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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

ANTOLOGIA

  


A PALAVRA DE JOÃO BÉNARD DA COSTA
O PAI E O SILÊNCIO


1. Houve um tempo, tempo de que me lembro muito bem, em que, dos dias para tudo quase todos os dias, só havia um dia especialmente assinalado. Esse era o Dia da Mãe, celebrado a 8 de dezembro, na Festa da Imaculada Conceição de Maria. Dos pobres pais não se falava, embora eu duvide que esta precedência cronológica da Mulher sobre o homem sirva de conforto ou lenitivo face à recente questão das quotas. Não era Dia da Mulher, como agora se usa, mas celebração da maternidade. Se bem me recordo, o então cardeal-patriarca aproveitava o doce dia e a doce palavra para enaltecer as mães de muitos filhos ou as mães que tinham os filhos que Deus mandava. É claro que para tanto era indispensável uma ajuda masculina, mas suspeitava-se que essa ajuda fosse prestada por motivos prazenteiros, enquanto a Mulher, pelo contrário, cumpria o seu dever.


O certo é que não me lembro de Dias do Pai, embora o 19 de março, dia de São José, fosse, nesses tempos, dia santo de guarda. A tradição do Dia do Pai confunde-se-me, em percurso autobiográfico, com a mudança do Dia da Mãe para data móvel, tão móvel que me aconteceu mesmo esquecê-la. Houve até um ano - estava uma filha minha a divertir-se na América - em que esta telefonou de lá para dar beijo à Mãe em dia dela. Enorme pasmo e enorme enleio. A filha-pródiga lembrava-se da Mãe, de além-Atlântico, com chamada que, simbolicamente, ao que creio pela única vez, não foi paga ao destinatário. Filhos outros, e marido bem pertinho na mesma casa, tinham-se esquecido por completo. As consequências só não foram mais devastadoras porque alguém reparou a tempo que os Dias da Mãe não coincidiam nem nos continentes nem nos conteúdos. Ou seja, era Dia da Mãe na América, não o era em Portugal. Ninguém tinha que pintar a cara de preto e à minha filha "americana" só lhe restava repetir a dose. Começava-se então a ouvir a frase - também eu fiz minha - que com tanta mudança tinham dado cabo do Dia da Mãe. Frase tão feita como aquela que rezava: "Cá em casa nunca se ligou ao Dia do Pai." Eu, às vezes, protestava que era injusto, mas com fraquíssima convicção. É de pequenino que se torce o pepino e em pequeninos - nem eu nem os meus filhos - tínhamos sido torcidos para o Dia do Pai. A coisa só mudou no tempo dos meus netos, há uns vinte a esta parte. Seja num dia, seja noutro, as escolas fazem tal alarido, a comunicação social tal algazarra, o comércio tal proveito, que não há perigo que qualquer das datas progenitoras passem despercebidas. Até eu passei a receber presentes no Dia do Pai. Eu que nunca os dei e, que em matéria de honrar pai, só me lembro de ter sido obrigado, em hora mais remota, a copiar do livro da 3ª Classe para as mãos paternas, o extraordinário verso por cuja fidelidade juro à fé de quem sou: "Amo o meu Pai / como não amei, não amo, nem amarei / mais ninguém / a não ser a minha Mãe." O autor era autora e certamente nunca ouvira falar do complexo de Electra, que a conclusão do verso não consegue ocultar. Mas é certo, voltando aos dias de hoje, que, se se perderam, ou se deixaram perder, quase todas as origens míticas e religiosas dos dias para tudo ou dos dias para nada (nem sequer Santo António venceu em Portugal o ignoto São Valentim, no Dia dos Namorados) o Dia do Pai é praticamente o único, cuja génese é óbvia.


2. Ou não é nada óbvia. Porque se pode perguntar - e com alguma pertinência - porque se comemora o Dia do Pai em dia de santo que pai nunca foi, São José, castíssimo esposo de Maria. Só gente muito heterodoxa foi capaz de comentar (Mt 1, 25-28 - "e nunca a conheceu até ao dia em que ela deu à luz o filho, ao qual ele deu o nome de Jesus"), observando que o texto nada diz sobre o que se passou depois. Em relação a outra passagem (Mt 12,46) em que o mesmo evangelista fala de irmãos de Jesus, exegese estabeleceu há muito que, em hebreu e aramaico, o termo utilizado designa também parentes próximos. Por último, são muito tardias e espúrias as versões que atribuem a S. José filhos de casamento anterior, pelo menos tão tardias e espúrias como as que sustentam que ele viveu até aos 111 anos. De resto, sabemos muito pouco de S. José. O Evangelho segundo S. João não lhe faz qualquer referência. Dos sinópticos, Marcos também o ignora. Dos evangelhos canónicos, Mateus e Lucas são as fontes privilegiadas, sobretudo o primeiro. Logo na genealogia de Jesus Cristo se diz, a terminar, que "Jacob gerou José, o esposo de Maria, da qual nasceu Jesus, a que se chama de Cristo".


Depois (Mt 1, 18-28 e Mt 2, 13-26) são narrados os três sonhos de José: o primeiro impediu-o de "repudiar sem escândalo" Maria, quando descobriu a gravidez dela, "antes de terem vida em comum". Disse-lhe o Anjo nesse primeiro sonho: "José, filho de David, não temas tomar conta de Maria, tua mulher. Porque ela gerou por obra e graça do Espírito Santo. E dará à luz um filho, a quem chamarás de Jesus, pois é ele quem salvará o povo dos seus pecados' (...) Depois de acordar, José fez o que o Anjo do Senhor lhe tinha mandado e tomou Maria com ele." O segundo sonho segue-se à visita dos Magos. "O Anjo do senhor apareceu em sonhos a José e disse-lhe: 'Levanta-te, toma contigo o Menino e sua Mãe e foge para o Egipto. E permanece no Egipto até que eu te previna. Pois que Herodes vai procurar o Menino para o mandar matar.' José levantou-se, e, de noite, levou consigo o menino e sua Mãe e fugiu para o Egipto onde ficou até à morte de Herodes."


O terceiro sonho aconteceu quando Herodes morreu. "O Anjo do Senhor apareceu em sonhos a José, no Egipto, e disse-lhe: 'Levanta-te, toma o menino e sua Mãe e regressa à terra de Israel, pois que morreram os que queriam tirar a vida ao Menino.' José levantou-se, tomou o Menino e sua Mãe e regressou à terra de Israel. Mas, informado que Arquelau sucedera a Herodes no trono da Judeia, receou voltar para lá. Avisado em sonho, retirou-se para a região da Galileia e fixou-se numa cidade chamada Nazaré." Sempre me deu que pensar este papel dos sonhos no "amadurecimento" de José. É a sonhar que acredita na virgindade de Maria e decide viver com ela e assumir, perante os homens, o lugar de pai do Menino. É a sonhar que toma resolução de acordar Maria e o Menino e de os levar com ele numa perigosa viagem para o Egipto; é a sonhar que toma a resolução (quantos anos depois?) de voltar a Israel, embora só num quarto sonho posterior (o mais elipticamente referido) o tenha confirmado na decisão, não onírica, de se fixar na Galileia e não na Judeia. Alguns comentadores têm falado na oniromancia de José, que contrasta com os ensinamentos do Eclesiastes que recomendava desconfiança: "Os sonhos têm deitado a perder muita gente e quem neles acreditou sucumbiu" (XXXIV, 1-8). José, pelo contrário, acreditou e, porque acreditou, salvou o Maria e salvou o Menino. A fé dele é como a fé de Abraão: contra toda a evidência. Por outro lado, é José quem escolhe para o Menino o nome de Jesus e é o primeiro a saber que Jesus virá ao mundo para o resgatar do pecado.


Por fim (se fim pudesse haver em tudo isto), Mateus define José com um único adjetivo: "Justo" ("era um homem justo"). O Padre Bartolomeu do Quental, em 1661, no Sermão sobre São José (aproximável de passagens de Santa Teresa de Ávila), comenta admiravelmente o uso da palavra justo. "E o que custa a um homem justo ser filho de Deus? O que custou a José. Nada. Diz o Evangelhista que São José, como fosse justo, não quis entregar sua Esposa... não entregar, claro está, que é não fazer nada e, não fazendo nada, foi São José justo... Muito devemos hoje a São José por nos facilitar tanto com o seu exemplo uma coisa tão grande como é ser justo não fazendo nada, e foi justo (...) Os outros Santos ensinam-nos a ser justos obrando; São José é Santo de tão boa graça que nos ensina a ser justos não fazendo."


3. Depois, São José só volta a surgir nos Evangelhos (Lc 2, 41-54) no episódio, precisamente situado aos doze anos de Jesus, em que este, sem que José e Maria se apercebessem, ficou sozinho em Jerusalém, no Templo, em vez de voltar com eles para Nazaré. Quando descobriram que o tinham perdido, voltaram para trás, repetindo uma jornada de marcha. Três dias o procuraram em Jerusalém e três o não acharam. Quando finalmente o encontraram (o Menino entre os Doutores) quem o censurou foi a Mãe: "Meu filho, porque nos fizeste isto? Vê como teu Pai e eu te buscávamos, angustiados.' E Jesus respondeu-lhes: 'Porque me procuravam? Não sabem que tenho que me ocupar dos assuntos do meu Pai?' Mas eles não perceberam as palavras que ele acabara de dizer."


Mais uma vez, São José é o todo silencioso. Não disse a Maria que a pensou repudiar. Não lhe disse a razão das idas e vindas para o Egipto ou da escolha de Nazaré como morada deles. Não censurou Jesus, embora Maria lhe atribua angústia idêntica à dela. Se os Evangelhos nos reportam algumas (embora escassas) trocas de palavras entre Jesus e sua Mãe, nenhum traço ficou de qualquer palavra entre Jesus e José. Mas é no momento em que Maria lhe fala do pai ("o teu Pai") que Jesus responde citando outro Pai, que não aquele pobre velho. Velho? Se os apócrifos falam de um José muito mais velho que Maria, os canónicos não dão qualquer indicação sobre a idade. Mas todas as imagens sempre retrataram José como um velho, num lapso demasiado gigantesco para ser inconsciente, como que explicando pela idade a abstinência dele. Depois, José desaparece numa imensa elipse. Quando morreu? Não sabemos. Ele que foi o silencioso "como a terra orvalhada" (no belo verso de Claudel, que cito em tradução de Pedro Tamen) fez-se silêncio e ocultação. Que mais bela definição se pode dar do Pai e do seu papel em dia dele, do que chamar-lhe, como Claudel lhe chamou, "Patriarca interior do dia-a-dia"? Termino com antiquíssima oração: "Jesus, José e Maria / Acompanhai-me hoje, agora e sempre / e na hora da agonia."


por João Bénard da Costa

18 de março de 2005, in Público

A PALAVRA DE JOÃO BÉNARD DA COSTA

 

O PAI E O SILÊNCIO

 

1. Houve um tempo, tempo de que me lembro muito bem, em que, dos dias para tudo quase todos os dias, só havia um dia especialmente assinalado. Esse era o Dia da Mãe, celebrado a 8 de dezembro, na Festa da Imaculada Conceição de Maria. Dos pobres pais não se falava, embora eu duvide que esta precedência cronológica da Mulher sobre o homem sirva de conforto ou lenitivo face à recente questão das quotas. Não era Dia da Mulher, como agora se usa, mas celebração da maternidade. Se bem me recordo, o então cardeal-patriarca aproveitava o doce dia e a doce palavra para enaltecer as mães de muitos filhos ou as mães que tinham os filhos que Deus mandava. É claro que para tanto era indispensável uma ajuda masculina, mas suspeitava-se que essa ajuda fosse prestada por motivos prazenteiros, enquanto a Mulher, pelo contrário, cumpria o seu dever.


O certo é que não me lembro de Dias do Pai, embora o 19 de março, dia de São José, fosse, nesses tempos, dia santo de guarda. A tradição do Dia do Pai confunde-se-me, em percurso autobiográfico, com a mudança do Dia da Mãe para data móvel, tão móvel que me aconteceu mesmo esquecê-la. Houve até um ano - estava uma filha minha a divertir-se na América - em que esta telefonou de lá para dar beijo à Mãe em dia dela. Enorme pasmo e enorme enleio. A filha-pródiga lembrava-se da Mãe, de além-Atlântico, com chamada que, simbolicamente, ao que creio pela única vez, não foi paga ao destinatário. Filhos outros, e marido bem pertinho na mesma casa, tinham-se esquecido por completo. As consequências só não foram mais devastadoras porque alguém reparou a tempo que os Dias da Mãe não coincidiam nem nos continentes nem nos conteúdos. Ou seja, era Dia da Mãe na América, não o era em Portugal. Ninguém tinha que pintar a cara de preto e à minha filha "americana" só lhe restava repetir a dose. Começava-se então a ouvir a frase - também eu fiz minha - que com tanta mudança tinham dado cabo do Dia da Mãe. Frase tão feita como aquela que rezava: "Cá em casa nunca se ligou ao Dia do Pai." Eu, às vezes, protestava que era injusto, mas com fraquíssima convicção. É de pequenino que se torce o pepino e em pequeninos - nem eu nem os meus filhos - tínhamos sido torcidos para o Dia do Pai. A coisa só mudou no tempo dos meus netos, há uns vinte a esta parte. Seja num dia, seja noutro, as escolas fazem tal alarido, a comunicação social tal algazarra, o comércio tal proveito, que não há perigo que qualquer das datas progenitoras passem despercebidas. Até eu passei a receber presentes no Dia do Pai. Eu que nunca os dei e, que em matéria de honrar pai, só me lembro de ter sido obrigado, em hora mais remota, a copiar do livro da 3ª Classe para as mãos paternas, o extraordinário verso por cuja fidelidade juro à fé de quem sou: "Amo o meu Pai / como não amei, não amo, nem amarei / mais ninguém / a não ser a minha Mãe." O autor era autora e certamente nunca ouvira falar do complexo de Electra, que a conclusão do verso não consegue ocultar. Mas é certo, voltando aos dias de hoje, que, se se perderam, ou se deixaram perder, quase todas as origens míticas e religiosas dos dias para tudo ou dos dias para nada (nem sequer Santo António venceu em Portugal o ignoto São Valentim, no Dia dos Namorados) o Dia do Pai é praticamente o único, cuja génese é óbvia.

 

2. Ou não é nada óbvia. Porque se pode perguntar - e com alguma pertinência - porque se comemora o Dia do Pai em dia de santo que pai nunca foi, São José, castíssimo esposo de Maria. Só gente muito heterodoxa foi capaz de comentar (Mt 1, 25-28 - "e nunca a conheceu até ao dia em que ela deu à luz o filho, ao qual ele deu o nome de Jesus"), observando que o texto nada diz sobre o que se passou depois. Em relação a outra passagem (Mt 12,46) em que o mesmo evangelista fala de irmãos de Jesus, exegese estabeleceu há muito que, em hebreu e aramaico, o termo utilizado designa também parentes próximos. Por último, são muito tardias e espúrias as versões que atribuem a S. José filhos de casamento anterior, pelo menos tão tardias e espúrias como as que sustentam que ele viveu até aos 111 anos. De resto, sabemos muito pouco de S. José. O Evangelho segundo S. João não lhe faz qualquer referência. Dos sinópticos, Marcos também o ignora. Dos evangelhos canónicos, Mateus e Lucas são as fontes privilegiadas, sobretudo o primeiro. Logo na genealogia de Jesus Cristo se diz, a terminar, que "Jacob gerou José, o esposo de Maria, da qual nasceu Jesus, a que se chama de Cristo".

 

Depois (Mt 1, 18-28 e Mt 2, 13-26) são narrados os três sonhos de José: o primeiro impediu-o de "repudiar sem escândalo" Maria, quando descobriu a gravidez dela, "antes de terem vida em comum". Disse-lhe o Anjo nesse primeiro sonho: "José, filho de David, não temas tomar conta de Maria, tua mulher. Porque ela gerou por obra e graça do Espírito Santo. E dará à luz um filho, a quem chamarás de Jesus, pois é ele quem salvará o povo dos seus pecados' (...) Depois de acordar, José fez o que o Anjo do Senhor lhe tinha mandado e tomou Maria com ele." O segundo sonho segue-se à visita dos Magos. "O Anjo do senhor apareceu em sonhos a José e disse-lhe: 'Levanta-te, toma contigo o Menino e sua Mãe e foge para o Egipto. E permanece no Egipto até que eu te previna. Pois que Herodes vai procurar o Menino para o mandar matar.' José levantou-se, e, de noite, levou consigo o menino e sua Mãe e fugiu para o Egipto onde ficou até à morte de Herodes."

 

O terceiro sonho aconteceu quando Herodes morreu. "O Anjo do Senhor apareceu em sonhos a José, no Egipto, e disse-lhe: 'Levanta-te, toma o menino e sua Mãe e regressa à terra de Israel, pois que morreram os que queriam tirar a vida ao Menino.' José levantou-se, tomou o Menino e sua Mãe e regressou à terra de Israel. Mas, informado que Arquelau sucedera a Herodes no trono da Judeia, receou voltar para lá. Avisado em sonho, retirou-se para a região da Galileia e fixou-se numa cidade chamada Nazaré." Sempre me deu que pensar este papel dos sonhos no "amadurecimento" de José. É a sonhar que acredita na virgindade de Maria e decide viver com ela e assumir, perante os homens, o lugar de pai do Menino. É a sonhar que toma resolução de acordar Maria e o Menino e de os levar com ele numa perigosa viagem para o Egipto; é a sonhar que toma a resolução (quantos anos depois?) de voltar a Israel, embora só num quarto sonho posterior (o mais elipticamente referido) o tenha confirmado na decisão, não onírica, de se fixar na Galileia e não na Judeia. Alguns comentadores têm falado na oniromancia de José, que contrasta com os ensinamentos do Eclesiastes que recomendava desconfiança: "Os sonhos têm deitado a perder muita gente e quem neles acreditou sucumbiu" (XXXIV, 1-8). José, pelo contrário, acreditou e, porque acreditou, salvou o Maria e salvou o Menino. A fé dele é como a fé de Abraão: contra toda a evidência. Por outro lado, é José quem escolhe para o Menino o nome de Jesus e é o primeiro a saber que Jesus virá ao mundo para o resgatar do pecado.

 

Por fim (se fim pudesse haver em tudo isto), Mateus define José com um único adjetivo: "Justo" ("era um homem justo"). O Padre Bartolomeu do Quental, em 1661, no Sermão sobre São José (aproximável de passagens de Santa Teresa de Ávila), comenta admiravelmente o uso da palavra justo. "E o que custa a um homem justo ser filho de Deus? O que custou a José. Nada. Diz o Evangelhista que São José, como fosse justo, não quis entregar sua Esposa... não entregar, claro está, que é não fazer nada e, não fazendo nada, foi São José justo... Muito devemos hoje a São José por nos facilitar tanto com o seu exemplo uma coisa tão grande como é ser justo não fazendo nada, e foi justo (...) Os outros Santos ensinam-nos a ser justos obrando; São José é Santo de tão boa graça que nos ensina a ser justos não fazendo."

 

3. Depois, São José só volta a surgir nos Evangelhos (Lc 2, 41-54) no episódio, precisamente situado aos doze anos de Jesus, em que este, sem que José e Maria se apercebessem, ficou sozinho em Jerusalém, no Templo, em vez de voltar com eles para Nazaré. Quando descobriram que o tinham perdido, voltaram para trás, repetindo uma jornada de marcha. Três dias o procuraram em Jerusalém e três o não acharam. Quando finalmente o encontraram (o Menino entre os Doutores) quem o censurou foi a Mãe: "Meu filho, porque nos fizeste isto? Vê como teu Pai e eu te buscávamos, angustiados.' E Jesus respondeu-lhes: 'Porque me procuravam? Não sabem que tenho que me ocupar dos assuntos do meu Pai?' Mas eles não perceberam as palavras que ele acabara de dizer."

 

Mais uma vez, São José é o todo silencioso. Não disse a Maria que a pensou repudiar. Não lhe disse a razão das idas e vindas para o Egipto ou da escolha de Nazaré como morada deles. Não censurou Jesus, embora Maria lhe atribua angústia idêntica à dela. Se os Evangelhos nos reportam algumas (embora escassas) trocas de palavras entre Jesus e sua Mãe, nenhum traço ficou de qualquer palavra entre Jesus e José. Mas é no momento em que Maria lhe fala do pai ("o teu Pai") que Jesus responde citando outro Pai, que não aquele pobre velho. Velho? Se os apócrifos falam de um José muito mais velho que Maria, os canónicos não dão qualquer indicação sobre a idade. Mas todas as imagens sempre retrataram José como um velho, num lapso demasiado gigantesco para ser inconsciente, como que explicando pela idade a abstinência dele. Depois, José desaparece numa imensa elipse. Quando morreu? Não sabemos. Ele que foi o silencioso "como a terra orvalhada" (no belo verso de Claudel, que cito em tradução de Pedro Tamen) fez-se silêncio e ocultação. Que mais bela definição se pode dar do Pai e do seu papel em dia dele, do que chamar-lhe, como Claudel lhe chamou, "Patriarca interior do dia-a-dia"? Termino com antiquíssima oração: "Jesus, José e Maria / Acompanhai-me hoje, agora e sempre / e na hora da agonia."

 

por João Bénard da Costa
18 de março de 2005, in Público