Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Quando iniciámos este folhetim, invocámos Ruben A., como eterno fazedor de fantasmas. “A Torre da Barbela” é o melhor romance português sobre fantasmas. Falemos, pois, do seu Autor. "Sedutor fascinante de inteligência e sensibilidade", chamou-lhe Mário Soares. Em bom rigor, a biografia de Ruben Andresen Leitão é digna de Galsworthy. E a sua lógica, um exercício de G. K. Chesterton. Sophia de Mello Breyner Andresen, sua prima direita, recorda o Porto, o Campo Alegre, esse lugar olímpico, com uma inefável ternura: "para uma criança, aquela casa e aquele enorme jardim com os altíssimos plátanos, as tílias, o carvalho, ao lado do ténis, as camélias, o roseiral, o pomar, as adegas, o pinhal, os morangos selvagens, eram um mundo, um reino que em nós permanece como uma inesgotável memória inspiradora". E essa saga da Quinta do Campo Alegre, porque nitidamente romanesca, teve também o dramático de um tiro de pistolão, do fio de armas de fogo mandado instalar por Dona Joana Andresen contra os ladrões, que atingiu o irrequieto Rubinho, deixando-o no território incerto dos mártires. Até que, em março de 1937, faleceu a coluna dorsal daquele mundo, a avó Joana, a "Velha Máquina", que deixou a Ruben, como testamento, a "ânsia desmedida de partir, de romper horizontes".
Ruben é o "sportsman", a promessa do golfe e do "lawn-tennis", que recorda as lições de Adolfo Casais Monteiro. Nas vésperas da Guerra, o jovem incrédulo, em viagem pelo território do drama, pergunta-se: "Guerra?! Pensava eu: que coisa estranha! Guerra? Este mundo quer a Guerra? Para que é que servem os homens inteligentes?". A verdade é que tudo se precipitaria. Agostinho da Silva, o sábio visionário, torna-se grande referência para Ruben… "Trazia livros, deixava-os ficar, como quem deixa ficar maço de cigarros para tentar o vício"… E o vício entrou. Um dia, da boca de Manuel Torre do Valle, "o mais notável tipo da minha geração", ouve dois poemas de Fernando Pessoa, publicados na "Presença", e rende-se a quem passa a considerar como o maior poeta português. E descobre Proust. Novo deslumbramento. Ruben faz admissão a Direito e a Letras. Ao saber da entrada no Convento de Jesus, não tem dúvidas, fica em Histórico-Filosóficas. Mas aí sofrerá o julgamento absurdo de um tal Matos Romão, lente de Psicologia, que o obriga a rumar a Coimbra. "Lisboa fica de luto sem o Rubirosa" e os amigos oferecem-lhe um jantar de despedida nos "Anarquistas"… Torre do Valle está na sombra, mas não aparece. É esse o tempo das grandes leituras ("Eça de fio a pavio, através do António Seabra"), mas sobretudo o do grande arrebatamento pelos modernistas - Rimbaud, Éluard, Sá-Carneiro, Almada… Em Coimbra, funda a primeira República supra-realista em homenagem a Dali, "Babaou - une maison surréaliste".
Tem uma curiosidade intelectual insaciável. Termina o curso. Em Pascal procura "desvendar a luz no campo das trevas" - porque "quando encontramos as 'razões do coração' podemos ter a certeza que dentro de nós qualquer coisa existe que nos transcende". Começa como professor de francês. Ensina, entusiasma os alunos, lê e sonha. Mas vem-lhe a vontade de emigrar. "Emigrava com a saudade de um país geograficamente encantador, inveja dos estrangeiros, mas que à escala humana só com uma lente é possível desvendar a inteligência das coisas, do milagre". A Inglaterra, com que se relaciona, está destruída pela guerra. No King's College conhece Charles Boxer, de quem se torna amigo. O entusiasmo e a sua cultura causam deslumbramento. De Fernão Lopes a Fernando Pessoa, passando pela Geração de 70, Ruben reflete sobre o destino de Portugal… Entretanto, morrera Manuel Torre do Valle, vítima de difteria, na flor da idade e no auge da esperança. É uma perda irreparável. Nas margens do Tamisa, cultiva o inglês, adapta-se ao frio, mata saudades da Pátria, indo buscar ao Aeroporto o seu primo Ruy Leitão e Menez num esplendoroso Rolls-Royce alugado. D. Pedro V serve-lhe de pretexto para frequentar o Castelo de Windsor. Em cada dia que passava mais admirava o reformador-tipo, o nosso primeiro moderno. Ouviam-se as suas "Peregrinações Inglesas" na BBC. Visita Ruy e Menez em Washington, lê Dickens, Dostoievski e Eça, nas margens do Potomac e cada vez mais se convence de que Shakespeare é o primeiríssimo surrealista. Por coincidência, encontra-se com T.S. Eliot… Em 1949, nasce o nome Ruben A., com o primeiro volume das "Páginas" da Coimbra Editora. Mas o segundo volume (1950), caído nas mãos do ditador, vai determinar a ordem para regressar… Para Salazar, "o livro, ou é de um louco ou de um sujeito que, tendo dinheiro para pagar um livro de dislates, se propôs rir-se de todos nós". Os amigos, os colegas ingleses, a gente de bem mexe-se. O ditador retrocede: "o maluco do homem tem habilidade e competência para o cargo". E fica. Mas o mal estava feito. Ruben parte em 1952: "restava-me arrumar as malas, despedir-me. (…) Paga-se muito caro por ter ideias".
Ruben vê-se desempregado. Refugia-se na Embaixada do Brasil, na publicação "Artes e Letras", que coincide com a renovação de Juscelino Kubitschek e com o período rico de abertura e de pujança democrática. O Brasil contemporâneo de Guimarães Rosa é o grande repositório da cultura da língua. Em 1954 sai o "Caranguejo", de que Eduardo Lourenço dirá: "não foi nada senão bicho insólito, entrando às arrecuas e aos pinos na policiada praia lusitana". Tem uma paixão forte pelo património cultural português. António Quadros chamar-lhe-á por brincadeira Dr. Jeckyl e Mr. Hyde, o médico e o monstro - "mas a verdade é que me acuso por ter descurado completamente o Dr. Jeckyl, em exclusivo favor dos imaginosos textos impressionistas, memorialistas ou romanescos do Mr. Hyde, o Monstro, cuja leitura, além de tudo o mais, era divertidíssima".
Escreve das melhores memórias autobiográficas da nossa literatura - "O Mundo à Minha Procura". E nasce "A Torre da Barbela" – romance do absurdo genial nascido em Esteiró."A família Barbela identifica-se com a história de Portugal, com os oito séculos da história de Portugal. Os homens mais notáveis do meu romance (confessa o autor) têm, como os da história de Portugal, as suas estátuas. O que dou eu aos Barbelas? Vida. De noite estão vivos, como qualquer de nós, têm os mesmos problemas e mais um, este irremediável: sabem que vão morrer ao nascer do Sol". Ruben tinha horror à mediocridade. No dizer de Pina Martins, severo julgador, tinha "entusiasmo por coisas novas", insistindo em "rasgar horizontes".
No ano passado assinalámos o início das evocações do centenário de Ruben Andersen Leitão – Ruben A., nascido em 1920 e falecido em 1975. E no artigo à época aqui publicado, assinalámos especificamente a intenção de voltar ao tema.
Deve-se então efetivamente referir que o teatro de Ruben A. amplamente justifica este retorno, que não quis efetuar mais cedo, exatamente porque desta forma mais se justificará esta nova evocação, tendo em vista o interesse que o teatro de Ruben A. amplamente justifica…
E não será por acaso que novamente citamos agora o comentário de David Mourão Ferreira que encerra esse artigo anterior: pois aí se refere designadamente a “desenvoltura narrativa”, assim mesmo, de Ruben A., e a adaptabilidade que aplicou às peças de teatro que compõem a sua criatividade literária.
Sendo aliás de assinalar a vastidão e constância desta dramaturgia. Pois será de recordar então o conjunto das suas peças: “O Fim de Orestes”, “Júlia”, Triálogo”, ou “Relato 1453”, esta aliás gravada diretamente em fita magnética em 1965.
E retomamos um conjunto de citações que fizemos, algumas delas, no artigo anterior.
Assim, recorda-se que Luís Francisco Rebello no estudo intitulado “100 Anos do Teatro Português” cita textos de Ruben Leitão: “O Fim de Orestes”, Júlia”, “Triálogo”, “Relato 1453” entre outras mais. E acrescenta que se nota uma influência da dramaturgia britânica. E mais: durante a sua atividade docente, Ruben levou à cena peças portuguesas, que envolvem uma larga abrangência histórica, a partir de autos vicentinos.
E é de assinalar a encenação de textos que marcaram a história do teatro português, cobrindo a expressão histórica em si mesma, mas não hesitando em marcar uma expressão de modernidade adaptável e adequável. Cita designadamente a “Júlia”, apresentando-a como expressão a adaptabilidade à exigência teatral em si mesma considerada.
E farei aqui referência a peças escritas e publicadas na época, frisando a relevância que o teatro em si mesmo, como expressão de criatividade, alcançou e destacou-se na obra de Ruben A.
E citamos agora Luciano Reis, que refere com especial relevo peças como “O Fim de Orestes”, “Júlia”, “Triálogo” ou “Relatos 1453”, para não ir mais longe nas citações. Sendo certo que algumas destas peças não eram na época conhecidas.
E seja permitido transcrever agora parte do artigo que aqui publicámos. Aí se diz que Ruben Andresen Leitão deve ser abordado como escritor, como professor e como investigador da história e da literatura portuguesa, e aí acrescentando referências e evocações da atividade como docente e como representante da cultura portuguesa, no King’s College de Londres. Luís Francisco Rebello recorda aliás que no desempenho dessas funções docentes, Ruben levou à cena textos relevantes da literatura dramática portuguesa, de Gil Vicente a Miguel Torga.
E acrescentamos ainda uma auto-citação:
A qualidade literária de Ruben A. é reconhecida e assumida pelos autores mais diversos. A sua integração é reconhecida e consagrada por escritores de qualidade e prestígio hoje indiscutível.
E que desde sempre marcaram a perspetiva da modernidade deste grande autor.
"O Mundo À Minha Procura" de Ruben A. (Assírio e Alvim, 2020) é uma obra-prima da literatura memorialística portuguesa, a merecer uma atenção especial no momento em que o centenário do autor continua a ser celebrado.
O MERECIMENTO INDISCUTÍVEL Neste ano tão estranho, cheio de medos e motivos tragicómicos, seria suposto termos celebrado com a elevação necessária o centenário de Ruben A.. No caso de Ruben havia a especial razão de se tratar de um autor que merece ser mais e melhor conhecido, apesar de ter sido um audaz cultor da língua e da cultura, como poucos no século que passou. Daí não haver dúvidas sobre que o futuro se encarregará de lhe dar o adequado merecimento. É verdade que tudo sobre a recordação da memória do escritor (reflexões, debates, lembranças) continua a estar previsto para o ano 2021, mas o importante é que fica lembrado – e devendo sobretudo continuar a ser lido. 2021 quase parece um daqueles tempos previstos pelo teatro do absurdo, em que se propõe acertar os relógios, depois de uma suspensão da máquina do tempo, estranhamente desorientada. O certo é que ainda não temos em funcionamento o mítico “Cronoscafo”, previsto nas aventuras de Blake e Mortimer e de algum modo na mente de H. G. Wells, e nada se sabe verdadeiramente sobre o efeito das desventuras do famigerado vírus descontrolado sobre homens e máquinas. Felizmente o tempo não parou e a terra continuou a girar. Por isso, temos na lista dos melhores livros do ano a reedição do genial O Mundo à Minha Procura. Importa dizer que Memórias escritas por quem tinha 46 anos seriam sempre um desafio audacioso. Mas nós, leitores ávidos, só temos a agradecer uma tal decisão extraordinária, uma vez que pudemos contar com uma obra-prima, retrato especial de uma sociedade que evoluía da autarcia para a internacionalização, descrita à luz do percurso multifacetado de um intelectual culto e cosmopolita de mente arejada, com um esmerado gosto. Num só volume, passámos a contar com esta pérola literária (Assírio e Alvim, 2020), que ombreará em linguagem e encenação moderna com as melhores Memórias portuguesas, que Ruben conhecia, aliás, muito bem. E porque conhecia bem, estas são diferentes de quaisquer outras e têm a marca indelével do pós-guerra, com um especial tom anglo-saxónico. “Dos quarenta aos cinquenta, limpa-se a casa. Põem-se as telhas onde faltam, instala-se um novo sistema, e no jardim das delícias, no passeio depois de jantar, nas madrugadas sem Deus ouvimos uma voz que nos buzina que dali para a frente a contagem é outra”. Felizmente, assim pensou Ruben e tal permitiu não termos um repositório de factos e circunstâncias, mas uma procura do tempo. Henry Miller afirmou, assim, que “a Autobiografia é o mais puro romance, porque a ficção está sempre mais próxima da realidade que o facto”. Se dúvidas houvesse, bastaria lermos Ruben A. e propositadamente não faço qualquer comparação com outros autores e outros cultores do género, pois este caso é absolutamente inimitável. “O que me interessa sou eu”. E há o debruçar sobre um poço fundo.
COMPREENDER O REALMENTE IMPORTANTE “Um dia compreendi a importância que teve para mim o Campo Alegre – o sítio, o cheiro, a vista, as árvores. Foi a fragrância quem me recebeu primeiro, facilitando-me no vaivém da ondulação distinguir as plantas e a terra que as recolhe”… E assim o escritor quis-se descobrir, na relação complexa entre o seu próprio lugar e a coexistência com os lugares dos outros, pelas forças e emoções por trás da vida… E assim encontramos um curioso retrato da sociedade portuguesa, onde “há um ciúme indescritível perante a coragem e perante a cultura. Que um dos seus membros se liberte pelo espírito ou pelo seu valor humano é o maior insulto que, eles, atrasados culturais, julgam que se lhes pode fazer. Sentem-se ofendidos, reagem de certo modo com maledicência, uma vez que não tendo nem grandes amores nem grandes ódios oferecem apenas o mesquinho da perseguição, fechando as casas, achando as pessoas uns pesos, ou votando a um ostracismo aqueles três ou quatro – em cada década só há também três ou quatro aves migradoras – bodes expiatórios da purga mental da sociedade, ancorados para toda a vida a um inferno. Esquecem-se da felicidade que irá acolher os eleitos, os que souberam fazer a escolha depois de anos de amadurecida visão, depois de terem estado sós”… Ruben A. pensava nos inúteis, nos cadáveres adiados que procriam, no dinheiro que alimentava o parasitismo, nas flatulências de pequeno efeito, nos ricos que criavam uma moral para si, na sociedade que temia o valor dos que assumem a coragem de procurar ver longe e largo. E ao longo da sua vida, encontrou vezes sem conta esses entraves e bloqueios, nunca tendo renunciado, porém, à independência de pensar pela própria cabeça, de ser inconformista e de ter consciência (desde muito jovem) do contraste entre o mundo absurdo do medo de falhar e a liberdade absoluta, que sentia no Campo Alegre… “Autor libérrimo e libertador” – lhe chamou Eduardo Lourenço. O sentido crítico, em ligação com o rigoroso conhecimento da História mercê de uma simbiose de método entre o rigor e uma rara intuição capaz de entender os grandes movimentos e tendências, permitiu-lhe ser um analista lúcido da realidade portuguesa, não esquecendo a lógica picaresca.
PORTUGAL HETEROGÉNEO E INDEFINÍVEL É um Portugal heterogéneo e indefinível que encontramos nas memórias de Ruben A., situado entre a tradição e a vertigem da modernidade, entre as raízes antigas da família e o fascinante mundo vulgar que a rodeava, ora visto da janela sobranceira de um Daimler familiar, ora considerado na leitura dos clássicos, que se impõe muito gradualmente no aproveitamento irregular do estudante (Garrett das Viagens na Minha Terra, Júlio Dinis da Morgadinha dos Canaviais e Camilo). “Camilo entendia-me. Depois de Júlio Dinis era ele quem me aproximava de um dia a dia verídico, cheio de suco, romance da vida, razão de ser no jogo de palavras cruzadas…” E se a literatura o entusiasma de um modo prospetivo, usando as potencialidades da língua com um misto de originalidade e de compreensão do carácter vivo e mutante da identidade, a natureza e o património cultural são fatores vivos de valorização humana: “Olho para tudo tendo como pano de fundo a intensidade colorida pela maior realidade de Portugal: o céu. O nosso céu é pessoal, claro, transparentem, grandioso, sonhador de terras longínquas – é um céu aberto”. E a defesa do património histórico: “É uma obrigação moral, nacional. Impõe-se no imediato que as vilas históricas, as cidades mais ricas do passado não sejam avassaladas por estranhos, que sabem deitar abaixo e nada fazer de arte no local da demolição”… E a ilustração desta preocupação a um tempo crítica e alegre projeta-se no genial romance A Torre da Barbela, recentemente reeditado, na expressão de José-Augusto França: um grande romance, dos mais importantes do século XX (Livros do Brasil, 2020). “Ao fim da tarde, antes do crepúsculo cantar as suas loas e sem se descortinar a realidade, apoderava-se da Barbela um sentido incógnito da existência. “Forte como as nacionalidades e rija como a têmpera da lâmina do Xasco, o maior escanhoador da Ribeira Lima, a Torre preparava-se para o banho noctívago na sua vida de séculos. Existissem ou não estrelas, fosse breu ou luar a jorros pelos campos marginais, o mundo abria-se então dividindo o tempo. (…) De noite ressuscitavam e, de companhia, traziam os amores e os ódios de outras eras e de outras sensibilidades. (…) Aquele ressuscitar transfigurava a Torre”. E assim se desenrola uma História portuguesa, através de fantasmas, com glórias e contratempos, mas sem ilusões que pudessem fazer esquecer vontade e a liberdade…
“Foi das pessoas mais originais que conheci na vida”, disse Eduardo Lourenço sobre Ruben A. “Chamou-me ao Hotel Astória, em Coimbra, e fui encontrar o meu futuro amigo, que me recebeu como um príncipe no seu quarto, fazendo a toilette como Luís XIV, diante do seu amigo provinciano que acabara de conhecer da maneira mais divertida possível”.
Diria que esta postura de Ruben era, de muitos modos, uma teimosa resposta à vida das trivialidades míopes e das jogadas de similitudes efémeras. Era um modo de convivência cultural, generoso e aberto à sã e criativa interpretação.
Escritor e ensaísta, sob o pseudónimo Ruben A., Ruben Alfredo Andresen Leitão nasceu em Lisboa em 1920. A sua infância foi vivida no Porto e partilhada com sua prima Sophia de Mello Breyner Andresen, na Quinta do Campo Alegre. Considerado um autor essencial para a literatura do século XX português, não fora ele e a sua viagem, e todos seríamos mais sós.
Convive com Agostinho da Silva, seu professor que admirou pela invulgar capacidade intelectual. Foi Leitor e professor no King’s College de Londres. Em Portugal foi muito publicamente criticado pelo regime de Salazar. O silêncio sobre a sua obra abateu-se num significante peso, mas edita obras memoráveis como “Caranguejo” (1954), narrativamente escrito de trás para a frente e sem numeração de página, “Cartas de D. Pedro V aos seus Contemporâneos”, “A Torre da Barbela” (prémio Ricardo Malheiros), ou a autobiografia “O Mundo à Minha Procura”. Privou com o escultor Henry Moore e o escritor T.S. Eliot, entre outros. Era admirador de Henry Miller. Foi também autor de vários verbetes no Dicionário de História de Portugal, dirigido por Joel Serrão.
Diria que no termos de viver também aquilo que fomos, levou Ruben A. a escrever no texto introdutório à sua autobiografia «O Mundo à Minha Procura I»:
«Voltar ao Campo Alegre foi para mim qualquer coisa de enorme na vida, mais importante do que ir à Lua, ou andar em órbita à volta da Terra», evocando assim os tempos de infância na companhia da sua prima Sophia de Mello Breyner Andresen. Este sentir de forte afeto e os detalhes da paisagem que o envolveram, irão marcar para sempre o seu imaginário na escrita.
Para nós em Ruben, a verdade é que tudo pode ser ao mesmo tempo tanto e tão pouco, vertido nas escolhas que fazemos, e, estas suscetíveis de uma crítica irónica, salutar, corajosa e arguta ao modo de estar do que nos rodeia, e envoltos nós num sério com sorriso, encontraremos a tão recôndita sabedoria interior e o relevo do meio em nós. Esta uma das características da palavra de Ruben A.
Cremos também que a ditadura do antigo regime há de ter tido uma influência no angulo de leitura da escrita de Ruben A., ao não deixar que surgisse claro, o quanto escritores como ele são, acima de tudo, um modo coletivo de pensarmos e de vivermos a liberdade. As falsas acalmias nunca promoveram ou promoverão a capacidade de resposta viva ao que naturalmente se levantou em Ruben A.
Nos anos 50, Óscar Lopes, júri de um concurso literário, recusara o romance “A Torre de Barbela”, que considerava um embuste, e publicou um artigo negando-lhe qualquer qualidade literária. Mais tarde reconhecera o erro. Todavia Ruben ficou acantonado e esquecido, e esta realidade carece de esclarecimento.
Julgamos poder afirmar que Ruben conhece a existência através do ato da escrita e da arquitetura que lhe deu através da sua vida, da sua quantidade e qualidade de energia, daquela mesma que foi capaz de tirar do subsolo da alma.
A pandemia alterou os planos da festa dos 100 anos de Ruben A, a 26 de Maio passado. Contudo há que estar atento à mudança de datas, já que:
Na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, realizar-se-á o colóquio O Incrível Ruben A., numa organização da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, com a participação de autores, investigadores e professores como Clara Rocha, Dália Dias, Fernando Pinto do Amaral, Gustavo Rubim, Joana Matos Frias, Joana Meirim, Pedro Mexia e Sílvia Chicó. A comissão das celebrações do centenário é constituída entre outros pelos professores António Feijó, Miguel Tamen e Sílvia Chicó, da Universidade de Lisboa, e Clara Rocha, da Universidade Nova de Lisboa.A exposição O Incrível Ruben A. - 100 anos do escritor, na Biblioteca Nacional de Portugal, em Lisboa, realizar-se-á em 2021, em datas a confirmar.No próximo ano, o Centro Cultural de Belém, em Lisboa, também dedicará um dia ao escritor, iniciativa em colaboração com o Centro Nacional de Cultura.
Eis algumas das iniciativas agendadas.
EIS AGORA O MUNDO A PROCURAR TE, INCRÍVEL RUBEN A.
O centenário de Ruben Andresen Leitão – Ruben A. (1920-1975) deve ser assinalado num conjunto de abordagens que envolvam a pluralidade da sua obra como escritor, como professor e como investigador da história e da literatura portuguesa: e aí acrescentando referências e evocações da atividade como docente e como representante da cultura portuguesa, designadamente no King’s College de Londres. Luis Francisco Rebello recorda aliás que, no desempenho essas funções docentes, Ruben levou à cena textos relevantes da literatura dramática portuguesa, de Gil Vicente a Miguel Torga.
Rebello cita a influência do teatro inglês na obra dramatúrgica de Ruben, realçando porém o toque surrealista da sua dramaturgia. E sublinha a relevância que essa influência assume sobretudo na peça “Júlia” publicada em 1963.
Refere então designadamente Maria Lúcia Lepecki quando diz que nesta peça «um certo mistério envolve as personagens que permanecem num constante movimento de revelar-se e esconder-se». A mesma comentadora realça a influência do modernismo do teatro inglês em geral e designadamente de T.S. Eliot em particular.
No estudo, que adiante identificamos, Rebello cita o conjunto da dramaturgia de Ruben Andresen Leitão: “ O Fim de Orestes”, “Júlia”, “Triálogo” e “Relato 1453”, esta gravada diretamente em fita magnética, de improviso, no ano de 1965 (in “100 Anos de Teatro Português” Brasília Ed. 1984. Cfr. do mesmo autor “O Teatro Simbolista e Modernista 1890-1939” além de numerosa bibliografia sobre história do teatro português e do teatro texto e espetáculo em Portugal).
Mas aqui acrescentamos as referências críticas de Luciano Reis, para quem é notória a influência do surrealismo na obra global de Ruben A.
Segundo diz então Luciano Reis, a permanência de Ruben em Londres «como professor de cultura portuguesa no King’s College fez-lhe despertar o interesse para o teatro, pondo em cena textos de Gil Vicente e Miguel Torga no âmbito universitário.
Para além de um breve apontamento dramático, “O Fim de Orestes”, datado de 1963, publicou no mesmo ano a peça em 2 atos e 4 quadros “Júlia”, notando-se nessa obra influência do modernismo no teatro inglês em geral e de T. S. Eliot em particular, segundo a análise de Maria Lúcia Lepecki» Já acima referimos esta influência.
E mais acrescenta Luciano Reis os títulos de duas peças inéditas, segundo diz: “Triângulo” e “Relatos 1453”, nomes que carecem de confirmação quando cotejados com a informação de Luis Francisco Rebello também acima referida, confirmação essa a que iremos oportunamente proceder. (Luciano Reis in “O Grande Livro do Espetáculo” ed. Fonte da Palavra 2010).
Mas seja-nos ainda permitido acrescentar que a qualidade literária de Ruben A é reconhecida e assumida pelos autores mais diversos. A sua relação e integração é reconhecida e consagrada por escritores de qualidade e prestígio hoje indiscutível. E que desde sempre marcaram a perspetiva da modernidade deste grande autor.
Voltaremos ao tema, mas parece-nos então oportuno citar David Mourão Ferreira, que em 1966 não hesita em sublinhar a “desenvoltura narrativa”, assim mesmo, de Ruben A.!
“A Torre da Barbela” (1964) de Ruben A. (Livros do Brasil, 2020) é uma obra-prima de imaginação, de mestria romanesca e de excelente domínio da língua.
UM NOVO SISTEMA SENTIMENTAL “Dos quarenta aos cinquenta, limpa-se a casa. Põem-se telhas onde faltam, instala-se um novo sistema sentimental, e no jardim das delícias, no passeio depois do jantar, nas madrugadas sem Deus, ouvimos uma voz que nos buzina que dali para a frente a contagem é outra”. Ruben A., cujos cem anos do nascimento agora celebramos, teve a extraordinária lucidez de escrever as suas extraordinárias memórias no momento que permitiu que usufruíssemos delas como um dos melhores exemplos da nossa literatura memorialística. O Mundo à Minha Procura (1964-68) é uma obra extraordinária, na qual encontramos uma grande personagem, multifacetada, complexa, em que o fino humor se liga ao retrato fiel do tempo, de uma geração e de uma cultura, vistas por alguém que tinha a atenção desperta para o mundo e era conhecedor como poucos, desde as raízes à atualidade, da Arte de ser português. E não esqueço, graças à amizade antiga e sólida do Nicolau, seu filho, os momentos que tenho passado no convívio da memória fascinante de Ruben. Não se entende, por exemplo, a nossa cultura sem a leitura da Barbela. E o certo é que esses momentos não têm sido apenas os da leitura e releitura de uma obra fantástica, mas também os de visita aos lugares marcados pelo percurso de vida de alguém que muito bem conhecia Portugal – desde Entre Douro e Minho, do Porto, do Campo Alegre, até ao Alentejo, passando em Lisboa pela Praça do Príncipe Real, onde veio ao mundo, e pelo Monte Olivete… As excursões e passeios mirabolantes com programas surrealistas foram marca sua… Os percursos de Orlando Ribeiro e Torga apaixonavam-no. No entanto, estes tempos, estranhos de confinamento, adiaram (apenas adiaram) o encontro que tínhamos marcado para a Fundação Gulbenkian, com a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, cuidadosamente preparado com Miguel Tamen e António Feijó e pelo Nicolau, naturalmente. Não poderemos, contudo, deixar de fazer dessa celebração a justa invocação de quem tanto merece que tertuliemos longamente sobre um espírito tão versátil e rico, cujas pistas que nos deixou têm de ser seguidas e aprofundadas.
DO CONVÍVIO À EXTROVERSÃO “Era um homem que se ocultava no convívio e na extroversão” – disse António Quadros, quando falou dele depois da morte inesperada e absurda. “Tinha uma imparável fúria criadora. Não sabia estar parado… quase existia heteronimicamente, como o Pessoa. Havia o Ruben historiador, escrevendo livros sérios, … Havia o Ruben public-relations, literato da Embaixada do Brasil… Havia o Ruben-minhoto, apaixonado por Carreço, Afife e pela Ribeira Lima. Havia o Ruben-colecionador de cacos-velhos e frequentador de Antiquários. Havia o Ruben surrealista e louco, escrevendo livros como as Páginas”. Era isso e muito mais…E Alexandre O’Neill disse, melhor que alguém: “Ao coro de rãs, respondeu Ruben A., com algumas arreliantes dissonâncias, enfim, com o que nele era vivo pressentimento de que uma obra se faz a contrapeso do gosto mediano…” De facto, muitos não compreenderão o que escreve e o sentido da procura. Em Inglaterra no King’s College, Charles Boxer elogia-o pelas capacidades pedagógicas, pelo trabalho realizado e por ser “a vida e a alma do Departamento”. Ruben demonstra conhecimento e entusiasmo, ao falar de Fernão Lopes, de D. Pedro V, da Geração de Setenta e de Fernando Pessoa ou ao encenar o Mar de Miguel Torga. Mas, na escrita, procura novos caminhos, seguindo os passos de Garrett, que nas “Viagens” escreveu como falava, dando à língua o tom vivo do que realmente se comunica. Não lhe interessava copiar “coisas arcaicas do passado numa língua que já ninguém fala”… Mas há quem não entenda, a começar pelo próprio Salazar, que considera intoleráveis as liberdades de Páginas II (1950)… O triste episódio é bem conhecido e nada abona para quem o suscitou. João Gaspar Simões ou António Quadros, ao contrário, entenderam bem que era Ruben que estava na razão…
LIVRO INSUPERÁVEL O romancista continua a seguir a via original de uma criatividade inconformista. Sobre Caranguejo (1954) dirá Eduardo Lourenço: “não foi nada senão bicho insólito, entrando às arrecuas e aos pinos na policiada praia lusitana que o reenviou de novo para o mar resplandecente de onde tivera a insolência de querer sair para contemplar o Sol e as estrelas”. E Maria Lúcia Lepecki não tinha dúvidas em considerar o romance como o maior… A Torre da Barbela (1964) é, no entanto, insuperável na obra do autor. E se ele amou tanto Portugal, a verdade é que, por isso mesmo, não deixou de fazer a severa crítica das limitações, invejas, mediocridades, provincianismos, como forma de as podermos superar. Jacinto do Prado Coelho fala de uma “cura de inverosimilhança”, de um retrato do aforro às tradições, da ronceirice, da tacanhez e de ridículas prosápias… E Liberto Cruz tem razão quando alerta para não se confundir o significado com o significante: o leitor “precisa sobretudo de deter-se na seriedade deste romance, atentar na ironia que o envolve, no humor que o reveste, no tom doloroso de dezenas de páginas, na amargura de tantos episódios que provocam gargalhadas salutares, na frescura sadia, na alegria de viver, que exala a cada momento” (Ruben A. – Uma Biografia, Estampa, 2012). Como salientou António Tabucchi é essencial reconhecer a vertente picaresca na cultura portuguesa, além do lírico e do trágico… Bocage, Beckford, Afonso Henriques e D. João V pontuam um enredo pleno de estranhas personagens que são muito mais do que figurantes à volta dos amores entre o Cavaleiro e Madeleine. Só, porém, alguém profundamente conhecedor de Portugal poderia escrever um romance assim, onde os anacronismos são tratados com o cuidado de darem o tom onírico, numa fusão entre tradição e modernidade, num caleidoscópio sempre variado, como assinalou José Blanc de Portugal. E é o homem crente da modernidade, que se apaixona desde cedo pela figura de D. Pedro V. Não, não é o romântico que Ruben Andresen Leitão descobre nas suas deambulações históricas, logo no final de 40. “É este Rei o primeiro homem moderno no nosso País; é ele que nos seus escritos proclama insistentemente o que a geração de 70 vai tentar realizar. É, se me perdoam a expressão, o primeiro grito histórico no século XIX, depois daqueles anos desmantelados de liberalismo duvidoso. A História não pode idealizar figuras quando elas têm valor para transcender o ambiente literário – perde-se a lenda e fica o homem na mais pura conceção de atuação vivida” (D. Pedro V – Um Homem e um Rei, 1950). É significativa a epígrafe que Ruben tira do pensamento do malogrado rei: “Escrevemos para um povo dormente a quem convém despertar; para cegos (dos da pior espécie que são os que não querem ver) a quem cumpre restituir a luz; para obstinados cuja relutância devemos vencer”… Eis o programa de vida, em que o escritor sempre acreditou. Mas Ruben A. era uma personagem. Eduardo Lourenço contou que, na véspera de defender a tese em Coimbra, convidou-o a ir ao Astória, onde o encontrou “fazendo a sua toilette como Luís XVI” – deixando a ideia de uma espécie de encarnação de Fradique Mendes. “Foi divertidíssimo. Não sei se se inventará uma personagem de romance tão singular como foi Ruben A.”… E Sophia escreveu: “Carta a Ruben A. / Que tenhas morrido é ainda notícia / Desencontrada e longínqua e não a entendo bem / Quando – pela última vez – bateste à porta de casa e te sentaste à mesa / Trazias contigo como sempre alvoroço e início / Tudo se passou em planos e projetos / E ninguém poderia pensar em despedida…
Um feroz amigo meu, dos antigos, dos tais que até gostamos de ver muitas vezes - mesmo quando discordamos - pegou num texto que escrevi sobre grupocentrismo português, em que citava Rúben A. e a referência deste a "atrasados culturais", e enviou-me uma carta de apreço pelo dito texto, intitulando-se, a si mesmo, "atrasado cultural".
Devo dizer que essa expressão do autor de O Mundo à Minha Procura não é da minha lavra, nem sequer corresponde a um qualquer olhar meu para isso a que, de modo equívoco ou plurívoco, por aí se vai chamando "cultura". Esta é, para mim, como sobejamente te tenho dito, uma circunstância ou, se quiseres, o ecossistema do nosso pensarsentir. Todos, cada um de nós "tem" a sua cultura, todo um sistema, mais ou menos consciente, herdado e adquirido, de valores, normas, referências, onde respira e se move a sua, nossa, de cada um, visão do mundo, bem como o nosso modo de pensarsentir o tempo em que vivemos. Tal circunstância não é adiantada nem atrasada, é como é, presente e evolutiva. Nesse sentido, parece-me também claro que a cultura de cada um poderá ser mais ou menos aberta a descobertas, ilustrações, tentativas de compreensão de si e dos outros... Assim, até em sentido etimológico, cultura ganha o significado de ato de cultivar, ou seja, é espiritícola. Mas nota bem: o homem culto não é necessariamente erudito, não é um acumulador de ficheiros e referências; é, acima de tudo, aquele que trabalha o seu espírito no entendimento do mundo. Todos nós conhecemos analfabetos cultos e eruditos sem janelas. Atrevo-me a dizer, Princesa, que isso de "fazermos pela cultura" até é uma questão ética.
Por isso me parece hoje tão importante, Princesa de mim, todos aprendermos a ter presente essa motivação da cultura como incansável labor do entendimento do mundo, precisamente porque ela não se esgota em qualquer acumulação de saberes ou conhecimentos sempre revisíveis, mas antes é um exercício fundamental da nossa liberdade de pensarsentir, isto é, da dignidade humana. As pessoas não se cultivam por decreto, menos ainda pela imposição de dogmas, nem tampouco pela banalização de modas ou mesmo outros quaisquer padrões de pensaragir corretamente. As pessoas cultivam-se pelo gosto da descoberta e o exercício do espírito crítico. A raiz de ambos tem duas faces, afinal iguais, que compõem cada rosto humano: liberdade e dignidade. Para algum espanto de gente com que converso, muitas vezes repito - quiçá lembrado do horror de Georges Bernanos à robotização das almas, temor que bebi na minha juventude - que, nas sociedades hodiernas, o bombardeamento quotidiano de "notícias" e publicidade, "conselhos" e opiniões, vai estruturando uma ditadura insidiosa e anónima que retira a muita gente a simples largueza - ou, pelo menos, o descanso - de respirar espiritualmente. Tenho ideia de que o maior problema - para não dizer o impasse atual - das nossas democracias é a esclerose da comunicação pela ausência crescente de cultura das pessoas, isto é, de educação e oportunidades de exercício do espírito crítico, condições imprescindíveis de diálogo em liberdade. Na verdade, o problema não é as pessoas pensarem pelas próprias cabeças; é tornarem-se cada vez mais incapazes de o fazer... Talvez, sobretudo, por viverem num ambiente (numa cultura) tóxico. Daí a importância crescente da animação de grupos de reflexão e diálogo, de encontro de pessoas que, graças ao progresso e facilidade dos meios de comunicação, até nem precisam de se reunir fisicamente. Retorquir-me-ás que é por vezes bastante desanimador o panorama de notícias e comentários nos jornais e revistas "on line"... Mas se pensares que ele é sobretudo revelador da incultura corrente e da leviandade irresponsável do que por aí se diz, talvez ganhes ânimo para entrares na discussão e reclamares o direito de cada um à seriedade do outro. Quando, em carta recente, te falava, a ti também, nos tais grupocentrismos, tinha ainda em mente como a censura ditatorial se exerce em tempos e modos diversos, por caminhos tão aparentemente limpos e claros, mas ínvios ou encerrados a contestatários mal vindos... E, na verdade, não creio que seja fácil enveredar pelos caminhos "oficialmente" estabelecidos, para fazermos valer uma ideia nova ou diferente, uma dissonância de qualquer daqueles catecismos. Mas não será viável tornar audíveis vozes mais independentes das "corretas" inteligências, como da balbúrdia tóxica reinante, vozes apenas mais refletidas? Deixo-te a pergunta, Princesa de mim.
Como achega à meditação de uma resposta, junto alguns estímulos de reflexão, algo paradoxais, a exigirem subtileza à nossa consideração. Quiçá eu seja um tanto conservador, na aceção do filósofo britânico Michael Oakeshott (1901-1990): Ser conservador é preferir o familiar ao desconhecido, o que já foi utilizado ao que nunca o foi, o facto ao misterioso, o verdadeiro ao possível, o limitado ao turvo, o próximo ao distante, o suficiente ao excedente, o conveniente ao perfeito. O mais curioso é este pensamento ocorrer-me quando lia a resposta do filósofo socialista francês Jean-Claude Michéa a uma pergunta do Philosophie Magazine sobre quais as "queixas" que ele teria contra a "visão siliconiana" do mundo defendida pelo patrão do Facebook, Mark Zuckerberg: É preciso muita ingenuidade para se acreditar que essa visão "siliconiana" do mundo possa contribuir de modo decisivo para a ultrapassagem dessa "atomização do mundo" e desse "isolamento do indivíduo", em que Engels via, em 1845, "o princípio fundamental da sociedade atual". Antes do mais, porque o tempo que o indivíduo "conectado" passa então a surfar de um ecrã para outro é forçosamente tirado ao da verdadeira vida comum, e portanto a essas relações humanas cara a cara que dela são o suporte privilegiado: uma "amizade Facebook" é muito diferente duma amizade real (um verdadeiro amigo é algo muito diferente de um follower!). Depois, porque esse mundo das redes sociais se organiza prioritariamente sobre um modo afinitário. Ora, o que define o pedestal antropológico fundamental de qualquer vida realmente comum, é que ela assenta no hábito psicologicamente formador de viver com pessoas - vizinhos, parentes, colegas, etc. -- que não escolhemos e que, portanto, não pensam necessariamente como nós... E, por isso mesmo, são condição essencial da nossa cultura.
Vivi hoje uma experiência intrigante para mim, quiçá despicienda para outros: cheguei a casa, aqui no meio do campo, depois de quatro dias de cidade e hospital, com uma cicatriz (?) inchada no pescoço, vaga memória de uma cirurgia e o habitual desarranjo dos antibióticos. Tudo OK! Vim direitinho a este gabinete onde me guardo de muitos malefícios, e passeei o olhar turvo para além da janela, sobre os campos que uma quieta tristeza invernal e uma paz sem tempo me descobriram bem belos... Foi um alívio, renasci, isto é, abri olhos novos. Tinha levado comigo, para entretém convalescente, Os Degraus do Parnaso, do M. S. Lourenço, A Restante Vida, da Maria Gabriela Llansol, e o 1º volume de O Mundo à Minha Procura, do Rúben A. Tenho coisas para te dizer de todos eles, ou melhor, dos passos deles que fui relendo. Mas agora, já caída a noite, e a caminho de um aconchego no silêncio que recolhe esta casa quase deserta, quero transcrever-te um trecho de O Mundo à Minha Procura - que levarei para vale de lençóis: Sou, portanto, contrário a que uma autobiografia se escreva no momento da reforma, quando se deixou de ser chefe de Estado, se abandonou a vida pública, ou quando da caneta já nada mais pinga. Uma autobiografia como O Mundo à Minha Procura só pode ser escrita por volta dos quarenta anos. Deixá-la para mais tarde é deixar vivência poderosa que se acarreta, mas que na pista dos quarenta tem de alijar parte da carga que trouxera das estações do passado. Dos quarenta aos cinquenta, limpa-se a casa. Põem-se telhas onde faltam, instala-se um novo sistema sentimental, e no jardim das delícias, no passeio depois do jantar, nas madrugadas sem Deus, ouvimos uma voz que nos buzina que dali para a frente a contagem é outra...
Reconheço-me, nesta vida campestre que há três meses iniciei, na limpeza da casa, nas telhas procuradas, num novo sistema de sentimento do mundo, num jardim com a delícia de inexplicável paz, nessa voz que me diz, todas as manhãs, que daqui para a frente a contagem é outra. Essa é, para mim, a voz da Misericórdia a acolher-me, e sempre me diz que não tenha pressa, pois o dia que chega é como todos os outros: traz suor e pão. Tampouco tenho com que escrever uma autobiografia, ainda que me aproximando de duas vezes quarenta... Seja como for, viver no campo faz do citadino de mim um velho novo.
Rúben A. publicou este primeiro volume da sua autobiografia em 1966, com quarenta e seis anos de idade, nove antes de morrer, de um enfarte, em Londres. O título está bem achado, o que o autor nos conta é a história dos seus encontros e desencontros com o mundo, a dialética dele mesmo com a sua circunstância, que tanto o faz tornar-se dela como dela fugir. Eis a vida de um ser em relação, narrada com a simplicidade de memórias autênticas, percebida com desconcertante ingenuidade, esta entendida como a inocência inicial. Quando há décadas li pela primeira vez o livro todo, aconteceu-me o que me sucedeu com El Amor en los Tiempos del Colera do Gabriel Garcia Marquez e O Ano da Morte de Ricardo Reis do José Saramago: levei o volume para a cama e só o fechei na manhã seguinte. Mais tarde, regressei a eles todos, para reler passos ou trechos, e também acabei sempre por descobrir coisas que antes não encontrara. Esta noite, reencontrei aquela parte em que Rúben A. nos conta: Vem-me logo à imaginação o caminhar apressado da rua para apanhar o elétrico que dava mesmo para a primeira aula, aquela rua sem fim, palmilhada com o credo na boca e que servia aos últimos momentos para, de livro em punho, saltando de cova em cova, estudar, rever, passar a limpo pela memória as conjugações irregulares dos verbos franceses, as descrições mineralógicas de cristais que viviam apenas na minha imaginação, e o muito teórico latim, o famigerado latim, o facinorado latim. E o horror que eu tinha em ir ser chamado, em ir pôr-me em sentido diante dos professores de gerações já passadas há muito tempo! Quem escreve aquelas linhas é licenciado em Ciências Histórico-Filosóficas pela Universidade de Coimbra e no momento da escrita, penso, seria funcionário da Embaixada do Brasil em Lisboa. Ou antes será o adolescente que morava na casa grande da sua avó, na Quinta do Campo Alegre, no Porto (onde hoje é o Jardim Botânico) e vai a caminho do liceu?
Desta feita, o que descobri (novamente?) e me fez pensar foi algo que com alguma frequência pensossinto, sempre com receio de estar a ser injusto, isto é, de ter mais direito ou virtude do que outros. A dado passo, não é o jovem liceal que fala, mas certamente o homem maduro, mordido e marcado: Na sociedade portuguesa há um ciúme indescritível perante a coragem e perante a cultura. Que um dos seus membros se liberte pelo espírito ou pelo valor humano é o maior insulto que eles, atrasados culturais, julgam que se lhes pode fazer. Sentem-se ofendidos, reagem de certo modo com maledicência, uma vez que não tendo nem grandes amores nem grandes ódios oferecem apenas o mesquinho da perseguição, fechando as casas, achando as pessoas um peso, ou votando a um ostracismo aqueles três ou quatro - em cada década só há também três ou quatro aves migradoras - bodes expiatórios da purga mental da sociedade, ancorados para toda a vida a um inferno. Esquecem-se da felicidade que irá acolher os eleitos, os que souberam fazer a escolha depois de anos de amadurecida visão, depois de terem estado sós... ... Não compreendem, porque está fora do seu alcance, o sentido de plenitude contemplativa que paira em seres semelhantes mas de idioma mais delicado... ...São os cadáveres adiados que procriam, de que fala o genial Pessoa... ... Têm uma linguagem especial; raros são os que tentam novo alfabeto. Só conheci um homem rico e civilizado em Portugal - o resto são amigos uns dos outros, falam em cifras, comungam moedas, apertam a mão em notas e quando conjugam a primeira pessoa do presente do indicativo do verbo dar enganam-se e dizem o pretérito em dei. Já dei, já dei, como quem foge a esconder-se de uma peste. Não tenho tido, na vida, mesmo apesar de agressões sofridas, experiências traumatizantes. Talvez por sempre me ter lembrado desse ensinamento de minha Mãe que dizia como, perante, certos ataques ou negações da nossa circunstância, devemos pensarsentir que ça glisse sur la cuirasse de mon indiférence... Mas este passo de O Mundo à Minha Procura - que, neste particular, até me apetece, com alguma ironia, traduzir para francês como Ce Monde qui me Cherche - evoca em mim impressões mais ou menos vagas ou constantes da atmosfera grupocêntrica da sociedade portuguesa, composta de clubes ou partidos que gostam de se reunir no seu modo próprio, pensando sensivelmente da mesma maneira, repudiando por princípio o outro, olhando para a diferença com superioridade, desconfiança ou receio. Já reparaste, Princesa, que em vários sectores da nossa sociedade aparecem sempre os mesmos a perorar e sustentar-se? Nesse sentido, somos profundamente provincianos. E creio que, precisamente porque nos encerramos em ortodoxias e correções, não nos autodesenvolvemos. Vamos "lá fora" buscar ideias e vocabulário, nem sempre reparando em muitos erros de tradução. Deixa-me transcrever para ti um parágrafo de Uma Pérola para Fradique, texto inserto em Os Degraus do Parnaso do M. S. Lourenço: Eça de Queiroz convence ao desenhar um verdadeiro cosmopolita na figura de Fradique. Nós sabemos que este é o cosmopolitismo verdadeiro em virtude da perceção de Portugal que ele torna possível, uma perceção dura mas que sugere também um programa de regeneração: Portugal é na verdade um país traduzido do francês para calão. A descoberta cosmopolita de Fradique, de que os portugueses só utilizam uma variante reles da sua própria língua, contém no entanto em si a possibilidade de os mesmos portugueses deixarem de falar, de pensar e de sentir em calão.
Escrever-te esta carta, Princesa de mim, foi um exercício de alívio do incómodo físico em que me encontro. Bem hajas!