Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

ANTOLOGIA


RUSALKA…

por Camilo Martins de Oliveira


Minha Princesa de mim:


Escuto a "Rusalka" do Dvorak, e penso em ti, ó Princesa das cartas que te escrevo! Serás essa mulher, serás visão, anseio, aparição, sonho místico mais do que amor real? Ao longo deste convívio epistolar, nasceu naturalissimamente, entre nós, uma intimidade antiga, por paradoxal que seja uma antiguidade nascer agora... Sei hoje que este convívio contigo é essencial ao meu equilíbrio interior, à minha alegria. Porque é renúncia a outros momentos e carinhos, tem-me feito perceber que, afinal, posso bem com saudades de coisas boas: a grande saudade de ti é ontológica, não se cura nem engana, faz parte de mim. Vivo continuamente com este sentimento de um encontro único, tão profundo e intenso, de ternura. Ternura inesperada, imerecida e simples, graça que dói por ser impossível alegria. Assim trago, dentro de mim, o inalcançável. Rusalka é o nome eslavo da ondina, ninfa da água ou sereia... Filha de Vodnik, o senhor das águas, a infeliz quer libertar-se das ondas suas irmãs que, todos os dias e noites, a enredam em nenúfares. Quer a liberdade do dia, a glória aparente da luz que, pálida, a desperta nas profundezas do lago. Daí também surge o espírito dos afogados, que procura agarrar e levar ao fundo as ninfas do bosque, que lhe fogem e se riem dele. Rusalka conseguiu trepar por um salgueiro chorão e assiste à frustração de quem, como ela, habita as águas e não é ser humano com pernas para correr à superfície da terra... A seu pai confessa a tristeza de não ser e o anseio de ser humana. Vodnik pergunta-lhe se quer ser infeliz e mortal, e prenuncia-lhe um destino desgraçado se fugir à sua condição de ser aquático. Como era o mundo, penso eu, antes de existir, quando o espírito de Deus pairava sobre as águas. Ou como cada um de nós, de olhos fechados, nas águas do ventre materno. Mas a paixão da ondina é mais forte, é já humana: não resistiu ao encanto de um príncipe que se vem banhar nas águas misteriosas do lago dela, onde ela é só a vaga que o abraça e ele não vê, onde só ela ama e não se sente amada. Por amares humanamente infeliz serás, prediz o pai. Mas infeliz, tão infeliz sou eu agora, pensa ela, pois que o meu amado não conhece o meu amor! E à lua que de tão cheia inunda o ar todo, a floresta inteira, o próprio lago, Rusalka (na mais linda ária da ópera) reza e suplica: Ó lua, que do alto desse céu de veludo rompes a noite e te passeias pela extensão da terra, e vês longe, e com teu olhar afagas os lares dos homens...pára, espera por mim! Diz-me onde está o meu amor! E diz-lhe, a ele, ó lua de prata, que é o meu abraço de água que o encerra, para que de mim se lembre nos seus sonhos! Não me abandones, ó lua, não te vás embora, sem o ires buscar e lhe alumiares o caminho até mim... Diz-lhe que aqui estou, aqui o espero. E se for eu o sonho dessa alma humana, desperta-a para mim! A feiticeira que a libertará e lhe dará pernas, adverte-a: "se não encontrares o amor na terra, viverás repudiada, de novo condenada às profundezas. Se perderes esse amor, que tanto desejas, a maldição dos senhores das águas, no fundo delas outa vez te afogará. E mesmo que encontres esse amor, terás de sofrer, pois nenhum ouvido humano poderá escutar-te... Queres tu ser muda para quem amas? A resposta da ondina é trágica: - "Se for para conhecer o seu amor, podes crer, que com prazer aceitarei ser muda!" Mas poderá, mesmo tão generoso e puro, se for já humano, um amor vencer tantos sortilégios? A ópera de Antonin Dvorak, seguindo o libreto de Joraslav Kvapil, diz que não. Nenhum amor humano vence a sua condição. Pela alvorada, o príncipe vai correndo o seu ginete em perseguição de uma gazela branca e maravilha-se com a descoberta de Rusalka, muda e branca, branca, fria e bela... Arrebata-a para o seu palácio. Anunciam-se as bodas do príncipe com a senhora do seu encantamento. Mas a ondina permanece muda e fria... Em desespero do seu anseio, o noivo cai na trama de uma princesa estrangeira que o cobiça. O ciúme de Rusalka frustra-a ainda mais de uma redenção possível do anseio amoroso. Só se liberta da mudez que a torna incomunicável chamando pelo pai, Vodnik,o senhor das águas, que finalmente a arrasta para as profundas do lago. De onde a ondina, lembra-lhe a feiticeira só poderá libertar-se apunhalando o príncipe, fazendo correr o sangue humano, vermelho e quente que ela em si não tem. Rusalka nega-se, mas, fogo fátuo, aparecerá ao amado que a procura no bosque, e pela derradeira vez o abraçará, pela primeira o beijará. Sabendo ambos que esse beijo o matará. Mas nós não sabemos se esse príncipe que por amor morre irá, nos braços feiticeiros, poderosos e impotentes, da onda Rusalka, perder-se com ela na eternidade das águas iniciais. O dueto final é, mais ou menos, assim: Príncipe -  "Quero tudo, e tudo dar-te! Beija-me, beija-me mil vezes! Não quero regressar, prefiro morrer! Beija-me, dá-me a paz!" Rusalka - "O meu amor arrefece qualquer sentimento: devo destruir-te, devo acolher-te no meu abraço de gelo... Pelo teu amor, pela tua beleza, pela tua paixão tão humana e tão inconstante, por tudo o que causou a maldição do meu fado, por todo esse tanto, alma humana, Deus te guarde!" A sereia inefável, silenciosa, e tão pálida que é invisível transparência, é a forma enigmática desse anseio que connosco nasce, que nenhum desejo realizado satisfaz, nem ilusória posse iludirá. Ser humano é querer sempre mais, é o desejo de chegar ao impossível. Mas só a verdade nos libertará. E a verdade em que acredito é uma promessa: a de que, no fim deste percurso, veremos o invisível, poderemos o impossível, e encontraremos, lá no fundo das águas que nos engolem, a luz que ainda não temos bem a certeza de ver acesa dentro de nós. Talvez por ela, todavia, haja sorrisos e olhares que trocamos, uma mão estendida e dada, uma palavra, um apoio, uma entrega, que dão à generosidade dos homens a dimensão da misericórdia de Deus". Não sei em que registo o marquês de Sarolea escutou a "Rusalka". Ao ler e traduzir esta carta, pus a tocar, para mim, a versão de Sir Charles Mackerras, com a Orquestra Filarmónica Checa e a comovente Renée Fleming. Camilo Maria preferiu a canção à lua. Eu quase chorei ao ouvir o lamento da ondina, a abrir o acto III: "Força insensível da água, outra vez me arrastaste para o fundo... Porque não poderei, então, desaparecer, desaparecer finalmente?... ...Onde estás tu, ó magia das noites de Verão, sob os cálices dos nenúfares? Porque não poderei eu, no desamparo deste frio, perecer, perecer finalmente? "Mas a fluidez musical do drama tem uma beleza contínua e secreta, como se a sensualidade da própria vida antes perguntasse: Porque não poderei eu viver, viver finalmente? Como no fim da "Traviata" - que é também um rio de música - a morte surge como passo para o realizável. Para o encontro.


Camilo Martins de Oliveira


Obs: Reposição de texto publicado em 01.10.13 neste blogue. 

RUSALKA…

 

Minha Princesa de mim:

 

Escuto a "Rusalka" do Dvorak, e penso em ti, ó Princesa das cartas que te escrevo! Serás essa mulher, serás visão, anseio, aparição, sonho místico mais do que amor real? Ao longo deste convívio epistolar, nasceu naturalissimamente, entre nós, uma intimidade antiga, por paradoxal que seja uma antiguidade nascer agora... Sei hoje que este convívio contigo é essencial ao meu equilíbrio interior, à minha alegria. Porque é renúncia a outros momentos e carinhos, tem-me feito perceber que, afinal, posso bem com saudades de coisas boas: a grande saudade de ti é ontológica, não se cura nem engana, faz parte de mim. Vivo continuamente com este sentimento de um encontro único, tão profundo e intenso, de ternura. Ternura inesperada, imerecida e simples, graça que dói por ser impossível alegria. Assim trago, dentro de mim, o inalcançável. Rusalka é o nome eslavo da ondina, ninfa da água ou sereia... Filha de Vodnik, o senhor das águas, a infeliz quer libertar-se das ondas suas irmãs que, todos os dias e noites, a enredam em nenúfares. Quer a liberdade do dia, a glória aparente da luz que, pálida, a desperta nas profundezas do lago. Daí também surge o espírito dos afogados, que procura agarrar e levar ao fundo as ninfas do bosque, que lhe fogem e se riem dele. Rusalka conseguiu trepar por um salgueiro chorão e assiste à frustração de quem, como ela, habita as águas e não é ser humano com pernas para correr à superfície da terra... A seu pai confessa a tristeza de não ser e o anseio de ser humana. Vodnik pergunta-lhe se quer ser infeliz e mortal, e prenuncia-lhe um destino desgraçado se fugir à sua condição de ser aquático. Como era o mundo, penso eu, antes de existir, quando o espírito de Deus pairava sobre as águas. Ou como cada um de nós, de olhos fechados, nas águas do ventre materno. Mas a paixão da ondina é mais forte, é já humana: não resistiu ao encanto de um príncipe que se vem banhar nas águas misteriosas do lago dela, onde ela é só a vaga que o abraça e ele não vê, onde só ela ama e não se sente amada. Por amares humanamente infeliz serás, prediz o pai. Mas infeliz, tão infeliz sou eu agora, pensa ela, pois que o meu amado não conhece o meu amor! E à lua que de tão cheia inunda o ar todo, a floresta inteira, o próprio lago, Rusalka (na mais linda ária da ópera) reza e suplica: Ó lua, que do alto desse céu de veludo rompes a noite e te passeias pela extensão da terra, e vês longe, e com teu olhar afagas os lares dos homens...pára, espera por mim! Diz-me onde está o meu amor! E diz-lhe, a ele, ó lua de prata, que é o meu abraço de água que o encerra, para que de mim se lembre nos seus sonhos! Não me abandones, ó lua, não te vás embora, sem o ires buscar e lhe alumiares o caminho até mim... Diz-lhe que aqui estou, aqui o espero. E se for eu o sonho dessa alma humana, desperta-a para mim! A feiticeira que a libertará e lhe dará pernas, adverte-a: "se não encontrares o amor na terra, viverás repudiada, de novo condenada às profundezas. Se perderes esse amor, que tanto desejas, a maldição dos senhores das águas, no fundo delas outa vez te afogará. E mesmo que encontres esse amor, terás de sofrer, pois nenhum ouvido humano poderá escutar-te... Queres tu ser muda para quem amas? A resposta da ondina é trágica:   - "Se for para conhecer o seu amor, podes crer, que com prazer aceitarei ser muda!" Mas poderá, mesmo tão generoso e puro, se for já humano, um amor vencer tantos sortilégios? A ópera de Antonin Dvorak, seguindo o libreto de Joraslav Kvapil, diz que não. Nenhum amor humano vence a sua condição. Pela alvorada, o príncipe vai correndo o seu ginete em perseguição de uma gazela branca e maravilha-se com a descoberta de Rusalka, muda e branca, branca, fria e bela... Arrebata-a para o seu palácio. Anunciam-se as bodas do príncipe com a senhora do seu encantamento. Mas a ondina permanece muda e fria... Em desespero do seu anseio, o noivo cai na trama de uma princesa estrangeira que o cobiça. O ciúme de Rusalka frustra-a ainda mais de uma redenção possível do anseio amoroso. Só se liberta da mudez que a torna incomunicável chamando pelo pai, Vodnik,o senhor das águas, que finalmente a arrasta para as profundas do lago. De onde a ondina, lembra-lhe a feiticeira só poderá libertar-se apunhalando o príncipe, fazendo correr o sangue humano, vermelho e quente que ela em si não tem. Rusalka nega-se, mas, fogo fátuo, aparecerá ao amado que a procura no bosque, e pela derradeira vez o abraçará, pela primeira o beijará. Sabendo ambos que esse beijo o matará. Mas nós não sabemos se esse príncipe que por amor morre irá, nos braços feiticeiros, poderosos e impotentes, da onda Rusalka, perder-se com ela na eternidade das águas iniciais. O dueto final é, mais ou menos, assim: Príncipe - "Quero tudo, e tudo dar-te! Beija-me, beija-me mil vezes! Não quero regressar, prefiro morrer! Beija-me, dá-me a paz!" Rusalka - "O meu amor arrefece qualquer sentimento: devo destruir-te, devo acolher-te no meu abraço de gelo... Pelo teu amor, pela tua beleza, pela tua paixão tão humana e tão inconstante, por tudo o que causou a maldição do meu fado, por todo esse tanto, alma humana, Deus te guarde!" A sereia inefável, silenciosa, e tão pálida que é invisível transparência, é a forma enigmática desse anseio que connosco nasce, que nenhum desejo realizado satisfaz, nem ilusória posse iludirá. Ser humano é querer sempre mais, é o desejo de chegar ao impossível. Mas só a verdade nos libertará. E a verdade em que acredito é uma promessa: a de que, no fim deste percurso, veremos o invisível, poderemos o impossível, e encontraremos, lá no fundo das águas que nos engolem, a luz que ainda não temos bem a certeza de ver acesa dentro de nós. Talvez por ela, todavia, haja sorrisos e olhares que trocamos, uma mão estendida e dada, uma palavra, um apoio, uma entrega, que dão à generosidade dos homens a dimensão da misericórdia de Deus". Não sei em que registo o marquês de Sarolea escutou a "Rusalka". Ao ler e traduzir esta carta, pus a tocar, para mim, a versão de Sir Charles Mackerras, com a Orquestra Filarmónica Checa e a comovente Renée Fleming. Camilo Maria preferiu a canção à lua. Eu quase chorei ao ouvir o lamento da ondina, a abrir o acto III: "Força insensível da água, outra vez me arrastaste para o fundo... Porque não poderei, então, desaparecer, desaparecer finalmente?... ...Onde estás tu, ó magia das noites de Verão, sob os cálices dos nenúfares? Porque não poderei eu, no desamparo deste frio, perecer, perecer finalmente? "Mas a fluidez musical do drama tem uma beleza contínua e secreta, como se a sensualidade da própria vida antes perguntasse: Porque não poderei eu viver, viver finalmente? Como no fim da "Traviata" - que é também um rio de música - a morte surge como passo para o realizável. Para o encontro.

 

Camilo Martins de Oliveira

 

Obs: Reposição de texto publicado em 01.10.2013 neste blogue.