AS ARTES E O PROCESSO CRIATIVO
XV - SURREALISMO - II
A PARANOIA CRÍTICA DE DALÍ (I)
Rumo a uma arte livre criadora de uma linguagem do desejo sem preconceitos, expurgando aspirações marxistas e partilhando pesquisas psicanalíticas, em especial freudianas, emergem artistas como Salvador Dalí, com a teoria da paranoia crítica ou do método espontâneo de conhecimento irracional baseado na associação interpretativa-crítica dos fenómenos delirantes. Entrava em transe com o fim de alcançar um estado de paranoia crítica, ao invés das técnicas de associação espontânea e da produção de imagens automáticas de Miró e Ernst.
Residindo nas fantasias noturnas do sono a verdade real da existência humana, sendo só através do subconsciente que o ser humano atinge a liberdade absoluta, independente da razão, da vontade, dos tabus e imperativos sexuais, há uma realidade superior dos sonhos que Dalí vulgarizou como imagem de marca pública mais conhecida do surrealismo. Exemplificam-no o seu Telefone-Lagosta (ou Telefone Afrodisíaco), com uma lagosta no lugar do auscultador e um relógio flácido a derreter-se na tela A Persistência da Memória.
De personalidade ambiciosa, egocêntrica, excêntrica e exibicionista, vulgarizou o espírito, formulário visual e postura pública do surrealismo como bizarria, delírio, fantasia, irracionalidade, fazendo culto do seu exótico bigode desmesuradamente fino, pontiagudo e estratosférico, em poses chamativas, delirantes e provocantes de aparições públicas transformadas em espetáculos de marketing.
O seu método paranoico-crítico, baseado em picos de aflição e ansiedade pessoal que ele próprio criava, permitia-lhe associações delirantes, inusitadas e insólitas, através de sonhos, pesadelos e paranoias, chegando a aterrorizar-se com imagens bizarras e macabras, confundido o observador na distinção entre a imaginação e a realidade, criando pinturas oníricas de objetos reais com múltiplas interpretações.
Um exemplo é a célebre tela Persistência da Memória (1931). Começa por um litoral vazio do Mediterrâneo, junto à casa do artista, na Catalunha, onde uma sombra negra ameaçadora se espraia, tornando flácido e deteriorando tudo aquilo por onde passa. Consta que Dalí se inspirou num queijo cremoso derretido que se espalhou pelas bordas de um prato, quanto aos relógios deformados e moles, lembrando um queijo amolecido. Se o próprio tempo se curva perante o impacto da gravidade, por que não, e por maioria de razão, os relógios, maquinismos do tempo? Fim do tempo e da vida, como também o é um ser vulnerável, grotesco e impotente coberto por um relógio que se vai consumindo e degradando, no centro da obra, tido como sendo Dalí, a que acresce uma mosca no relógio à esquerda e um exército de formigas pretas rastejantes no de bolso cor de laranja, como símbolo de decomposição e putrefação. Entre relógios flácidos que dão à tela uma natureza de sonho alucinado e elementos de paisagem naturalista transfigurados numa perspetiva visionária, surge a implacabilidade do tempo e a inevitabilidade da morte, em imagens reais metamorfoseadas em surreais e, ao mesmo tempo, numa horrenda metáfora hiper-real. Há que reconhecer que esta obra surrealista integra o imaginário coletivo da arte mundial.
Memorizo, de há anos, uma entrevista televisa num documentário sobre a vida de Salvador Dalí, onde defendia que os génios não mereciam morrer, achando justo que pessoas geniais, como ele, eram dignas de viver eternamente, tendo a morte como indigna, não apreciando uma evolução natural e universal, segundo a qual todos, sem exceção, nascemos e morremos, o que também lhe valeu qualificativos de arrogante, darwinista e louco. Ele que, resguardando-se na publicitada loucura, afirmou: “A única diferença entre mim e um louco é que eu não sou louco”.
Mas não chegava, além de quadros controversos, a sua aparência estranha, narcísica e exibicionista, de atos e palavras tidos como desarrazoados e extravagantes. Nem ser tido como um transgressor da moral e dos bons costumes da época, no seu caso de amor com o poeta Federico Garcia Lorca. Um amor “surreal”, por certo, para aquele tempo. Ou ter colaborado com o cineasta Luis Buñuel em filmes apelidados de escandalosos, como O Cão Andaluz e a Idade do Ouro. Ter entrado em rutura, mais tarde, com Lorca e Buñuel. Ter tido um encontro com Gala, então mulher de Paul Éluard, que se tornaria, sucessivamente, sua amante, esposa e musa. A tudo isto soma-se a sua expulsão do movimento surrealista. Logo ele, tido por outros, e por ele próprio, o mais surrealista dos surrealistas.
25.07.2017
Joaquim Miguel De Morgado Patrício