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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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AS ARTES E O PROCESSO CRIATIVO

 

XV - SURREALISMO - II

A PARANOIA CRÍTICA DE DALÍ (I)

Rumo a uma arte livre criadora de uma linguagem do desejo sem preconceitos, expurgando aspirações marxistas e partilhando pesquisas psicanalíticas, em especial freudianas, emergem artistas como Salvador Dalí, com a teoria da paranoia crítica ou do método espontâneo de conhecimento irracional baseado na associação interpretativa-crítica dos fenómenos delirantes. Entrava em transe com o fim de alcançar um estado de paranoia crítica, ao invés das técnicas de associação espontânea e da produção de imagens automáticas de Miró e Ernst.

 

Residindo nas fantasias noturnas do sono a verdade real da existência humana, sendo só através do subconsciente que o ser humano atinge a liberdade absoluta, independente da razão, da vontade, dos tabus e imperativos sexuais, há uma realidade superior dos sonhos que Dalí vulgarizou como imagem de marca pública mais conhecida do surrealismo. Exemplificam-no o seu Telefone-Lagosta (ou Telefone Afrodisíaco), com uma lagosta no lugar do auscultador e um relógio flácido a derreter-se na tela A Persistência da Memória.

 

De personalidade ambiciosa, egocêntrica, excêntrica e exibicionista, vulgarizou o espírito, formulário visual e postura pública do surrealismo como bizarria, delírio, fantasia, irracionalidade, fazendo culto do seu exótico bigode desmesuradamente fino, pontiagudo e estratosférico, em poses chamativas, delirantes e provocantes de aparições públicas transformadas em espetáculos de marketing.

 

O seu método paranoico-crítico, baseado em picos de aflição e ansiedade pessoal que ele próprio criava, permitia-lhe associações delirantes, inusitadas e insólitas, através de sonhos, pesadelos e paranoias, chegando a aterrorizar-se com imagens bizarras e macabras, confundido o observador na distinção entre a imaginação e a realidade, criando pinturas oníricas de objetos reais com múltiplas interpretações.

 

Um exemplo é a célebre tela Persistência da Memória (1931). Começa por um litoral vazio do Mediterrâneo, junto à casa do artista, na Catalunha, onde uma sombra negra ameaçadora se espraia, tornando flácido e deteriorando tudo aquilo por onde passa. Consta que Dalí se inspirou num queijo cremoso derretido que se espalhou pelas bordas de um prato, quanto aos relógios deformados e moles, lembrando um queijo amolecido. Se o próprio tempo se curva perante o impacto da gravidade, por que não, e por maioria de razão, os relógios, maquinismos do tempo? Fim do tempo e da vida, como também o é um ser vulnerável, grotesco e impotente coberto por um relógio que se vai consumindo e degradando, no centro da obra, tido como sendo Dalí, a que acresce uma mosca no relógio à esquerda e um exército de formigas pretas rastejantes no de bolso cor de laranja, como símbolo de decomposição e putrefação. Entre relógios flácidos que dão à tela uma natureza de sonho alucinado e elementos de paisagem naturalista transfigurados numa perspetiva visionária, surge a implacabilidade do tempo e a inevitabilidade da morte, em imagens reais metamorfoseadas em surreais e, ao mesmo tempo, numa horrenda metáfora hiper-real. Há que reconhecer que esta obra surrealista integra o imaginário coletivo da arte mundial.

 

Memorizo, de há anos, uma entrevista televisa num documentário sobre a vida de  Salvador Dalí, onde defendia que os génios não mereciam morrer, achando justo que pessoas geniais, como ele, eram dignas de viver eternamente, tendo a morte como indigna, não apreciando uma evolução natural e universal, segundo a qual todos, sem exceção, nascemos e morremos, o que também lhe valeu qualificativos de arrogante,  darwinista e louco. Ele que, resguardando-se na publicitada loucura, afirmou: “A única diferença entre mim e um louco é que eu não sou louco”.

 

Mas não chegava, além de quadros controversos, a sua aparência estranha, narcísica e exibicionista, de atos e palavras tidos como desarrazoados e extravagantes. Nem ser tido como um transgressor da moral e dos bons costumes da época, no seu caso de amor com o poeta Federico Garcia Lorca. Um amor “surreal”, por certo, para aquele tempo. Ou ter colaborado com o cineasta Luis Buñuel em filmes apelidados de escandalosos, como O Cão Andaluz e a Idade do Ouro. Ter entrado em rutura, mais tarde, com Lorca e Buñuel. Ter tido um encontro com Gala, então mulher de Paul Éluard, que se tornaria, sucessivamente, sua amante, esposa e musa. A tudo isto soma-se a sua expulsão do movimento surrealista. Logo ele, tido por outros, e por ele próprio, o mais surrealista dos surrealistas.

 

25.07.2017 
Joaquim Miguel De Morgado Patrício

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

Minha Princesa de mim: 

 

Muitas vezes terás visto uma qualquer cópia ou reprodução do famoso Cristo de São João da Cruz, ou o quadro de Salvador Dali representando Cristo crucificado. Pôs-lhe o pintor surrealista esse nome, porque, na verdade, ele inspira-se indubitavelmente - basta olhar para um e para outro - naquele desenhado pelo místico carmelita. Reparei em ambos - no quadro de Dali e no desenho de frei João da Cruz - ao folhear mais um dos livros que vou arrumando. E logo me ocorreu que te tinha prometido o envio duma tradução (livre) de um poema do santo. Aqui vai:

 

                   Noite Escura da Alma

 

                    Numa noite escura,

                    por ânsias de amor inflamada

                   - Ó ditosa ventura! -

                    saí sem ser notada,

                    da casa já sossegada.

 

                    Às escuras e segura,

                    por escada secreta, disfarçada

                    - Ó ditosa ventura! -

                    às escuras, pela calada,

                    da casa já sossegada.

                  

                    Na noite ditosa,

                    em segredo. Ninguém me via,

                    nem eu nada apercebia,

                    sem outra luz, outro guia,

                    além do coração que ardia.

 

                    E essa luz me guiava,

                    melhor do que o meio-dia,

                    até onde me esperava

                    quem certamente estaria

                    onde mais ninguém surgia.

 

                    Ó noite que me guiaste!

                    Ó noite mais amável que a alvorada,

                    ó noite que juntaste

                    o amado com a amada,

                    amada no Amado transformada! 

 

                    No meu peito florido,

                    que todo p´ra Ele guardava,

                    aí ficou adormecido,

                    e aí eu o mimava.

                    Com leque de cedro o refrescava...

 

                    O ar da madrugada,

                    quando o cabelo lhe sentia,

                    com sua mão de fada,

                    o meu colo já feria,

                    e meus sentidos suspendia.

 

                    Quedei-me e olvidei-me.

                    Reclinei o rosto sobre o amado,

                    declinei o meu cuidado,

                    às açucenas abandonado.

 

Em São João da Cruz, a experiência mística é uma criança que se abandona à confiança, a sua voz é poética, tem o lirismo intuitivo da inocência.

 

Camilo Maria    

 

Camilo Martins de Oliveira