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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

  


143. SÍSIFO E A ACEITAÇÃO DA ORDEM ESTABELECIDA


A mesma rotina diária: acordar, levantar, higiene pessoal, vestir, pequeno almoço, adquirir legumes, fruta, flores, plantas, abrir e montar a banca, pôr tudo à vista, para comerciar e vender, vender, vender. Almoçar, a meio do dia. No fim, arrumar o que sobra, desfazer a banca e fechar. Nos dias seguintes, a mesma coisa.   


Em casa, ao serão, após o jantar, ouvem-se as notícias, vê-se desporto, novelas, filmes ou séries, o sono chega, cai-se na cama, até outro dia, em que há que sair cedo, retomando-se a habitude de trabalhar, trabalhar, trabalhar.   


O essencial de uma vida, transversal a todas as vidas e profissões, a lembrar Sísifo, que recebeu de Zeus o castigo de todos os dias recomeçar de zero a sua tarefa, condenado para toda a eternidade por desafiar os deuses, como sucedera a Prometeu.


Este trabalho monótono, cansativo e repetitivo conduz-nos ao mito de Sísifo, punido e condenado a um trabalho enorme e sem fim, empurrando uma pedra até ao cimo de uma montanha onde, aí chegado, lhe fugia das mãos e rebolava daí abaixo. E recomeçava, impedindo Sísifo de ter tempo para pensar em novos interesses, evasões, afastando-o de malefícios e pensamentos suicidas.


Estas nossas vidas entediantes levaram Camus a defender que o absurdo está em interrogarmo-nos e tentar compreender se a vida faz sentido, pois é impossível ter uma resposta, pelo que quem aceita o absurdo vive bem com ele, aceitando que não faça sentido, aprendendo a viver com a sua ininteligibilidade neste oceano de perguntas sem respostas, o que não implica apatia e capitulação.


Mas há dias de não acatamento e submissão a uma vida de Sísifo, dando azo a tempos livres para escrutinar, meditar, pensar, passear, contemplar, saborear a natureza, um dia solar, bem diferente de nunca trabalhar ou não suportar o ócio e o tédio.


Sucede que o enfado, fastio e vazio se não superado pelo ritual do labor diário (mesmo que preenchido sob a forma de uma pluralidade de interesses), leva-nos a  concluir que uma vida sem trabalho não serve para nada, acabando por ser um favor o pretenso castigo que Sísifo recebeu e, por arrastamento, nós os mortais, somos obrigados a reconhecer eternamente a nossa condição como meros servidores de uma ordem previamente estabelecida, como humanos não imortais incapazes de superar aquilo a que não somos capazes de dar sentido.


28.06.23
Joaquim M. M. Patrício

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

  


119. DO CASTIGO AO BENEFÍCIO NO MITO DE SÍSIFO


Reza a História que Sísifo recebeu de Zeus o castigo de empurrar uma pedra até ao topo de uma montanha e que, assim que chegava ao cume, fugia-lhe das mãos e rebolava montanha abaixo. Nunca conseguia chegar ao fim, pois a pedra voltava sempre a cair. E ele recomeçava. Montanha acima, montanha abaixo, o eterno e repetitivo Sísifo não conseguia perceber qual era a sua missão.


Ao atribuírem-lhe, nos infernos, um trabalho monótono, rotineiro e sem fim, os deuses impediram Sísifo de ter tempo livre para pensar e interrogar-se sobre o sentido da vida. Ao ser obrigado a recomeçar, continuamente e para sempre, o seu trabalho, era também castigado e punido para concluir que nós, seres humanos mortais, não temos a liberdade dos deuses. 


Ou, então, podemos interrogar-nos: será que Sísifo recebeu de Zeus um benefício, um favor, uma missão em prol de cada um e dos outros?   


Muitos de nós só na rotina e trabalho de todos os dias encontramos sentido para a vida, para a nossa missão. Sem trabalho, a vida não serve para nada. Tantas vezes o ouvimos. Pode-se gostar, ser viciado no trabalho e aí encontrar ou sublimar felicidade, realização e compensação pessoal e pelo bem comum, a que acresce o amadurecimento e segurança da experiência diária, mesmo quando maioritariamente cansativo e sem variações.         


Há pessoas para quem o simples pensar e ter ausente o trabalho do dia a dia equivale a irritação, estar a cismar, matutar, andarem melancólicas e preocupadas, desviarem o pensamento para questões filosóficas sem resposta, sentindo-se sós, o que é demais, voltando a correr, podendo-o, para o trabalho diário que as absorvia, mesmo que cinzento, reiterado e ruidoso.       


Nem todos (indicia-se que a maioria) têm a arte de saber viver suportando e superando em permanência ou regularidade o tédio e os tempos livres.


Nem todos (porventura a maioria) sabem viver a vida objetivamente, dar e receber afeições e ter interesses variados e vastos. 


Em vez da punição e castigo de um crime ou malefício cometido, o mito de Sísifo pode tratar-se, para muitos, de um benefício, um favor, uma compensação, uma missão sublimada de um sentido para a vida, aceitando-a e aprendendo a vivê-la, deixando de pensar no seu absurdo, abismos e perguntas sem resposta, aceitando antecipadamente as nossas limitações perante o infindável, escrutinando-o com prudência e bom senso.


09.09.2022
Joaquim M. M. Patrício