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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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SOBRE O RISO, O RIDÍCULO E O SAGRADO


"Foi tardiamente que os cristãos aceitaram os festejos carnavalescos às portas dos rigores da Quaresma. Apesar das tentativas da Igreja oficial para travá-los, eles continuaram e impuseram-se.” Foto: Maria João Gala / Global Imagens

 

Os Evangelhos referem mais de uma vez que Jesus chorou: nomeadamente, pela morte do seu amigo Lázaro e sobre Jerusalém e a sua ruína. Nunca se diz explicitamente que sorriu ou riu. Mas está escrito que se alegrou e exultou.


Comover-se, chorar, é próprio do ser humano. Como é próprio do ser humano sorrir e rir. Por isso, lá está Santo Tomás de Aquino a argumentar que, se era humano, é claro que também riu e sorriu. O animal não chora nem ri. O rosto de um ser humano que ri às gargalhadas pode ser do mais bonito que há. Sorrir e rir é sinal da transcendência humana: o ser humano está para lá do dado e do facto e, por isso, sempre também para lá de si mesmo. Ai do homem incapaz de rir-se de si próprio...


Evidentemente, há muitas formas de sorriso e riso, e as suas causas são múltiplas. O riso exultante não se identifica com o riso do desdém. O sorriso saltitante do acolhimento e da ternura nada tem a ver com o sorriso da ironia sardónica, e, muito menos, com o sorriso sobranceiro do desprezo. Em situações-limite, o riso estoira em lágrimas e a dor explode em riso. Tive uma vez uma jovem estudante que me pediu para escrever um “trabalho” precisamente sobre o riso, pois aconteceu-lhe que a mãe ao entrar na igreja e ao ver o cadáver da sua própria mãe (avó da jovem) começou a rir. Cá está: foi tal a dor, a angústia pela morte da mãe, que começou a rir-se — é isso: rimos até às lágrimas, choramos até ao riso…


Sintomaticamente, parte substancial das nossas piadas e anedotas não versam propriamente sobre o jocoso em si mesmo, mas sobre realidades tremendamente sérias: o sexo, a morte, o Além... Talvez por isso mesmo: por serem terrivelmente sérias. Talvez também por isso, o poder, em princípio, não tem boas relações com o humor e o riso e as ditaduras não toleram. É que o humor e o riso podem transportar consigo doses maciças de subversão corrosiva do poder no seu exercício, sobretudo no seu ridículo — não provém ridículo de ridere, precisamente rir?


Estas más relações são notórias concretamente quando consideramos o poder eclesiástico. Ainda não há muitos, muitos anos que os seminaristas nos seminários e as freiras nos conventos passavam os dias e as noites de Carnaval em adoração ao Santíssimo Sacramento, desagravando-o pelos pecados cometidos nesses dias e nessas noites. Não sei se alguém sabia ou saberá exactamente onde é que estava ou está a diferença entre os pecados do Carnaval e os pecados das outras épocas do ano...


Foi tardiamente que os cristãos aceitaram os festejos carnavalescos às portas dos rigores da Quaresma. Apesar das tentativas da Igreja oficial para travá-los, eles continuaram e impuseram-se.  Seja como for, havia na Idade Média uma festa, que era a Festa dos Loucos. Nessa festa, chegava-se ao cúmulo de paramentar um burro, que entrava, portanto, na igreja com as vestes litúrgicas. Realizava-se a Festa dos Loucos, uma crítica brutal ao poder eclesiástico. Arranjava-se um subdiácono, o grau mais baixo da hierarquia, era vestido de “bispo”, colocado em cima de um burro, entrava na igreja com a face voltada para a cauda, de costas para o altar. Em momentos fundamentais da liturgia, o celebrante e o povo zurravam. Na transmissão simbólica do báculo episcopal, rezava-se o Magnificat naquele passo: "e Deus derrubou os poderosos e exaltou os humildes." 


Há um texto da Faculdade de Teologia de Paris, que, em 1444, assim quer justificar a Festa dos Loucos: "Os nossos eminentes antepassados permitiram esta festa. Porque haveria ela de ser-nos interdita? Os tonéis do vinho rebentariam, se de vez em quando não se abrisse o batoque para arejá-los. Ora, nós somos velhos tonéis mal ajustados que o vinho da sabedoria rebentaria se o deixássemos ferver numa devoção contínua ao serviço divino. É por isso que dedicamos alguns dias aos jogos e à palhaçada, a fim de voltarmos em seguida com mais alegria e fervor ao estudo e aos exercícios da religião." Pelo menos, nessa altura, era permitido pôr a ridículo o poder clerical.


No meio de todo aquele aparato do Vaticano, não há uma contradição entre a pompa e a cruz?  E há aquele texto do filósofo Sören Kierkegaard, que diz mais ou menos assim: vai Sua Excelência Reverendíssima o Bispo de Copenhaga, revestido de paramentos com filamentos de ouro e um báculo e uma mitra debruados de pedras preciosas, com todo o seu séquito em esplendor, senta-se num cadeirão de prata e dá início à sua homilia sobre a pobreza. E ninguém se ri!...


A alguém que se sentisse irritado com estas perguntas lembro um texto de Joseph Ratzinger, mais tarde Bento XVI, no qual escreveu que, se hoje se critica menos a Igreja do que na Idade Média, não é porque se tem mais amor à Igreja, mas a si e à carreira.


É para mim evidente que não deve, não pode ser permitido ridicularizar de modo boçal o Sagrado, o Divino. Se isso fosse permitido, era a hecatombe. Mas a questão é outra: pôr a nu, pelo riso, a diferença entre o Sagrado e aquilo que nós seres humanos finitos fazemos dele é saudável. Porque o Divino e o Sagrado não se identificam com o que fazemos deles. Quem pode imaginar e admitir o ridículo de certas imagens de Deus na inteligência e no coração de alguns crentes? Assim, rir-se do modo como nós falamos do Mistério e do modo como o tratamos pode ser uma maneira sã de nos darmos conta da Transcendência do Mistério e do Divino. Que ao mesmo tempo se revelam e se ocultam.


Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 10 de fevereiro de 2024

O HUMOR, O RISO E O DIVINO

  


Pediram-me uma vez uma reflexão precisamente sobre o tema em epígrafe. Aí fica uma tentativa.


Sobre Deus que sabemos nós? Ele é infinito e está para lá de tudo o que possamos pensar ou dizer. O que sabemos dEle sabemo-lo através de Jesus, a sua revelação no mundo.


Através de Jesus, sabemos que Deus é, como se lê na Primeira Carta de São João, Agapê: Amor incondicional. Mas o Evangelho segundo São João também diz que Deus é Logos: Razão,  Inteligência e que tudo foi criado pelo Logos. Por isso, Deus tem sentido de humor, pois o humor é sinal de inteligência. Não é o humor fino revelador de uma inteligência fina?


Logo no primeiro livro da Bíblia, o Génesis, há uma passo belíssimo em conexão com o riso. “O Senhor apareceu a Abraão quando ele estava sentado à porta da sua tenda”, sob a figura de três homens. ‘Onde está Sara, tua  mulher?’ Ele respondeu: ‘Está aqui na tenda. Um deles disse: Passarei novamente pela tua casa dentro de um ano, nesta mesma época, e Sara, tua mulher, terá já um filho’. Ora, Sara estava a escutar à entrada da tenda. Abraão e Sara eram já velhos, e Sara já não estava em idade de ter filhos. Sara riu-se consigo mesma e pensou: ‘Velha como estou, poderei ainda ter esta alegria, sendo também velho o meu senhor?’.” O que é facto é que “o Senhor visitou Sara, como lhe tinha dito, e realizou nela o que lhe prometera. Sara concebeu e, na data marcada por Deus, deu um filho a Abraão, quando este era já velho. Ao filho que lhe nasceu de Sara deu Abraão o nome de Isaac. Abraão tinha cem anos quando nasceu Isaac, seu filho. Sara disse: Deus concedeu-me uma alegria, e todos quantos o souberem alegrar-se-ão comigo.”


Há aqui dois tipos de riso: Sara ri-se para dentro: como é possível, velha, ter um filho? Mas ao filho é dado o nome de Isaac, que, em hebraico, quer dizer “riso”, sendo aqui o riso um riso intenso de alegria: Isaac também quer dizer “aquele que traz alegria”. 


De Jesus diz-nos o Evangelho que chorou: chorou pela morte do seu amigo Lázaro, também sobre Jerusalém. Não se diz que riu. O nome da rosa, de Umberto Eco, anda também à volta dessa questão. Mas já Santo Tomás de Aquino observou  que é evidente que Jesus riu. A prova: Jesus é homem e rir é característica essencial do ser humano. Jesus participou em festas de casamento e alguém imagina uma festa de casamento sem risos, sem piadas festivas? O Evangelho testemunha que Jesus experienciou o melhor sentimento face à vida e ao seu milagre: o do maravilhamento e do contentamento.


O humor e o riso, repito, são um sinal evidente de inteligência, desdramatizam a vida, permitem viver de modo sadio consigo próprio, fazem bem à saúde, abrem transcendências. A Igreja está atravessada pelo bom humor, porque “um santo triste é um triste santo”. E há piadas fatais. Lá está o dito famoso: “ridendo castigat mores”: a rir castiga-se e corrige-se os costumes. Gil Vicente foi exemplar nisso. Digo: ai da Igreja e dos crentes sem a crítica mordaz, ácida, pela palavra e pela caricatura! O que não se pode é cair na boçalidade, pois esta apenas significa falta de inteligência. O riso também cura a vaidade oca: “Mesmo no mais alto trono do mundo, está-se sentado sobre o cu”, escreveu Montaigne.


Na Idade Média, realizava-se a chamada Festa dos Loucos, uma crítica brutal ao poder eclesiástico. Pegava-se num subdiácono, o grau mais baixo da hierarquia, era vestido de bispo, colocado em cima de um burro, entrava na igreja com a face voltada para a cauda, de costas para o altar. Em momentos fundamentais da liturgia, o celebrante e o povo zurravam. Na transmissão simbólica do báculo episcopal, rezava-se o Magnificat naquele passo: “e Deus derrubou os poderosos e exaltou os humildes.” Chamada a pronunciar-se, a Faculdade de Teologia de Paris, justificou-a com a necessidade de dar expansão à crítica, voltando depois a ordem.


A propósito da força crítica da piada e da caricatura, fica aí esta sobre o Vaticano e todo aquele luxo, que blasfema do Evangelho de Jesus, no fausto de uma procissão com cardeais, arcebispos, bispos, monsenhores... Veio São Pedro à janela do Céu e viu aquilo e, estarrecido, chamou Jesus, que olhou e apenas comentou: “E pensarmos nós, Pedro, que começámos aquilo, entrando de burro em Jerusalém onde fui crucificado... Lembras-te?” Por isso, respondi uma vez a uma jornalista: “Não. Jesus não entraria no Vaticano, porque não o deixariam entrar.”


Francisco socorre-se também do bom humor, e todos os dias reza a Oração do bom humor, oração atribuída a São Tomás Moro, o autor de A Utopia, o ex-chanceler que não se esqueceu de levar a gorjeta para o carrasco que ia decapitá-lo. Francisco recomendou-a também aos membros da Cúria Romana, onde tem tantos adversários e até inimigos, a quem falta o bom humor divino: “Dá-me, Senhor, uma boa digestão e também algo para digerir./ Dá-me um corpo saudável e o bom humor necessário para mantê-lo./Dá-me uma alma simples que sabe valorizar tudo o que é bom/ e que não se amedronta facilmente diante do mal, /mas, pelo contrário, encontra os meios para voltar a colocar as coisas no seu lugar./ Concede-me, Senhor, uma alma/ que não conhece o tédio,/ os resmungos,/ os suspiros/ e as lamentações,/ nem os excessos de stress por causa desse estorvo chamado ‘Eu’./ Dá-me, Senhor, o sentido do bom humor./ Concede-me a graça de ser capaz de uma boa piada, uma boa piada para descobrir na vida um pouco de alegria/ e poder partilhá-la com os outros./ Ámen.”

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 9 de julho de 2022