Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
O falecimento com 94 anos de Hélène Carrère d’Encausse, Secretária Perpétua da Academia Francesa, autora de “L’Empire Eclaté”, (Flammarion, 1978) constitui oportunidade para homenagear uma referência maior da cultura contemporânea.
O falecimento com 94 anos da Secretária Perpétua da Academia Francesa constitui oportunidade de homenagear uma referência maior da cultura contemporânea, pela qualidade da personalidade e da obra da historiadora, mas também por ocorrer num momento em que os acontecimentos ligados à guerra da Ucrânia têm gerado uma perniciosa e injusta desconfiança relativamente à cultura russa, que é riquíssima e não pode confundir-se com as tentações do neoimperialismo de qualquer governação. Hélène Carrère d’Encausse deixou-nos uma obra muito importante, da qual resulta uma ideia fundamental – o reconhecimento da relevância da componente russa na História europeia. Ao contrário de um certo discurso radical russófilo, não é possível compreender a História da Europa e a cultura do velho continente sem o reconhecimento dos grandes autores de origem russa, na literatura, na música, nas artes ou no pensamento. A historiadora agora desaparecida deixou-nos uma obra muito rica, que demonstra a necessidade de construir a Europa do futuro, através de um entendimento da complementaridade das raízes euroasiáticas da nossa cultura da sua base indo-europeia. Haverá alguma dúvida sobre a importância de Tolstoi, Dostoievski, Chestov, Berdiaev, Tchaikovsky, Kandinsky ou Chagall na alma europeia? A guerra fria e a sua evolução perturbaram esse entendimento natural, mas não o podem destruir. Quando H. Carrère d’Encausse foi recebida na Academia Francesa em novembro de 1991, parecia abrir-se um novo horizonte, que o tempo esbateu. Então a empossada afirmou: “Faço parte de uma geração que, chegada à adolescência no final da última grande guerra, viu-se confrontada com uma infelicidade europeia. A Europa estava amputada de uma parte de si mesma, estava-se perante o Ocidente raptado, como afirmou Milan Kundera. Essa era a nossa perspetiva. Sabíamos que o passado estava abolido, e que o pensamento e os génios antigos não podiam ter o direito de cidade, a não ser para legitimar uma utopia assassina. (…) Dezenas de milhares dos nossos semelhantes foram lançados no inferno gelado dos campos, com a horrível e degradante obrigação de proclamar que essa infelicidade era uma verdadeira felicidade”. Então, no modesto lugar de estudiosa da História, a investigadora disse ter-se esforçado para contribuir a fim de que fosse preservada a memória desses homens e povos que ficaram privados dela. Ora, com o fim do império soviético, um sonho de liberdade poderia estar a realizar-se. Mas a académica não tinha demasiadas ilusões. Nada seria simples nesta nova “Primavera dos Povos”, que apenas acabava de nascer. Haveria, por certo, o hábito do ódio que alimentaria muitos conflitos, e por isso, apesar dos escombros, acreditava nos homens de boa vontade, que tentariam, apesar do caos e da miséria, reconstruir um universo onde a dignidade humana recuperasse o seu lugar.
PALAVRAS PROFÉTICAS
Estas palavras soaram a proféticas, já que o tempo recente confirmou a incerteza e o medo…. Nascida em Paris, na família Zourabichvili, a 6 de julho de 1929, Hélène teve uma infância dividida entre a memória grandiosa do tempo dos Romanov e as provações da condição de emigrados pobres da revolução bolchevique. A família instala-se em França, vinda da Geórgia, com passagem por Istambul, depois da invasão da República Democrática da Geórgia pelo exército russo no fim do inverno de 1921. A jovem aprende a ler em francês, mas também em russo. Seu pai, Georges, filósofo diplomado em economia política começa por ser condutor de táxi em Paris, antes de criar uma empresa de importação-exportação em Bordéus, mas o domínio de cinco línguas levam-no a ser intérprete durante a ocupação pelas autoridades alemãs, facto que levará ao seu desaparecimento no fim da guerra. Hélène vem para Paris com sua mãe, vivendo de início na comunidade ortodoxa russa. Nesse tempo, Maurice Bardèche, cunhado de Robert Brasillach, dirá dela: “Tinha uma alma de jovem heroína, mas também era realista, decidida e lúcida”. Estudante bem classificada no Liceu Moliére, obtém uma formação sólida que prossegue no Instituto de Estudos Políticos. Sendo apátrida, obtém a nacionalidade francesa quando chega à maioridade, recordando essa circunstância em 1987 quando participa na Comissão da Reforma do Código da Nacionalidade. Casa-se em 1952 com Louis Carrère d’Encausse e interessa-se pelo estudo dos povos da Ásia Central e dos emiratos uzbeques, desde Alexandre II a Lenine, o que constituirá tema da sua tese de doutoramento, sob a orientação de Maxime Rodinson (1963). A editora Armand Colin publica o estudo sob o título “Reforma e Revolução entre os muçulmanos do Império Russo: Bukhara 1867-1924” (1966). A historiadora aproveita esse tempo para viajar pelas repúblicas periféricas da União Soviética, do Cazaquistão ao Afeganistão, passando por Tachkent, atual capital do Uzbequistão. Os seus estudos revelam-se fundamentais, pelo conhecimento das populações e pelo entendimento aprofundado de meio século do sistema soviético, bem evidenciado na obra “A União Soviética de Lenine a Estaline 1917-1953” (ed. Richelieu, 1972), reeditada em dois volumes pela Flammarion em 1979, centrada no tema “a ordem pelo terror”. Contudo, depois de publicar o estudo sobre a política soviética no Médio Oriente (1955-1975), em 1976, é com a saída do célebre “L’Empire Eclaté” (Flammarion, 1978) que Hélène Carrère d’Encausse se torna uma figura mediática de primeiro plano. Apesar de não se concretizar a sua tese fundamental – o enfraquecimento da União Soviética pela pressão demográfica das repúblicas asiáticas muçulmanas – a verdade é que a contestação política na Polónia com o Sindicato Solidariedade e a ação de Lech Walesa, bem como a eleição de João Paulo II, um polaco, como Papa anunciam mudanças profundas no mundo soviético, que trazem os temas da historiadora para a ribalta. Um significativo conjunto de estudos ilustram a urgência dos temas que a ocupam: “O Poder Confiscado, governantes e governados na URSS” (1980); “O Grande Irmão: a União Soviética e a Europa sovietizada” (1983); “Nem Guerra nem Paz: o Novo Império Soviético ou do bom uso da distensão” (1986), “O Grande Desafio: os bolcheviques e as nações 1917-1930” (1987), além de um estudo menos conhecido, mas essencial, sobre a desestalinização de Krutchev, que mais tarde constituirá novo sucesso – “A Segunda Morte de Estaline” (2006). Mas a fulgurante síntese intitulada “Le Malheur russe: Essai sur le meurtre politique” (Fayard, 1988), se lida atentamente nos dias de hoje, faz luz sobre a crise russa. É verdade que a análise do poder sanguinário russo apresenta lacunas, mas a transposição da experiência soviética para história ancestral do czarismo em “Os Romanov – Uma dinastia sob o reino do sangue” (2013) obriga a tentar entender o nevoeiro espesso que rodeia a ação de Vladimir Putin. Trata-se de uma situação muito complexa, a exigir a recusa de qualquer simplificação. Foi Henri Troyat o grande defensor da eleição de Hélène Carrère d’Encausse para a Academia, sendo eleita em 1990 e recebida poucos dias depois da morte da União Soviética (1991). Para o punho da sua espada, da autoria do artista da Geórgia Goudji, escolhe o versículo bíblico “Bem-aventurados os pacíficos”. Mulher de saber e autoridade deixa na sua obra vasta muitas pistas relevantes para a compreensão da gravíssima crise europeia e para as suas saídas, obrigando à recusa do reino do sangue e à salvaguarda da dignidade, tão esquecida… Grande mulher das artes e da cultura, como afirmou Jack Lang, manteve uma coerência extrema no seu pensamento sobre a necessidade de pensar no futuro da Europa devendo ser um fator essencial de paz, devendo estreitar-se os laços culturais em todo o continente, com recusa do regresso da lógica do “homo sovieticus” e da lembrança em Praga de 1968…
Vivemos uma paz armada com os nossos corpos instalados na paz e os nossos espíritos situados entre bombas e escombros. Atacamos um inimigo com palavras, e ele ataca-nos com ameaças, mas dormimos na nossa cama e não num abrigo. E, no entanto, participamos na verdadeira guerra, sem que tenhamos entrado, mas fazendo entrar nela armas e munições.
A guerra da Ucrânia internacionalizou-se progressivamente. À ajuda humanitária e depois alimentar às populações ucranianas vítimas da agressão russa, sucedeu a ajuda militar em armas, primeiro defensivas e depois contraofensivas, cuja qualidade e quantidade crescem principalmente com o contributo massivo dos Estados Unidos, acompanhados pela maior parte dos países da União Europeia.
A estratégia do exército russo é implacável. É filha do método de Jukov, da Segunda Guerra Mundial, com formidáveis bombardeamentos de artilharia, não só contra as tropas inimigas, mas também contra as cidades a tomar, com destruição completa pela artilharia pesada da capital do Reich, Berlim. Como acontece com qualquer exército vencedor, mas mais terrivelmente no caso do avanço soviético na Alemanha, as mortes e as violações multiplicaram-se. Soubemo-lo então, mas fomos impedidos de os denunciar, explicando-os como vingança dos enormes sofrimentos e mortes infligidos pela Alemanha nazi às populações soviéticas.
No tocante à Ucrânia, o povo senão irmão pelo menos parente próximo do povo russo, podemos perguntar-nos se as mortes e violações são devidas à desordem de algumas tropas, ao furor da derrota ou a uma vontade de aterrorizar.
Não sabemos ainda se a intenção primeira da agressão de Putin foi a de fazer cair toda a Ucrânia como um fruto maduro, decapitando-a desde os primeiros assaltos. Parece que a ambição atual sob o efeito da resistência ucraniana seja conquistar duradouramente as regiões maioritariamente russófonas do Donbass e o litoral do mar de Azov.
No momento em que escrevo (maio de 2022), a luta é intensa e incerta: a ofensiva russa é muito poderosa mas o exército ucraniano, no decurso da guerra desde 2014 contra os separatistas russófilos estabeleceu fortificações em profundidade e escalonadas, que travam consideravelmente os avanços russos ainda pouco decisivos.
O que parece provável daqui em diante, salvo um golpe de Estado no Kremlin, um golpe militar fatal ou ainda um golpe de teatro diplomático (cessar fogo, compromisso de paz), é que a guerra deve durar e intensificar-se com o contributo cada vez mais abundante de armas ocidentais e retaliações cada vez mais amplas da Rússia.
O carácter internacional da guerra da Ucrânia vai crescendo. É certo que o campo ocidental guiado pelos Estados Unidos declara não fazer guerra à Rússia. Mas a intervenção militar de apoio à Ucrânia é uma guerra indireta a que se junta uma guerra económica acrescentada pelo crescimento das sanções.
Estamos em plena escalada, sustentada por novos bombardeamentos, por novas acusações mútuas, por novas vagas de criminalização recíproca. A guerra indireta em que se tornou a guerra da Ucrânia pode a todo o momento alargar-se com bombardeamentos não acidentais em território russo ou europeu.
Nesse ponto Putin retomou o seu anúncio de uma resposta «rápida e avassaladora» se um certo limiar não precisado de hostilidade ou ingerência puder ameaçar a Rússia, criando condições para o uso de uma arma decisiva, desconhecida de todos os outros países, de que a Rússia seja a única possuidora.
Esta ameaça não é levada a sério pelos Estados Unidos e seus aliados, em virtude de um argumento racional, bem conhecido depois da guerra fria. Se a Rússia nos quer menorizar, a resposta imediata menorizá-la-ia. Este argumento racional não considera um possível carácter acidental e a possível irracionalidade. O possível carácter acidental seria o lançamento involuntário de um engenho nuclear sobre o inimigo potencial, o que deflagraria uma resposta nuclear imediata. A possível irracionalidade é a de um ditador cheio de raiva ou perturbado pelo delírio.
De todo o modo, é atualmente provável (sabendo-se que o improvável pode acontecer) que de derrapagem em derrapagem a guerra se alargue nos territórios europeus e se amplifique pelos misseis intercontinentais nos territórios russo e americano sem sequer poupar a Europa. Uma terceira guerra mundial, dum tipo novo, com utilização de armas nucleares táticas de alcance limitado, drones, ciberguerra com destruição de sistemas de comunicação que asseguram a vida das sociedades, seria a concretização lógica da ampliação da atual guerra internacionalizada.
Juntemos uma verificação importante: a guerra introduz nos países em conflito controlos, vigilâncias, eliminação de todas as opiniões diferentes da linha oficial e o desenvolvimento de propaganda de justificação permanente dos seus atos e de criminalização ontológica do inimigo. A Rússia de Putin era já um Estado autoritário às ordens de um ditador. A guerra agravou o controlo e a repressão, atingindo aqueles que não só se opunham à agressão, mas também àqueles que duvidavam dos seus fundamentos. Na Ucrânia a caça aos espiões e terroristas suscitou um controlo das populações, os excessos cometidos por algumas das suas tropas ou grupos são ocultados e, denunciando os desvios reais, a propaganda desenvolve-se contra um inimigo totalmente criminalizado. Em França, embora não beligerante e ainda com o conforto último da paz, só temos acesso às considerações mais enganadoras da Rússia de Putin e às imagens de destruição que esta causa.
Estamos na escalada da desumanidade e da destruição da humanidade, na escalada do simplismo e da destruição da complexidade. Mas, sobretudo, a escalada para a guerra mundializada significa o arrastamento da humanidade para o abismo. Poderemos escapar a esta lógica infernal?
A única possibilidade seria uma paz de compromisso que instaurasse e garantisse uma neutralidade na Ucrânia. O estatuto das regiões russófonas do Donbass poderia ser tratado por referendo. A Crimeia, região tártara em parte russificada, mereceria também um regime especial. Em suma, as condições de um compromisso, tão difícil de estabelecer, são claras. Mas a radicalização e a ampliação da guerra levam a recuar nas possibilidades positivas de modo indefinido. A situação geopolítica da Ucrânia e a sua riqueza económica em trigo, aço, carvão, metais raros atraem os grandes predadores, que são as duas superpotências. A inclinação da Ucrânia para ocidente, depois de Maidan, suscitou a agressão russa, e a agressão russa suscitou não apenas o apoio a uma nação vítima de invasão, mas a vontade de a integrar no mundo ocidental, o que correspondia de resto ao voto maioritário dos ucranianos.
A Ucrânia é mártir não somente da Rússia, mas do agravamento das relações conflituais entre os Estados Unidos e a Rússia e do alargamento da OTAN, ele mesmo inseparável das inquietudes suscitadas pela guerra russa na Chechénia e da sua intervenção militar na Geórgia.
O objetivo da Ucrânia não é apenas libertar-se da invasão russa, mas também libertar-se do antagonismo entre a Rússia e os Estados Unidos. Esta dupla libertação permitiria às nações da União Europeia libertarem-se igualmente desse conflito e procurarem ligar segurança e autonomia.
As sanções contra a Rússia, atingindo duramente não apenas o regime de Putin, mas também o povo russo, não se sabe até que ponto atingem igualmente os sancionadores, virando-se contra eles: não é apenas o seu abastecimento em energias e em alimentação que é ameaçado, é, sem dúvida, com a inflação aumentada e as restrições anunciadas, a sua economia e toda a sua vida social. Uma crise económica é sempre ela mesma geradora de regressões autoritárias e de instalação duradoura de sociedades submetidas.
A Rússia de Putin é um abominável regime autoritário. Mas não é semelhante à Alemanha de Hitler; o seu hegemonismo pan-eslavo não é, como foi o hitleriano, a vontade de colonizar a Europa e de escravizar povos racialmente inferiores. Toda a hitlerização de Putin é excessiva.
Estamos num mundo dominado pelos antagonismos entre superpotências e entregue aos delírios religiosos, étnicos, nacionalistas e racistas. Por muito repugnantes que sejam as superpotências a títulos diversos o apaziguamento dos seus conflitos é uma condição sine qua non para evitar desastres generalizados. Devemos aspirar a um compromisso. A humanidade não seria salva, mas ganharia uma trégua e talvez uma esperança.
(Direitos reservados. Proibida a reprodução sem autorização do autor) Foi publicado em “Ouest-France” em 18/03/2022