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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

SAÚDE, MEDICINA, SALVAÇÃO

  


Os doentes estiveram entre as preocupações e cuidados maiores de Jesus.  A saúde é, de facto, um bem precioso, mas só damos por isso, quando a perdemos. 


A saúde tem um carácter pluridimensional. No sentido autenticamente humano inclui vários níveis:


a) a saúde somática: o bom estado físico, portanto, um organismo capaz de desempenhar normalmente as suas funções;


b) a saúde psíquica: autonomia mental para enfrentar as dificuldades do meio e capacidade para estabelecer relações gratificantes interpessoais e com o ambiente;


c) a saúde social: se não cuida do meio ambiente, da habitação, da alimentação, da harmonia social, da saúde pública, como salvaguardarão as pessoas a sua saúde?


d) a saúde ecológica: se o homem é solidário da biosfera em geral, a sua saúde dependerá da saúde ambiental: ar puro e não contaminado, água limpa, ambiente belo, sem poluição sonora;


e) a saúde espiritual e religiosa: a dimensão de transcendência do ser humano tem de ser salvaguardada, num duplo sentido: a interioridade e a transcendência são elementos constituintes da saúde plenamente humana, mas será necessário prevenir contra crenças e ideias neuróticas, que prejudicam o ser humano.


Depois da Segunda Guerra Mundial, divulgou-se a definição de saúde da Organização Mundial de Saúde, que a considera “um estado de completo bem-estar físico, mental e social”. Mas ela foi acusada de dar uma concepção estática de saúde. Haveria também o perigo de esquecer a capacidade de integração do sofrimento e da própria morte. Impõe-se, por outro lado, acentuar a importância da relação com o ambiente material e humano, em constante transformação. Assim, Francisco J. Alarcos, depois de considerar todos estes níveis e dimensões, esboçou a seguinte tentativa de definição: “A saúde é a capacidade de realizar eficazmente as funções requeridas num dado meio, e como este meio não deixa de evoluir, a saúde é um processo de adaptação contínua a múltiplos micróbios, contaminações, tensões e problemas que o Homem diariamente tem de enfrentar. Mas o sujeito humano está também em constante evolução. A saúde é a capacidade de adaptar-se a um meio ambiente que muda; capacidade de crescer, de envelhecer, de sarar, por vezes com sofrimentos inevitáveis, e finalmente de esperar a morte em paz.” 


A saúde comporta viver com sentido e, portanto, estar a salvo de tudo o que desumaniza e impede a realização adequada e plenamente humana. Por exemplo, saudar (de salutem dare) significa que estar são inclui “dar saúde” a quantos nos rodeiam, viver em solidariedade com todos, na alegria e na dor. No sentido íntegro da palavra, saúde é sinónimo de viver humana e harmoniosamente, com inclusão da esperança e da abertura à transcendência. Há hoje imensos estudos científicos que mostram a relação positiva entre uma prática sadia da religião e a saúde e até maior longevidade.


Mas acontece que ficamos doentes. Então socorremo-nos dos médicos. Também aqui a etimologia das palavras é iluminante. Significativamente, o radical med., donde deriva em latim mederi, com o sentido de ponderar, curar, cuidar de, restabelecer o equilíbrio, está na base de moderação, medicina e meditação. Aí está, pois, a saúde com o sentido holístico de harmonia, e o médico e o doente não se encontram como um técnico e uma máquina (o corpo) desarranjada, mas como dois seres humanos em diálogo, estabelecendo um pacto: o doente entrega-se à solicitude de outro ser humano, que, afectado por um pedido, escuta compassivamente e põe a sua arte ao serviço de uma existência ameaçada. 


Isso acontece, em princípio, numa clínica, num hospital. Veja-se, mais uma vez, a etimologia. Clínica provém do grego klínein, inclinar-se. Hospital relaciona-se com hóspede. Um hospital deveria ser, portanto, sempre o lugar da hospedagem acolhedora e amiga. Mas é-o realmente? Veja-se a conexão entre as palavras latinas hospes e hostis (hóspede e inimigo, respectivamente), como pode ver-se, por exemplo, hoje na palavra hostel, como se o hóspede enquanto estranho fosse ou pudesse tornar-se alguém hostil. Nos hospitais, hoje, para lá da efectividade, torna-se, pois, urgente recuperar a afectividade da hospedagem, para que o doente e o moribundo possam ser reconhecidos na sua dignidade e não como alguém estranho e hostil.


É bom saber do sentido holístico de saúde — sem esquecer Kant  dizendo que O Céu, para aliviar as muitas dificuldades, nos deixou três coisas: “a esperança, dormir bem, rir com alegria” —, que implica também, no meio da agitação constante, capacidade para parar e não esquecer o melhor e poder pensar e meditar e ouvir música e contemplar a beleza de uma simples folha de erva, de um pôr-do-sol e do céu estrelado na sua quietude exaltante. Outra vez a etimologia: pensar vem do latim pensare, pesar razões, mas de pensare provém também o penso sanitário: pensar cura. Aí está, pois, a ameaça hoje das redes sociais e do “dedar” constante e absorto nos ecrãs e as nefastas consequências desse brutal consumo para o cérebro ao nível da saúde mental e da capacidade para ler, reflectir, estudar...


A saúde está intrinsecamente vinculada ao cuidado. Viver é cuidar. Cuidar de nós, cuidar dos outros — a solidão mata —, cuidar da natureza, dos amigos — a vida sem amigos não presta —, cuidar do Sagrado, da Transcendência, do sentido, Sentido último. Salus, salutis dá origem a saúde e a salvação.


Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 13 de abril de 2024

ESPIRITUALIDADE, RELIGIÃO E SAÚDE

  


Em todas as licenciaturas, há uma cadeira se imporia: Antropologia, pois é sempre o ser humano que está em causa.


1 . E quando falamos do ser humano, temos de ter sempre em consideração que se trata de uma unidade em tensão. Assim,  ele  apareceu na história da evolução e, por isso, é preciso dizer que ele vem da natureza, mas, ao mesmo tempo ele é na natureza, pois é nele que a natureza e a evolução sabem de si. Ele é no tempo:  vem do passado, vive no presente e projecta-se no futuro. Ele é simultaneamente impulso, emoção e razão. É consciente, consciente de que é consciente, mas mergulha no inconsciente, o isso em nós sem nós, de tal modo, que por vezes perguntamos: eu fiz isso?, aí não era eu.  Limitado, o ser humano é uma abertura ilimitada, nunca estamos suficientemente feitos, estamos abertos a tudo,  à Transcendência.


2. Deste modo, encontramos o cuidado. Cuidaram de nós e nós devemos cuidar: cuidar de nós (desde o que comemos ao repouso...), cuidar dos outros (só sou eu face ao tu), cuidar da natureza (há uma ligação estreita entre a saúde e o ambiente), cuidar do Sagrado, de Deus.


3. G. K. Chesterton escreveu: “A coisa mais poética, mais poética que as flores, mais poética que as estrelas, a coisa mais poética do mundo é não estar doente.” Aqui, porque por vezes, nos sentimos mal e caímos doentes, encontramos a medicina. Precisamos de alguém com conhecimentos e técnica que nos ajude, mas no quadro de um conceito holístico de saúde. Quando vamos ao médico, esperamos evidentemente encontrar alguém que perceba do assunto, mas que simultaneamente nos trate como pessoas e atendendo àquela unidade tensa já exposta. O encontro médico não pode reduzir-se a este quadro: de um lado um técnico e do outro uma máquina desarranjada, pois deve ser um pacto entre alguém que sabe e outro alguém que precisa de ajuda. Há estudos que mostram como uma boa relação de confiança entre o médico e o doente é fundamental para a cura — em latim, cuidado diz-se cura.


Quando estamos atentos às palavras, elas dizem o essencial. Clínica vem do grego klínein, que significa inclinar-se : o clínico inclina-se sobre alguém em necessidade. Hospital vem de hospes, hóspede: é como tal que o doente deve ser tratado.


4. Sobre a importância decisiva da saúde dizem as nossas saudações quotidianas quando encontramos alguém, e isso nas várias línguas: “Como está, como estás?” A palavra valor vem do latim: vale!, a palavra usada pelos romanos para saudar alguém, também na despedida: “passa bem!”. É essencial um conceito holístico de saúde — do grego hólon, que significa o todo, não enquanto soma das partes, mas o todo que é mais do que essa simples soma.


Vamos de novo às palavras e ao seu étimo, e encontramos o elo entre a espiritualidade, a religião e a saúde. A palavra medicina tem na sua base um radical med-, que dá origem a moderação, meditação e medicina. Saúde provém do latim salus, salutis, na base também de salvação. E saudar vem de salutem dare. Em inglês, saúde diz-se health e santo diz-se holy, em conexão com the whole ( o todo); em alemão, temos heilig para santo e heilen significa curar. Em português, de uma pessoa com saúde dizemos que está são, a mesma palavra que usamos para São João e São José...


E vamos ao encontro de estudos científicos que mostram uma relação globalmente positiva entre a religião e a saúde – repito: significativamente, o étimo latino de saúde e salvação é o mesmo: salus, salutis. Apenas alguns exemplos — quem estiver interessado poderá procurar outros e um estudo mais aprofundado da questão no meu mais recente livro, O Mundo e a Igreja. Que Futuro?


Mario Beauregard, investigador de neurociências na Universidade de Montréal, escreve que se acumulam provas consideráveis que mostram que as experiências religiosas, espirituais e/ou místicas “estão associadas a melhor saúde física e mental.”  Na sua obra The Spiritual Brain, cita 158 estudos médicos sobre o efeito da religião na saúde, concluindo que 77% fazem menção de um efeito clínico positivo. Outro estudo mostrou que “os adultos mais idosos que participam em actividades religiosas pessoais antes do aparecimento dos primeiros sinais de handicap nas actividades do quotidiano têm mais esperança de vida do que os que não o fazem.” O neurocientista Miguel Castelo-Branco, da Universidade de Coimbra, escreveu: “A medicina baseada na evidência tem sugerido que a religiosidade e a espiritualidade influenciam de forma efectiva o desenlace em muitos domínios clínicos, incluindo a dependência de drogas... A experiência espiritual é benéfica para a saúde humana e o tipo de bem-estar psicológico que proporciona pode ser activamente procurado.”


Neste contexto, encontramos, evidentemente, a questão fulcral da religião e do sentido. Foi concretamente Viktor Frankl, sobrevivente de Auschwitz e fundador da chamada terceira corrente de psicoterapia de Viena, que sublinhou, a partir aliás também das suas terríveis experiências dos campos de concentração, a relação entre o sentido e a cura. O que move o ser humano é o sentido, de tal modo que tudo suportará, se encontrar um sentido, e a religião tem a ver  precisamente com o sentido de todos os sentidos, o Sentido último. Na busca de Sentido Último, a pessoa, inconscientemente, procura Deus — Der unbewusste Gott (O Deus inconsciente) é uma das suas obras.


Escusado será dizer que é essencial a imagem que se tem Deus. Que Deus?


Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 18 de novembro de 2023