Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
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A cidade como teatro e o ser como atividade estética.
Richard Sennett em The Fall of Public Man acredita que o mundo é ainda uma peça de teatro (theatrum mundi). A cidade é um palco. A existência é uma atuação contínua. A tradição cristã, por exemplo, acredita que Deus é o único espectador que nos observa sempre.
A ideia de que o ser humano adota ininterruptamente diferentes papéis para conseguir viver, concebe pois a vida social como uma experiência estética contínua.
Para Sennett muito mais importante do que cultivar a auto-expressão deve-se sim desenvolver a capacidade de atuar, de modo a garantir a existência de uma cultura com vida pública.
Esta ideia de que o mundo é uma peça de teatro considera que todo o ser humano é um ser criador por excelência, é um ser capaz de representar, de se adaptar, e de se recriar constantemente.
Esta visão do theatrum mundi, para Sennett, contém uma verdade fundamental: a capacidade de atuar só é possível se houver na infância condições, espaço e tempo para brincar.
Sennett explica que ao longo do séc. XIX assistiu-se a uma descrença gradual na capacidade expressiva de cada indivíduo. Por isso, elevou-se a figura do artista, como sendo o único capaz de fazer manifestamente e livremente, aquilo que as pessoas comuns não conseguiam fazer no dia a dia.
Porém, é através do ato de brincar, durante infância, que se prepara uma pessoa para a futura experiência estética social. Segundo Sennett, o ato de brincar prepara-nos para vivermos uns com os outros em civilidade. Prepara-nos para os diferentes papéis que futuramente teremos de adotar, leva-nos a considerar e a testar certas condutas e ensina-nos a olhar para as convenções como um conjunto de regras de comportamento que nos permitem a aproximação ao outro. Através do ato de brincar e ao tornar um conjunto de certas convenções como credível, a criança está a desenvolver a capacidade de explorar, mudar, questionar e redefinir a qualidade dessas mesmas convenções.
“…people can playact with each other for purposes of immediate sociability but the terms on which they do so are still of contriving expression at the distance from the self; not expressing themselves, but rather, being expressive. It was the intrusion of questions of personality into social relations which set in motion a force making it more and more difficult for people to utilize the strengths of play.” (Sennett 2017, 331)
Ora, para Sennett a intromissão da personalidade nas relações sociais põe em causa a necessidade do ato de brincar. Desde o séc. XIX, que esta intrusão sobrecarrega o gesto expressivo com uma dúvida autoconsciente e repetida: será que o que estou a mostrar aos outros é realmente aquilo que sou?
Através do ato teatral o contacto social pode dar-se de imediato. O indivíduo ao ser puramente expressão/representação, distancia-se do eu. Sennet explica que sempre que o eu se apresenta em situações impessoais transforma-se num peso e dificulta a atuação na vida pública.
A sociedade moderna fragmentada, pessoal e íntima faz acreditar que o domínio público deixou de existir, que é impossível criar uma distância entre o ser social e o eu e que é inimaginável actuar em qualquer situação da vida: “An intimate society encourages uncivilized behaviour between people and discourages a sense of play…” (Sennett 2017, 332)
A cidade moderna opõe a vida íntima à vida pública.
“The self no longer concerns man as an actor or man as a maker; it is a self composed of intentions and possibilities… now what matters os not what you have done but how you feel about it.” (Sennett 2017, 326)
De acordo com Richard Sennett, em The Fall of Public Man, no tempo atual o indivíduo vive dividido entre a vida pública e a vida íntima. As pessoas na sociedade atual concebem uma comunidade numa escala muito restrita. O próprio indivíduo está limitado e pronto a excluir todos aqueles que são diferentes. Para Sennett, vivemos num mundo que organiza a família, a escola e a vizinhança através de motivações e localismos (convém não esquecer que os regimes totalitários favorecem os localismos pela desconfiança constante, pelo medo do diferente e por isso como forma eficaz de controlo em escala limitada de modo a manter uma sociedade limpa e pura).
Lê-se também em The Fall of Public Man que foram os sociologistas, que ao longo do séc. XX, desenvolveram a ideia de que a vida em sociedade é um conjunto de tarefas separadas, instrumentais e mecânicas - à luz destas ideias a escola e o trabalho são vistos como uma obrigação, são vistos como veículos inapropriados para sentimentos mais verdadeiros e próximos.
A este mundo meramente instrumental, os sociologistas contrastam experiências afetivas, holísticas e integrativas. Ficou assente então que as pessoas só realmente sentem, só realmente vivem inteiramente o momento presente e só realmente se revelam em ambientes íntimos - entre a família, os vizinhos e os amigos. Para os sociólogos, o mundo alargado significa sobrevivência, obrigação e luta.
Porém, Sennett argumenta que a sociedade que apresenta a vida íntima como a vida verdadeira faz do indivíduo um ser autómato, um ator que não se pode exprimir nunca. Sennett revela que é ao incentivar-se a expressão criativa e mais especificamente ao dar-se espaço e abertura para que se desenvolva o ato de brincar, de jogar, de fazer de conta, poderá levar o indivíduo a ter uma vida mais significativa. A aproximação entre a esfera privada e pública só é possível através do uso de uma máscara.
A máscara, para Sennett, é civilidade. Sennett explica que civilidade e cidade, tem a mesma origem etimológica (Civis, Civitas): “Civility is treating other as though they were strangers and forging a social bond upon that social distance. The city is that human settlement in which strangers are most likely to meet. The public geography of a city is civility institutionalized.” (Sennett 2017, 328)
Para Sennett, as máscaras por isso ser criadas através do desejo em viver com os outros. As máscaras permitem criar a distância necessária para que a pura sociabilidade se manifeste. A máscara não representa o eu que manipula e que se impõe, afirma sim que todas as condições do mundo são plásticas e por isso a máscara é capaz de conduzir à construção de uma dimensão que para vai além do desejo e da identidade. Na sociedade atual, Sennett explica que as motivações do eu bloqueiam as pessoas de se sentirem livres para se exprimirem criativamente. E esta habilidade para se ser expressivo é posta em causa porque o indivíduo moderno deseja constantemente que a sua aparência transpareça aquilo que verdadeiramente é: “… everything returns to motive - Is this what I really feel? Do I really mean it? Am I being genuine? (…) Expression is made contigent upon authentic feeling, but one is always plunged into the narcissistic problem of never being able to crystallize what is authentic in one’s feelings.” (Sennett 2017, 331-2)
No livro The Fall of Public Man, de Richard Sennett, lê-se que uma comunidade, na cidade moderna, actuará sempre como se fosse o único conjunto de indivíduos capaz de ser verdadeiramente humano (à luz desta ideia todas as outras comunidades serão vistas como menos humanas). Numa sociedade cujos espaços se encontram fragmentados, as pessoas vivem sempre com medo de perder o contacto próximo social. Impulso e intenção são as únicas substâncias disponíveis para que as pessoas se possam relacionar na cultura moderna - todas as emoções experienciadas numa comunidade determinam que tipo de pessoas formam aquele grupo.
Para Sennett, a construção de uma comunidade local proposta por urbanistas pode ser extremamente perigosa para a vivência de uma cidade - muito mais importante será a tentativa de reativar o verdadeiro sentido do espaço público e da vida pública na cidade e no seu todo.
A solidariedade que existe dentro de uma comunidade tem uma função perversamente, estabilizadora em relação às mais alargadas estruturas da sociedade, porque segundo Sennett, quanto mais envolvidas estão as pessoas em problemas e desentendimentos de pequena escala, mais intocável permanece a atual ordem social. (Sennett 2017, 382)
“Most so-called progressive town planning has aimed at a very peculiar kind of decentralization. Local units, garden suburbs, town or neighborhood councils are formed; the aim is formal local powers of control, but there is no real power that these localities in fact have. In a highly interdependent economy, local economy, local decision about local matters is an illusion.” (Sennett 2017, 383)
Uma sociedade que receia impersonalidade encoraja fantasias relacionadas com a constituição de vida coletiva e comunitária de carácter íntimo, local, reduzido, segregado e fechado. A concretização de quem somos - a nossa identidade - é feita através de diversos atos seletivos da nossa imaginação: família, trabalho e vizinhos. Para Sennett, na sociedade moderna torna-se cada vez mais difícil o relacionamento e a identificação com aqueles que não conhecemos - pessoas que nos são estranhas mas que até poderiam partilhar interesses culturais, étnicos e religiosos comuns. Porém as ligações impessoais ainda que étnicas ou de classe não são fortes o suficiente e para criar vínculos duradouros entre pessoas que não se conhecem. Quanto maior a imaginação local maior se torna o número ilusório de interesses em comum - quanto mais reduzido é o sentido do eu, menos riscos pessoais serão tomados. A recusa em lidar, absorver e explorar realidades fora da escala íntima é aparentemente uma característica humana universal, porque está relacionada simplesmente com o intrínseco medo do desconhecido.
Para Sennett, qualquer comunidade está assim construída sobre uma fantasia, é produto de um engano e da projeção de um ideal: “What is distinctive about the modern gemeinschaftcommunity is that the fantasy people share is that they have the same impulse life, the same motivational structure.”
Comunidade é então, como já foi escrito no início, a união entre semelhantes impulsos e motivações, sentidos com grande intensidade local. Se dentro de uma comunidade novos impulsos emergem esses terão de ser imediatamente destruídos ou reprimidos - porque aquele alguém que muda ou substitui os seus motivos estará a trair a comunidade. Para Sennett, qualquer desvio individual ameaça a força do fragmento - por isso, todo o indivíduo que pertence a um grupo fechado será sempre posto em prova e estará sob constante vigilância. Suspeição e solidariedade formam então, a comunidade moderna.
Mesmo pertencendo a uma comunidade o ser humano experiencia sentimentos de afastamento, de desentendimento e de indiferença em relação ao mundo exterior. O mundo mais alargado em relação a uma comunidade moderna, é visto como algo menos autêntico e menos real - é um mundo que não tem espaço para emoções individuais. Ao não se deixar manipular ou influenciar por desejos emocionais, o mundo exterior não é um desafio, mas um vazio. O indivíduo moderno procura por contacto social íntimo, somente junto daqueles que o entendem e desliga-se do mundo mais alargado: “This is the peculiar sectarianism of a secular society. It is the result of converting the immediate experience of sharing with others into a social principle.”
Num contexto mais alargado, as únicas ações que uma comunidade pode tomar estão relacionadas com a coordenação e controlo de emoções e a constante distinção entre aqueles que lhe pertencem ou não: “The community cannot take in, absorb, and enlarge itself from the outside because then it will become impure.Thus a collective personality comes to be set against the very essence of sociability - exchange - and a psychological community becomes at war with societal complexity.”(Sennett 2017, 385)
Sennett escreve ainda que foram os urbanistas mais conservadores que fizeram acreditar que uma pessoa só é sociável se se sentir segura, protegida e num ambiente estreito e controlado. Segundo os mais conservadores, o ser humano é destrutivo, violento e perigoso por natureza se não tiver barreiras, fronteiras e distâncias mínimas. Este pensamento urbanista conservador, para Sennett, é um erro mas o autor admite ser o resultado de uma cultura gerada pelo capitalismo e pelo secularismo moderno que transforma o conflito entre irmãos lógico sempre que se usam as relações íntimas como base para as relações sociais. (Sennett 2017, 385)
Sennett pensa que os seres humanos têm uma verdadeira capacidade para a vida em grupo em condições de superlotação (de seres e de coisas) - a arte de criar praças numa cidade tem sido praticada com grande sucesso desde há séculos e geralmente sem arquitetos formalmente treinados. Sempre que o urbanista procura melhorar a qualidade de vida comunitária tornando-a mais íntima está a contribuir para uma irreversível esterilidade e por conseguinte a contribuir ativamente para a morte da vida e do espaço público na sociedade moderna. Sendo assim, se tomarmos tudo isto em conta, a ideia de uma comunidade local forçada pode ser em casos extremos perversamente utilizada como um meio eficaz de controlo e pode por isso opor-se a qualquer ideal democrático.
“Historically, the dead public life and perverted community life which afflicts Western bourgeois society is something of an anomaly.” (Sennett 2017, 385)
Uma componente essencial do espaço público é a sobreposição de funções.
No livro The Fall of Public Man de Richard Sennett (W. W. Norton & Company, Inc., 2017), lê-se que as ideias de Barão Haussmann, para Paris, no séc. XIX foram baseadas na homogeneização. Os novos bairros da cidade destinavam-se a uma só classe e na cidade antiga central ricos e pobres foram separados. Este foi o início da função única no planeamento urbano, isto é, um desenho urbano em que cada espaço na cidade está destinado a um uso particular. A desagregação da cidade em que um espaço corresponde a uma função, por princípio pode parecer ordenada, operante e rentável. Mas na opinião de Sennett, uma componente essencial do espaço público é a sobreposição de funções. Historicamente, assim que as necessidades funcionais numa determinada área mudam o espaço já não consegue responder a estas mudanças e acaba por ser abandonado.
“Think, for Instance, of what a city of atoms, with a space for each class to live, for each race to live, for each class and race to work, means for attempts at racial or class integration, either in education or in leisure: displacement and invasion must become the actual experiences involved in the supposed experience of intergroup rapprochement. Whether such forced mixings would ever work in racialist or highly class-segregated societies is an open question; the point is that a city map of single-functions, single-spaces makes all such problems worse.” (Sennett 2017, 367)
Se uma cidade se apresentar como uma cidade de átomos - desagregada e fragmentada - com espaços específicos para cada classe e para cada etnia viver e trabalhar, sempre que houver tentativas de integração, quer seja através da educação ou através do lazer, essas experiências de aproximação intergrupal podem agravar problemas que possam existir. Pensa-se verdadeiro que uma cidade que separa classes, etnias e funções possa pôr fim à criação de complexidades incontroláveis. Porém, Sennett escreve que a destruição da multiplicidade de funções e que a conceção do espaço de modo a que os usos não possam mudar à medida que os usuários mudam, é racional só em termos de investimento inicial. A atomização da cidade e a consequente destruição do espaço público, imposta por urbanistas, cria uma comunidade com sede de contacto humano.
Para Sennett, os esforços urbanísticos de Haussmann puseram um término definitivo ao cruzamento entre habitar, trabalhar, educar, tratar e socializar dentro e ao redor de uma única casa - na cidade pré-industrial lojas, escritórios e habitação situavam-se muitas vezes concentrados num só edifício. Quanto mais as cidades se fragmentam e morrem mais as pessoas deixam a cidade. Sennett declara que o desenvolvimento urbano moderno faz com que o próprio contacto social somente através de centros comunitários pareça uma resposta à morte social da cidade. (Sennett 2017, 368)
A cidade moderna opõe a comunidade à sociedade e naturalmente à multidão. Psicologicamente, o indivíduo protege-se contra a multidão: “The bourgeois man in the crowd developed in the last century a shield of silence around himself. He did so out of fear. This fear was to some extent a matter of class, but it was not only that. A more undifferentiated anxiety about not knowing what to expect, about being violated in public, led him try to isolate himself through silence when in this public milieu.” (Sennett 2017, 369)
A multidão é desconfortável e automaticamente coloca o indivíduo em isolamento, confrontado somente com a sua solidão: “Strangers on crowded streets give each other little clues of reassurance which leave each person in isolation at the same time: you drop your eyes rather than stare at a stranger as a way of reassuring him you are safe; you engage in the pedestrian ballets of moving out of each other’s way, so that each of you has a straight channel in which to walk; if you must talk to a stranger, you begin by excusing yourself and so forth…” (Sennett 2017, 369)
Desde o séc. XIX, que se pensa que a multidão tem o poder de pôr em causa a segurança de uma cidade. Desde então, existe a ideia de que a multidão precisa estar sob controlo, porque se acredita que a multidão é o modo pelo qual as paixões do indivíduo se deixam corromper e se expressam sem limites - a multidão tem a fama de ser capaz de transformar um indivíduo banal num monstro. Para Sennett, essa imagem da multidão está associada à ideia de que as pessoas que se expressam ativamente numa multidão são vistas geralmente como potencialmente perigosas: “…the people actively expressing their feelings in crowds are seen usually as the Lumpenproletariat, the under-classes, or dangerous social misfits.” (Sennett 2017, 369)
Sennett explica que no início do séc. XX, estudos relacionados com a psicologia social mostravam e expandiram exageradamente a ideia de que a multidão pode induzir a uma espécie de exaltação e loucura psicótica - a saúde psicológica de um indivíduo ao ser então analisada variava de acordo com o facto de pertencer ou não a um determinado grupo social. Esta suposição, ainda que pouco infundada, implicitamente levou à ideia de que apenas um simples espaço claramente demarcado e que permite o contacto entre um número limitado de indivíduos, mantém a ordem.
Esta imagem moderna, acerca da multidão, teve inevitavelmente ressonância no planeamento urbano moderno. Na cidade moderna persiste a ideia de que quanto mais simplificado o ambiente (reduzindo o número de funções e de interligações) haverá ordem e controlo - numa multidão ninguém se conhece e há mais liberdade. Na opinião de Sennett, uma cidade segregada é assim uma cidade fechada e aprisionada, sob permanente vigilância e escuta.
A vida na cidade moderna apresenta como característica esta contradição permanente - a ânsia de liberdade e abertura associada ao desejo de segurança e de previsibilidade. A cidade moderna aproxima somente os iguais, põem em contacto as pessoas que acreditam nas mesmas coisas, que partilham as mesmas expectativas e que pensam e atuam da mesma maneira. E por isso, qualquer pequeno desentendimento se pode tornar numa luta sangrenta porque os limites estão bem traçados e qualquer sentimento de invasão pode incrementar as diferenças. Num ambiente segregado é mais difícil conviver e aceitar a diferença - a presença do outro torna-se uma constante ameaça. Nestas circunstâncias e numa cidade fragmentada a ideia de pertencer a um mundo maior e mais complexo parece assustador e leva a um isolamento e a uma frustração ainda maior do indivíduo e do seu pequeno núcleo social - uma comunidade é então sinónimo de proteção emocional contra a sociedade em geral e por isso uma barreira territorial dentro da própria cidade: “This new geography is communal versus urban; the territory of warm feelings versus the territory of impersonal blankness.” (Sennett 2017, 372)