunciada. Todos e qualquer de nós, mesmo quem tenha ou creia ter fé. Os textos de João Evangelista que seguidamente transcrevo (sempre na versão de Frederico Lourenço) são bem elucidativos do paradoxo da fé:

 

   Maria Madalena ficou de pé a chorar no exterior do túmulo. Enquanto chorava, espreitou para dentro do túmulo e viu dois anjos sentados, vestidos de branco, um à cabeça, outro aos pés, no sítio onde jazera o corpo de Jesus. E eles dizem-lhe: «Mulher, porque choras?» Ela diz-lhes: «Porque levaram o meu Senhor e não sei onde o puseram. Enquanto ela dizia isto, voltou-se para trás e viu Jesus e pé e não sabia que era Jesus. Jesus diz-lhe: «Mulher, porque choras? Quem procuras?» Ela, pensando que ele é o jardineiro, diz-lhe: «Senhor, se o levaste, diz-me onde o puseste e eu levo-o.» Diz-lhe Jesus: «Maria!» Ela, voltando-se, diz-lhe em hebraico: «Rabounî!» (o que quer dizer Mestre). Jesus diz-lhe: «Não me toques. Ainda não ascendi para o Pai. Vai para junto dos meus irmãos e diz-lhes: "Subo para meu Pai e vosso, Deus meu e Deus vosso".» Chega Maria Madalena anunciando aos discípulos que «vi o Senhor!» e as coisas que ele lhe disse.

 

   Antes de passar ao trecho seguinte - para voltarmos aos diferentes modos da fé - deixa-me, Princesa de mim, fazer sobre este um comentário linguístico e trazer-te uma recordação pictórica. O primeiro manifesta a minha maior simpatia por outra tradução da expressão grega "mé mo hapto": não me retenhas! Em vez de não me toques, como na latina da Vulgata, por que é sobejamente conhecida, noli me tangere. Dir-te-ei porquê, ao comentar duas representações da mesma cena: a de Hans Holbein Júnior e a de Lavínia Fontana, uma hoje presente na galeria real de Hampton Court, perto de Londres, onde a visitei com os meus netos, outra nos Uffizi de Florença, que também contemplei em tempos mais meus... À primeira, curiosamente e sem machismo algum, chamam-lhe Noli me tangere; à segunda, pintada por uma mulher, chamam Aparição de Cristo Ressuscitado a Maria Madalena...


   Jean-Luc Nancy, filósofo, escreve no seu Noli Me Tangere (Paris, Bayard, 2003): Na maioria das suas representações pictóricas, Noli me tangere dá azo a notáveis jogos de mãos: aproximação e designação do outro, arabesco de dedos afinados, prece e bênção, esboço de um toque, de um afago, indicação de prudência ou de um aviso. Todas essas mãos desenham uma promessa tenção ou retenção, de se ligarem uma às outras: na verdade, estão, muitas vezes, não só bem no centro do desenho, mas como se fossem o próprio desenho, como as mãos do pintor que diligencia e manipula o desligar dos seus dedos e das suas palmas...   ... Na verdade, essas mãos são signos e sinais da intriga de uma chegada (a de Madalena) e de uma partida (a de Jesus), mãos prontas a juntarem-se, mas já disjuntas, e tão distantes quanto a sombra da luz, mãos que trocam saudações mescladas de desejos, mãos que apontam os corpos tanto quanto designam o céu...

 

   No quadro de Holbein o Jovem, Jesus e Maria estão ambos de pé, mas ela, segurando o vaso de bálsamo com a mão esquerda, inclina-se para a frente, estendendo a direita, como para tocar em Jesus e certificar-se de que ali está mesmo o seu Mestre. Este, pelo contrário, inclina-se para trás, frustrando-se à mão que o procura, e atirando para a frente os seus dois braços, como que a mandá-la parar.

 

   Na pintura de Lavínia Fontana, também do século XVI, Jesus, vestido de jardineiro, com chapéu de palha na cabeça e uma pá ou sacho na mão esquerda, estende a direita sobre a cabeça de Madalena ajoelhada a seus pés, de braços abertos e vaso perfumador na sua mão esquerda, enquanto a direita revela uma íntima ação de graças, como se o gesto suspenso do Mestre, que não lhe toca, fosse simultaneamente uma bênção de despedida e uma promessa.

 

   Apesar das suas muitas diferenças, ambas estas representações ilustram a mesma narrativa evangélica, são a sua reportagem pictórica. Comumente, Cristo Ressuscitado é mais representado vestido de luminoso tecido branco e segurando na mão esquerda um estandarte, de semelhante alvura, sobre a qual surge uma cruz vermelha, e por vezes parece lança espetada sobre o túmulo da própria morte, pois só esta agora ali se encontra, como celebração do triunfo do Ressuscitado. Nestas duas que temos vindo a ver, apenas se conta um episódio, não há qualquer retrato de um corpo ressuscitado. A este sói chamar-se corpo glorioso, quiçá para o diferenciar dos fantasmas imaginários que tanto assombramento causam. Talvez para vencer o medo que o desconhecido sempre nos mete cá dentro. Seja o que for, se até deste mundo sabemos muito pouco, apesar de o situarmos no espaço/tempo que nos permita entendê-lo, que poderemos dizer do outro, infinito e intemporal? Assim, a glória, tal como suas derivadas verbalizações e adjetivações, são apenas conceitos que criamos, neste caso, para designar o indesignável: a realidade (que não é condicionada) da imortalidade, e o seu lugar (que ou é nenhures ou omnipresente).

 

   A fé na Ressurreição não é, pois, não pode ser, o conhecimento, nem sequer a imaginação, de algo palpável. Cristo ressuscitado já não pode continuar entre nós em condição humana, pois esta é periclitante e terminal. Muitos gostaríamos de poder retê-lo e tocar-lhe. Mas, desde o início do seu ensino, Jesus diz-nos que terá de padecer, morrer e ressuscitar para voltar para o Pai. E, em troca da sua ausência necessária, deixa-nos a memória de si e o Espírito de Vida. Deus não está connosco como se o Transcendente pudesse existir submetido à condição humana. Veio uma vez e revolucionou a nossa vida, em sentido próprio: deu-lhe a volta completa para nos pôr, a nós, outra vez, no início do mundo. Agora já como seu Corpo Místico, celebrado na ação de graças que é a Eucaristia, mas vivificado pelo Espírito Paráclito que anima o sacramento cristão por excelência: amai-vos uns aos outros.

 

   O mesmíssimo capítulo XX do Evangelho de João conta-nos, depois da narrativa da Madalena que, sem sequer ter podido tocar o Senhor, o reconheceu e foi, correndo, contar aos discípulos fechados em medos que o tinha visto, a visita que Cristo Ressuscitado lhes faz, ali onde, temerosos, se tinham trancado: «Paz para vós». E dizendo-lhes isto, mostrou-lhes as mãos e o flanco. Então, os discípulos alegraram-se ao verem o Senhor...   ... Mas Tomé, um dos doze, não estava com eles quando Jesus veio. Os outros discípulos diziam-lhe: «Vimos o Senhor!» Mas ele disse-lhes: «A não ser que veja nas mãos dele a marca dos pregos e ponha o meu dedo na marca dos pregos e ponha a minha mão dentro do flanco dele, não acreditarei». E oito dias depois, os discípulos estavam de novo dentro, e Tomé estava com eles. Chega Jesus, estando trancadas as portas, e pôs-se de pé a meio e disse: «Paz para vós.» Depois diz a Tomé: «Aproxima o teu dedo daqui e vê as minhas mãos e aproxima a tua mão e põe-na no meu flanco e não te tornes descrente mas sim crente.» Tomé respondeu e disse-lhe: «Meu Senhor e meu Deus.» Diz-lhe Jesus: «Porque me viste, acreditaste? Bem aventurados os que não viram e acreditaram».

 

   Caravaggio, na sua Incredulidade de São Tomé (1600-1)que vi no Neues Palais, em Potsdam, pinta com intenso realismo físico o dedo do apóstolo a meter-se no lado lancetado do Mestre, cuja mão esquerda lhe segura e empurra a direita para que toque bem a ferida. Há uma força voluntarista e serena no rosto atento de Jesus, enquanto Tomé parece atónito e confuso, e outros dois apóstolos (Pedro e João?) se debruçam como quem quer certificar-se. Não surge sangue algum, um corpo ressuscitado já está livre de qualquer sinal ou atributo de vida carnal. E qualquer certeza física da Ressurreição parece aqui deslocada, quase absurda. Pertence já ao domínio da simples fé, substância das coisas que hão de vir.

 

   Outra tela do Caravaggio, coeva desta (1601), oferece-nos, na National Gallery, em Londres, A Ceia de Emaús, um conto neotestamentário que resume bem a herança que Jesus Cristo deixa depois de morto e ressuscitado. Sentado à mesa já composta para a ceia, o Senhor é figura central, cujo braço direito se ergue sobre os alimentos presentes, em que se reconhecem o pão e o vinho eucarísticos, num gesto de bênção e oferta. À sua esquerda senta-se um discípulo (Pedro?) que, com os braços abertos em cruz, se debruça como quem abraça o gesto do Mestre. Diante deste senta-se outro discípulo que, segurando-se com força ao seu assento, fita o mesmo gesto com o maravilhamento de quem assiste a uma revelação. De pé, quase por detrás de Jesus, o estalajadeiro, com semblante muito sério, contempla e escuta os gestos e palavras do celebrante, interrogando-se, talvez, sobre o que se está na realidade passando.

 

   E em 2019, por chuvosa semana de Páscoa a tornar mais verdejantes os campos largos que avisto, também eu, minha Princesa de mim, continuo a contemplar e interrogar um mistério, na esperança de que certo dia me seja desvendado.

 

Camilo Maria    

  
Camilo Martins de Oliveira

A VIDA DOS LIVROS

 

De 12 a 18 de março de 2018.

 

A Sinfonia nº 2 de Gustav Mahler, que o autor designou como “Ressurreição”, constitui uma obra-prima da história da música de todos os tempos.

 

 

MOTIVO DE MEDITAÇÃO
Neste tempo de Quaresma, ouvir a Sinfonia nº 2 de Mahler (1860-1911), à qual o autor daria o título de “Ressurreição”, constitui motivo de intensa meditação (Coro e Orquestra Gulbenkian, Maestro David Afkhan). Estamos no centro do Mistério Cristão e o grande compositor fez questão de pôr nesta sua obra o essencial do caminho que o levaria à conversão (1897). Sendo certo que a estreia é de 1895 em Berlim, a verdade é que a versão final é de 1903 – abrangendo o resultado da evolução pessoal. De facto, a ideia nasceu quando Gustav Mahler ainda estava a escrever a primeira sinfonia, no final dos anos oitenta, sentindo necessidade de dar uma identidade própria aos temas que agora se encontram, numa das obras-primas da música de sempre. Pode dizer-se, aliás, que esta segunda sinfonia acompanha o caminho espiritual do seu autor, verificando-se que no início se nota angústia e sofrimento, que vão evoluindo gradualmente no sentido de uma espiritualidade libertadora. Eduardo Lourenço dirá: “Mahler começa a grande oração da nossa Ausência que é ao mesmo tempo a de uma Busca como esta que desenrola os seus desertos e as suas reversíveis imagens neste mar de música em alma sem orla imaginável” (Tempo da Música, Música do Tempo, Gradiva, 2012, p. 54). E este dilema desenvolve-se numa procura determinante. Na parte final, a soprano diz-nos: “Ah, crê: não nasceste em vão / Não foi em vão que viveste, sofreste”. Ao que coro e contralto respondem: “O que foi criado tem de perecer! / O que pereceu ressuscitará! / Para de tremer! / Prepara-te para viver!”. E assim o compositor antecipa o momento final, em que, depois das naturais dúvidas, inerentes à própria natureza da fé, o coro proclama triunfalmente: “Com asas, que para mim ganhei, / Desaparecerei! / Morrerei para poder viver!”. Aqui estamos no momento crucial do próprio percurso individual do autor, que se implica diretamente na consideração da obra como uma ilustração do percurso existencial. “Ressuscitarás, sim, ressuscitarás, / Meu coração, num instante! / Aquilo por que lutaste / A Deus te levará!”.

 

DA DÚVIDA À ESPERANÇA
O começo da Sinfonia nº 2, segundo o próprio Mahler tem a ver com a meditação exasperada sobre a condição mortal da humanidade. Eis por que encontramos pontos de contacto com a terceira sinfonia de Beethoven (“Eroica”) – uma marcha fúnebre contrasta com a perspetiva lírica. Com um extremo cuidado técnico, graças a um complexo e hábil recurso a dissonâncias harmónicas, encontramos a coexistência do sofrimento e da esperança… Depois, temos uma inocente e nostálgica visão do passado individual do herói – e a alegria vai contrastando com a ideia de morte. Um ambiente campestre e idílico evolui no sentido de uma visão incerta e perplexa sobre a vida De que valerá algo que está condenado a desaparecer e é estéril? E G. Mahler recorre a material relacionado com a canção do “Sermão de Santo António aos Peixes” (1893) – para salientar como o santo, perante a indiferença e a incapacidade de as pessoas ouvirem o que quer que fosse, se dispõe a falar aos peixes (“O bom Deus enviar-me-á uma pequena luz”…). Lembramo-nos deste tema, bastamente glosado pelo Padre António Vieira. E assim chegamos ao quarto andamento, em que o compositor insiste no desejo de libertação dos dramas humanos em direção à transcendência. À complexidade anterior sucede uma maior simplicidade (enquanto clareza na expressão) que, no entanto, é produzida por uma orquestração muito cuidada, apenas possível graças à grande capacidade inovadora de se autor. Dir-se-ia que estamos perante uma autêntica depuração espiritual, em que o sofrimento e a angústia iniciais dão lugar a uma paz de espírito, que não deixa de conter no seu íntimo toda a diversidade de um sentimento pleno de tensões contraditórias. É por isso que a Sinfonia nº 2 de Mahler tem hoje tanto sucesso (que no início não foi claro) – de facto, há na mesma obra não apenas a presença da personalidade complexa e riquíssima em termos espirituais de Mahler, mas também a capacidade revelada por um artista genial, capaz de usar uma panóplia inesgotável de meios artísticos ao serviço de uma forte emancipação humana. E assim no final da sinfonia temos a recapitulação do caminho percorrido: o ambiente fúnebre do começo, o tema “Dies Irae”, que corresponde à consciência da pequenez e da imperfeição, a que sucede a marcha orquestral que ilustra a procissão para o “Juízo Final”, até que soa a última trombeta do Apocalipse. E assim dá-se início à cantata sinfónica final, já aqui referenciada – com o poema “Ressurreição” de Friedrich G. Klopstock (1724-1803), grande poeta anunciador do romantismo – num extraordinário crescendo que representa a afirmação do autêntico júbilo, assumido como força vital pelo compositor, num momento crucial da sua vida atribulada, em nome de uma esperança forte e renovadora.     

 

Guilherme d'Oliveira Martins
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