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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

   

 

   Minha Princesa de mim:

 

   Por voluntário lapso, digo, isto é, por propositado apagão, na carta em que te contava o meu encontro com Saint-John Perse, omiti, na tradução do poema Canto da que lá esteve, no verso E eis chegado o tempo dos grandes sismos do Ocidente, quando as igrejas de Lisboa com os pórticos todos a escancararem-se sobre os largos... omiti, precisamente, de Lisboa, sentindo muito o que foi, em 1755, e ficou, permaneceu, na memória e na cultura europeia, o abalo dessa interrogação telúrica, teológica, vital e filosófica do nosso grande terramoto.

 

   O verso que destaco diz-nos: E eis chegado o tempo dos grandes sismos do Ocidente, quando as igrejas de Lisboa, com os pórticos todos a escancararem-se sobre os largos, e todos os retábulos se incendiando em fundo de coral vermelho, queimam os seus círios do Oriente na cara do mundo... Para as Grandes Índias do Oeste partem os homens de aventura. Lembra-nos a atração crescente que o grande continente americano, o que está logo atrás, a norte e a sul, das Índias Ocidentais, vai exercendo sobre o olhar e o espírito europeus, traz-nos os incêndios que devoram a Lisboa que o terramoto não engoliu, como recordação da fé passada, que todavia arde nas igrejas que o desmoronamento escancarou sobre o mundo, em chamas que consomem retábulos antigos (incluindo pinturas de Rubens, Ticiano, Correggio), círios do Oriente acesos na cara do mundo... Cenário grandioso, palco telúrico de história e civilizações. E ocorre-me o Poème sur le Désastre de Lisbonne, de Voltaire (1756): D´autres mains vont bâtir vos palais embrasés, / outros povos nascerão nos vossos muros derrocados; /  o Norte se enriquecerá com as vossas perdas fatais / todos os vossos males são um bem pelas leis gerais...

 

   Pode dizer-se que este poema não é apenas uma lamentação, aliás com entoação quase bíblica… Logo no início, Voltaire começa a cumprir o propósito que anuncia no título e em prosa trata no seu prefácio: Poème sur le Désatre de Lisbonne - ou examen de cet axiome: «Tout est bien». O axioma que ele contesta era geralmente aceite pela filosofia otimista reinante no século XVIII, na sequência das ideias sobre a bondade inata do homem, de Rousseau, e sobretudo de este mundo ser o melhor possível dos mundos, como afirmava Leibniz, posto que, apesar de ter sido criado com males inerentes, Deus nele não podia intervir, porque tal intervenção significaria o reconhecimento de que fora imperfeita a criação divina... o que seria obviamente impossível.

 

   A expressão «Está tudo bem» foi formulada, em 1733, pelo inglês Alexander Pope, no seu Essay on Man: Who finds not Providence all good and wise / alike in what it gives, and what denies?... ...Toda a Natureza é Arte apenas, de ti desconhecida; /  todo o Acaso, Direção que não podes ver; /  toda a Discórdia, Harmonia não entendida; / todo o Mal parcial, Bem universal; e, apesar do Orgulho, da Razão errante, / uma verdade é clara: «WHATEVER IS, IS RIGHT».

 

   Por isso, começa Voltaire assim o seu Poème: Ô malheureux mortels! ô terre déplorable! / Ô de tous les mortels assemblage effroyable! / Eterno sustentar de inútil dor também! / Filósofos que em vão gritais: «Tudo está bem»; / Vinde pois, contemplai ruínas desoladas, / restos, farrapos só, cinzas desventuradas, / os meninos e as mães, os seus corpos em pilhas, / membros ao-deus-dará no mármore em estilhas, / desgraçados cem mil que a terra já devora, / em sangue, a espedaçar-se, e a palpitar embora, / que soterrados são, nenhum socorro atinam / e em horrível tormento os tristes dias finam! / Aos gritos mudos já das vozes expirando,/ à cena de pavor das cinzas fumegando, / direis: «Efeito tal de eternas leis se colha / que de um Deus livre e bom carecem de uma escolha»? [Esta versão portuguesa é de Vasco Graça Moura].

 

   Jean-Jacques Rousseau reagiu ao Poème, escrevendo a Voltaire uma carta em que reafirmava a razão de Leibniz e a sua própria convicção de que a miséria e o mal são frutos de humanas faltas, dizendo ainda  que, no caso do terramoto de Lisboa, a culpa seria atribuível ao abandono da natureza pelos homens que sobrepovoavam a cidade. O filósofo do Contrato Social parecia aqui mais próximo da pregação jesuítica, designadamente do padre Gabriel Malagrida, que falava de castigo de Deus... Quiçá por isso, Voltaire retomará o tema das causas do grande terramoto, no seu Candide, sátira divertida e feroz do otimismo oitocentista, e fará de Pangloss - caricatura de filósofo rousseauniano - uma vítima da Santa Inquisição, que o condena por defender que a queda do homem era parte necessária do melhor possível dos mundos...

 

   Como sabes, Princesa de mim, Leonard Bernstein fez de Candide uma ópera muito engraçada, a que assisti num teatro fronteiro ao Metropolitan: o New York City Opera, nos anos oitenta. A descrição do terramoto de Lisboa, baseada em relatos presenciais coevos, é realista, e até corrige, para trinta mil, o exagero na contagem de cem mil mortos, de que falava em carta de 24 de Novembro de 1755, e que traduzia sobretudo a profunda comoção de Voltaire: Mal tinham posto os pés na cidade, quando sentem a terra tremer debaixo dos seus passos; o mar levanta-se a ferver no porto, e quebra os navios ali ancorados. Turbilhões de chamas e de cinzas cobrem as ruas e as praças públicas; as casas desmoronam-se, os tetos são abatidos sobre as fundações e as fundações dispersam-se. Trinta mil habitantes, de todas as idades e sexo, são esmagados sob as ruínas. E é perante esta cena que a personagem de Pangloss afirmará, para consolar os chorosos: «Tudo isto é o que há de melhor. Porque, se há um vulcão em Lisboa, é porque não podia estar alhures. Pois é impossível que as coisas não estejam onde estão. Porque está tudo bem». Um homenzinho negro, familiar da Inquisição, que estava ao lado dele, tomou educadamente a palavra e disse: «Parece que o senhor não acredita no pecado original; porque se tudo está pelo melhor, não há queda nem castigo». Já Candide ia pensando com os seus botões: «Se é este o melhor dos mundos, como será o resto?». Assim se - e nos - diverte Voltaire.

 

   Finalmente, Princesa, pensossinto que a visão (pantelúrica? panteísta?) de Saint-John Perse não se enquadra nestas achegas. Ela tem apenas a grandeza silenciosa e exaltante de uma infinita tragédia. 

 

   Camilo Maria

 

 

Camilo Martins de Oliveira

 

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

  

 

 

   Minha Princesa de mim:

 

   Pensossinto que a minha atração pela poesia de Saint-John Perse, despertada nos anos 1971-2, em Paris, se ficou de início a dever a vários fatores circunstanciais, alguns muito subjetivos: por exemplo, o ter sabido que o apartamento parisiense donde os nazis levaram todos os documentos e escritos pessoais do poeta, em 1940, depois dele se ter escapado para Inglaterra, donde seguiria para o seu exílio nos EUA, se situava na rua de Camoens. Curiosamente, Alexis Leger, patriota francês, não se considerava, apesar de ter acabado os seus dias no Midi que tanto amou, um homem do Mediterrâneo, menos ainda da cultura greco-latina. A sua pátria do coração era o Atlântico, e o mar oceano percorre infinitas páginas da sua obra, e da sua vida... Ele mesmo diz, a abrir o seu Amers (Amargos...), no Et vous, Mers (E vós, Mares...), publicado em 1957:

E vós, Mares, que ledes em sonhos mais vastos, ireis quedar-vos à noite nas tribunas da Cidade, entre a pedra pública e as parras de bronze? / Mais larga, ó multidão, a nossa audiência sobre essa vertente de uma idade sem declínio: o Mar, imenso e verde como uma alvorada a oriente dos homens, / o Mar em festa sobre os degraus como ode de pedra: vigília e festa às nossas fronteiras, murmúrio e festa à altura de homens - o Mar ele mesmo nossa vigília, como promulgação divina...

 

Por mim, nada mais tenho a dizer-te, senão que a invocação do Mar é, em Saint-John Perse, metáfora do cabimento infinito do homem...

Mas trago-te outro poema:

 

                                Cantado pela que lá esteve

 

               Amor, ó meu amor, imensa foi a noite, imensa

                 a nossa vigília onde tanto foi ser consumido.

               Mulher vos sou, e de grande sentido, nas trevas

                 do coração de homem.

               A noite de Verão alumia-se nas nossas persianas cerradas; a uva

                 tinta azulece nos campos; a alcaparreira da beira

                 das estradas mostra o rosado da sua carne; e o cheiro

                 do dia desperta nas vossas árvores resinosas.

 

               Mulher vos sou, ó meu amor, nos silêncios

                 do coração de homem.

               A terra, ao despertar, é só estremecimento de insetos

                 sob as folhas: agulhas e dardos debaixo das folhas todas...

               E eu escuto, ó meu amor, as coisas todas a correrem

                 para os seus fins. A corujinha de Palas faz-se ouvir

                 no cipreste; Ceres com mãos ternas nos abre

                 os frutos da romãzeira e as nozes de Quercy; a toupeira

                 branca constrói o ninho nas faxinas de uma árvore grande;

                 e os grilos peregrinos roem o chão até ao túmulo

                 de Abraão.

 

               Mulher vos sou, e em grande sonho, e em todo o espaço

                 do coração de homem:

               moradia aberta ao eterno, tenda erguida à vossa porta,

                 e boas vindas dadas em redor a todas as promessas

                 de maravilhas.

               Os atrelados do céu descem as colinas; os caçadores

                 de bodes quebraram as nossas cercas; e sobre a areia

                 da alameda ouço gritar os eixos de ouro

                 do deus que passa a nossa cancela... Ó meu amor de tão

                 grande sonho, quantos ofícios se celebraram no limiar das nossas

                 portas, quantos pés descalços correndo sobre as nossas lajes

                 e sobre as nossas telhas!...

 

               Grandes reis deitados nos vossos estojos de madeira,

                 eis aqui a nossa oferenda aos vossos manes rebeldes:

               refluxo da vida em todas as fossas, homens de pé sobre

                 todas as lajes, e a vida retomando todas as coisas debaixo

                 das suas asas!

               Os vossos povos dizimados tiram-se do nada; as vossas rainhas

                 apunhaladas fazem-se rolas de trovoada; na Suábia

                 estiveram os últimos cavaleiros teutónicos; e os homens de violência

                 calçam esporas para as conquistas da ciência.

                 Aos panfletos da história se junta a abelha do deserto,

                 e as solidões do Leste povoam-se de lendas...

                 A Morte com máscara de alvaiade lava as mãos nas nossas fontes.

 

               Mulher vos sou, ó meu amor, em todas as festas de

                memória. Escuta, escuta, ó meu amor,

               como soa um grande amor no refluxo da vida.

                 Todas as coisas correm para a vida como correios de império.

               As filhas de viúva na cidade penteiam as pálpebras;

                 as bestas brancas do Cáucaso são pagas em dinares;

                 os velhos artesãos de laca da China têm as mãos rubras sobre

                 os seus juncos de madeira preta; e as grandes barcas da

                 Holanda rescendem a cravinho. Levai, levai, ó

                 cameleiros, as vossas lãs de alto preço aos bairros de

                 pisoeiros. E eis chegado o tempo dos grandes sismos

                 do Ocidente, quando as igrejas, com os pórticos

                 todos a escancarem-se sobre os largos e todos os retábulos

                 se incendiando em fundo de coral vermelho, queimam os seus círios

                 do Oriente na cara do mundo... Para as Grandes Índias

                 do Oeste partem os homens de aventura.

 

               Ó meu amor do sonho maior, meu coração aberto

                  ao eterno, abrindo-se a vossa alma ao império,

                  assim todas as coisas fora do sonho, todas as coisas

                  pelo mundo nos encham de graça pelo caminho!

               A Morte com máscara de alvaiade mostra-se nas festas

                 dos Negros, a Morte em vestido de farinha teria trocado

                 de dialeto?... Ah! todas as coisas de memória,

                 ah! todas as coisas que soubemos, e todas as coisas

                 que fomos, tudo o que fora do sonho congrega

                 o tempo de uma noite de homem, que disso seja feito antes

                 do dia pilhagem e festa e fogo de brasa para a cinza

                 da noite! - mas o leite que de manhã um cavaleiro

                 tártaro tira do flanco da sua besta, é nos vossos lábios, ó meu

                 amor, que dele guardo memória.

 

   Foi este poema publicado, pela primeira vez, na NRF de 1 de Janeiro de 1969, mas só o conheci em 1972, e não acabei então a tradução que começara, mas hoje termino, para meu conforto. Alguns de nós, talvez todos, têm, cada um, a sua mitologia própria. A de Saint-John Perse terá raízes talvez mais célticas do que greco-latinas, mas o poeta foi construindo-a por dentro, como um sonho que abraça o mundo inteiro, e incansavelmente vai renovando na terra a vida dos homens. Esta, tal como a memória e a história, é sempre telúrica.

 

   Antes e durante qualquer tradução, vou lendo e relendo, vou comendo palavras, digerindo um texto. Comungo-o. Assim me desperto, no silêncio do coração de homem, entre memórias antigas, sentimentos guardados no escuro. Namorando este canto da que esteve lá, esta Cantiga de Amigo, fui acordando lembranças do Cântico dos Cânticos, esse eco bíblico de antiquíssimos hinos nupciais:

 

Vem, ó meu amor, / vamos para o campo! / Passaremos a noite nas aldeias, / iremos à vinha de manhã. / Veremos se a videira tem rebentos, / se as parreiras florescem, / se estão em flor as romãzeiras. / Então te farei dom de meus amores. / As mandrágoras exalam seu perfume, / à nossa porta estão os melhores frutos. / Novos ou velhos, /  para ti os guardei, ó meu amor!

 

   Quiçá Saint-John Perse tenha cantado a fidelidade do amor na infinita criação da terra... Poderia certamente ter subscrito ainda estoutra estrofe da bem-amada, no Cântico dos Cânticos:

 

Pousa-me como um selo sobre o teu coração, / como um selo no teu braço. / Porque o amor é forte como a Morte, / a paixão inflexível como o Shéol. / Tem feições que são feições de fogo, / como labareda de Yahvé. / As grandes águas não poderão apagar o amor, / nem submergi-lo os rios. / Quem oferecesse todas as riquezas da sua casa / para comprar o amor, / só desprezo recolheria.

 

   Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 


Minha Princesa de mim:
 

   A um questionário sobre as razões de escrever, à pergunta «Porque é que escreve?», Saint-John Perse respondia em 1955: «Para viver melhor». Qualquer poeta saberá que aí está tudo dito. Dei com esta confissão, dois ou três anos depois, mal conhecia a figura do brilhante diplomata Marie-René Alexis Saint-Leger Leger, nascido na Guadalupe, em 1887, numa família de nobreza francesa, que ali se fixara havia dois séculos, e que regressaria definitivamente a França, doze anos depois desse nascimento do futuro embaixador de França e prémio Nobel de literatura, com o pseudónimo de Saint-John Perse. Ao jovem que eu então era, tal palavra gravou-se no coração: já então me entretinha a escrever para revistas e jornais vários, sem outra razão para além do gosto de partilhar, este sendo, quiçá, a melhor maneira de viver, porque se convive.

   Na altura, porém, lia Claudel com alguma frequência, encontrava um ou outro livro seu sobre as mesinhas junto às poltronas em que minha Mãe, aficionada, ia relendo o poeta católico. Só quase duas décadas mais tarde, quando andava por Paris, onde ia como delegado de Portugal ao Comité de Indústria da OCDE, descobri mesmo Saint-John Perse, por poemas seus publicados na Nouvelle Revue Française (NRF) da Gallimard, e sobretudo quando esta editora publicou a sua obra completa em La Pléiade, volume que adquiri em dezembro de 1972, ano da sua edição, e ainda hoje conservo. Foi aí que soube também da amizade de uma vida entre os dois diplomatas e escritores, através da correspondência trocada. Talvez pela morte prematura de seu Pai, em 1907 - tinha o poeta 20 anos - Alexis Leger, que conhecera Claudel em 1905, foi-se correspondendo com o seu sénior, que o orientou para a carreira diplomática e sempre lhe foi levando (até em cartas da China!) conselhos e uma companhia fidedigna e amiga. Só não conseguiu fazer do júnior um católico convicto, ainda que o tentasse e tivesse mesmo concitado a admiração do jovem por alguns dos seus hinos religiosos: Li na NRF os três «Hinos» em que rezais. Ousaria falar-vos de admiração, dizer-vos, sem qualidades para tanto, a emoção e o voto, o anonimato no meio do qual cedemos: ao esplendor imóvel, no vosso São Paulo; ao peso, no vosso São Pedro; e no outro, o São Tiago, à sublime extremidade lógica? - assim escreve Alexis Leger, numa carta a Claudel, cônsul em Praga, datada de 15 de fevereiro de 1910, tinha o jovem 22 anos... Para teres uma ideia da força de tais hinos, traduzo-te os versos iniciais do São Paulo, aliás patrono onomástico de Claudel: Cordeiro de Deus que prometestes o Vosso reino aos violentos, / Recolhei o Vosso servidor Paulo que Vos traz dez talentos, / Cinco que Vós lhe confiastes e os outros que ele ganhou por si mesmo. / Sois um senhor cioso, austero para quem Vos ama, / Dai-lhe todavia o seu Deus, porque ele não Vos deu apenas metade do seu pobre coração! / Pai Abraão, estancai a sede deste fulminado!

   Noutras cartas, Princesa de mim, voltarei a Claudel e Saint-John Perse. Por hoje, quero só referir-te que, há poucos dias, arrumando e destruindo papéis velhos, dei com uma tradução, escrita em Paris, em papel timbrado da OCDE, que fiz dum poema do Saint-John Perse, publicado na NRF, em setembro de 1971. Talvez por me ter seduzido uma linguagem poética nova para mim. Aqui te la deixo:                       

 

CANTO POR UM EQUINÓCIO

Trovejava naquela noite, e sobre a terra dos túmulos eu ouvia retumbar

essa resposta ao homem, que foi breve, e estrondo apenas.

 

Amigo, o aguaceiro do céu esteve connosco, a noite de Deus foi a nossa intempérie, e o amor, em todos os lugares, regressava às suas nascentes.
 

Sei, vi: a vida regressa às suas nascentes, o raio corisco recolhe as suas ferramentas nas pedreiras desertas, o pólen amarelo dos pinheiros junta-se nos cantos dos terraços, e a semente de Deus vai encontrar-se no mar com as toalhas malvas do plâncton.

Deus espargido encontra-se connosco na diversidade.
 

Ó Rei, Senhor do solo, olhai que neva, e o céu está sem choque, livre a terra de qualquer albarda: terra de Seth e de Saúl, de Che Huang-ti e de Cheops.
 

A voz dos homens está nos homens, a voz do bronze no bronze, e algures no mundo onde o céu não tinha voz e o século não se precavia
 

vem ao mundo uma criança de que ninguém conhece a raça nem a classe,

e o génio bate pancadas certas nos lóbulos de uma fronte pura.

 

Ó Terra, nossa Mãe, não vos preocupeis com essa raça: o século está pronto, o século é multidão, a vida segue o seu curso. Um canto em nós se ergue, que não conheceu a sua nascente nem terá estuário na morte: 

equinócio de uma hora entre a Terra e o homem.

 

Camilo Maria

Camilo Martins de Oliveira