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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

A PALAVRA DE JOÃO BÉNARD DA COSTA

 

MALINCONIA LUSITANA

 

1. Agora que Franco Maria Ricci se aproximou de Portugal, a revista que há poucos meses deixou de ser dele (embora dele conserve as iniciais efémeras) dedicou, pela primeira vez, um artigo a uma obra de arte alegadamente portuguesa. Para mim, ver os Painéis, ditos de Nuno Gonçalves, nas páginas da minha revista de arte de cabeceira (eu sei que há quem a odeie) espicaçou-me muito mais a luso "auto-estima", do que os nossos feitos no Euro, a escolha de Durão Barroso para a Comissão Europeia ou os discursos presidenciais. Mas não façam muito caso. Eu não sou exemplo para ninguém, a não ser para mim, o que além de egocêntrico é tautológico. Devo algumas explicações preliminares? É bem certo que as devo. Como recordei em crónica já velhinha ("Do Infeliz Machado à Décima Segunda Noite", PÚBLICO, 2 de janeiro de 2004), Franco Maria Ricci, esse tal que fez jogo homófono com Ephemeris (leiam em voz alta, e obtêm FMR, iniciais dele e título da revista) entrou em acordo com a Bertrand de Zita Seabra e editou, no Natal de vai fazer um ano, O Presépio Barroco Português, livro magnifico sobretudo dedicado a Machado de Castro. Ao que li algures, prepara-se para reincidir em co-edições portuguesas e, se não estou em erro, com o célebre Atlas de D. Manuel, que a Bertrand irá lançar sob os seus auspícios.

 

Enquanto isto, e enquanto se dedica a uma fabulosa série de livros sobre as coleções do Vaticano (já saíram dois, mas ainda faltam dez) abandonou a revista que fundara em 1982 e entregou-a a Marilena Ferrari. Mudou o formato (agora mais alto e, sobretudo, mais largo) e mudou a numeração. O número publicado em abril-maio de 2004 foi o último número algarismado à árabe (nº163). A partir de junho-julho de 2004, o numeral passou a cursivo. Uno, due, tre. Reminiscência da Revolução Francesa, nova era? Felizmente, nada disso. Como logo explicou a nova diretora no seu primeiro editorial, a mudança fez-se sob a sábia égide do Príncipe de Salina: se tudo muda é para que tudo fique na mesma. Aliás "tudo" é um exagero dela. O herói de Lampedusa e de Visconti nunca disse tal coisa, mas limitou-se advogar a mudança de algumas coisas para assegurar a permanência. Para lá do formato e da numeração, ainda não dei por transformações capitais. Ela lá terá as suas razões para chamar ao Príncipe de Salina "maestro de transizione". A principal mudança de que me dei conta foi mesmo essa a que me referi no inicio e que levou a que o "numero tre", que tem na capa um "mascherone" da decoração escultórica da base do sepulcro de D. Pedro de Toledo, vice-rei de Nápoles de 1532 a 1553, consagre um artigo ao famigeradíssimo políptico do Museu de Arte Antiga. É certo que já em tempos tinha havido um precioso texto (com preciosas reproduções) sobre os marfins indo-portugueses.

 

Mas a pintura portuguesa - se acaso o foi e lá chegarei - nunca havia tido tais honras. E serão coisas minhas - serão certamente - mas alguns pormenores das gloriosas reproduções (fotografias do português José Pessoa) pareceram-me "mieux que nature", eventualmente tocadas pela graça da vizinhança com o sepulcro do pai de Eleanora de Toledo, essa Eleanora de Bronzino, de mim e de pouca gente mais.

 

2. Chegou a altura de ordenar estas orgias, como diria Dolmancé. O artigo, com o mesmo título desta crónica, é do francês Yves Hersant, director de estudos da École de Hautes Études en Sciences Sociales, de Paris. Malinconia Lusitana é bem achado. Já Cioran dizia que, "de um modo geral, se podem distinguir na Europa três formas de tristeza: a russa, a portuguesa e a húngara". E se ele tem razão, raras vezes essa tristeza (ou essa malinconia", o que não é a mesma coisa mas anda lá perto) foi tão bem expressa como pelo autor dos Painéis. É mesmo essa a principal razão que me leva a acreditar que eles foram mesmo pintados por um português, sensivelmente contemporâneo daquele que inventou o "nunca tão tristes vistes / outros nenhuns por ninguém". Já estou a arranjar lenha para me queimar, ou para ficar mais apainelado.

 

Tocar nos Painéis, desde que foram descobertos em 1882, no convento de São Vicente de Fora, em Lisboa, ou, pelo menos, desde que José de Figueiredo, em 1910, escreveu um livro sobre eles, nunca deu saúde a ninguém e arruinou muitas reputações. Num caso até, levou ao suicídio um historiador incauto, que ficou tão triunfante quando julgou ter descoberto um manuscrito que lhe confirmava as teses, que nem sequer reparou que o dito era uma grosseira falsificação, armadilha de rivais que, conhecendo-o, sabiam que ele ia morder o isco. Quando a história se descobriu, impotente para provar a boa fé, preferiu meter uma bala na cabeça a viver o resto dos seus dias com a fama de troca-tintas. Era nos anos 20, quando a honra ainda tinha valor. Não sei se Yves Hersant sabia desta e doutras histórias (a última tocou de perto o filho de uma amiga minha). Mas a verdade é que decidiu ser muito cauto. Para entrar na "guerra" (guerra dos cem anos, sem nenhuma Joana d'Arc) adotou duas posições.

 

Primeira posição: o leitor não é português, o nome de Nuno Gonçalves não lhe diz coisíssima nenhuma e visita pela primeira vez o Museu das Janelas Verdes. Só há, para esse visitante, uma conclusão possível: "o políptico é uma das mais complexas figurações herdadas do Renascimento. Seguem-se ditirambos e algumas observações pertinentes. Relevo a que o faz evocar Alberti e o tratado De Pictura, publicado alguns anos antes da composição do retábulo (a acreditar que este foi pintado entre 1446-48). Hersant recorda-nos que Alberti defendeu, como primeira finalidade da pintura, "dar presenças aos ausentes", ou "fazer ressurgir os mortos aos olhos dos vivos". Além disso, deve despertar-nos os afetos, mostrar ações que nos comovam ou que nos aprazentem, contar uma historia. Hersant vê bem quando diz: "Perante os painéis de Lisboa, a historia escapa-nos. Provocam, certamente, emoções, já que, em termos albertianos, os homens que foram pintados manifestam intensamente o movimento próprio das suas almas. Talvez nos façam sentir com intensidade a presença dos ausentes, de tal modo o pintor observou escrupulosamente a natureza. Mas o essencial, ou o que Alberti tinha por essencial, não está lá, nega-se com obstinação". Aqui chegado (bem chegado, a meu ver) muda de posição. 

 

Segunda posição: o leitor (ou o espectador) é português. Sendo-o, sorrirá desdenhosamente do acima transcrito. Não é historia o que falta aos Painéis. Pelo contrário, sobra-lhes história, o excesso de histórias acerca deles. Já nos explicaram tudo e o contrario de tudo; já nos deram dois Nunos Gonçalves; já nos juraram que não houve Nuno Gonçalves nenhum; já nos traçaram histórias diversíssimas; já nos juraram que o santo é S. Vicente ou é o Infante Santo, ou é outro, ou é mesmo outra; já os expuseram como dois trípticos ou em disposição políptica; para muitos, falta um sétimo quadro (painel central); para outros faltam quatro, senão mesmo nove. Já ouvimos dizer que foram pintados antes de 1440 e cerca de 1460. Contra as teses "vicentinas" e "fernandistas", já houve a acutilante proposta de Vitorino Magalhães Godinho (1959) segundo o qual os Painéis representariam a passagem de poder do Infante D. Pedro (regente do reino) ao jovem rei D. Afonso V, em 1446. Mas também já se chamou à hipótese Godinho, hipótese marxista encapotada, tornando o suposto ou real Nuno Gonçalves num Fernão Lopes da pintura, cronista da burguesia contra os senhores feudais. Após se auto-flagelar com as hipotéticas reações portuguesas, Hersant põe-se numa terceira posição. Façam como eu. Ou "sejam como eu". "Suficientemente estrangeiro para que qualquer das ideologias nacionais não possa prevalecer sobre a análise estética; mas suficientemente português para que Gonçalves me atinja no mais profundo de mim próprio". Tanto se lhe dá como se lhe faz que um dado personagem seja X ou outro Y. O que lhe interessa, o que o comove, é que no Políptico (se for Políptico) "emerge uma consciência (...) consciência impossível na Idade Média". O Políptico é uma maravilha "porque interroga ao mesmo tempo a identidade individual e a identidade de uma nação". Cada figura está separada de todas as outras "por uma impercetível película", "mas, ao mesmo tempo, "no espaço conceptual concebido pelo pintor, cada um não é mais do que elemento de um corpo social que, a um nível superior, também toma consciência". 

 

Daí vai desaguar num texto antigo doutro francês (René Huyghe) e por um afluente na "malinconia lusitana". Como alguns terão adivinhado, chega a mau porto, com a sacrossanta invocação da "intraduzível saudade".

 

3. Fica-me pouco espaço e pouco tempo para desordenar a orgia, o que não é propriamente um mal. Quanto a mim - para me colocar na terceira posição de Hersant - ainda nada nem ninguém me convenceu tanto como Jorge de Sena, num luminoso ensaio de 1963, publicado em São Paulo, na Revista de História. Sabendo perfeitamente que ousava muito, Jorge de Sena limitou-se a dizer que só sabemos que não sabemos nada. Desmonta a autoria de Nuno Gonçalves e combate o "crime" (a palavra é dele) de retirar os Painéis à arte portuguesa. E conclui "O centro deles sempre estará na Flandres sem que, por isso, os painéis deixem de ser da melhor pintura do século XV, nem deixem de ser tesouros artísticos, iconograficamente portugueses, que Portugal possui". Passaram-se mais de 40 anos sobre este artigo e nunca o vi convincentemente refutado. Mas, folheando as páginas da FMR, basta-me a mesma certeza que Sena tinha. E Sena sabia, como eu sei, que ao falar-se da "melhor pintura do século XV" se está a falar de Van Eyck e de Van der Weyden, de Uccello e de Antonello. Basta ou não basta?


por João Bénard da Costa
26 de novembro 2004, Público

A VIDA DOS LIVROS

 

De 13 a 19 de março de 2017.

 

«Panorama, Revista Portuguesa de Arte e Turismo» nasceu em 1941, por iniciativa de António Ferro, tendo publicado quatro séries até 1973, dentro da preocupação de promover, interna e externamente, Portugal como destino turístico.

 

 

UMA REVISTA NOVA
Quando hoje voltamos a folhear a revista «Panorama» fica-nos uma dupla sensação – a da grande qualidade gráfica e a da presença de um conjunto de artistas com reconhecimento geral, sobretudo quando nos reportamos à fase inicial, em que António Ferro tem uma significativa margem de manobra na capacidade de atrair os melhores artistas do momento. As ilustrações de Bernardo Marques, Emmérico Nunes, Ofélia Marques, Paulo Ferreira, Manuel Lapa, Eduardo Anahory ou Júlio Gil marcam a identidade da revista. Para Ferro, seria importante apostar na vertente das artes. E diz: «Enganam-se os homens de ação (…) que desprezam ou esquecem as belas-artes e a literatura, atribuindo-lhes uma função meramente decorativa (…). A política do Espírito (Paul Valéry acaba de fazer uma conferência com o mesmo título) não é apenas necessária, se bem que indispensável em tal aspeto, ao prestígio exterior da nação: é também necessária ao seu prestígio interior, à sua razão de existir». Não por acaso, o Secretário da Propaganda Nacional vai buscar um título muito prestigiado para a nova revista – nem mais nem menos do que o do órgão da Sociedade Propagadora de Conhecimentos Úteis, que fora dirigida por Alexandre Herculano a partir de 1837, contando com a participação das principais figuras culturais portuguesas da época, como António Feliciano de Castilho, Oliveira Marreca, Camilo Castelo Branco... Lembremo-nos que a revista romântica apresentava um mote «positivo, otimista, apaziguador, apelando ao entendimento entre todos os liberais» - não tendo entrada os assuntos políticos… Agora os tempos eram outros e o conteúdo cultural e científico da velha revista não seria replicado no novo órgão de comunicação. No entanto, a qualidade gráfica tornar-se-ia a marca que compensaria um conteúdo essencialmente de divulgação, sobretudo centrado em iniciativas oficiais ou próximas, apesar de algumas colaborações serem assinadas por especialistas de prestígio, como Reynaldo dos Santos, João Couto, Diogo de Macedo ou Reis Santos. Contudo, António Ferro é, sem dúvida, quem marca a revista nas suas origens e na sua missão, nitidamente orientadas por objetivos de divulgação e propaganda, com um sentido de favorecimento económico – compreendendo a importância crescente do turismo no mundo – e de promoção do regime político. Os sucessores de Ferro seriam, aliás, essencialmente continuadores do projeto, sem carácter inovador. Referimo-nos a António Eça de Queiroz, José Manuel da Costa, Eduardo Brazão, César Moreira Baptista e Pedro Feytor Pinto.

 

UMA LÓGICA PREMONITÓRIA
Quando hoje regressamos à memória histórica da revista, temos de compreender a sua natureza e o facto de o seu fundador ter entendido a importância da ligação entre o turismo e a cultura. Essa compreensão conduz, naturalmente, a que seja a fase inicial a mais interessante da vida da revista, uma vez que estamos perante a sua natureza precursora e o ativismo do seu fundador. Como afirma Reis Torgal, A. Ferro é, sem sombra de dúvidas, um «intelectual do Estado Novo», como o foram D’Annunzio, Marinetti ou Gentile em Itália, supondo esse conceito «um certo nível de produção e intervenção cultural e uma problematização de conceitos, servidos por uma boa leitura, mais ou menos complexa ou simples, de obras e de autores, de estéticas, de sociedades, de políticas e de religiões». E é esse perfil que nos permite hoje debruçarmo-nos sobre a originalidade e a importância do seu papel, fora de juízos de valor ideológicos, que pecariam sempre por anacrónicos. E que visa o ativismo de António Ferro? Valorizar o que os portugueses tinham para dar. E o seu percurso pessoal e intelectual não permite fechar-se numa lógica provinciana. Dir-se-ia que há um culto paradoxal da lógica nacionalista – já que, defendendo-a, não esquece o cosmopolitismo que os modernistas representam. Essa coexistência de fatores diferentes nota-se na revista «Panorama», em que a estética moderna vive paredes meias com a tradição e a lógica conservadora. O folclore, a aldeia mais portuguesa de Portugal, a simbologia popular não deixam de ser cultivados com as audácias de quem não esquecia a participação na aventura de «Orpheu».

 

O JORNALISTA DE OUTRORA…
O jornalista de outrora não esquecia o que dissera um dia nas termas de Vidago, sobre quem jamais conseguiria divertir-se, levando consigo uma «apagada e vil tristeza» «em que a raça se afunda, que dá a Portugal uma atitude sonâmbula, mediúnica, que espectraliza os seres em árvores, que dá às árvores uma expressão humana». Do mesmo modo, não esquecia a «povoação abandonada, suja, uma terra maldita, uma terra de farrapos, de gatos lazarentos, de mendigos torpes, de crianças que são chagas», a propósito de Moledo do Minho… Como poderia haver turismo nessa vil tristeza, nesse abandono ou entre tais farrapos? Mas também lembrava o que dissera de José de Almada Negreiros quando o apresentou no dia em que leu em público a genial «Invenção do dia claro»: «Imaginário quer dizer, para mim, um profissional do Sonho, aquele que desenha imagens no papel, Ingres da Alma»… E não dissera de Mário de Sá-Carneiro: «quando aqueles que se esquecem dele estiverem todos esquecidos, Mário de Sá-Carneiro será lembrado»? Afinal, tal como os seus companheiros de «Orpheu» tinham desejado culturalmente, haveria que abrir portas ao Imaginário. Se virmos o pensamento de António Ferro sobre o turismo, há uma premonição sobre a importância futura dessa indústria – apesar da guerra mundial parecer contradizer essa tendência inexorável. O tempo longo veio a confirmar a intuição do intelectual, desmentindo, porém, a lógica autárcica… Só uma economia aberta e não protecionista poderia favorecer a livre circulação dos turistas… Havia uma inteligência fina que antecipava as grandes tendências, mas descria agora dos ideais republicanos que abraçara outrora – preferindo a mão dura de um Estado forte. Percebe-se, contudo, como a personalidade irrequieta do fundador da nova revista era complexa e contraditória. E essas características permitiram antecipar a tendência dos factos e antever o desenvolvimento da ligação indelével entre cultura e turismo…

 

Guilherme d'Oliveira Martins

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