Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Próximo da via dei Condotti, na peregrinação romana, deparámo-nos com o “Albergue de Inglaterra”, um pequeno hotel na via Boca di Leone, número 14, que marcou o nascimento do turismo, onde estiveram o jovem D. Pedro V e o seu irmão D. Luís, de 26 de junho a 3 de julho de 1855, tendo ambos visitado o Papa Pio IX a 2 de julho, como se assinala, com pompa e circunstância, à entrada. Ruben Andresen Leitão, criterioso biógrafo (D. Pedro V – Um Homem e um Rei, 1950), explica-nos que “pela morte de D. Maria II, no dia 15 de setembro de 1853, devido à menoridade de El-Rei D. Pedro V, é estabelecida uma regência assumida por D. Fernando de Saxe-Coburgo pai do futuro Rei”. O jovem era menor de idade, pois tinha 16 anos incompletos por um dia, e o pai entende enviá-lo de viagem pela Europa, segundo a tradição setecentista de um “Grand Tour” pelas nações civilizadas. E o biógrafo considera ser nas duas viagens realizadas nos anos de 1854 e 1855 “que aparece de uma forma clara a grandiosidade de pensamentos e de conduta de D. Pedro V. Ia viajar para se instruir e aprender, e não como fonte de prazer e de distração, era uma obrigação que se impunha, considerava seu dever estar pronto a cumprir tal exigência”. “Quanto mais bem preparado estivesse, melhor se desempenharia do seu ofício”. Começou, assim, por visitar Inglaterra, onde permaneceu a maior parte do tempo, e seguiu depois para a Bélgica, Holanda, Prússia e Áustria, regressando a Lisboa a 17 de setembro. Voltou a partir a 20 de maio de 1855, regressando a Portugal a 14 de agosto, com passagem por França, Itália, Suíça, Bélgica e Ilha de Wight.
Para a primeira viagem, partiu a bordo do vapor Mindelo, a 28 de maio de 1854, e as impressões de Inglaterra são preciosas “porque ele vê e observa tudo”. Sentia “necessidade de criação de uma nova mentalidade, aberta, apta à aceitação de novas ideias do progresso”, e desejava um maior nivelamento social, criticando a nossa nobreza ignara e longe da instrução e cultura. Estava, assim, claramente determinado sobre a organização de um sistema de instrução pública que fosse a primeira medida séria respeitante ao País. “Estou certo de que nada produz mais o barbarismo do que a ignorância e nenhuma mais do que a da história, porque a história mostra o que são os homens, mostra o que eles foram, e é a experiência dos séculos; e acrescentarei nenhuma ignorância de história é mais prejudicial do que a da história da civilização”. As Artes, as Ciências, a Instrução, as Bibliotecas, encaradas como instituições públicas para todos, a organização das instituições, a economia moderna, a qualidade das produções, o melhor aproveitamento dos recursos, eis o que importava. “Temo-nos tornado positivos; hoje não se escreverá tão belo estilo como há um século, mais escrevem-se mais verdades e os nossos escritos são mais úteis”. Não dispomos dos diários correspondentes aos dias de Roma, por falta de tempo do jovem rei para os escrever, mas Filipa Lowndes Vicente (Viagens e Exposições – D. Pedro V na Europa do século XIX, 2003) esclarece-nos que esta foi uma etapa menos importante do seu itinerário, como o jovem rei confidencia ao seu querido tio príncipe Alberto, marido da Rainha Vitória. Se as antiguidades de Roma “tornam a história uma coisa mais viva que qualquer livro”, tudo o mais não é tão interessante, pois o jovem estava mais interessado nos progressos materiais de países como a Inglaterra e a Holanda ou a França. Mesmo assim, refere com gosto: “quando em Roma eu passeava entre as ruínas da capital do mundo dos antigos”. Foi um bom encontro este com D. Pedro V e com a importância do seu “Grand Tour”. E bem perto está a última morada do genial Domingos António de Sequeira, com os auspícios de Alexandre de Sousa Holstein, que nos fixam a atenção, num outro modo de cultivar o espírito civilizado e livre.
Francisco de Holanda (1517-1585) encontrou-se com Miguel Ângelo e percorreu então grande parte de Itália para aprender e para conhecer e desenhar obras da Antiguidade e da arte italiana renascentista do momento.
NOS PASSOS DE FRANCISCO D’HOLANDA A visita à Capela Sistina, em condições únicas de serenidade e atenção, foi o começo da visita à Roma dos portugueses, de que já comecei a falar, graças à hospitalidade de José Tolentino Mendonça. A hora muito matutina, permitiu chegar àquele lugar único, sem o rebuliço habitual, num silêncio quase sepulcral. E quando a luz se abriu, toda a teatralidade se tornou evidente, na diversidade dos quadros e personagens. O nosso qualificado guia falou-nos então de um jovem português aqui chegado nos idos de 1538. “Sendo eu da idade de XX anos me mandou El-Rey (…) a ver Itália e trazer-se-lhe muitos desenhos de coisas notáveis dela”. Referia-se aos passos de Francisco de Holanda (1517-1585), autor de “Da Fábrica que falece a Cidade de Lisboa”, figura notável, mas pouco conhecida dos portugueses, que no percurso dessa viagem se encontrara com a Imperatriz Isabel de Portugal, casada com Carlos V de Habsburgo, que o jovem muito admirava, por ser filha de D. Manuel I, e por ter encomendado a seu pai António de Holanda o retrato do futuro rei Filipe I, ainda criança, ao seu colo. Francisco de Holanda percorreu então grande parte de Itália para aprender, ou seja, para conhecer e desenhar obras da Antiguidade e da arte italiana renascentista do momento. Com maior ou menor intimidade, a verdade é que o português se encontrou com o já muito consagrado mestre Miguel Ângelo, no momento crucial da feitura do Juízo Final, com quem partilhou ideias e tirou ensinamentos, graças à missão de que vinha incumbido por D. João III, à amizade com os Imperadores e ao empenho do notável D. Miguel da Silva, conhecido como Cardeal de Viseu, sobrinho da célebre Santa Beatriz da Silva e do Beato Amadeu da Silva. No pórtico da Basílica de Santa Maria de Trastevere, encontrámos a última morada deste, falecido em Roma a 5 de junho de 1556. Quanto à proximidade de Francisco de Holanda relativamente a Miguel Ângelo, se dúvidas houvesse, os estudiosos como Joaquim de Vasconcelos, invocam uma carta enviada em 1553 ao genial pintor com o pedido de um desenho seu para guardar como lembrança dessa amizade.
IMERSÃO TOTAL NA CIDADE ETERNA Foi assim que iniciámos uma imersão total na Cidade Eterna, deparando-nos com um novo humanismo, centrado no conhecimento, numa síntese fecunda entre o Antigo Testamento, a influência clássica (bem presente na representação das Sibilas na Capela Sistina) e a Boa Nova de Jesus Cristo. Num dia de sol e calor, na colunata da Praça de S. Pedro lembrámos a presença de dois portugueses: Santo António de Lisboa e de Pádua (“Il Santo”, sem mais qualificação, como os italianos o designam, em homenagem suprema ao seu extraordinário carisma) e Santa Isabel, Rainha de Portugal. A bonomia do Papa Francisco, que testemunhamos, contrasta com as dificuldades que sente ao movimentar-se. Depois, por um momento, encontramos no interior da Basílica de S. Pedro, o único português que está eternizado na pedra, S. João de Deus, fundador da Ordem dos Hospitalários. Enquanto caminhamos, recordamos que foi o controverso Papa Nicolau III a tornar o Vaticano, e a memória do martírio de S. Pedro, centro da Santa Sé. E logo lembramos João XXI, a quem Nicolau III sucedeu, Pedro Hispano (1215-1277), o único Sumo Pontífice português (1276-77), que merece a Dante um destaque especial na “Comédia”: “Pietro Spano lo qual giú luce in dodici libelli…” (“Paraíso”, Canto XII). Visitá-lo-emos em Viterbo e enaltecemos a importância da sua obra multifacetada de Médico, de Teólogo, Matemático e Filósofo – autor do “Thesaurus Pauperum” (com uma centena de edições e tradução em 12 idiomas), das “Summulae Logicales” ou de “De Curis Oculorum”. Referir os portugueses em Roma, quer em presença física, quer na influência é uma tarefa inesgotável – e apesar de não os conhecermos, numa primeira impressão, depressa compreendemos a sua influência. Ao passearmos nos jardins do Vaticano, vamo-nos apercebendo de uma história em que tudo na evolução do mundo por aqui passa. Não podemos entender os acontecimentos de dois milénios sem considerar a complexa intervenção dos Pontífices, que herdaram a tradição imperial romana, mas também da Cúria, dos Conclaves, dos conflitos com o Sacro Império, das virtudes e dos pecados humanos, das relações que se vão alargando e das fronteiras do mundo que se consolidam ou desfazem. Quando ao início da tarde nos reencontramos na Porta de Santa Ana com o Arquivista e Bibliotecário da Santa Sé, que toda a manhã nos acompanhara, mergulhamos no seu mundo maravilhoso, outrora identificado como secreto, mas hoje submetido às regras gerais dos arquivos. Em outubro de 2019, o Papa Francisco mudou o título centenário do Arquivo Secreto do Vaticano para Arquivo Apostólico, em nome da verdadeira vocação da instituição – ser um revelador de verdade e não de segredos. A Biblioteca Apostólica Vaticana é a mais antiga da Europa foi fundada por Nicolau V (1397-1455) com a herança das antigas bibliotecas papais. Em 1475, o Papa Renascentista Sisto IV (1414-1484), a quem se deve a designação da Capela Sistina, que vamos encontrando a cada passo da nossa viagem, decidiu permitir o acesso dos eruditos aos mais de dois mil e quinhentos textos ali reunidos.
ARQUIVO E BIBLIOTECA VATICANAS No Arquivo e Biblioteca tivemos uma tarde extraordinária. São impressionantes os números, a extensão linear das estantes, os desafios ligados à preservação de documentação milenar e à inovação tecnológica imparável. Ali podemos conhecer melhor a história milenar exaustivamente documentada. 1,6 milhões de livros impressos, 80 mil livros manuscritos, 100 mil impressões (gravuras e estampas), 350 mil moedas e medalhas. José Tolentino Mendonça fala-nos, com entusiasmo, de um antídoto contra a amnésia. O património cultural e a sua defesa obrigam-nos a preservar a memória como realidade necessária e presente. “Uma das missões fundamentais da Biblioteca Apostólica é a de preservar alguns dos mais antigos testemunhos da tradição manuscrita das Sagradas Escrituras: só isto seria suficiente para considerá-la como o coração da Igreja” – lembra o poeta e cardeal, mas acrescenta, lembrando o Papa Francisco: aqui correm dois grandes rios, a palavra de Deus e a palavra dos homens. Quando olhamos o manuscrito do Cancioneiro da Vaticana aberto numa das páginas da poesia de D. Dinis (73 cantigas de Amor, 51 cantigas de Amigo e 10 de Escárnio e Maldizer) sentimos um testemunho vivo vindo da profundeza do tempo – «Amiga, bom grad’haja Deus / do meu amigo que a mi vem / mais podedes creer mui bem / quando o vir dos olhos meus, / que poss’aquel dia veer / que nunca vi maior prazer». E se sentimos como que uma vertigem perante das primeiras provas da nossa língua, tornada universal, e designada na Ásia como “papiar cristão”, somos levados às origens da nossa identidade, interpelados pela certidão de 1179 do Papa Alexandre III. Nos corredores e recantos daquele edifício quantos mistérios desvendados e por desvendar?
«Itália – Práticas de Viagem» de António Mega Ferreira (Sextante Editora, 2017) ajuda-nos a compreender melhor a Roma que foi destino e presença de muitos portugueses.
PIAZZA DEL POPOLO
A esplanada do Caffè Rosati, na Piazza del Popolo, recomeça a ter o movimento usual, depois das vicissitudes da pandemia. Este ano o Rosati faz cem anos. Descansamos um pouco, sob breves efeitos de um aguaceiro que se anuncia. Viemos pela via del Corso em demanda de onde se encontra sepultado o Cardeal de Portugal, em Santa Maria del Popolo. Mas, antes de falarmos sobre o célebre D. Jorge da Costa (1406-1508), lembramos que foi na praça que nos rodeia que foi montado o gigantesco estaleiro para a montagem da Capela de S. João Batista na nossa Igreja de S. Roque. Encomendada por D. João V em 1740 e inaugurada dez anos depois, teve como autores Luigi Vaniteli e Nicola Salvi, que contaram com 130 artífices para a concretizar. A capela seria primeiro sagrada em Santo António dos Portugueses pelo Papa Bento XIV, tendo sido necessárias três naus para o seu transporte para Portugal, depois de desmontada. Aí se representam o Batismo de Cristo, a Anunciação e o Pentecostes, sendo as representações feitas de embrechados de materiais nobres, num verdadeiro museu mineralógico, lápis-lazúli, ágata, verde antigo, alabastro, mármore de Carrara, pórfido roxo, branco-negro de França, brecha antiga, diásporo e jade… Sentados no Rosati, lembramos antigas presenças fiéis, como Alberto Moravia, Elsa Morante, Italo Calvino e Pasolini. E não resistimos (porque viagens se fazem sempre com livros) a recordar o que António Mega Ferreira diz sobre uma fotografia mítica que publica (Itália – Práticas de viagem, Sextante Editora, 2017): “Pasolini tornou-se, naqueles vertiginosos anos 60, um dos ícones do café Rosati e são diversas as fotografias que o surpreendem na companhia deste e daquele, sobretudo Calvino e Moravia, que eram mais que seus confrades, admiradores fiéis”. Nestas lembranças, ali ficámos com o Centro Nacional de Cultura por momentos, com Maria Calado, cientes de que este era o nosso lugar, e não o Canova, à esquina da Via del Babuino, de outras companhias…
O CARDEAL DE PORTUGAL
Mas voltemos a Santa Maria del Popolo, mandada construir pelo prolífico Sisto IV, entre 1472 e 1477. O Cardeal de Portugal, conhecido como de Alpedrinha, viveu até aos 102 anos, serviu 5 Papas e foi detentor de 7 títulos cardinalícios, estando provavelmente representado nos Painéis de S. Vicente. Desempenhou um papel fundamental na diplomacia, em especial no Tratado de Tordesilhas. Está sepultado aqui, com pompa e circunstância, dispondo de estátua jacente e identificação com as suas armas, a roda das navalhas de Santa Catarina de Alexandria. A visita à Igreja permite-nos ver com deslumbramento as obras-primas de Caravaggio “Conversão de S. Paulo” e “Crucificação de S. Pedro”, mas também as intervenções barrocas de Bernini sobre as arcadas da nave. Em S. Lourenço in Lucina encontramos o local onde se situava o seu Palácio e na Basílica próxima, construída sobre um templo proto-cristão descobrimos o túmulo de Gabriel da Fonseca, cristão-novo, médico dos Papas Inocêncio X e Alexandre VII da autoria de Bernini. Lembre-se que o “Arco de Portugal”, que conhecemos apenas em gravura, e foi demolido, no tempo de Alexandre VII, para alargamento da via del Corso, tem essa designação pela relação de proximidade com o palácio de D. Jorge. Continuamos no Café Rosati, quando se animam os frequentadores e volta a sentir-se, não a intensidade do tempo de Pasolini, mas, ao menos, a necessidade de voltar à criatividade dos tempos áureos. E lembro Stendhal, naturalmente. Se desta vez viemos em busca de portugueses não podemos esquecer os roteiros de Goethe e do autor de “A Cartuxa de Parma”. “O povo romano é talvez aquele de toda a Europa que mais gosta da sátira fina e mordente. O seu espírito extremamente fino agarra com avidez e felicidade as alusões mais distantes. O que o torna muito mais feliz do que o povo de Londres, é por exemplo, o desespero. Acostumado há três séculos a olhar os seus males como inevitáveis e eternos, o burguês de Roma não se encoleriza contra o ministro, e não deseja a sua morte; o ministro será substituído por um outro ser igualmente mau. O que o povo quer, antes de tudo, é fazer pouco dos poderosos e rir à sua custa, daí os diálogos entre Pasquino e Marforio. A censura é mais meticulosa que a de Paris, e nada é mais maçador que as comédias. O riso refugiou-se nas marionetas que representam peças mais ou menos improvisadas”. O retrato tem atualidade. Voltamos a olhar em redor a Piazza del Popolo. A chuva hoje foi exceção, e não dissuade a multidão que percorre as ruas em busca dos monumentos e das curiosidades. As igrejas gémeas de Santa Maria de Montessanto e de Santa Maria dos Milagres, recordam o arquiteto Carlo Rainaldi.
UM MODELO DE CIDADE
Verdadeiramente quem se torna marcante nesta praça como modelo é a memória do tempo de Bernini. E volto às notas preciosas de António Mega Ferreira: “Entre 1623, data de acessão ao sólio pontifício de Matteo Barberini, o papa Urbano VIII, e 1667, data em que morreu Fabio Chigi, que adotara o nome de Alexandre VII, a cidade de Roma sofreu uma das mais profundas revoluções da sua história: a munificência de três papas e a esplendida criatividade dos seus artistas fizeram da antiga urbe imperial o centro de um movimento que consagrou a imagem do barroco romano e marcou a fisionomia e a história para sempre”. A cidade estruturada por Alexandre VII a partir desta entrada da Piazza del Popolo tornou-se outra realidade, dando ao “tridente” uma consistência que permitiu transformar Roma numa realidade capaz de mostrar a sua riqueza e heterogeneidade culturais e artísticas. É o grande momento do barroco, nos palácios, nas igrejas, nos jardins, nas escadarias, nas fontes, nos claustros, nas decorações. A Arte torna-se movimento. E quem é o encenador, o mestre, o criador? Naturalmente, Bernini (1598-1680) – escultor e artífice dos caprichos e das representações. Tem razão Mega Ferreira: “Bernini era de uma versatilidade estonteante e de uma criatividade sem limites; nele tudo era movimento, expressividade e graça” Falei há pouco do busto de Gabriel da Fonseca. Temos vontade de o tocar e de partilhar com ele uma charla. E se dúvidas houvesse, aí está o Baldaquino erguido sobre a sepultura de S. Pedro em plena Basílica Maior. Sem necessidade de fazer comparações, não podemos desvalorizar o outro grande nome do momento, Borromini. Se bem virmos as coisas, tudo se completa, numa convergência singularíssima. Só esta extraordinária explosão de génio permite compreender San Carlo alle Quatro Fontane ou o equilíbrio dos quatro rios da fonte da Piazza Navona. Mas tudo só é possível, graças à decisão (tão referida por Le Corbusier) de criar o Tridente, que parte da Piazza del Popolo – via del Babuino, via del Corso e via della Ripetta – e que, passado o Tibre, nos leva á extraordinária esplanada vaticana de S. Pedro. A história humana nunca depende só de um génio ou de um movimento, mas de uma convergência de elementos complexos. A “arte, todas as artes, devem entrelaçar-se na criação de um bel composto, que é tanto mais verdadeiro quanto mais se afasta da verdade nua que só o Tempo revela…” Por um momento, na esplanada do Rosati a chuva amainou ligeiramente e Le Corbusier veio à conversa.
Estamos atentos ao que se passa em Roma nas próximas horas! É com alegria e esperança que saudamos a decisão do Papa Francisco de nomear como Cardeal o nosso querido amigo e associado José Tolentino Mendonça. Na história do Centro Nacional de Cultura e em vésperas dos 75 anos, que é uma idade respeitável, é a primeira vez que contamos com dois Cardeais entre os nossos sócios efetivos (com D. Manuel Clemente) – devendo salientar-se que ambos se iniciaram no Centro ainda clérigos, quando não tinham qualquer outra dignidade eclesiástica. D. José Tolentino Mendonça foi no CNC sempre uma referência no diálogo com o mundo da cultura, muito para além das fronteiras religiosas. E há alguns anos quando homenageámos, na Capela do Rato, Lourdes Castro, desde a sua juventude muito cá de casa (designadamente com José Escada), lembrámos essa atitude fundamental do novo Cardeal – a de que a Arte e a Cultura têm sempre um sinal de Deus. E José Tolentino compreendeu-o sempre. E há dias, Paula Moura Pinheiro interpretava fielmente o sentimento de muitos dos seus amigos, de vários horizontes culturais, dizendo: “Espero que o padre Tolentino provoque o estremecimento na Santa Sé que sistematicamente provocou a nós que o ouvíamos pessoalmente na Capela do Rato durante tantos anos e tenha o mesmo fulgor revolucionário que sempre lhe conheci”. A jornalista lembrava a sua participação na comunidade da Capela do Rato, onde teve “por pastores padres maravilhosos”, considerando que “é impossível negar que o padre Tolentino tem características únicas” que o fazem “excecional”. “Ele tem uma espécie de acesso e quando começa a conversar ilumina-se e passa a pertencer a qualquer coisa, de outra dimensão, metafisica. É o que eu sinto quando o ouço”. E com que emoção recordamos com ele o espírito da revista “Concilium”, o Círculo do Humanismo Cristão, a Livraria Moraes, o MRAR – Movimento de Renovação da Arte Religiosa, que aqui vivemos, nas paredes que habitamos – Helena e Alberto Vaz da Silva, António Alçada Baptista, João Bénard da Costa, Pedro Tamen, Frei Mateus Peres O. P., Nuno Bragança, João de Almeida, Nuno Teotónio Pereira, Diogo Lino Pimentel, Freitas Leal e tantos outros… Quanto caminho percorrido? Quantas veredas trilhadas, contra ventos e marés?...
Importa, pois, lembrar a ação que desenvolveu nos meios culturais como poeta consagrado, que tem procurado abrir horizontes de diálogo com os meios intelectuais numa perspetiva de troca de ideias, de enriquecimento mútuo e de um melhor conhecimento das preocupações espirituais do mundo contemporâneo, a partir da laicidade, da liberdade religiosa, numa sociedade aberta e pluralista. Simbolicamente o novo Cardeal adotou como lema a frase “Olhai os lírios do campo” (Mt., 6, 28) e escolheu como símbolos os lírios, um elefante, e o Alfa e o Ómega da mensagem bíblica do Filho do Homem. O elefante representa a velha e mítica ligação dos portugueses a Roma, de que a célebre embaixada do Rei D. Manuel ao Papa Leão X em 1514 é uma indelével referência, enquanto os lírios representam a simplicidade da vida. A leitura de «Elogio da Sede» (Quetzal, 2018) permitiu-nos compreender melhor a alegria e a disponibilidade pessoal com base no entendimento da sede como “bem-aventurança que nos salva”. «Não é fácil reconhecer que se tem sede. Porque a sede é uma dor que se descobre pouco a pouco dentro de nós, por detrás das nossas habituais narrativas defensivas, asséticas ou idealizadas; é uma dor antiga que sem percebermos bem como encontramos reavivada, e tememos que nos enfraqueça; são feridas que nos custa encarar, quanto mais aceitar na confiança». Eis por que razão, o poeta nos põe de sobreaviso contra a indiferença, contra o encolher de ombros do relativismo. A liberdade religiosa e o encontro entre convicções obrigam a estarmos disponíveis para ouvir e para caminhar juntos, sendo capazes de nos colocarmos no lugar dos outros. Não pode haver diálogo na ignorância ou na suposição de que temos certezas acabadas e fechadas. Ao percorrermos as meditações, seguimos os capítulos, significativamente intitulados – Aprendizes do espanto, a ciência da sede, o perceber que se está sedento, a sede de nada que nos adoece, a sede de Jesus, as lágrimas que contam uma sede, o beber da própria sede, as formas do desejo, a escuta da sede das periferias, e a bem-aventurança da sede. Cada palavra, cada passo devem ser considerados, cultivando o tempo, a reflexão e a atenção. E se alguns põem em causa o facto de o Papa Francisco apelar às periferias, como se estivesse a esquecer as centralidades, a verdade é que a centralidade da dignidade humana só pode ser compreendida se entendermos os limites, as dificuldades, as angústias. Quantas vezes nos sentimos perdidos e abandonados – são esses os momentos fundamentais para que temos de nos prevenir perante o risco de cairmos e de estarmos fortes para nos levantarmos. Mas se estamos demasiado seguros e certos, há qualquer coisa que falta na fé e na esperança e que empobrece o amor. Oiçamos: «Perguntamo-nos muitas vezes o que é a misericórdia. E a misericórdia não cabe numa definição. Não se pode dizer: “A misericórdia é isto”. Precisamos de espelhos para compreender a misericórdia. Ela tem de encarnar-se para que a possamos tocar. Misericórdia é compaixão, misericórdia é bondade, misericórdia é perdão, misericórdia é colocar-se no lugar do outro, misericórdia é levar o outro aos ombros, misericórdia é reconciliação profunda. É tudo isso. Mas é isso realizado também com um determinado estilo, que é o estilo do pai da parábola de Jesus. Não há misericórdia sem dádiva, sem doação. Aquele filho trazia tantas feridas, manifestas e escondidas, e precisava de ser curado com o bálsamo da misericórdia». E se falamos de dádiva, temos de ter presente a ideia de troca – dou e dás, encontramo-nos afinal na generosidade. No fundo, “Deus ama a vida e não desiste dela”. De que vida nos fala? Do quotidiano inesperado, em que podemos descobrir o outro que nos procura. Nos caminhos insondáveis temos de ser aprendizes do espanto. “O que nos salva é um excesso de amor, uma dádiva que vai para lá de todas as medidas”. Não, não estamos saciados – estamos sim cientes de uma sede que não se satisfaz imediatamente na nossa condição. Através do amor, do respeito e da dignidade vamo-nos saciando. Mas é a consciência dos limites que nos leva a entender que não estamos sós e que temos de estar atentos a quem nos chama, mesmo em silêncio… S. Paulo di-lo melhor que ninguém. A fé e a esperança passam. O amor e o cuidado ficam – e assim a sede é o desejo e o caminho para esse dia em que poderemos finalmente ver face a face… “Porque Deus não desiste de dizer a toda a vida – à nossa vida – que ela é querida e bem-aventurada. Essa é a sede de Deus”.
Um dia José Tolentino disse a Anabela Mota Ribeiro: «Detesto o moralismo. Penso que o moralismo falseia o encontro connosco próprios e com a humanidade. O que acontece aos outros acontece a cada um de nós. Dizia o cristianíssimo Dostoievski: “Somos responsáveis por tudo perante todos”. (…) A experiência do mal atravessa todas as vidas. Todos precisamos de ser salvos. (…) Somos mesquinhos, banais, egóticos, ressentidos. Se não tomamos consciência disso não conseguimos a transformação. A primeira condição da transformação é a nudez. Ser capaz de contar a sua verdade. Gosto muito da Flannery O’Connor (dizia o poeta), que é para mim, ao lado do Pasolini, uma mestra espiritual. Ela mostra um mundo que se diria monstruoso. De assassinos em série. De gente capaz de tudo. “Esse mundo somos nós”. Até que acontece o encontro com a graça. É esse encontro que transforma a nossa vida. Penso que não se pode dividir [a humanidade] entre homens bons e homens maus. (…) Há a experiência do mal, que é comum a todos, que nos atravessa, corrói, domina em tantos momentos». Quem somos afinal? Quem são os sedentos que se encontram connosco na dúvida e na incerteza? O filho pródigo e o seu irmão ressentido somos nós. S. Pedro a negar três vezes somos, de facto, nós. S. Tomé incrédulo ainda somos nós, muito mais vezes do que julgamos. Graham Greene quando se converteu escolheu o nome de Tomé, exatamente porque sabia que a fé e a incerteza se completam – enquanto paradoxalmente Mauriac num grito algo provocatório lembrava às avessas do Salmo 22: “Meu Deus, meu Deus porque não me abandonaste”. E Santa Teresa de Jesus alertava para a ingenuidade de supor que “as almas às quais Nosso Senhor se comunica, de uma maneira que se julgaria privilegiada, estejam contudo, asseguradas nisso de tal modo que nunca mais tenham necessidade de temer ou de chorar os seus pecados».
No início da noite, no Coliseu de Roma, entra em palco Renato Zero (nome artístico de Renato Fiacchini). Ergueu-se de imediato a taça da fonte que faz brincar a água parada da vida. Começou a magia, e eu deixei-me cair no seu caminho, ou não sentisse que o movimento da vida, faz o seu ninho na poesia e música de Renato Zero.
Não sei dizer como me chegou aos olhos por vidro nulo a figura de Renato. Nem sei como fiquei sem medo, um sem medo em segredo, mas que ele conhece existir em todos nós. Por isso mesmo Renato usa as suas mãos também para segurar a candeia do amor seguro que nos entrega.
A noite inicia-se pedindo em troca a sua voz. E logo que choro, ele pede à porta do meu coração para entrar. Cantamos todos. Canta o Coliseu inteiro. Ouvem-se ainda assim as asas das palavras contidas nas músicas que Renato soberbamente canta, ou não estivéssemos a ouvir um dos maiores e mais corajosos poetas da música de Itália.
(“Sei uno zero” è la frase che più si sentirà ripetere quando travestito e truccato cominciò ad esibirsi in piccoli locali romani)
«Doutor? Acha que agora estou bem?
Sim. Não lhe vejo nada. Está completamente bem.
Então estou zero?
Sim, efetivamente nada tem. O que fez? Mudou a medicação?
Não. Usei sempre a minha.
Qual?
Escrevi e cantei e fui eu: Zero.»
Ouvi, e vi o espanto do médico. Era como se ele visse a escuridão cheia de faíscas que eram estrelas. Levantou-se à procura das receitas e saiu não sem que antes abraçasse o Renato. Num instante subi ao palco e disse ao ouvido de Zero que mantinha o microfone junto aos meus lábios:
«Sei que és como eu. Ainda não tivemos medo dos momentos». E Ele num sussurro de Coliseu aberto: Il mio alibi è che vivo.Rivoluzione.
E como ainda sinto que a revolução é o melhor tempo do nosso futuro, aqui deixo para vós se me lerem, o escutar desta canção de Renato.
E depois esta canção que surge como se uma nova fonte de sabedoria se abrisse ali e nos prendesse à terra com sólida eficácia. Dancei imóvel, abracei Deus pelas flores e escutei-o como no dia em que Renato, ao lado de Pavarotti, levou este a dançar sozinho no palco e juntava-se a Renato Zero apenas nos refrões, tendo dito no final desta canção «Lua, de que estás à espera».
Antes que a voz de Renato Zero se ouvisse de novo, desejei tanto ter muitos leitores no Blogue do CNC apenas para que eu não guardasse para mim este sábio espesso. Um homem propenso ao convívio pragmático de lábios incapazes de velocidades levianas, mas que deve ser espiado sem binóculos de teatro já que a sua intimidade o não entaipa.
Nasce Renato em 1950. Atravessa períodos muito dolorosos.
Le sue canzoni racconteranno se stesso come uomo e come artista, l’amore e il sesso in tutte le sue declinazioni e precorreranno i tempi affrontando temi come la pedofilia, l’identità di genere, la droga, l’incomunicabilità, l’omosessualità, l’emarginazione, la violenza e la spiritualità.
Renato é um dos poucos que no mundo tem a coragem das ideias. É o primeiro artista italiano a produzir-se e distribuir-se. Quase desconhecido em Portugal, devo desde já dizer que, inventarei sempre aplausos para ele sob e sobre quaiquer olhares distantes de multidões restantes que receando riscos de fatais ausências de comportamento ditos elitistas o não acolham.
Renato Zero foi sempre citado por David Bowie, Beyoncé, Cohen, entre muitos outros. Tem tido estrondosos sucessos no Victoria & Albert em Londres. Irónico transgressivo, amado e odiado, grande dançarino e ator em vários filmes de Felini e Pasolini, não tem qualquer reverência pela dita cultura considerada alta. No entanto, intelectuais de todo o mundo dizem-no ser uma verdadeira pulsação do enigma.
Acaba o concerto e sai no seu passo de amor a cantar esta outra história da humanidade e dos seus sentires.
Enorme a minha dívida pelo que és! O amor continua a ser um segredo mesmo quando se fala dele. Tal qual a liberdade. Tal qual a inquietudo mesmo quando nos distraimos. Impiedoso foi o tempo enquanto te não ouvi e vi ao vivo.