Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

A SABEDORIA DE VIVER. 2

 

Como prometido, dou continuidade à crónica da semana passada, com pensamentos, estórias, contos..., a partir das “Sabedorias do mundo”.

 

Atendendo à situação de confinamento em casa, resumo, numa segunda parte, dez conselhos do dominicano Frei Betto, que, durante a ditadura brasileira, esteve preso em celas de isolamento. Evidentemente, eles aplicam-se adaptando-os às diferentes situações.

 

I. A sabedoria de viver (continuação)

 

4. Paciência inteligente

 

4.1. “A paciência é um remédio universal para todos os males”. (Provérbio nigeriano).

 

4.2. “Um adolescente japonês foi ter com um mestre de artes marciais e perguntou-lhe quanto tempo seria necessário para aprender esta arte.

 

   — ‘Dez anos’, disse-lhe o mestre.

  — ‘Dez anos? É demais. Nunca terei força para esperar!’.

 — ‘Então, vinte anos’, disse-lhe o mestre.” (Conto japonês).

 

4.3. “Perto de Tóquio vivia um grande samurai, já idoso, que agora consagrava a sua vida a ensinar o budismo zen aos jovens. Apesar da sua idade, dizia-se em voz baixa que era ainda capaz de enfrentar qualquer adversário. Um dia chegou um guerreiro conhecido pela sua total falta de escrúpulos. Era célebre pela sua técnica de provocação: esperava que o seu adversário fizesse o primeiro movimento e, dotado de uma inteligência rara para aproveitar-se dos erros cometidos, contra-atacava com a rapidez do raio. Este jovem e impaciente guerreiro nunca tinha perdido um combate. Como conhecia a reputação do samurai, tinha vindo para vencê-lo e aumentar a sua glória. 

 

Todos os estudantes se opunham a esta ideia, mas o velho mestre aceitou o desafio. Reuniram-se todos numa praça da cidade e o jovem guerreiro começou a insultar o velho mestre. Atirou-lhe pedras, cuspiu-lhe na cara, gritou dizendo todas as ofensas conhecidas, incluindo ofensas contra os seus antepassados. Durante horas fez tudo para provocá-lo, mas o velho permaneceu impassível. Ao cair da noite, esgotado e humilhado, o impetuoso guerreiro retirou-se.

 

Desapontados por verem o mestre aceitar tantos insultos e provocações, os estudantes perguntaram: — ‘Como suportou esta indignidade? Porque é que não se serviu da espada, mesmo sabendo que ia perder o combate, em vez de exibir a sua cobardia diante de nós todos?’ — ‘Se alguém vos oferece um presente e vós não aceitais, a quem pertence o presente?’, perguntou o samurai. — ‘A quem tentou dá-lo‘, respondeu um dos discípulos. — ‘Isso vale também para a inveja, a raiva e os insultos’, disse o mestre. ‘Quando não são aceites, pertencem sempre a quem os leva no coração’.” (Conto japonês).

 

Aqui, eu lembrei-me do jogador brasileiro Dani Alves, do Barcelona, a quem, há alguns anos, em pleno jogo, quiseram humilhar, atirando bananas para o campo. E ele? Descascou uma banana e comeu-a. Ridicularizou os imbecis e triunfou com inteligência sobre quem, racista, queria humilhá-lo.

 

5. A morte

 

5.1. “Que fazes? – ‘Procuro um meio de não morrer.’ – ‘E dá resultado?’- ‘Para já, sim. Até agora deu’.” (Estória da cultura muçulmana).

 

5.2. “Uma bela manhã, o califa de uma grande cidade viu correr para ele num estado de grande agitação o seu primeiro vizir. Perguntou as razões desta inquietação e o vizir disse-lhe: — ‘Suplico-te, permite-me deixar a cidade hoje mesmo’ — ‘Porquê?’ — ‘Esta manhã, ao atravessar a praça para vir ao palácio, senti-me tocado no ombro. Voltei-me e vi a morte que me olhava fixamente’. — ‘A morte?’ — ‘Sim, a morte. Reconheci-a perfeitamente, toda vestida de preto com um lenço vermelho. Ela está cá e olhou para mim para meter-me medo. Ela anda à procura de mim, estou certo disso. Vou buscar o meu melhor cavalo e poderei chegar esta noite a Samarcanda’. - ‘Era realmente a morte?’ Tens a certeza disso?’ - ‘Absoluta. Vi-a como te estou a ver a ti. Tenho a certeza de que era ela. Deixa-me partir, peço-te.’ O califa que tinha afecto pelo seu vizir, deixou-o partir.

 

O homem voltou a casa, pôs a sela ao primeiro dos seus cavalos e atravessou a galope uma das portas da cidade, na direcção de Samarcanda. Um pouco mais tarde, o califa, atormentado por um pensamento secreto, decidiu disfarçar-se, como fazia por vezes, e sair do palácio. Sozinho, dirigiu-se à grande praça no meio do barulho do mercado, procurou a morte com os olhos e viu-a, reconheceu-a. O vizir não se tinha enganado. Era da morte que realmente se tratava, alta e magra, toda vestida de preto, o rosto meio dissimulado sob um lenço de algodão vermelho. Ela passava de um grupo a outro no mercado, sem que dessem por ela, batendo com o dedo no ombro de um homem que organizava a sua loja, tocando o braço de uma mulher carregada de menta, evitando uma criança que corria para ela.

 

O califa dirigiu-se na direcção da morte. Ela reconheceu-o imediatamente, apesar de disfarçado, e inclinou-se em sinal de respeito. — ‘Tenho uma pergunta a pôr-te’, disse-lhe o califa, com voz baixa. — ‘Estou a ouvir-te’. — ‘O meu primeiro vizir é um homem ainda jovem, cheio de saúde, eficaz e honesto. Porque é que esta manhã, quando vinha para o palácio, lhe tocaste e o apavoraste? Porque é que olhaste para ele com ar ameaçador?’

 

A morte pareceu levemente surpreendida e respondeu ao califa: — ‘Não queria apavorá-lo. Não olhei para ele com ar ameaçador. O que aconteceu simplesmente é que, quando por acaso esbarrámos um no outro no meio da multidão e o reconheci, não pude deixar de manifestar o meu espanto, que ele terá tomado como uma ameaça.’ — ‘Porquê esse espanto?’, perguntou o califa. — ‘Porque, respondeu a morte, não esperava vê-lo aqui. Tenho encontro com ele esta noite, em Samarcanda’.” (Versão de um dos contos mais famosos do mundo, a lembrar a morte inevitável; a morte, que é o impensável que obriga a pensar).

 

5.3. “Somos todos visitantes deste tempo, deste lugar; apenas os atravessamos. O nosso objectivo é observar, aprender, crescer, amar. Depois, voltaremos a casa.” (Provérbio aborígene).

 

5.4 “Onde se encontra o lugar da luz, se aquele que dá a vida se esconde?” (Poema azteca).

 

5.5. “Quando nascestes, chorastes, mas o mundo rejubilou. Vivei a vossa vida de tal modo que, quando morrerdes, o mundo chore e vós rejubileis.” (Provérbio ameríndio).

 

5.6. “A morte não passa de um casamento com a eternidade.” (Provérbio iraniano).

 

II. Dez conselhos de Frei Betto para enfrentar o confinamento forçado pela pandemia

 

1. Mantenha o corpo e a cabeça juntos. Estar com o corpo em casa e a mente focada lá fora pode causar depressão.

 

2. Crie rotina. Imponha-se uma agenda de actividades. Exercícios físicos, leituras, limpezas, cozinhar, investigar na net...

 

3. Não fique todo o santo dia diante da televisão ou do computador. Diversifique as suas ocupações.

 

4. Use o telefone para ligar a parentes e amigos, não esqueça os mais vulneráveis e sós.

 

5. Dedique-se a um trabalho manual: reparar coisas, coser, cozinhar...

 

6. Entretenha-se com jogos. Se está com outras pessoas, estabeleça um momento do dia para jogar xadrez, damas, cartas...

 

7. Escreva um Diário sobre a quarentena. Colocar no papel ou no computador ideias, apreciações, sentimentos, é profundamente terapêutico.

 

8. Se houver crianças ou outros adultos em casa, partilhe com elas as tarefas domésticas.

 

9. Medite. Mesmo que não seja religioso, aprenda a meditar, pois isso limpa a mente, retém a imaginação, evita a ansiedade e alivia tensões.

 

10. Não se convença de que a pandemia acabará rapidamente ou durará x meses. Aja como se o período de reclusão fosse durar muito tempo. Na prisão, não há nada pior do que o advogado que garante ao cliente que recuperará a liberdade dentro de dois ou três meses.

 

III. Concelebrar “coronoviricamente”

 

Aqui, digo eu. Se o leitor ou a leitora são católicos e costumam seguir a Missa pela televisão ou outros meios, saibam que podem, em casa, celebrar a Eucaristia em sentido pleno e comungar. Como explico num texto publicado ontem no jornal SOL.

 

A fé, como diz a etimologia — fides, fiar-se de, confiar —, dá esperança, confiança. E a oração deve ser uma conversa com Deus, que é Pai-Mãe, falar com Ele como quem fala com um amigo íntimo, com o pai, com a mãe, expor-lhe dúvidas, medos, perplexidades, fazer-lhe perguntas... Jesus na Cruz (estamos na Semana Santa) também rezou perguntando a Deus, no horror da Cruz: “Meu Deus, meu Deus, porque é que me abandonaste?”, mas continuou a confiar: “Nas tuas mãos, Pai, entrego o meu espírito”... 

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 5 ABR 2020

A SABEDORIA DE VIVER. 1

 

O mais recente número de “Philosophie Magazine”. Hors-Série: “Sagesses du monde”, Inverno-Primavera 2020, passa em revista as “sabedorias do mundo” e refere concretamente a Índia, a China, o Japão, as Américas e África. Dele retirei alguns provérbios, contos, estórias, paradoxos..., que levam a pensar. Aliás, grandes pensadores europeus, como, por exemplo, A. Schopenhauer e M. Heidegger, foram beber a essas sabedorias, sobretudo sabedorias orientais, inspiração para a sua filosofia.

 

Nestes tempos dramáticos e sombrios, que vêm interrogar sociedades do imediatismo consumista e alarve, da corrupção pérfida e invasiva, da banalidade imperante, do prazer e do ter que de tudo se querem apoderar corrosivamente, é bom, aproveitando uma Quaresma forçada ou auto-imposta, parar e ouvir, no silêncio, a voz da sabedoria e do sentido. É esse o propósito simples do que aí fica, em antologia que organizei.

 

1. A sabedoria

 

1.1. “Um dia, um homem veio ver um sábio e perguntou-lhe: — ‘Mestre, que devo fazer para adquirir a sabedoria?’. O sábio não respondeu. Tendo repetido várias vezes a pergunta sem resultado, o homem retirou-se.

 

Mas regressou no dia seguinte e fez a mesma pergunta: — ‘Mestre, que devo fazer para adquirir a sabedoria?’ Não recebeu resposta.

 

Veio de novo no terceiro dia: — ‘Mestre, que devo fazer para adquirir a sabedoria?’ Por fim, o sábio dirigiu-se a um lago e, entrando na água, pediu ao homem que o seguisse. Chegado a uma profundidade suficiente, agarrou-o pelos ombros e manteve-o debaixo da água, apesar dos esforços que ele fazia para se libertar. Ao cabo de uns instantes, o sábio largou-o e, quando o homem voltou, com grande dificuldade, a respirar, o sábio perguntou-lhe: — ‘Diz-me, quando estavas metido dentro da água, qual era o teu maior desejo? Sem hesitação, o jovem respondeu: — Ar! Ar! Precisava de ar’. — ‘Não terias preferido a riqueza, os prazeres, o poder? Não pensaste em nenhuma destas coisas?’ — ‘Não, Mestre, eu precisava era de ar e só pensava nisso’. — ‘Pois bem, continuou o sábio, para adquirir a sabedoria, é preciso desejá-la tão intensamente como há pouco desejaste ar. É preciso lutar por ela, excluindo toda e qualquer outra ambição na vida. Ela deve ser a única aspiração, noite e dia. Se procurares a sabedoria com esse fervor, encontrá-la-ás um dia.’” (Conto filosófico).

 

1.2. “O silêncio é a sabedoria de todas as sabedorias; olha, vê e cala-te.” (Provérbio marroquino).

 

1.3. “Havia em Bagdad um louco que não dizia nada nem ouvia nada. Perguntaram-lhe: — ‘Pobre louco, porque é que não dizes nunca uma palavra?’ O louco: — ‘A quem quereis que me dirija? Não vejo aqui ninguém que possa responder-me’.” (Conto árabe).   

 

1.4. “Não há caminho para a felicidade. A felicidade é o caminho.” (Lao-tsé).

 

1.5. “O nosso grande sonho, diz um astrofísico a um papua, é encontrar vida no planeta Marte’. —Porquê?’, perguntou o papua. ‘Quer isso dizer que a vossa vida é um fracasso?’”. (Estória papua).

 

1.6. “Aquele que é senhor de si mesmo é maior do que aquele que é o senhor do mundo.” (Buda).

 

1.7. “Começa-se a envelhecer, quando se deixa de aprender.” (Provérbio japonês).

 

2. Eu e o outro

 

2.1. “O homem é os outros homens”. (Provérbio banto).

 

2.2. “Para se amar, é preciso conhecer-se. Se não conhecemos, não amamos.” (Provérbio indonésio).

 

2 . 3. “Aquele que guarda a amplidão do coração aberto é como o céu. Nada o ofende. Aquele que procura prejudicar prejudica-se a si mesmo, permanece só com o eco dos seus insultos.” (Texto búdico).

 

2.4. “As faltas dos outros são fáceis de ver. As nossas dificilmente as vemos.” (Buda).

 

2.5. “Em vez de dar um peixe a um homem com fome, ensina-o a pescar.” (Lao-tsé).

 

3. Ter e ser

 

3.1. “Não ter nada a perder é ser bem rico.” (Provérbio chinês).

 

3.2. “Quem tem muito dinheiro é sem dúvida feliz. Quem possui muita cevada é sem dúvida feliz. Mas quem não possui nada pode dormir.” (Canto sumério).

 

3.3. “Mesmo se tens pouco para comer, partilha com alguém mais pobre do que tu.” (Provérbio sudanês).

 

3.4. “O que dás é teu para sempre, o que guardas está para sempre perdido.” (Provérbio sufi).

 

3.5. “Um rei do Oriente acabava de receber como presente um manto soberbo feito com fios de ouro e de prata, enviado pelo imperador da China.

 

O rei vestiu o manto e pediu a Nasreddin: — ‘Quanto achas que eu valho?’ Nasreddin examinou longamente a personagem e o seu manto, depois acabou por dizer: — ‘Tu vales 500 moedas de ouro’. — Tu não estás a pensar. O manto sozinho vale 500 moedas de ouro’. — ‘Eu sei, contei precisamente o preço do manto’.” (Estória da cultura muçulmana).

 

3.6. Num certo país, havia um homem muito rico e outro muito pobre.

 

“O homem muito rico subiu com o filho ao cimo de uma colina, mostrou-lhe a paisagem à volta e disse: — ‘Olha. Um dia, tudo isto será teu’.

 

O homem muito pobre subiu também ao cimo da mesma colina com o filho, mostrou-lhe a paisagem  à volta e disse: ‘Olha! Que beleza!’.” (Conto oriental).

(Continua)

 

Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia

Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN  | 29 MAR 2020