CARTAS NOVAS À PRINCESA DE MIM / EM REBUSCA DO JAPÃO XXIII
Minha Princesa de mim:
Nitobe Inazo nasceu em 1862, pelo que a queda do shogunato Tokugawa o pôs em plena restauração Meiji e a duração da sua vida lhe permitiu ainda viver, além da Meiji, as eras Taisho e parte da Showa. Tendo morrido em 1933, foi poupado à loucura e à derrota do Japão na Segunda Grande Guerra. Foi claramente um homem do renascimento japonês do seu tempo, tendo vivido na Alemanha, Reino Unido e, sobretudo, nos EUA, sem todavia jamais deixar de refletir sobre as questões que um processo de modernização coloca ao bom governo e educação de uma sociedade em vias de aculturação. Converteu-se ao cristianismo, casou com uma americana quaker, traduziu abundantemente do alemão e do inglês, chegando ainda a escrever, em ambas essas línguas, obras de sua autoria, mas manteve-se sempre ao serviço da sua pátria, quer como universitário e professor, quer como diplomata (esteve na conferência de Versailles, em 1918, e representou o Japão na Sociedade das Nações). Feita a apresentação, apenas o recordo aqui para citar, em tradução minha, um breve trecho do seu Bushido, l0âme du Japon (versão francesa da Budo Éditions, Noisy-sur-École, 2000):
A erudição é um legume malcheiroso que é preciso ferver e voltar a ferver antes de se poder consumir.
Parece-me, minha Princesa de mim, que sendo nós um povo cuja cultura se compraz no amanho de algum exibicionismo e, designadamente nos meios ditos intelectuais, de um alarde de erudição que mais recorda excessos decorativos de um gosto "kitsch" do que, propriamente, a busca e partilha de referências pertinentes, será certamente salutar refletirmos sobre o saber cozinhar e digerir muito daquilo que, por aí, se afixa ou proclama como "bagagem cultural". Por vezes, aliás, o artifício é tão artificial - como, desta tão enfática forma, me ocorre observar - que torna insuportavelmente vistosa a vaidade irreprimível de um autor ou orador: assim o despropósito de umas citações rebuscadas em discursos cujo pensarsentir deveria ser bem distinto... Até por respeito pelos ouvintes... Mas passa-se como se alguém, inspirado pelo filme Zorro, the Gay Blade, surgisse de sopetão perante a assistência e as câmaras gritando, em jeito de Coucou me voilà! «eis-me aqui, que sou tão "culto"!» Mas deixarei para outra carta, Princesa de mim, mais observações sobre este e outros aspetos da pitoresca construção mediática de fulanismos míticos em Portugal... Por hoje, regresso ao Japão.
Urabe Kenko, o autor medieval de Tsurezuregusa (Horas de Lazer), de que já falámos, tem, na mesma obra, esta curiosa observação acerca dos valores cultivados pela aristocracia da corte imperial: A verdade encontra-se no estudo sistemático das letras clássicas, na arte da composição chinesa e da poesia japonesa, na prática da arte musical ; mais ainda, no conhecimento das regras da corte imperial e das cerimónias tradicionais... ...ou em possuir mão hábil para a escrita ágil [não te esqueças, Princesa, de que esta é caligrafia, a pincel e tinta da China], ou em poder exibir uma bela voz, marcando o compasso...
Pierre-François Souyri, no seu Les Guerriers dans la Rizière - La Grande Épopée des Samouraïs (Paris, Flammarion, 2017), contrapõe aquela nota a outra, constante do Soga Monogatari (Contos dos Soga), realçando assim a oposição histórica da cultura guerreira (bushido ou via do guerreiro) à da aristocracia da corte:
O canto e a poesia, os instrumentos de cordas, o jogo de bola no pé, o tiro ao arco pequeno, eis alguns divertimentos que se praticam na corte ou em casa do imperador reformado, mas nós cá somos guerreiros, fazemos a guerra a cavalo, combatemos a pé, medimos a nossa força pelo braço de ferro, sabemos galopar os nossos cavalos saltando obstáculos. Estamos hoje aqui reunidos, vindos de toda a parte... ...Organizemos, pois, um torneio de sumo [combate sem armas] entre nós!
Não tenciono alargar por aqui este tema da cultura bushido, ultimamente tão debatida, como nos diz o próprio título de um livro de Olivier Ansart, Paraître et prétendre: l´imposture du bushido dans le Japon pré-moderne (Paris, Les Belles Lettres, 2020), autor que, tal como Pierre-François Souyri, foi diretor da Maison Franco-Japonaise em Tokyo (cuja fundação, aliás, muito deve a Paul Claudel, embaixador de França no Império do Sol Nascente, nos anos 20 do século passado). Mas voltarei ao quaker japonês Nitobe, logo depois desta citação da Crónica Militar de Nitta Yoshisada (morto em 1338): Desde a Antiguidade até aos nossos dias, existe essa divisão entre as armas e a cultura literária. As respetivas virtudes são como o céu e a terra. Se qualquer delas faltar, deixa de ser possível governar o mundo. Assim, os nobres da corte privilegiam a cultura literária, que são as artes dos poemas e da música. Mas no bushido (via dos guerreiros), as armas são o princípio: eis a via do arco e setas, e das batalhas.
Mas a tal via dos guerreiros, afinal, vai tendo, no decurso da história, várias faces moldadas pelas variáveis circunstâncias do tempo e do modo... Bushi se pretenderam e proclamaram sucessivas gerações de guerreiros, com estatutos e condições sociais e morais que iam de bandos de bandidos e salteadores de estradas e aldeias, a funcionários imperiais, vassalos feudais, vinculados por juramentos de fidelidade e serviço que, todavia, nem sempre escaparam a tentações de traição ou mudança de partido, sobretudo quando se apresentavam alternativas mais favoráveis a promoções e enriquecimento próprios... Mas tinham em comum algo a que chamarei "vocação mitológica", quiçá soprada pela contemplação de valores profundamente enraizados na alma ou cultura nipónica: rasgo e resistência, solidariedade, transitoriedade e permanência do efémero.
O mito (ou mitos) do bushido, curiosamente, foi inicialmente popularizado no Ocidente pelo livro - escrito originalmente em inglês por um filho de samurai - Bushido, the Soul of Japan (1900). O autor é já nosso conhecido Nitobe Inazo, diplomata e professor universitário, convertido ao cristianismo quaker e casado com uma americana, como acima contei. A imagem exemplar que transmite da via dos guerreiros inspira-se certamente na educação que, enquanto descendente duma família de samurai, Nitobe recebeu e, também, na preocupação e desejo de nobilitar, perante estrangeiros, as gentes japonesas. Por outro lado, sabemos que o autor era cristão, casado em terra estranha com uma estrangeira... Mais ainda: Nitobe Inazo era pacifista e nunca se sentiu bem com a propensão ao autoritarismo e belicismo nacionalista que, pelos anos 20-30 ia desenhando as opções políticas do Império do Sol Nascente, conduzindo-o, finalmente, à guerra.
Com o devido pudor, não irei, Princesa de mim, emitir juízos nem sobre o drama interior de Nitobe - e tantos outros lúcidos apoiantes da restauração Meiji, entendida como abertura do Japão ao mundo novamente imposto, oferecido e descoberto - nem sobre a conversão ou teatralização de tradições que, mais ou menos verdadeiras, se tentou que encarnassem a tal "Japanese soul"... Por hoje, apenas quero deixar-te um apontamento que ilumina uma relação com a fidelidade e a morte que, tão japonesa no seu sentido, me parece aqui merecedora de atenção. Trata-se de um episódio da saga da queda final, nos anos 30 do século XIV, do shogunato Hojo, com sede em Kamakura. Conta-nos Pierre-François Souyri:
Vencido por Ashikaga Takauji, o general Hojo Nakatoki fugiu com alguns dos seus vassalos, mas logo se viu cercado por bandos armados de milhares de homens: «Nã vejo saída nem refúgio possível... Terei pois de abrir o ventre, como é dever de qualquer homem de honra».
O general Nakatoki dirigiu-se então aos seus homens, convencido de que um bom senhor deve saber recompensar os seus servidores pelos serviços prestados. Ora, não estando em condições de o fazer, só lhe restava morrer: «Não encontro palavras que falem aos vossos corações leais, a vós que tão fielmente me servistes até ao dia de hoje. Lembro-me do sentido da honra que nos ensina a Via do arco e das setas e não me esqueço da vossa solidariedade já tão antiga. Sabeis todavia que a sorte das armas nos não foi favorável, e que o clã Hojo sucumbiria. E como é profunda a minha gratidão! Gostaria, com todo o meu coração, poder recompensar-vos pelo vosso mérito, mas o funesto destino do meu clã não permite que o faça. Vou, portanto, suicidar-me aqui, para saldar a dívida que para convosco contraí» O seu vassalo mais próximo, Kasuya Muneaki, logo se suicidou também, «para poder guiar o seu senhor no mundo das trevas». Mas não foi o único: os quatrocentos e trinta dois samurais presentes abriram simultaneamente os ventres. «O sangue corria-hes dos corpos, como caudal do rio Amarelo, e os corpos cobriam o chão como carne num talho».
Creio, Princesa de mim, que nos ajudará a melhor entender este episódio que Souyri foi buscar ao Taiheiki, recordar aqui a origem da palavra samurai: deriva do verbo antigo saburafu, que significa servir. O samurai é, portanto, inicialmente, um servidor, mas especial: armado, pertencente a uma escolta, uma espécie de guarda-costas. Lado a lado com o termo samurai aparecem muitas vezes outros, tais como bushi, cuja etímolo chinês se refere às artes marciais ou budo, a via das armas, sendo esse bu frequentemente oposto a bun, ou letras. Shi significa alguém de qualidade e, assim, um bunshi é um letrado e um bushi um guerreiro. Com o andar dos tempos, bushi e samurai tornaram-se sinónimos.
Camilo Maria
Camilo Martins de Oliveira