CRÓNICAS PLURICULTURAIS
158. A ROTINA FELIZ DOS DIAS PERFEITOS
Será que a mesma rotina e o ritual repetitivo do trabalho diário nos fazem felizes, fazendo perfeitos os nossos dias?
Dependendo a felicidade essencialmente de condições interiores e, em parte, de condições exteriores, pode dizer-se que, em princípio, todas as pessoas que gozam de boa saúde e podem satisfazer as suas necessidades deveriam ser felizes, ter dias perfeitos, não sendo essa a regra. Porquê?
Em “Dias Perfeitos”, de Wim Wenders, filme japonês de um realizador alemão, há uma tentativa de resposta, através do elogio às coisas simples e repetitivas da vida, em harmonia com a natureza e a sociedade, num estilo de despojamento monástico, feito de silêncios, contemplação, em interação com a poesia, que nos interpela e exige disponibilidade a quem vê.
Eis os dias perfeitos do inesperado protagonista Hirayama: acordar matinalmente com os primeiros raios solares, barbear-se, vestir-se, tratar das plantas, pegar algumas moedas, comprar um café gelado de máquina, conduzir a carrinha da sua ronda diária, ouvir música enquanto conduz, limpar minuciosamente as mais tecnológicas casas de banho de Tóquio, almoçar uma sandes no mesmo banco do jardim, fotografar árvores com a mesma máquina portátil, tomar banho nas mesmas casas de banho públicas, jantar no mesmo restaurante de bairro, ler antes de dormir, deitar-se e acordar de novo, repetindo-se os mesmos locais, movimentos e o gosto pela leitura, música, fotografia e andar de bicicleta.
Trata-se de um homem de rotinas que sorri, de poucas falas, sem família, de uma rotina austera, metódica e organizada, desempenhando a função com dedicação e profissionalismo, que educadamente se afasta e espera se alguém quer usar os sanitários, que ouve música num leitor de cassetes, faz culto do analógico, não frequenta redes sociais, mantendo-se afastado (em termos pessoais, mas não profissionais) da tecnologia digital.
O acordar, levantar, higienização pessoal, vestir, pequeno almoço, sair de casa, trabalho, almoçar, regresso ao lar, jantar, dormir, acordar e levantar de novo, sucessiva e repetitivamente, são os dias perfeitos, universais e transversais a todos nós, no nosso dia a dia costumeiro, obrigatório, evasivo, que nos transcende e em que há a consciência do dever cumprido, pois uma vida sem uma permanente solenidade de ritual legal não serve, sendo mais um favor (e não um absurdo) a pretensa condenação que Sísifo recebeu em nossa representação, salvando-nos do vazio, por mais ilógico que nos pareça.
E há a força e o poder da música, com banda sonora e canções de Lou Reed (Perfect Day, inspiração do título da película), Patti Smith, Van Morrison, Kinks, Otis Reding, Nina Simone. E uma icónica interpretação, em japonês, num restaurante nipónico, da admirável The House of Rising Sun, dos Animals. Presume-se não ser mero acaso que um dos pontos culminantes do filme seja A Casa do Sol Nascente no Império do Sol Nascente. A que acresce a leitura de obras de Faulkner e Patricia Highsmith, visitas a uma livraria que vende livros usados, revelando-nos um homem curioso, culto e sensível, que tem como bênção ou tábua de salvação a cultura, que o ajuda a superar uma solidão existencial, austera e radical na sua simplicidade.
Todo este mundo, feito de pequenos mundos, em que o máximo de satisfação é feito de prazeres simples, é quebrado pelo aparecimento de familiares, nomeadamente uma irmã, que o confronta com quão desprezível é trabalhar num emprego desprezado socialmente, quando poderia viver melhor.
O que nos interpela sobre o que são os nossos dias felizes, perfeitos, a felicidade, a beleza, o espiritual, saber ouvir o silêncio, numa sociedade que se orienta em prol da estética, do consumismo, do culto do excesso, do hedonismo e da imagem, ao invés de um equilíbrio voluntário de autossatisfação e de desejável felicidade, numa simbiose de simplicidade e profundidade, aceitando antecipadamente a rotina como parte inevitável e integrante de todos nós, de todos os dias perfeitos, por mais imperfeitos e finitos que sejam.
Se assumimos que a maioria das nossas vidas é rotina necessária e consentida, uma sacralização humanista do nosso quotidiano, há que aceitá-la como imprescindível para os nossos dias perfeitos, mesmo que por natureza sejam e sejamos imperfeitos.
19.01.24
Joaquim M. M. Patrício