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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CARTAS NOVAS À PRINCESA DE MIM

 

Minha Princesa de mim: 

 

   Li esta manhã, numa revista católica francesa (La Vie, nº 3922), uma conversa sobre a separação e a morte, que me comoveu, sobretudo nestes tempos de pandemia. Inumação imediata, rigidez do protocolo funerário, interdição dos funerais familiares... As medidas sanitárias que rodearam a morte na Primavera passada deixaram traumatismos entre os vivos. Como podemos consolar-nos sem ter podido acompanhar os últimos momentos dos nossos próximos? Nem honrá-los por um ritual de adeus coletivo? Eis chegados os dias de Todos os Santos e dos Fiéis Defuntos, duas festas concomitantes que, este ano, se revestem de mais gravidade. Com o minuto de silêncio respeitado nas escolas a 2 de novembro, em memória do professor Samuel Paty. [Em Portugal, o Dia de Luto Nacional pelas vítimas do Covid19 e a bandeira a meia haste no Palácio de Belém]. Com o reforço das medidas sanitárias face à retoma da epidemia. Face à morte, por que gestos, por que presença, por que esperança nos consolaremos? La Vie reuniu, em 9 de outubro, a psicóloga e autora Marie de Hennezel e a escritora Anne-Dauphine Julliand, ambas tendo publicado livros sobre o assunto. A primeira, com L’Adieu Interdit (Plon) lança um grito de alarme a uma sociedade que esqueceu a morte; a segunda regressa, em Consolation (Les Arènes), ao lugar certo para acompanhar o luto. Anne-Dauphine Julliand dá testemunho dos laços que lhe permitiram, após a morte das suas duas filhas, afetadas pela mesma doença genética, conjugar a paz que nos dá vida e o desgosto que permanece. Numa presença rara e lúcida a questões que muitas vezes não queremos abordar, as duas experiências cruzam-se para nos revelarem convicções íntimas e universais. Palavras certas, cheias de força de viver, num encontro evidente de que saímos transformados. 


  
Ambas as intervenientes testemunharam experiências das suas vidas. Mas, finalmente, também nós nos reconhecemos nelas, ao recordarmos familiares e amigos que, mesmo à margem do covid 19, morreram em tempos de pandemia e confinamento, foram exumados sem assistência, sepultados ou cremados quase em segredo... E, sobretudo, não tiveram o conforto de uma mão, de uma presença amiga e próxima a acompanhá-los na misteriosa viagem. Em muitos casos, será difícil dizer quem se sentiu mais solitário e impotente, se o moribundo ou se cada um daqueles que ansiavam - por mais uma vez, quiçá derradeira, transmitir-lhe ou partilhar um sopro de vida com ele...


   Penseissenti melhor esta alma de uma irrepetível despedida - que, aliás, é uma profunda ação de graças pelo dom da vida - ao ler como Anne-Dauphine conta as mortes de ambas as filhas:


   Vivi-as diferentemente, pois elas eram pequeninas - uma com três anos e três quartos, outra com dez e meio. Mas sentimos nelas ambas uma indescritível intensidade de vida. A Thaïs, hospitalizada em casa, viveu mais um ano e uma semana do que o  prognosticado pelos médicos. E dois meses antes da morte da Azylis, senti que a atitude da minha filha tinha mudado, porque ela tirava proveito de tudo, de cada momento. Passámos férias na ilha de Yeu - foi um dos mais belos momentos das nossas vidas - e sentimo-la cheia de vida e do que nos queria transmitir: o seu amor pela vida. Nas horas anteriores à morte, cada uma das nossas filhas teve um sobressalto, ambas estiveram muito ternas. A Azylis abriu os olhos, ri-se, apertou uma mão e tudo passou por esse simples gesto. Aquele adeus diz-nos tudo o que a vida lhe trouxe. Partilho o ponto de vista da Maria de Hennezel: a relação perdura porque o amor perdura - o amor que nos liga uns aos outros. A Azylis dizia-nos: «Eu também continuarei a amar-vos à minha maneira». Estou persuadida de que morrer é um ato. Não escolhemos morrer, nem padecemos a morte: vivemo-la.


   
Este tão simples relato é, afinal, extremamente denso, profundamente interrogativo pela nudez da condição humana que descobre. Talvez por isso, Marie de Hennezel apenas comentou: Esse trabalho do trespasse pode tão somente ser a intensidade de um olhar, um modo de abraçar alguém. E dou comigo a pensarsentir a morte como trabalho de parto. 

 

Camilo Maria

Camilo Martins de Oliveira