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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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PEDRAS NO MEIO DO CAMINHO

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XIX. FREI DINIS, CARLOS E JOANINHA

 

Em busca de fantasmas da nossa terra, não poderiam faltar num folhetim como este, os paradigmas que ansiamos encontrar. Foi Garrett quem nos deixou o melhor modelo de uma narrativa onde se encontram amores românticos, uma viagem e a defesa de um património único. Eis a janela da menina dos rouxinóis, da Joaninha dos olhos verdes. “Entrámos a porta da antiga cidadela. – Que espantosa e desgraciosa confusão de entulhos, de pedras, de montes de terra e caliça! Não há ruas, não há caminhos: é um labirinto de ruínas feias e torpes. O nosso destino, a casa do nosso amigo, é ao pé da famosa e histórica Igreja de Santa Maria da Alcáçova. – Há de custar a achar em tanta confusão”…

Almeida Garrett deu-nos conta da falta de cuidado em que encontrou na histórica cidade de Santarém, quando foi ao encontro de seu amigo Passos Manuel. Falava-nos de “pardieiros e entulhos”, que hoje felizmente deram lugar a uma cidade cuidada e limpa. E assim apelava para que não se deixasse ao abandono um legado histórico sagrado. Mas o grande mestre romântico faz o contraste entre as pedras que encontrou decaídas, a honradez das pedras vivas e a formosura do panorama e da paisagem. Nós falamos de pedras no meio do caminho.

“Nunca dormi tão regalado sono em minha vida. Acordei no outro dia ao repicar incessante e apressurado dos sinos da Alcáçova. Saltei da cama, fui à janela, e dei com o mais belo, o mais grandioso e, ao mesmo tempo, mais ameno quadro em que ainda pus os meus olhos”. Infelizmente, hoje, há secura. Mas então eram o “vale aprazível e sereno” e “o sossegado leito do Tejo, cuja areia ruiva e resplandecente apenas se cobre de água junto às margens, donde se debruçam, verdes e frescos ainda, os salgueiros que as ornam e defendem”… A seca prolongada deixa-nos hoje severas preocupações, mas aquele glorioso momento foi mais forte que tudo, em nome de uma memória histórica inesquecível.

Que é o património senão vida vivida? Pedro Canavarro é o nosso anfitrião inigualável, sempre a guardar a presença silenciosa de Garrett e de Passos num roteiro da democracia no rico Ribatejo – desde as Cortes de Santarém de 1331, que ilustram a democracia na formação de Portugal e a aclamação em 1580 de D. António Prior do Crato até D. Pedro IV em vésperas de Évora-Monte, sem esquecer Sá da Bandeira, Alexandre Herculano, Rebelo da Silva, Oliveira Marreca, Anselmo Braancamp Freire, António Ginestal Machado, José Relvas, Humberto Delgado, Salgueiro Maia…

Para as escolas tem de haver a determinação em criar para os mais jovens o gosto do estudo rigoroso, o culto e o interesse pelo património – seja o monumento antigo, seja a paisagem ou o jardim, seja o cuidado com o uso da língua materna, seja o trabalho do artesão, seja a qualidade na tradição culinária. Temos de cuidar do património – prevenindo-nos contra o descuido, delineando e estudando caminhos que nos permitam conhecer, recordar, alertar e salvaguardar. E eis que o mistério de Frei Dinis se nos revela na paternidade de Carlos. E o cenário da guerra civil lembra-nos o confronto entre a tradição e a modernidade, pleno de incompreensões.

Joaninha, a menina dos rouxinóis e dos olhos verdes, simboliza a visão do Portugal profundo e antigo, que valoriza as raízes históricas. Francisca, a avó de Joaninha, mostra-nos como o tempo andou depressa demais, longe da compreensão das mudanças. Frei Dinis ficou-se no tempo passado e irreal não sendo capaz de justificar-se sem uma revisão de valores e de perspetivas. A morte de Joaninha e a fuga de Carlos para tornar-se barão, representa a própria crise de valores em que o apego à materialidade e ao imediatismo acaba por fechar um ciclo de mutações de caráter incerto e instável. Eis um romance puro de fantasmas. Carlos deambula sonâmbulo, o exemplo de Joaninha é a referência inesquecível e Frei Dinis esconde-se da história.

Agostinho de Morais

 

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>> Pedras no meio do caminho no Facebook

 

A VIDA DOS LIVROS

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   De 13 a 19 de dezembro de 2021

 

“Catedral e Museu Diocesano de Santarém” é uma obra coordenada pelo Padre Joaquim Ganhão, na qual se apresenta não apenas um rigoroso levantamento do património artístico da Sé Catedral de Santarém, mas igualmente um inventário precioso do Museu Diocesano de Santarém.

 

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OS BENS CULTURAIS RELIGIOSOS

Importa recordar que a Comissão Pontifícia para os Bens Culturais da Igreja considera os Museus Eclesiásticos e a Arte Sacra como fatores de aprofundamento da espiritualidade e da fé. Nesse sentido “a Igreja deve evitar o perigo do abandono, da dispersão e da devolução das peças (…), instituindo quando for necessário, ‘depósitos dos museus’ que possam garantir a conservação e fruição no âmbito eclesial. As peças de menor importância artística também testemunham no tempo o empenho das comunidades que as produziram e podem esclarecer a identidade das comunidades atuais. (…) De qualquer modo, é indispensável que as obras conservadas nos museus e nos depósitos eclesiásticos permaneçam em contacto direto com as obras que ainda se encontram em uso nas diversas instituições da Igreja” (Carta Circular, 2001). Nesta linha integra-se o projeto da requalificação da Sé Catedral de Santarém que teve a sua génese em 2011 aquando das comemorações dos 300 anos da edificação do templo, no âmbito da Rota das Catedrais, com consequente abertura do Museu, que passou a constituir uma referência fundamental no património cultural português. Em resultado dessa relevante intervenção foram atribuídos dois importantes prémios à intervenção: pela Fundação Calouste Gulbenkian, o Prémio Vilalva (2014) e pela Europa Nostra, o Prémio Europeu do Património Cultural (2016). No livro “Catedral e Museu…” reúne-se uma dezena de  estudos históricos e artísticos sobre o edifício do antigo Colégio Jesuíta, contando com contributos de especialistas reconhecidos, como: Miguel Soromenho, João Cabeleira, Maria João Pereira Coutinho, Sílvia Ferreira e Maria Alexandra Gago da Câmara. Saliente-se a coordenação técnica de Eva Raquel Neves – sob a dinâmica direção do Padre Joaquim Ganhão, sob o impulso de D. José Traquina.

 

UMA HISTÓRIA MUITO RICA

A atual Sé Catedral foi construída sobre o antigo Paço Real na Alcáçova Nova, oferecido pelo rei D. João IV, em 1647, para construção do Colégio Jesuíta de Nossa Senhora da Conceição, que teria a traça dos Arquitetos Mateus Couto, tio e sobrinho. Depois da extinção da Companhia de Jesus, a Igreja e edifício viriam a albergar sucessivamente Seminário, Liceu Sá da Bandeira e até Tribunal. O monumento que chegou aos nossos dias e que agora surge em todo o seu esplendor, singulariza-se pela grandeza, equilíbrio e harmonia da fachada, pelos notáveis tetos pintados na nave e capela-mor, pelo retábulo desta com embutidos de pedraria polícroma, pelos ricos altares laterais de talha dourada e pelos mármores da Capela de Nossa Senhora da Boa Morte de João António Bellini de Pádua. Merecem ainda referência os diversos painéis de azulejos e os retábulos em estuque de Francesco Marca. A monografia sobre a Catedral é completada por um estudo das coleções do Museu Diocesano, com cerca de 150 peças, reunindo o contributo de cerca de 50 especialistas dos principais museus nacionais e das Universidades. O conjunto de peças que foi possível reunir demonstra a tomada de consciência sobre a riqueza das paróquias da diocese – permitindo-se um esforço comum de conhecimento, valorização e preservação de acervos de grande qualidade, numa região com uma extraordinária riqueza no tocante ao património cultural, histórico e artítico. Pode, pois, dizer-se que esta ação coordenada concretiza o cumprimento escrupuloso da Convenção de Faro, do Conselho da Europa sobre o valor do Património Cultural na Sociedade Contemporânea (assinada em 2005). De facto, há uma apreciável ligação entre património material e imaterial, bem como o reconhecimento pela sociedade do valor da criação cultural e artística.

 

LEMBRAR UM TRABALHO LONGO

Saliente-se o importante texto de Pedro Canavarro, no qual nos dá conta da grande persistência que foi necessário ter para se chegar ao ponto em que nos encontramos e os desafios que continuam presentes. Houve inicialmente receios e resistências, mas finalmente foi possível encontrar reconhecimento da riqueza do património escalabitano, designadamente na exposição “Encontros de Cultura – oito séculos de missionação” em S. Vicente de Fora com a apresentação da coleção de objetos sacros e não só, em prata indiana do século XIX provenientes do património de D. António Pedro da Costa, Bispo de Damão e Arcebispo ad honorem de Cranganor, além do conjunto de peças da Diocese de Santarém de sacras, galhetas, uma bacia com gomil e caldeirinha com hissope… Graças aos Bispos D. Manuel Pelino e D. José Traquina foi possível chegar ao ponto atual, ficando-nos do Sermão da Sexagésima do Padre António Vieira a magnífica expressão: “Para um Homem se ver a si mesmo são necessárias três coisas – olhos, espelho e luz” – é exatamente o que encontramos neste trabalho extraordinário.

 

Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

 

 

 

 

OS DOIS TEATROS SÁ DA BANDEIRA

 

É interessante constatar e existência de dois Teatros homónimos, separados por dezenas de anos e centenas de quilómetros, e ambos evocando um nome que não é propriamente uma grande referencia atual às artes cénicas. Referimo-nos aos Teatros Sá da Bandeira do Porto e de Santarém.

 

Realmente, não se diga que o nome de Sá da Bandeira contem hoje um significado especifico nas artes do teatro. E no entanto, os dois Teatros Sá da Bandeira que hoje aqui evocamos assumem função de relevo local e nacional.

 

O Teatro Sá da Bandeira do Porto é o herdeiro de sucessivas salas de espetáculo que, primeiro com o nome de Teatro(s) do Príncipe Real, marcaram a atividade cénica da cidade e mesmo, pode-se dizer, do país. Sousa Bastos, escrevendo em 1908, regista a existência, no local, de três sucessivos Teatros denominados do Príncipe Real: entende-se que a partir de 1910 a designação mudou. Mas em qualquer caso, estamos perante a mesma sala, ou melhor, perante a localização e a tradição de sucessivas salas de teatro, música e artes circenses, que no mesmo local marcam a vida sócio-cultural do Porto.

 

A primeira dessas salas não passava de um barracão de madeira vocacionado para o circo. Resistiu alguns anos, mas foi substituído por um edifício agora “de pedra e cal”, com 21 camarotes e 2 frisas. Este já servia alternadamente para companhias dramáticas, equestres e ginásticas. Passados anos foi de novo demolido para se fazer o que hoje existe” diz-nos então Sousa Bastos em 1908. Escusado será de referir que mudaria em breve de designação… 

 

E é com o nome de Teatro Sá da Bandeira que esta sala referencial do Porto mantem atividade tendo aliás beneficiado de sucessivas alterações e melhorias no interior.

 

Mais moderno é o Teatro Sá da Bandeira de Santarém, este inaugurado em 1924 e construído sobre as ruínas de um antigo hospital denominado João Afonso. A fachada ostentava um arco que fazia lembrar, dizem as crónicas, o politeama de Ventura Terra, esse inaugurado cerca de 10 anos antes. Vocacionado desde a origem para espetáculos de teatro e cinema, o Sá da Bandeira de Santarém funcionou numa primeira fase até cerca de 1977.

 

A Câmara Municipal adquire-o e a partir de 2000 inicia um vasto projeto de restauro orientado pelo arquiteto Alberto Mendonça Gamito.  E tem interesse assinalar que o interior sofre uma total remodelação. Pelo contrário, a fachada conserva muito da estrutura original, em arcos sucessivos encimados por uma varanda com elementos de art-deco.

 

Hoje o Teatro Sá da Bandeira de Santarém ostenta uma lotação de cerca de 200 lugares e, tal como já escrevemos, além da sala de espetáculos propriamente dita, alberga uma sala estúdio, um piano-bar, uma galeria e uma sala de convívio. Foi instalado um teto em gesso e a sala revestida por painéis de madeira. A teia foi aumentada, designadamente pela integração de um edifício contíguo.

 

Mas mais interessante: o Teatro recuperou vestígios do claustro do antigo hospital.

 

E tudo isto valoriza a cidade de Santarém.

 DUARTE IVO CRUZ

A TRADIÇÃO OITOCENTISTA DOS TEATROS DE SANTARÉM

 

Assinalamos aqui uma, chamemos-lhe “tradição oitocentista” de edifícios de teatros e /ou cineteatros na cidade de Santarém: mas refira-se que o mais significativo, no ponto de vista urbano, técnico e arquitetónico, está abandonado, mais ou menos arruinado e dele restará, mal, a fachada – e isto, apesar da tradição, da memória e inclusive, da organização recente de movimentos de cidadãos para o restauro daquilo que resta.

O que resta é a fachada do Teatro Rosa Damasceno, projeto do arquiteto Amílcar Pinto, inaugurado em 1938 e de certo modo inspirado no Eden lisboeta. Mas assinala-se que este Teatro, ou melhor, este cineteatro de Santarém, ou o que dele resta, situa-se rigorosamente no local onde, em 1884, se inaugurou um então chamado Teatro de Santarém, com 800 lugares de plateia, 60 camarotes e geral. E esse é que, em 1893, passa a chamar-se Teatro Rosa Damasceno, homenagem à atriz que viria a falecer em 1904 e que inaugurou o Trindade de Lisboa.

O projeto original do Teatro Rosa Damasceno de 1884/1893 deve-se ao arquiteto José Luís Monteiro e inspira-se de certo modo no velho Teatro Gymnasio de Lisboa.

Jorge Custódio, num relatório elaborado para a Camara Municipal de Santarém e que cito em “Teatros de Portugal” (ed. INAPA 2005 págs. 65/66) compara os dois Teatros Rosa Damasceno numa perspetiva de análise arquitetónica.

Assim, no primeiro, (1884) “nota-se a influência clássica assumida na organização da fachada, na modelação de frontões circulares e quebrados das janelas e no apontamento das pilastras decorativas que ritmam o 1º piso”.

Isto, no que se refere pois ao primeiro Teatro Rosa Damasceno. Porque, quanto ao segundo, Jorge Custódio sublinha a diferença de estilos arquitetónicos:
“Se na primeira sala o teatro responde ao gosto romântico, eclético rebuscado de arquitetura e arte de belle époque, a nova sala procura romper com a tradição oitocentista da arquitetura de Santarém, enveredando claramente pela arte moderna, pelo internacional style, pela art deco (…) uma obra-prima”…

E este segundo Teatro Rosa Damasceno, de que resta apenas a fachada, merece destaque encomiástico de José Manuel Fernandes, documentado por uma fotografia: “assume uma qualidade invulgar quer no desenho e volumetria exterior, quer no ambiente interior. Projeto de 1939, de Amílcar Pinto, apresenta interessantes desenhos de luz nos foyers e camarotes e uma luminosa geometria nos envolvimentos da fachada” – que foi o que restou… (in “Cinemas de Portugal” ed. INAPA pág. 128).

E deve-se referir ainda uma tradição de teatros e de espetáculos em Santarém, que descrevo no meu livro acima citado. Assim, refiro um Teatro S. João de Santarém ou São João de Alporão, que entre 1849 e 1876 ocupou e transformou a velha Igreja de São João de Alporão, onde se instalaria o Museu Arqueológico. E já antes se produziram espetáculos na Igreja de São Martinho, em 1810/11, no quadro das invasões francesas; ou uma representação do “Frei Luís de Sousa” em 1847, a que Herculano teria assistido…

E cito para terminar algumas referências expressas e ambientais a Santarém no teatro português: desde logo “O Alfageme de Santarém” (1842) e “Falar Verdade a Mentir” (1845) de Garrett, onde uma das invenções compulsivas do protagonista Duarte é “ter sido recebedor em Santarém”; ou “A Tomada de Santarém por D. Afonso Henriques” (1846) de José Maria Bordalo, ou tantas mais peças de Salvador Marques, Alves Redol, ou, até pelo, pseudónimo, as peças de Bernardo Santareno!

 

DUARTE IVO CRUZ