Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Em “Nova Teoria do Sebastianismo” (D. Quixote, 2014) Miguel Real interroga-se sobre Portugal e não apenas sobre o mito sebastianista, permitindo-nos procurar entender a nossa identidade complexa.
À DESCOBERTA DE PORTUGAL A épica e a lírica de Camões, o império do espírito de Vieira, o drama e a poética de Garrett, o querer de Herculano, o sentido crítico de Antero e da sua geração, a Mensagem de Pessoa, a presença da pouca terra e do muito mar e o desafio trágico, lírico e picaresco estão sempre presentes… Miguel Real mobiliza-nos na leitura e no diálogo sobre Portugal. Partindo do Repensar Portugal do Padre Manuel Antunes, o escritor leva-nos a refletir sobre quem somos, o que queremos e quais os desafios a que temos de responder. E o humanismo universalista é tudo menos uma marca redutora ou providencialista. Quando lemos o Padre António Vieira da Clavis Prophetarum, percebemos que as ideias de povo eleito ou de uma vocação imperial caem, de facto, por terra – abrindo caminho ao reconhecimento da dignidade humana como património comum e como objetivo a partilhar pela humanidade… E Miguel Real nos vários registos da sua escrita e da sua reflexão, romance, drama, ensaio tem procurado demarcar-se da tentação de uma certa predestinação de um povo ou de uma existência…
Deste modo, a leitura sobre o risco da mediocridade nacional insere-se na tradição das correntes de pensamento que desde tempos imemoriais olham a nossa realidade numa perspetiva crítica, com a preocupação de assegurar uma séria articulação de esforços, capaz de negar o fatalismo do atraso e de criar condições para podermos viver uma melhor defesa do bem comum. Fala-se do escárnio e maldizer, do picaresco, do “Pranto de Maria Parda”, do não nos levarmos demasiado a sério no “País relativo”, mas também do querer viver ao ritmo do mundo civilizado, como, no Auto da Lusitânia, Todo o Mundo e Ninguém – os elementos são vários e as personagens da nossa cultura apresentam-se com características contraditórias, o que as leva a não se eximirem ao sentido fortemente crítico, que não deve ser confundido com puro negativismo. António José Saraiva falava do “estar-se onde não se está”, o que leva os portugueses a serem religiosos e heréticos; ortodoxos, mas heterodoxos; emigrantes, mas não colonizadores (por força da miscigenação); aventureiros, mas radicados (como na Diáspora); pobres, mas generosos; e atrasados, mas crentes num destino (messianismo). De Gil Vicente a António José da Silva, de Garrett a Camilo e Eça de Queiroz encontramos a exigência crítica como contraponto à indiferença ou ao conformismo. E que é o país de suicidas de Unamuno, que hoje já não seria assim entendido, senão a manifestação séria de um inconformismo, que apenas visa combater a passividade e a irrelevância?
SER E REPRESENTAÇÃO A abrir “Portugal – Ser e Representação”, Miguel Real cita, sintomaticamente, ainda o Padre Manuel Antunes: “Reencontrar o antigo, por vezes mesmo o mais antigo, para criar algo de novo (…). A nossa história multissecular de Povo independente é feita de espaços de continuidade e de espaços de rutura, de períodos de deterioração e de períodos de recuperação, de anos de sonolência e de momentos de crítico despertar, de estados de descrença e de instantes largos de esperança quase tão ampla como o universo” … Uma história antiga, com raízes culturais múltiplas, as alternâncias entre continuidade e recusa, entre altos e baixos (numa ciclotimia de euforia e pessimismo) e o encontro entre vontade e destino – tudo se soma, numa Ibéria em que a nossa “maritimidade” se contrapõe à “continentalidade” de Espanha, projetando nos dois símbolos contrapostos – Fernão Mendes Pinto, como personagem múltipla no mundo, e D. Quixote, como imaginação e sonho. A multiplicidade da aventura da “Peregrinação” sublima-se na vontade do povo que Herculano encontra como explicação da independência e da unidade. O Brasil é a imagem grandiosa da frente marítima europeia de Portugal, enquanto as Espanhas se projetam na América em múltiplos países, em razão das autonomias metropolitanas…
A Portugal, segundo Eduardo Lourenço, faltou mentalidade europeia desde a segunda metade do século XVI. E o que nos ensinou Antero? A não nos escondermos no nosso passado (o Messias de Portugal é o nosso próprio passado). O sebastianismo, além de prova póstuma da nacionalidade, é uma alucinação mental delirante, sentimentalmente verdadeira e racionalmente falsa (para Miguel Real). “Como nó central do imaginário português, o mito sebastianista sintetizou os quatro complexos culturais recorrentemente sofridos pelos portugueses: o complexo de Viriato ou viriatino, o complexo de Padre António Vieira ou vieirino; o complexo do Marquês de Pombal ou pombalino e o complexo canibalista, vinculado à inveja individual e à intolerância coletiva. De origem histórica negativa, o sebastianismo constitui igualmente uma espécie de motor ético dos portugueses, forçando-os a acreditarem dever o futuro ser melhor do que o presente, mesmo que para tal se sintam obrigados a fugir da medíocre elite portuguesa, que do País se apodera como uma coutada sua e emigrar como o fazem hoje” (o autor escrevia em 2013 na Nova Teoria do Sebastianismo).
TENTATIVA DE SÍNTESE Aqui se encontra uma síntese, que explica, afinal, a severa crítica, em que Miguel Real aprofunda a exigência de termos de fazer mais do que nos adaptarmos, como se afirma no universo romanesco do autor... Como José Mattoso ou Eduardo Lourenço têm dito, não somos nem melhores nem piores que outros – somos um país médio, com responsabilidades e oportunidades, mas tudo depende do que formos capazes. Um messianismo larvar, a sombra sebástica, a tensão permanente das contradições do nosso código genético, o uso crítico dos nossos mitos para os podermos superar pela emancipação – tudo isto constitui pano de fundo do nosso ser… O melting pot intelectual e ético que nos forma articula menos a ideia de “povo eleito” e mais a exigência de sabermos lidar com a imperfeição, através do “saber só de experiências feito” … Nem providencialismo, nem indiferença - Pascoaes e Sérgio estão sempre a encontrar-se, a contradizer-se e a completar-se. Esta a base para a célebre “psicanálise mítica do destino português”. Nós somos realmente uma mistura de fatores contraditórios. E neste ponto, não podemos deixar de recordar a importância de Matias Aires (1705-1763). A verdadeira felicidade não é a ilusória: do poder, da riqueza e da fama; é, sim, a “da aproximação incessante à verdade, exigindo o desmascaramento da vaidade individual e social, findando no estado interior de serenidade de quem sabe (…) que tudo é vaidade”…
O mito sebastianista corresponde a um delírio, sentimentalmente verdadeiro embora racionalmente falso. Miguel Real tem razão. Assim, o sebastianismo constitui uma espécie de motor ético dos portugueses, forçando-os “a acreditarem dever ser o futuro melhor do que o presente, mesmo que para tal se sintam obrigados a fugir da medíocre elite portuguesa, que do país se apodera como coutada sua…” (“Nova Teoria do Sebastianismo”, D. Quixote, 2014). Contra o conselho dos mais avisados, D. Sebastião sentiu-se motivado pelo sucesso de Lepanto e envolveu-se numa questão dinástica no reino de Marrocos. O resultado foi um desastre, tanto maior quanto não havia descendente que lhe sucedesse em Portugal – com três reis mortos e um reino momentaneamente pedido. Não houve avisada prudência e a nação ficou órfã. E a loucura gerou um mito. Eduardo Lourenço, no prefácio a “Origens do Sebastianismo” de Costa Lobo (1909), lembra o sentido crítico de António Sérgio, em justa demarcação do saudosismo sebastianista, pouco conforme com as suas preocupações de lançar para o tempo atual as bases de uma autêntica reforma de mentalidades. Tratava-se sergianamente de combater a generalização perniciosa justificativa de uma acomodação sentimentalista. Se Oliveira Martins considerou o sebastianismo uma “prova póstuma da nacionalidade”, haveria que compreender que «do que era um fenómeno extravagante ou uma aberração sem lugar no discurso histórico”, nasceu um «mito cultural de ressonância incomparável». O que estaria em causa no caso português era uma “decadência inconformada consigo mesma”, assumida após um momento dramático em que um passado glorioso deu lugar a uma humilhação incompreensível nas areias de Marrocos e depois a uma “Corte na Aldeia”, recriada por Rodrigues Lobo. E assim o sebastianismo tornou-se “o epílogo, e a manifestação mais palpável do espírito nacional”, (…) “embebido na imaginação” e “nutrido pelo conhecimento da decadência nacional e pela recordação e saudades de tempos mais felizes”. O episódio pode comparar-se a uma espécie de cativeiro da Babilónia, visto como um «avatar delirante», mas mais do que isso como símbolo de uma história que alterna momentos gloriosos e decadentes, em que a fatalidade e a vontade se entrecruzam e se alimentam mutuamente. Vinha à memória a analogia entre o messianismo judaico e a ideia nacional de um império futuro. E Eduardo Lourenço liga o mito cultural de Alcácer Quibir a uma «estrutura de ausência», vista como corolário do tempo em que substancialmente perdemos a independência, ainda que juridicamente tal nunca se tenha consumado verdadeiramente na Monarquia Dual, mesmo que o império do Oriente tenha sofrido dramaticamente por força da expansão holandesa. E Portugal fica «ausente de si mesmo e esperando-se nessa ausência». Só quando o Conde Duque de Olivares teve a tentação unificadora peninsular, a revolta tornou-se inexorável, com apoio francês no desenrolar da Guerra dos Trinta Anos. Indagador dos mitos nacionais, Eduardo Lourenço demarca-se das leituras negativistas e fatalistas, considerando, como Oliveira Martins, que a «estrutura de ausência» não podia confundir-se com uma incapacidade de espera. Veja-se como Garrett trata dos temas da ausência e da espera em “Frei Luís de Sousa”. O sebastianismo, como mito, é um sonho e uma vaga esperança messiânica. E neste ponto o ensaísta contemporâneo não pôde deixar de se cruzar com Fernando Pessoa, poeta que pensa no mito como impulso libertador. Estamos perante um «mito», mas não diante de uma ideia transcendente ou religiosa. É o «herói simbólico» que encontramos – na tradição do ciclo bretão, do rei Artur e dos cavaleiros da Távola Redonda (também ele viria de Avalon numa manhã de nevoeiro) ou de Amadis de Gaula. Contra o fatalismo, ressurge a nação como vontade, na expressão de Alexandre Herculano - vontade temperada pela índole coletiva. Sampaio Bruno preferiu procurar uma significação metafísica, Teixeira de Pascoaes ligou o sebastianismo à saudade lusíada (lembrança e desejo, segundo Duarte Nunes do Leão) e Costa Lobo ancorou nas razões históricas as repercussões do cativeiro – desde as Cortes de Tomar (1581) até ao Primeiro de Dezembro de 1640. Eduardo Lourenço, como Sérgio, chega ao século XX e longe de qualquer tentação ilusória, diz-nos que «o Portugal – D. Sebastião de Pessoa é todo-o-mundo-e-ninguém com ele Pessoa – D. Sebastião é ninguém-e-todo-o-mundo, um e outro, a “eterna criança que há de vir”, aquele que morre como particularidade nacional ou pessoal, para ser tudo em todos, exemplo de um mundo e de uma personalidade sem limites nem fim». Lembramo-nos do “Auto da Lusitânia” de Gil Vicente. Deste modo, o autor de «A Nau de Ícaro» faz um retrato fulgurante da mitologia portuguesa, na linha da sua psicanálise mítica do destino português. “Louco, sim, louco, porque quis grandeza / Que a sorte a não dá”… Para o Padre António Vieira o que estaria em causa era um império sobrenatural, capaz de superar os «fumos da Índia» e as fragilidades que conduziram a Alcácer Quibir. «Assim o que começou como um sonho de um Império redivivo termina com Pessoa em Império de sonho».
«Os Naufrágios de Camões» de Mário Cláudio (D. Quixote, 2017) é uma hipótese romanesca que nos obriga a repensar o mito sebastianista e a interrogarmo-nos sobre a figura de Camões.
UM OUTRO CAMÕES Mário Cláudio permitiu-me, entre tantas provas de amizade, conhecer Tiago Veiga e, além do mais, contactar, através dele, com a cultura portuguesa viva – plena de surpresas e de inesperados protagonistas. Quando há uns meses recebi, com amável dedicatória, Os Naufrágios de Camões (D. Quixote, 2017) li-o imediatamente e prometi a mim mesmo aproveitar o mês de Agosto para voltar à prosa, a fim poder gozá-la lentamente, com lápis e caderno de notas, já que me pareceu ser excelente exercício para seguir os passos da complexa investigação imaginada pelo escritor para seu e nosso deleite. Cumpri escrupulosamente o intento. E o livro seguiu-me e seguiram-me Timothy Rassmunsen, neto de Tiago Veiga, Richard Francis Burton, o descobridor das nascentes do Nilo e inesperado camonista, e Ruy, o escrivão de bordo da nau anual da China. Acontece, porém, que para facilitar o exercício, acompanhei com pormenor a preparação da grande viagem deste ano do Centro Nacional de Cultura, “Os Portugueses ao Encontro da sua História” – à Cochinchina e ao Camboja – e, segundo a conjetura romanesca, foi em Phu Quocq, a maior ilha do Vietname, nas proximidades do Mekong, que Luís de Camões deixou o mundo dos vivos… Portanto, tudo se conjugava para tirar o máximo partido desse reencontro com o universo de Tiago Veiga. E, para tornar as coisas mais apetecíveis, uma vez que Mário Cláudio cultiva a necessária ambiguidade entre a ficção e a realidade, foi-me possível, em dado passo do romance, confundir uma diligência real com o meu amigo José Carlos Seabra Pereira com uma consulta literário-filosófica a propósito do clima que perpassa no “Banquete” de Platão e em Camões, confirmando-se que este leu o comentário de Marsílio Ficino sobre a obra do grego. Afinal, estamos sempre a circular da lá para cá e de cá para lá no espelho que nos é dado quando falamos de literatura… E, falando de moderna investigação, está já demonstrado que no Rossio está mesmo D. Pedro IV e não Maximiliano, por causa do colar da Torre e Espada… Enfim, pormenores.
O OUTRO LADO DO SEBASTIANISMO A experiência de Os Naufrágio de Camões é do puro romance, em que a realidade se mistura com a ficção, mesmo sabendo que estamos no domínio do sonho. E o que encontramos? Uma autêntica revisitação do “sebastianismo” – não só porque o próprio Desejado é enganado no decorrer dos acontecimentos do enredo, mas também porque Camões se vê envolvido na ilusão, do mesmo modo que mais tarde D. Sebastião voltaria falsamente à Ericeira ou a Penamacor. Nesta trama é o próprio épico a ser substituído por um biltre, que se apresenta como se fosse o poeta, podendo mesmo (na conjetura discutível mas estimulante) ser autor da parte final do genial poema. De facto, o enredo parte da hipótese de Camões ter morrido no Oriente. Rassmunsen é claro: “estou em crer que um enorme naco de texto, digamos as últimas estâncias do Canto VIII e os Cantos IX e X, ainda por realizar à data da tragédia marítima, não resultam do punho de Luís de Camões, mas são com toda a verosimilhança da lavra do capitão da nau anual da China”. E o cerne do romance parte da ideia de que o poeta morreu no Camboja. E o capitão, Bartolomeu de Castro, oriundo de Ponte da Barca e amigo de Diogo Bernardes, faz-se passar por Camões. Foi recolhido pelos nativos, rumando a Goa, a Malaca, Chaul e à Ilha de Moçambique, dando continuidade ao poema e mandando-o imprimir em 1572. E assim Os Lusíadas participam, como obra referencial, do drama sebástico. Não é só o rei jovem que desaparece nas areias de Alcácer-Quibir, tornando-se reencarnação do Rei Artur, esperado em manhã de nevoeiro, é também o poema imorredouro que sofre a dúvida sobre a sua plena autoria. Mário Cláudio faz, assim, de Os Naufrágios de Camões uma revisitação do mito das conquistas. E quando seguimos as reflexões e as demonstrações de Rassmunsen o que está em causa? De facto, há uma menor fulgurância da escrita da parte final do poema. “Que as imortalidades, que fingia / A antiguidade, que os ilustres ama…”. Esta vulgaridade choca o neto de Veiga (como Aquilino). Bartolomeu de Castro teria míngua de talento e é exemplo do oportunismo mercenário dos “fumos da Índia”. E o romance dá-nos na primeira parte as deambulações testemunhadas pelo próprio autor… O relato é alucinante, envolvendo diligências científicas e pseudocientíficas, espiritismo, estudos sobre textos em língua tâmil, manuscritos em folha de palmeira, budismo, missionação cristã etc. E o fim do desarvorado Rassmunsen é dramático e patético.
A SOMBRA DE UMA SOMBRA Morto o neto de Tiago Veiga a dizer “Não sei quem sou, nem onde e quando estou”, o romancista põe-se na peugada de Richard Burton, ao perceber que era este que Timothy perseguia no final de sua vida transtornada. E chegamos a Dinamene, “Aquela cativa, / que me tem cativo…”, o amor derradeiro de Camões. Compreende-se como o grande épico pôde atrair a figura do explorador inglês, herói atual – pela sua personalidade pioneira, aventureira e moderna. Burton admirava Camões, de quem se considerava quase um émulo, pelo carácter corajoso e culto: “desordeiro e erudito, familiar de alcouces, desabrido no trato e tão pronto a acariciar as coxas de uma nativa de África ou da Ásia, como a mimosear um camarada com dois murros aplicados na fronha”. E num sonho mediúnico, Bartolomeu de Castro, capitão da nau anual da China, é desmascarado: “É tempo de pormos ponto final à falcatrua, as derradeiras estâncias do grande poema foram de facto escritas pelo nosso homem”… Tratava-se da sombra de uma sombra… E é o relato de Ruy que nos dá a chave do mistério. “Embarcámos em Macau na São Lourenço, a nau anual da China, por entre uma vozearia de adeuses, de pilhérias e imprecações, e mirados de longe pelos nativos”. Iam conduzir Luís de Camões à prisão de Goa. O poeta era acompanhado da jovem Dinamene e de Jau, escravo de Java. E há o naufrágio. “A última imagem de que me restaria consciência haveria de ser a do cavername que, emergindo como um Adamastor, se erguia à minha frente enquanto a barca se empinava até desaparecer connosco, ou sem nós, nas tenebrosas goelas da tormenta”. Era na Cochinchina e o padre-pregador Gaspar da Cruz ali passara. Dinamene morreu. Camões não teria resistido. Dele rapidamente se perdeu a memória, segundo “a tradicional desmemória lusitana”. Em Lisboa, na Rua Nova apareceu um vate a recitar versos com uma pala a tapar a vista cega… Descobriu Ruy que era o comandante da nau da China que fazia das suas. Até ameaçara com violência Antónia Braz, já muito velha, antiga amásia do épico… Seguiu então os passos do farsante. O próprio rei D. Sebastião seria levado a ouvir o biltre a recitar o poema roubado. Veio o desastre de Marrocos e Filipe I tornou-se rei. As coisas mudaram e misteriosamente lemos em Os Lusíadas: “Este receberá plácido e brando, / no seu regaço o Canto, que molhado / vem do naufrágio triste e miserando, / dos procelosos baixos escapado” (Canto X, CXXVIII)…