Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

NOTÍCIAS DO PARAÍSO

  

David Lodge (1935-2025) foi um mestre do romance satírico britânico e a sua obra encerra uma análise plena de ironia da sociedade em que vivemos, desmascarando a vaidade, a hipocrisia e a mesquinhez que a cada passo encontramos. Discípulo de Jonathan Swift ou de Henry Fielding, seguiu as pisadas de Evelyn Waugh, de Graham Greene ou até de Chesterton, fazendo chegar até nós o saudável espírito de um cristão inconformista, empenhado em distinguir o essencial e o acessório, pondo em primeiro lugar o sentido crítico e o respeito mútuo. Os seus maiores êxitos editoriais tornaram-se referências que ultrapassaram as contingências do tempo em que surgiram. Quando publicou O Museu Britânico vem Abaixo (1965) partiu da sua experiência como professor universitário, seguindo o percurso de um jovem estudioso de língua inglesa às voltas com uma dissertação com tema muito complicado sobre “A estrutura de frases longas em três romances ingleses modernos”. Contudo o investigador deixou-se distrair com as circunstâncias mais diversas e estranhas. No caso de Lodge como autor da tese sobre “O Romance católico desde o movimento de Oxford até aos nossos dias”, ele fez da carreira universitária o seu ganha-pão, aproveitando o facto para poder criticar, com humor e sentido crítico, a perversidade dos labirintos universitários e das suas endogamias. Em A Troca (1975), romance passado nas Universidades fantasiosas de Rummidge e Euphoric, em Inglaterra e nos Estados Unidos, dois professores de literatura inglesa trocam as suas posições durante seis meses, e deparamo-nos nesse cenário com o cabotinismo e a preguiça generalizados em busca de reconhecimento intelectual, entre congressos e conferências, à mistura com devaneios amorosos. Com um humor feroz, encontramo-nos perante o que Umberto Eco designou, cheio de ironia, como “picaresco académico”.  

Em How Far Can We Go (Até Onde Podemos Ir) (1980) o romancista põe em diálogo, com inteligência, ironia e até ternura, vários católicos que se conheceram nos anos cinquenta do século passado e que se veem confrontados com uma evolução dramática da espiritualidade, com as mudanças não apenas ditadas pelo Concílio Vaticano II, mas também pela sociedade contemporânea no tocante à tomada de consciência do corpo, a uma maior permissividade sexual e ao surgimento da pílula, no contexto de um confronto entre o tradicionalismo e a modernidade. Graham Greene dirá tratar-se de uma obra magnífica. Segundo David Lodge: “Ler é submeter a curiosidade e o desejo a um continuo movimento de uma frase para outra. O texto desvenda-se diante de nós, mas não permite que o possuamos. Mais do que desejarmos possuí-lo, deveremos obter o prazer de usufruir das suas traquinices”. De facto, a descoberta do prazer e dos jogos de sedução, permitindo compreender o que muda no mundo e na vida em cada momento, constitui uma permanente preocupação do escritor, na relação com a literatura e os seus leitores, como analisará nos casos de Henry James e H. G. Wells. Com efeito, as notícias que recebemos do paraíso obrigam a limitar os entusiasmos. Não nos devemos enganar. Daí a importância de uma boa dose de ironia, para que percebamos que não há mundo perfeito, mas a necessidade de termos sentido de autocrítica, para caminharmos com sinceridade e sabedoria...     


GOM

"O VENTO ASSOBIANDO NAS GRUAS"

  


Villa Regina, Fábrica Velha, Bairro dos Espelhos, Valmares e um mistério – eis as referências. Milene estava em casa por volta do meio-dia a ouvir os “Simple Minds” e tocaram à porta dois agentes da Guarda Nacional Republicana a perguntarem se ela sabia onde estava a avó Regina. E então tudo se precipitou. E uma pergunta terrível ficou por responder. Por que razão e como aconteceu tudo aquilo? “Tudo o que tinha a fazer era imaginar que todas essas coisas caladas se conjugavam para encobrir a noite de quinta-feira, de propósito para ela mesma não saber o que dizer aos tios”. A avó Regina morreu e ela estava só. O romance de Lídia Jorge constitui a base para o filme de Jeanne Waltz, no qual nos deparamos com belas imagens do Sotavento algarvio e o cenário da memória de uma antiga fábrica de conservas, num tempo em que tudo mudou intensamente com a chegada de novas pessoas, encontros e desencontros. E tornam-se evidentes dois mundos, à primeira vista irreconciliáveis, mas dentro do mistério que domina o curso dos acontecimentos, há por obra e graça talvez do acaso a presença sempre enigmática da jovem Milene Leandro, que temos de considerar singular na sua distância de tudo, cuja ingenuidade, lentidão e simplicidade de sentimentos e raciocínio vão, ao longo do romance, torná-la a principal protagonista, respondendo às interrogações fundamentais e revelando o essencial quanto ao destino da vida, sendo vítima da perversidade e da violência, mas capaz de ver o mundo com uma lucidez que os outros não vislumbram.


Parecendo não compreender, Milene é quem melhor entende o fio condutor da existência. E se há distância entre o romance e o filme, já que são duas realidades complementares e diferentes, é porque a literatura é mais adequada a revelar o drama e a força de Milene, em cada silêncio ou em cada palavra, que vêm do íntimo de si mesma. E é através das mãos de Milene que o leitor e o espectador entram na complexidade do tema, atualíssimo, do confronto entre nós e os outros, entre o mundo utilitarista e a procura da essência das coisas, entre supostas certezas e diferenças necessárias. E assim estamos perante um filme, executado com rigor e serena parcimónia, com o desenvolvimento de uma boa história, com bons desempenhos, mas que não dispensa a leitura do romance, que, esse sim, constitui a verdadeira chave para a compreensão da mensagem de Lídia Jorge, que é simultaneamente de uma dura análise do género humano, mas também de uma mensagem de abertura e de esperança, não baseada numa visão doce das coisas mas na adequada consideração do drama, sem a qual nos arriscamos a deixar à indiferença a  compreensão de que temos de recusar o medo dos outros e da incerteza. Afinal, o caso perante o qual nos encontramos associa um amor, um crime e um silêncio para sempre selado.


“O Vento assobiando nas Gruas” permite-nos compreender como o encontro de Milene (Rita Cabaço), esquecida pela família Leandro, com Antonino Mata (Milton Lopes), operador da grua, membro do extraordinário clã crioulo, viúvo com três filhos, é pleno de ensinamentos para os tempos de hoje. E, para além da grande representação de Milene, com um desempenho irrepreensível num papel difícil de uma personagem que vamos compreendendo melhor ao longo filme (como acontece no romance), merece referência a presença de Dino d’Santiago com o tema “Filho do Vento”, que bem representa a cultura cabo-verdiana do funaná, das mornas e coladeiras bem evidente na encenação que presenciamos. Milene, nos seus silêncios e repentes inesperados, permite-nos ver a vida, onde coexistem o bem e o mal, tantas vezes confundidos, obrigando-nos a ir ao encontro da forte e rica criação literária de Lídia Jorge, que tem aqui uma referência marcante na sua obra, felizmente tão fecunda. 


GOM

Honoré de Balzac

 

 

 

 

"Il y a deux histoires: l´histoire officielle, menteuse,
puis l´histoire secrète, òu sont les véritables causes
des événements."

H.B.

 

 

 

 

 

 

 


Eugénie Grandet é tido como o primeiro grande romance de Honoré de Balzac, escrito em 1833 e publicado em forma de livro em 1834, pela editora de Madame Charles-Béchet.

 

Na revisitação a Balzac encontrámos neste livro um desfecho que engana a curiosidade ainda que, quem sabe, se assim não são todos os desfechos.

 

Aqui Eugénie é talhada do puro granito e no entanto, matéria dúctil, matéria transitória, forte como o homem e delicada como um anjo. Eugénie Grandet afinal lançada à tempestade das realidades do mundo, durante um transporte em que se supunha apoiada no braço de seu pai, desce as escadas inexistentes da sua segurança e cai num mar onde para sempre ficará ignorada.

 

“Tal é a história dessa mulher, alheia ao mundo no meio do mundo; e que, feita para ser uma excelente esposa e mãe, não tem marido, nem filhos, nem família.”

 

Eugénie é filha de um rico e avarento vinhateiro, que passara dificuldades antes de iniciar a sua fortuna com auxílio da herança da sua esposa. Para se apossarem da fortuna de Eugénie, muitos são os que disputam a sua mão, visando apenas o seu dinheiro. Charles Grandet, seu pai, fá-la sofrer jogando ele próprio o futuro da filha sem qualquer compreensão pelos seus sentires, e, confinando-a mesmo ao seu quarto quando se apercebe que ela nutre amores por alguém sem a conveniente estatura de dinheiros que enriqueceria duas famílias numa só.

 

Grandet é muito avarento, e ele e a sua família vivem numa velha casa em condições precárias.

E diz Balzac:

Os avarentos não acreditam numa vida futura, o presente é tudo para eles. Esta reflexão joga uma horrível clareza sobre a época atual em que, mais que em qualquer outro tempo, o dinheiro domina as leis, a política e os costumes. Instituições, livros, homens e doutrinas, tudo conspiram contra a crença numa vida futura, sobre a qual o edifício social se apoia há mil e oitocentos anos. Atualmente, a sepultura é uma transição pouco temida. O amanhã que nos esperava além do Requiem foi transportado para o presente. Chegar por todos os meios ao paraíso terrestre do luxo e das vaidosas alegrias, petrificar o coração e macerar o corpo em busca de bens passageiros como outrora se suportava o martírio em busca dos bens eternos, eis o pensamento geral. Pensamento que, aliás, está escrito em toda parte, até nas leis, que perguntam ao legislador: "Que pagas?" em vez de indagar: "Que pensas?"

 

Este romance da série La Comédie Humaine alcançou êxito excepcional. Dostoiévski traduziu a obra para o russo em 1843. Émile Zola considerou Balzac o naturalista que via o mundo através de um vidro transparente. Eça de Queirós, admirava a Comédie tanto quanto Camilo Castelo Branco. Aliás Camilo escreveu um conjunto de oito narrativas a que deu o nome de Novelas do Minho, influenciado por Balzac. Flaubert que o criticara severamente não lhe despegava a atenção. O romancista norte-americano Henry James escreveu vários ensaios elogiando o "Grande Balzac”, e muitos foram os que Balzac marcou pela capacidade da sua escrita, reveladora de um espírito de unidade que marcou o seu significado.

 

De notar que não há espaço para uma visão romanceada do mundo nesta obra Eugénie Grandet já que ela nunca nega a existência da sinceridade dos sentimentos nem se afunda num pessimismo de exageros. Na nossa modesta opinião, Balzac pretendeu fundir no romance a omnipotência oculta de quem à margem da sociedade nela vivia e porventura por aqui Montecristos, Fantasmas da Ópera.

 

Neste romance a que nos referimos, sentimos que a era da multidão anónima ainda não começara. A grande curiosidade de Balzac surge na incubadora da grande cidade e esta será a sua Musa, aquela que promete um mistério enganando a curiosidade como mencionámos no início deste texto. A mulher, na sua obra, é em si uma solidão divina que acode às cabras e aos gatos nascidos nos porões dos navios por onde clandestinamente viaja. De si mesma, da sua pureza, um terceiro salvamento só lhe pode ser dado pelo leitor, capataz que a sente em generosas contradições ainda na vida de hoje.

 

"Il y a deux histoires: l´histoire officielle, menteuse, puis l´histoire secrète, òu sont les véritables causes des événements."
H.B.

 

Teresa Bracinha Vieira
Junho 2016