Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Almeida Garrett escreveu em 1821 o ensaio “O Dia Vinte e Quatro de Agosto”, que constitui uma defesa da Revolução Regeneradora Liberal de 1820, partindo da ideia de “os homens são iguais, porque são livres, e são livres porque são iguais”.
ANÚNCIO DA LIBERDADE A Revolução do Porto de 24 de agosto de 1820 constitui, para os portugueses, a génese da consagração do moderno Estado de direito. O acontecimento deu assim início à democracia atual, apesar de todas a vicissitudes, desde a fugaz tentativa de regresso do poder absoluto com D. Miguel, até à Regeneração de 1851, que viria a tornar a Carta Constitucional de 1826 uma lei fundamental legitimada por um poder constituinte. Em complemento, as datas de 5 de outubro de 1910 e de 25 de abril de 1974 constituem duas referências que continuam o que Jaime Cortesão designou como fatores democráticos na formação e afirmação de Portugal, desde as mais longínquas raízes históricas, abrangendo a fundação do Estado, as Cortes, o municipalismo, a influência dos povos das cidades e dos mesteres, a causa do Mestre de Aviz em 1383-85, a Restauração da Independência de 1640, a República e a Democracia constitucional de hoje. A verdade é que a democracia não se faz instantaneamente. Constrói-se gradualmente e assenta a sua legitimidade na vontade dos povos e na afirmação da cidadania livre e responsável, igual e solidária. Manuel Fernandes Tomás (1771-1822) foi figura marcante da Revolução. A ele se deveu a afirmação dos elementos cruciais do pensamento regenerador, de que resultou o constitucionalismo – a divisão de poderes, a articulação da autoridade das Cortes com o poder executivo e o rei, os fundamentos e as práticas do poder judicial, o conceito e o exercício da soberania popular, além da afirmação da liberdade de imprensa, da importância do exercício do direito de voto e do princípio do consentimento, além das tomadas de posição sobre a extinção da inquisição, sobre a liberdade e abusos da autoridade ou sobre a liberdade do cidadão e a liberdade da nação. Pode dizer-se que o edifício constitucional de 1822 muito deveu à solidez e coerência do mais influente dos artífices do movimento de 1820 e de um dos mais determinados deputados constituintes. E se falo de Fernandes Tomás, que está representado no uso da palavra na sala das sessões da Assembleia da República, é porque ele é no pensamento e na ação um símbolo evidente da Revolução de 1820 e do constitucionalismo. Como jurisconsulto de qualidade superlativa, o facto de estar particularmente informado e atento à evolução das notícias liberais e constitucionais, designadamente na vizinha Espanha, permitiu-lhe compreender a inevitabilidade das repercussões em Portugal do movimento liberalizador na sequência das revoluções inglesa, americana e francesa. Assim, em 1818 fundou o Sinédrio juntamente com Ferreira Borges e Silva Carvalho, com o comerciante Ferreira Viana, preparando as mobilizações militares e civis que conduziram ao golpe do Porto. Escreveu, por isso, as proclamações que prenunciaram a proclamação nacional regeneradora, visando: fazer regressar D. João VI à capital europeia do reino; exonerar a Regência que governava em nome do rei; afirmar a liberdade e a igualdade dos cidadãos perante a lei e garantir a convocação das Cortes constituintes, que exprimissem o sentido de uma soberania nacional baseada na vontade do povo.
O MOVIMENTO REGENERADOR Tendo participado na Junta Provisional do Supremo Governo do Reino e tendo sido um dos mais influentes autores do Relatório sobre a situação do País e sobre as providências consideradas necessárias, foi um dos 100 deputados eleitos para a Assembleia, que reuniria no Palácio das Necessidades, com a missão de elaborar a nova Constituição, após o debate do Relatório que coordenara na Junta Provisional. Perante os erros da governação, a subalternização do interesse comum, a injustiça e a ilegitimidade da condenação dos mártires da pátria, haveria que tirar consequências sérias da soberania da nação. O exercício da soberania estaria “nas Cortes que legislam, no monarca que executa, nos juízes que julgam, e nas autoridades que administram”. Daí a importância da representação e do mandato, o que corresponde a uma ideia premonitória de democracia. É por isso muito profícua a leitura das intervenções de Fernandes Tomás na Constituinte. Aí encontramos a opção moderna de três poderes, como em Montesquieu, a noção de um parlamento unicamaral e o veto suspensivo do rei… Não importará neste momento fazer o diagnóstico da força e das fragilidades dessa primeira lei fundamental, tão influenciada pela Constituição de Cádis. É, porém, essencial compreender a virtude do contributo de Fernandes Tomás, cujo percurso envolveu o compromisso no combate anti-napoleónico e a participação ativa nas boas-vindas ao rei D. João VI (cuja atitude positiva se contrapôs à perspetiva negativa assumida por Fernando VII) – na compreensão do necessário equilíbrio de um patriotismo prospetivo. Uma das marcas do carácter da nova ordem constitucional foi a liberdade de imprensa, que constituiu um fator de magna importância para o reconhecimento do que tornou 1820 muito mais do que um movimento circunstancial. Foi um novo período que se abriu, tornando-se uma marca indelével em que a ideia de soberania popular se tornou uma referência que nos nossos dias procuramos que se fortaleça e consolide. “É evidente que a liberdade de imprensa deve ser o mais ampla possível (como afirmou o deputado constituinte), porque com efeito num país livre não se pode viver sem ser também livre a imprensa, mas devemos enquanto for possível reparar para o exemplo das nações que nos cercam e das que olham com mais cuidado para a sua conservação. (…) Está demonstrado que o poder da opinião é maior que o poder da força…”. E a História política foi provando que, apesar da conjuntura ibérica de então ser muito complexa, favorecendo opções que obrigariam a ajustamentos ao longo do tempo, a Revolução do Porto foi decisiva e ainda hoje é marcante. Se é verdade que só o poder constituinte concretizado com o Ato Adicional de 1852 garantiu a acalmação e um consenso minimamente durável, em que os beligerantes das diversas guerras civis (liberais e absolutistas; cartistas e constitucionalistas) enterraram os machados de guerra com a garantia de uma alternância partidária exigida pelo progresso económico e social, o certo é que foi o início da continuidade constitucional que rasgou o horizonte da cidadania democrática. É essa a marca deixada desde 24 de agosto de 1820, que hoje recordamos, não como uma celebração retrospetiva, mas como uma oportunidade para pensarmos a democracia como um sistema de valores que permanentemente se aperfeiçoa, e que mobiliza a sociedade e os cidadãos. Por isso privilegiamos nesta comemoração, não a mera lembrança, e mais o estudo, a reflexão, a investigação, mobilizando o ensino superior, as instituições de investigação e a sociedade toda. Não nos ocupa apenas uma data, mas um movimento de progresso e desenvolvimento – considerando o constitucionalismo como um fator de cidadania e de legitimidade. Deste tempo resultará um melhor conhecimento do que nos antecedeu para que sejamos melhores no futuro.
Quando há alguns anos houve alguém, decerto por menos conhecimento (é o menos que pode dizer-se), acabou com o feriado do Primeiro de Dezembro, houve um justo coro de vozes a recordar que se tratava de tentar esquecer uma primeira data da nossa identidade histórica e por isso primeiro feriado civil da República. De facto, logo no ano de 1910, a primeira comemoração profana foi a da libertação da Pátria de 1640. E esse momento foi tão importante que, por exemplo, do alto de uma guarita no Largo do Carmo, Francisco de Sousa Tavares afirmou que a libertação de 25 de abril de 1974 era a data mais importante depois do Primeiro de Dezembro de 1640. A 1 de dezembro de 1910, simbolicamente, também nasceu o que viria a ser a origem da “Renascença Portuguesa”, através da revista “A Águia” de Álvaro Pinto, na continuidade da qual Raul Proença e Teixeira de Pascoais protagonizariam o debate essencial sobre o patriotismo – para um, prospetivo e futurante, para o outro, saudoso e poético, mas para ambos crucial para a definição da cultura portuguesa: lírica ou trágica, mas igualmente picaresca… Se a Revolução de 1820 invocou a Regeneração, que em 1851 daria lugar a um compromisso de acalmação política para quase sessenta anos, a República de 1910 arvoraria a ideia de Renascença, que viria (depois do interregno ditatorial) a tornar-se raiz da democracia do último quartel do século XX. Eis por que faz sentido a lembrança da Restauração da Independência invocada neste Primeiro de Dezembro! Sim, sobretudo quando a fragmentação das autonomias ibéricas do Reino de Espanha demonstra o bem fundado da decisão da independência do ocidente peninsular. Senão vejamos sete pontos sacramentais: 1) O caráter marítimo do ocidente ibérico (“terras de Espanha, areias de Portugal”) e a vontade dos portugueses, para usar a explicação de Herculano, dão a Portugal uma identidade própria que se projeta universalmente; 2) Filipe I, nas Cortes de Tomar, teve consciência disso mesmo ao reconhecer expressamente a independência e o estatuto de Portugal, que se perderia com Olivares; 3) Na guerra dos trinta anos (1618-1648), a casa de Habsburgo que governava a Espanha, levou-nos para um conflito europeu e global que contrariou claramente o interesse estratégico de Portugal; 4) O apoio da França de Richelieu a Portugal no conflito seiscentista permitiu romper com um caminho inexorável de agravamento da decadência através de uma Corte tornada de Aldeia; 5) Perante a ameaça global da Holanda, havia que romper com a tentação de Conde-Duque de Olivares de unificação peninsular num só reino, sem as prerrogativas da independência antiga de Portugal; 6) Os conjurados de 1640 recusaram assim a tal “Corte na Aldeia” e ao dar o golpe sabiam que iriam iniciar uma longa luta de sobrevivência nacional, que começou na tentativa de mobilizar recursos para fazer uma política colbertiana - ouvindo Luís Mendes de Vasconcelos, Conde da Ericeira, Severim de Faria, Ribeiro de Macedo, e seguindo as diligências diplomáticas na Holanda junto dos Cristãos-novos do Padre António Vieira) e terminou na exploração do ouro e dos diamantes do Brasil, sem o investimento na fixação, o que muito nos atrasou… ; 7) O certo é que Portugal seguiu um curso de independência, de acordo com a sua “maritimidade” e o desenvolvimento de uma língua, que se tornaria elemento congregador de várias culturas e alfobre de várias nações… Ao lermos alguns dos nomes dos quarenta conjurados, compreendemos que havia uma resistência, que se tinha solidificado perante a lógica autoritária de Madrid e a insensibilidade de Filipe III. Do mesmo modo, havia uma tomada de consciência de que o império iria desfazer-se, não só o do Índico (já fortemente enfraquecido), mas sobretudo o do Atlântico Sul e do Brasil. Eis os nomes: Antão Vaz de Almada, António Luís de Meneses (Marquês de Marialva), Francisco de Noronha, Francisco de Sousa (Marquês das Minas), D. Jerónimo de Ataíde (filho de D. Filipa de Vilhena e por ela armado cavaleiro com seu irmão Francisco Coutinho), Dr. João Pinto Ribeiro, João Sanches de Baena, Luís de Almada, Martim Afonso de Melo, Pedro Afonso Furtado, D. Rodrigo da Cunha (Arcebispo de Lisboa), Tomás de Noronha (Conde dos Arcos), Tomé de Sousa, Tristão da Cunha de Ataíde… Os nomes envolviam o clero, a nobreza e o povo – e reconstituíam a resistência que tinha levado ao trono o Mestre de Avis em 1385. Eis por que não se trata de uma celebração isolada, mas da afirmação perene de uma vontade de emancipação. E lembremos o que disse António Sérgio no pós Alcácer Quibir: «Perante a vaga do trono português, sucedeu-lhe Filipe II de Espanha, que nas cortes de Tomar jurou as condições em que reinaria: a sua ideia não foi a absorção de Portugal, mas uma monarquia dualista, em que tínhamos perfeita autonomia, no mesmo pé do que Castela. Cumpriu religiosamente o que prometera; e foi seu neto Filipe IV, ou melhor o conde-duque de Olivares, quem, iludindo-as, provocou mais tarde a revolta dos Portugueses». Regressa à lembrança o sonho do Príncipe Perfeito, de um Império de base ibérica, com um rei português e Lisboa como centro de gravidade dessa realidade universal. Como salientou Vítor Sá: «A restauração da independência de Portugal trouxe ao primeiro rei da nova dinastia, João IV, inimigos poderosíssimos, dificuldades diplomáticas e militares, que acabaram por ser vencidas nas linhas de Elvas, com o exército português já instituído por bons mestres (Schomberg). «Mostrou-se o povo, mais uma vez, como boa matéria-prima quando enquadrado por boa élite» — concede António Sérgio. Na conjuntura restauracionista teve lugar a primeira tentativa para se «assentar em bases firmes a economia da metrópole», com a política do conde da Ericeira. Mas essa tentativa resultou frustrada pela «sorte grande» que foi a descoberta das minas do Brasil».
Quando lemos o romance de Álvaro Guerra, Razões de Coração (1991) (D. Quixote, 2008) passado na vila de Mafra no ano de 1808, em plena guerra peninsular, durante a tentativa de invasão napoleónica, compreendemos como a História e a memória não podem misturar-se e não devem confundir-se.
AS RAÍZES DA REVOLUÇÃO LIBERAL
Ao celebrarmos os duzentos anos da Revolução de 1820, recordamos o momento fundador da moderna democracia portuguesa. Se é certo que o início desse processo foi pleno de vicissitudes, a verdade é que há uma História que permanece atual, no sentido do aperfeiçoamento de uma cidadania inclusiva e responsável – baseada na soberania dos povos e nos direitos e liberdades fundamentais. As origens merecem uma especial reflexão. Trata-se de um tema bem atual. No enredo, Frei Pedro Taveira empenha-se na resistência, discreta e persistente, ao invasor, os filhos de Beatriz de Almeida, representando a sociedade toda e as suas contradições, dividiram-se entre a guerrilha contra o invasor, o que restava do exército português e o partido de Junot. Entretanto, Mariana e Philipe, ela da pequena nobreza, ele capitão dos dragões do exército de Napoleão, apaixonam-se e têm perspetivas algo diferentes mas complementares, ela ansiando por um Portugal moderno e europeu, ele farto da guerra e dos caminhos perdidos. Falamos, assim, da necessidade de compreender que o combate pela democracia e pela liberdade é uma exigência permanente comportando diversos caminhos. E se falo de um romance é porque ele contém todos os ingredientes que antecipam a Revolução liberal de 1820. Está presente um movimento popular heterogéneo e contraditório, servido por um comum desejo de independência e de soberania. A sociedade antiga resiste, os partidários das novas ideias sentem a contradição entre o carácter de invasores dos franceses e as ideias emancipadoras que a Revolução Francesa semeara.
A MEMÓRIA E A HISTÓRIA
Aqui se ilustra bem como a memória e a História têm de ser distinguidas, sendo genuinamente complementares. Se julgássemos os acontecimentos, à luz do que pensamos hoje e do que sabemos da História, chegaríamos a conclusões quase absurdas. Os diferentes protagonistas têm visões e atitudes diferentes, mas a História resulta da coexistência e da evolução de muitos caminhos, sempre plenos de dúvidas e contradições. De facto, no ambiente de 1808 encontramos o caldo de cultura que culminará em 1820, na revolução do Porto: há a recusa da dominação pelos invasores; há a aceitação transitória da ajuda dos britânicos, para manter a independência; há a tomada de consciência de que urge o primado da lei e que os ideais da Liberdade, Igualdade e Fraternidade da Revolução Francesa têm de ser preservados, apesar dos excessos. As atitudes complementam-se e a História, na sua complexidade, permitirá: a resistência, o desejo de liberdade, a conquista da soberania popular, a importância da separação de poderes, a ligação entre tradição e modernidade. Não por acaso o constitucionalismo ibérico andou a par – com referência essencial à Constituição de Cádis de 1812, “La Pepa”, tão presente na luta comum dos povos peninsulares. O fundo quase republicano de 1812, ou o de Portugal em 1820, deveu-se à ausência dos respetivos Reis. Os tempos tenderiam a ajustar as situações, mas a verdade é que a causa liberal fortaleceu-se pelo reconhecimento do direito dos povos a disporem do seu próprio destino, em nome do equilíbrio de poderes e da soberania popular de Montesquieu, aspetos presentes na pioneira Constituição da Córsega de 1755. A razão histórica nunca está só nem é absoluta. A memória para ser viva não pode ser fechada nem autossuficiente. Alexandre Herculano, que foi crítico da versão republicanizante do texto de 1822, inclinando-se mais para a legitimidade da Carta Constitucional de 1826, tornar-se-ia partidário entusiasta da Constituição de 1838 e do Ato Adicional à Carta de 1852, mercê do compromisso, da descentralização, da participação e da representação dos cidadãos. Afinal, a superioridade ética e política do constitucionalismo deve-se à sua plasticidade e sobretudo ao respeito pelas instituições e pela sua função mediadora, pondo as pessoas e os seus direitos e deveres, em primeiro lugar. A visão prospetiva dos acontecimentos, e não a História como deveria ter sido, obriga-nos a tirar lições do passado, segundo o patriotismo constitucional de que precisamos.
PEDRA DE TOQUE DE REGIME JUSTO
Para usar a expressão de Almeida Garrett, cidadão maduro: a Constituição deveria ser a pedra de toque de um regime justo, promover um governo representativo, e segurar a majestade do Povo, a liberdade da Nação, os direitos do Trono, a santidade da religião, e o império das leis. E a Carta Constitucional completada pelo Ato Adicional de 1852 (como Herculano defendeu) tornar-se-ia, assim, a mais duradoura das nossas Constituições, baseada num consenso cívico e político importante. A vida do constitucionalismo português tem-se feito e continuará a fazer-se, pois, gradualmente. Por isso, Garrett, no início deslumbrado por Rousseau, cartista crítico, aderiria a Montesquieu e a Chateaubriand. Alexandre Herculano, cartista de alma e coração tornar-se-ia paladino da Constituição de 1838, cuja matriz estava na Lei Fundamental de 1822, limada de algumas angulosidades. E não se esqueça como o então moderadíssimo Herculano foi obrigado em 1831 a partir para o exílio, perseguido pelo mais cego dos radicalismos absolutistas. Se a Constituição da República Portuguesa de 1976 resultou de um compromisso complexo mas essencial, que perdura, a verdade é que ele se inseriu na tradição começada em 24 de agosto de 1820, no caminho fecundo do Estado de Direito, da soberania popular, do primado da lei, da legitimidade democrática e dos direitos fundamentais…
200 Anos do Constitucionalismo - 24 de agosto de 1820
Celebramos duzentos anos da Revolução constitucional do Porto. Quando lemos de Manuel Fernandes Tomás os “Escritos Políticos e Discursos Parlamentares (1820 - 1822)” publicados por José Luís Cardoso (Imprensa de Ciências Sociais, 2020) percebemos que é na Revolução de 24 de Agosto de 1820 que se encontra a matriz perene de uma cultura de cidadania, de liberdade e de salvaguarda dos direitos fundamentais.
Acontecimentos
No dia 24 de agosto de 1820, na cidade do Porto, grupos militares dirigiram-se pacificamente para o Campo de Santo Ovídio (atual Praça da República) e, depois de uma missa campal, proclamaram solenemente o Manifesto aos portugueses, exigindo a convocação de Cortes para elaborar uma Constituição, na qual se consagrassem a autoridade régia e os direitos dos portugueses. Pedia-se ainda o imediato retorno da Corte, como forma de restaurar a dignidade da antiga Metrópole, além da restauração dos antigos direitos de comércio. Constituiu-se então a Junta Provisional do Governo Supremo do Reino, presidida pelo Brigadeiro António Silveira Pinto da Fonseca, e constituída entre outros pelo Coronel Sebastião Drago Brito Cabreira, pelo Coronel Bernardo Correia de Castro e Sepúlveda, por Frei Francisco de S. Luís, Fernandes Tomás, Ferreira Borges e Silva Carvalho. Em 15 de Setembro o movimento proclamar-se-ia em Lisboa, criando no final do mês a Junta Provisional do Supremo Governo do Reino.
Assembleia Constituinte
As Cortes reuniram-se solenemente em janeiro de 1821 para elaborar a Constituição. Enquanto a Magna Carta estava a ser redigida vigorou uma Lei Fundamental provisória que seguia o modelo espanhol da Constituição de Cádis. No decurso de 1821 a Corte retornou a Portugal, com exceção de D. Pedro de Alcântara, que permaneceu no Brasil como Príncipe Regente, já que persistia, desde 1815, o Reino Unido de Portugal, Brasil e dos Algarves.
Causas da Revolução
Os antecedentes que influíram no movimento de 1820 foram: o rescaldo das invasões francesas; a ausência da Corte no Rio de Janeiro e o sentimento de orfandade política existente; o domínio dos militares ingleses na Regência do Reino (sob o comando de Beresford), agravado pelo sacrifício dos mártires da Pátria em 1817, em especial o enforcamento humilhante de Gomes Freire; os ecos da Revolução espanhola de Cádis de 1812; o movimento sedicioso de Pernambuco de 1817 e a revolta liberal espanhola de janeiro de 1820 que forçou, sem sucesso o juramento da Constituição por Fernando VII.
Constituição de Cádis de 1812
Foi aprovada pelas Cortes extraordinárias em Cádis no dia 18 de março de 1812 e promulgada no dia seguinte (dia de S. José, daí a designação de “Pepa”, diminutivo familiar de Josefina). Foi a primeira Constituição aprovada na Península Ibérica e das primeiras do mundo ocidental, apenas precedida pelas Constituições da Córsega de 1755, dos Estados Unidos da América de 1787 e francesa de 1791.
Constituição de 1822
O mais antigo texto constitucional português iniciou o fim do Antigo Regime e do absolutismo, apesar de uma vigência fugaz, de setembro de 1822 a maio de 1823. Previa a soberania popular, a legitimidade dinástica, a separação de poderes, a independência dos juízes e a inviolabilidade dos deputados da nação no exercício das suas funções. A fragilidade do texto deveu-se à limitação dos poderes reais (tal como a de Cádis), pela ausência dos monarcas no momento da feitura das Constituições.
Cortes Gerais da Nação Em 1824 com a Abrilada e a influência absolutista de D. Miguel verificou-se o regresso das instituições do Antigo Regime, contra a promessa de D. João VI em 1823.
Fernandes Tomás (Manuel) – (1771-1822) Foi o mais influente dos promotores da Revolução. Magistrado judicial de prestígio, foi o autor do Manifesto aos Portugueses de 1820. Designado como o “primeiro dos regeneradores” é o orador representado na Sala das Sessões do Parlamento.
Ferreira Borges (José) – (1786-1838) Membro ativo do Sinédrio, jurisconsulto prestigiado. Autor do Código Comercial de 1833
Gomes Freire de Andrade – (1757-1817) Como comandante militar serviu nos exércitos português, prussiano e francês. Comandou o regimento de Infantaria 4. Participou na Legião Portuguesa de Napoleão na Campanha da Rússia. Grão Mestre do Grande Oriente Lusitano. Condenado à morte na tentativa de golpe liberal de 1817, foi enforcado em S. Julião da Barra, quando um oficial general, se condenado, apenas poderia ser fuzilado.
D. João VI - (1762-1826) Vindo do Brasil em 1821, jurou a Constituição de 1822, mas suspendeu a sua vigência em 1823. Apoiou na prática seu filho D. Pedro na independência do Brasil, garantindo a unidade do País.
D. Miguel – (1801-1866) Combateu o novo regime constitucional, restaurando o Antigo Regime. Foi derrotado na Guerra Civil que o opôs a seu irmão D. Pedro, sendo banido do Reino pela Convenção de Évora Monte (1834).
D. Pedro IV – (1799-1834) Imperador do Brasil, proclamou a independência (1822). Outorgou a Carta Constitucional de 1826. Durante a Guerra Civil foi regente do Reino (1828-1834) em nome de sua filha D. Maria da Glória.
Porto Cidade onde teve lugar a Revolução de 1820, base da ação e da vitória das forças liberais de D. Pedro, depois do desembarque dos bravos do Mindelo (julho de 1832). Na Igreja da Lapa da cidade encontra-se o coração do Rei, doado ao povo da cidade invicta.
S. Luís (Frei Francisco de) – (1766-1845) Religioso beneditino, reitor da Universidade de Coimbra, futuro Cardeal Patriarca de Lisboa, conhecido como Cardeal Saraiva. Nasceu em Ponte de Lima e teve papel diplomático decisivo na causa liberal, representando uma corrente moderada.
Silva Carvalho (José da) – (1782-1856) Membro influente do Sinédrio e da Revolução. Foi o primeiro Presidente do Supremo Tribunal de Justiça. Perseguido pelos absolutistas sucederia a Mouzinho da Silveira como ministro da Fazenda de D. Pedro.
Sinédrio Criado no Porto a 22 de janeiro de 1818 por Fernandes Tomás, Ferreira Borges e Silva Carvalho, entre outros, foi a associação que preparou a Revolução de 1820 e a defesa dos ideais liberais.
Vilafrancada e Abrilada Em maio de 1823, as forças fieis a D. Miguel e ao Antigo Regime aproveitaram a imposição em Espanha pelas forças da Santa Aliança de Fernando VII como rei absoluto para pressionar D. João VI no sentido da suspensão da vigência da Constituição liberal de 1822. Tal aconteceu, apesar do rei prometer uma Carta Constitucional. No ano seguinte em abril de 1824 os absolutistas imporiam, porém, condições para o regresso absolutista.
“Uma Voz na Revolução – Testemunhos e Causas” de Francisco de Sousa Tavares, com seleção de textos e introdução de Miguel Sousa Tavares (Clube do Autor, 2014) permite-nos recordar uma referência fundamental na democracia portuguesa e do Centro Nacional de Cultura.
UM CENTENÁRIO A LEMBRAR Assinalamos o centenário de Francisco de Sousa Tavares, nascido a 12 de junho de 1920, e na sua pessoa lembramos uma componente fundamental da democracia que continuamos a construir no dia-a-dia - a independência de espírito. Fora de qualquer unanimismo, a sua atitude foi sempre autónoma, livre e própria. Desde muito cedo, acompanhei o seu percurso cívico e político, cultural e humano, e olhando para trás não esqueço como o seu pensamento e a sua coerência tiveram em mim influência significativa. Sendo meu avô monárquico e anglófilo, dois fatores que o levavam a recordar na história da nossa família, a marca indelével do constitucionalismo desde 1820, foi-me possível acompanhar através dos debates da época, muitas intervenções desassombradas de Sousa Tavares, contra as lógicas transpersonalista e totalitária, em nome da dignidade da pessoa humana. Recordo o que deixou escrito na I Semana de Estudos Doutrinários (Coimbra, 1960) ou o que se encontra evidenciado no livro do mesmo ano Combate Desigual (apreendido pela Censura logo na tipografia) de “uma luta ardente e incansável pela democratização do ideal monárquico”, mas também os documentos que subscreveu, em 1959, sobre as relações entre a Igreja e o Estado e a liberdade dos católicos e sobre os serviços de repressão do regime, bem como de outubro de 1965 – o célebre documento dos 101 católicos, em prol da democratização.
«DE MÃOS DADAS COM OS PERIGOS» Como afirma o meu amigo Miguel Sousa Tavares: “Ele não nasceu politicamente em 25 de abril de 1974 e não morreu intelectualmente no dia seguinte. Estava antes e continuou depois – coisa que tantos oportunistas do 26 de abril jamais lhe perdoaram. A sua formação e o seu pensamento político não advinham nem de modas nem de adesão a movimentos coletivos e instantâneos de bem pensar – e, por isso, com inteira sinceridade e até inadvertida cautela, foi capaz de deixar escapar esta frase admirável: ‘Sempre me horrorizaram os que se servem da fé dos outros para negociarem o mundo’”. De facto, era um homem sem medo e com uma coerência, que tantas vezes parecia paradoxal. E o seu filho pergunta-se se essa ausência de medo não seria inconsciência. E lembra o belo poema de Sophia, que constitui o maior elogio a essa coragem determinada: “porque os outros vão à sombra dos abrigos e tu vais de mãos dadas com os perigos”. Não, não era inconsciência. Sabemos como fervia em pouca água. Mas também sabemos que acreditava no íntimo de si na força de ser livre e de crer na humanidade. Ele, no golpe da Sé (1959), fardado de oficial de Cavalaria para assaltar o regimento de Caçadores 5. E, no momento decisivo, empoleirado na guarita do Largo do Carmo em 25 de abril. Foi o único civil, “às horas ainda incertas da Revolução”, ao lado dos militares revoltosos da coluna de Salgueiro Maia. E quase se perdeu o que disse em poucas palavras com aquele megafone histórico. Pois bem, o que Francisco de Sousa Tavares afirmou naquela tarde de primavera, foi que ali acontecia o dia mais importante desde o Primeiro de Dezembro de 1640 e que caberia ao povo defender as promessas autênticas de liberdade e de cidadania. Mas, não podemos lembrar Francisco sem o Centro Nacional de Cultura, “palco privilegiado”, onde se bateu contra a resistência integralista, que durante anos, impediu o seu acesso a presidente. Mas, o Centro, “desde que consegui ganhar a eleição para presidente (1957), ocupou-me imenso tempo e abria as portas a grande parte da intelectualidade de Lisboa, sem que o núcleo inicial de fundadores deixasse jamais o seu rumo à deriva”. “Foi assim que consegui que na mesma sala se reunissem e discutissem personalidades tão frontalmente opostas como desde Henrique Martins de Carvalho – que como presidente da assembleia geral era um seguro de vida do Centro – a José Gomes Ferreira, a Fernando Namora, de Álvaro Ribeiro e António Quadros – que desapareceu há poucos dias (1993), deixando um rasto de saudade, pela sua doçura e urbanidade convivente – até à mocidade de então, que hoje são homens na pujança da vida, como Alexandre Bettencourt e Luís Coimbra, a Vasco Pulido Valente ou João Bénard da Costa”. Quando lemos os seus textos, primeiro reunidos por Maria Andresen Sousa Tavares e revistos por Miguel Lobo Antunes em dois volumes preciosos (Escritos Políticos) e depois antologiados em Uma Voz na Revolução – Testemunhos e Causas (2014) por Miguel Sousa Tavares, descobrimos a força dos ideais que o animavam. “A esquerda, a verdadeira esquerda, não aceita receitas; inventa, descobre, luta e vive. Senão é um cadáver” (1976).
UMA VONTADE VIÁVEL E importava acreditar num Portugal de vontade e viável: “Para que Portugal seja viável é necessário que exista um futuro para os portugueses na terra que lhes cabe” (1977). Como disse em relação ao seu amigo Jorge de Sena: “odiava o dogmatismo, as seitas, os ‘conluios da mediocridade’, que denunciava com um vigor contundente” (1978). E deste modo afirmava, com determinação: “Eu, por mim, sustento há muitos anos que a mentira, a manobra, o oportunismo não são virtudes políticas e acabam por ter um preço muito caro. E que, como alguém disse, a política é, quer queiram quer não, um capítulo da moral, Desde Aristóteles” (1979). Todos quantos o conheceram sabem que nenhuma destas palavras era para si vã. O seu patriotismo prospetivo, em vários momentos afirmado e repetido com especial veemência, pressupunha que “Governar não é gerir o passado, nem remediar o presente, é construir e moldar uma conceção imaginativa do futuro. Essa conceção é a força e a alma de um Governo” (1980). Mas a Administração Pública continuava a sofrer dos males fundamentais como “a burocracia, a irresponsabilidade e a centralização do poder de decisão”, a que se somavam a quebra da dignidade da carreira pública e a instabilidade das funções (1982)… Mas, no essencial, “a primeira obrigação do Estado” deveria ser a “defesa e a realização da liberdade. Não a liberdade de uma ideia, de um partido ou de um esquema de poder. Mas a liberdade de cada homem e de todos os homens, o total respeito pelas ideias, pelas crenças e pela dignidade da pessoas humana em face do Estado” (1983)… Se lermos com atenção os seus textos, fácil é descobrir não apenas a atualidade e pertinência, mas sobretudo a preocupação de assegurar que a democracia, aceitando a imperfeição, teria sempre de se comprometer no sentido de ser melhor, de representar os cidadãos e de defender o bem comum.
Como afirmou António Barreto no prefácio ao segundo volume dos Escritos Políticos: “Diletante, como, com desgosto, se afirmava (dizia que era o seu principal defeito), mas um grande diletante, frequentemente exaltado, tinha a nostalgia dos cavalos e da vela, que praticara na juventude. Jogava bridge com pertinácia, interessava-se pela cultura em geral, viajava por desfastio, procurava o mar e o sol, estudava com curiosidade, lia com afinco e sem constancia, conspirava, advogava sem método, fazia jornalismo sem cartão profissional (…) e tinha uma verdadeira paixão, a política”. Muito mais do que diletante, porém, era um apaixonado da vida. Sem a sua determinação, o Centro Nacional de Cultura, por exemplo, não se teria tornado o lugar marcante que pôde ser!...