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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CARTAS NOVAS À PRINCESA DE MIM

 

Minha Princesa de mim:  

 

   Eis como vou vivendo esta  Semana Santa: em quarentena que me aproxime de familiares e amigos, e de ti, Princesa de mim, na contemplação de mistérios que, menino e moço, aprendi a guardar em labor de contínua cultura. Também me dá para novamente mergulhar nos labirintos secretos da literatura japonesa, talvez por me desafiarem a repensarsentir o nosso próprio universo. Acontece-me, aliás, ser levado por atalhos de regresso ou de vaivém, como quando autores nipónicos do início do século XX se inspiram em Stendhal ou Flaubert, sem esquecer Anatole France, que um romancista japonês me recordou, e do qual um encontro com Pilatos na leitura da Paixão de Jesus Cristo me fez reler Le Procureur de Judée.

 

   Para quem, como eu, viveu alguns anos no Japão, a leitura de textos históricos e literários, mesmo da Bíblia, ganha, em paralelo  ao seu propósito espiritual, e deste por vezes extravasado, um sabor exótico acentuado pelo próprio ambiente climático e cultural em que tal leitura se vai então fazendo. Jerusalém, a Judeia e a Galileia do tempo de Jesus não têm vida nem história entendíveis sem a perceção de Roma e do seu poder, ao ponto de ser até fácil cair-se na tentação de cotejar duas cidades mediterrânicas tão carismáticas e imaginar algum tribuno romano a reclamar delenda est Jerusalem! , como aliás veio a acontecer com a destruição do Templo no ano 70 D.C. E, por outro lado, também imaginaremos cheiros, alimentos, encontros e ruídos familiares, contrapondo-os à humidade do clima japonês, que o calor estival anualmente torna pesado, sudorífero e silencioso. Quando estamos no campo, sobretudo na montanha pouco habitada, abandonamo-nos a essa atmosfera, entregamo-nos a uma meditação telúrica com a natureza, como se nesta também a transcendência repousasse. Esquecemos a distinção mediterrânica, linear, da luz e da sombra, a verticalidade grega de uma iluminação vinda de cima. E percebemos melhor o porquê de São Francisco Xavier ter desistido de achar na terminologia shintoísta ou budista palavra que dissesse Deus, ao que parece quando descobriu que até a palavra kami  significa os espíritos, mesmo imanentes (como árvores, águas ou rochas) do universo. Por isso os nossos jesuítas optaram pelo nome latino e português de Deus que, em romaji ou caracteres latinos para transcrição fonética do japonês de então, se escreveu Daesu.

 

   A revisão literária "ocidentalizante" que se iniciou na Era Meiji e se prolongou pelos períodos Taisho e Showa, na primeira metade do século XX, trouxe à ribalta das letras nipónicas formas de tratamento dos comportamentos e paixões mais conformes aos cânones das escolas romântica, realista e naturalista europeias. Mas delas se apoderaram sensibilidades japonesas, que lhes trouxeram um gosto mais paciente do pormenor e outra delicadeza e profundidade. Sobretudo, talvez, um pouco mais de penumbra, um jeito mais sombrio de aproximar e contemplar humanos corações e mentes. Algo bem chegado ao mistério essencial da humanidade e do mundo, tal como sentido por imanência. Tenho para mim - reconhecendo todavia tratar-se sobretudo de pessoal sensibilidade - que a espiritualidade japonesa mais próxima da nossa se encontra no ensinamento Zen. Talvez por uma certa mística do vazio como visão. Ou por uma qualquer possível intuição metafísica de Deus que, todavia, no cristianismo se revestiu da humanidade de Pai. Diz o preceito da oração de Jesus: Pai Nosso... O mesmo a que, na agonia humana da morte, o mesmo Jesus interroga: Meu Pai, meu Pai, porque me abandonaste? Como, ao longo de séculos, a todos nós tem acontecido fazê-lo.

 

   Le Procurateur de Judée, a novela histórica de Anatole France que te referi, conheceu várias edições, a primeira em 1902, tendo Leonardo Sciascia, que dela publicara uma tradução para italiano em 1980, escrito um posfácio para a edição francesa de 2005 (Paris, Payot et Rivages) de que seguidamente te verto alguns passos:

 

   Tácito, Anais, Livro III: «Entretanto, em Roma, Lepida que, além da nobreza dos Aemilii, se reclamava da ancestralidade de L. Sila e C. Pompeu, foi acusada de ter fingido dar à luz um filho nascido da sua relação com P. Quirinius, homem rico e sem descendência. Era ainda acusada de adultério, envenenamento, e de ter consultado magos caldeus sobre a família do imperador». Estamos no início da década de 20, depois do nascimento de Cristo, e Tácito narra o caso de Lepida como exemplo da corrupção de que eram então presas as grandes famílias. Na realidade, trata-se de ação movida por um marido, a fim de negar a sua paternidade de um filho que sua mulher, da qual estava separado tinha fingido ter tido. Duplo delito, pois, ao qual, diríamos nós hoje, no decurso da instrução, se acrescentam adultério, tentativa de envenenamento, manigâncias com magos caldeus que prefiguram crime de lesa majestade. Tácito não fala em cúmplices nem corréus. Dezanove séculos mais tarde, Anatole France inventa um: Lucius Aelius Lamia: «Acusado de  manter relações criminais com Lepida, mulher de Suplicius Quirinus...» [há aqui um pequeno engano, esse Quirinus não se chamava Sulpicius, mas Publius] E a partir da condenação ao exílio que fere o adúltero Lamia se desenvolve uma narrativa curta e perfeita, quiçá uma das mais perfeitas do género.

 

   Tal conto é, na opinião de Leonardo Sciascia, e na minha, uma homenagem paradoxalmente subtil e descarada àquilo que terá sido o ceticismo e o espírito de tolerância de Tácito, tal como te lembrarei na próxima carta. Por hoje, em tarde cinzenta e atenta de 4ª. Feira Santa, vou recolher-me na escuta da versão original, para orquestra, das Septem Verba Christi in Cruce, de Joseph Haydn, considerada uma das obras mais representativas da música do Iluminismo, composta por um pedreiro livre sobre palavras dos evangelhos da Paixão de Cristo. Aliás, a única voz humana que se ouve, recitando-as, é de um narrador. Na gravação, que irei acompanhar hoje, de Le Concert des Nations, de Jordi Savall, registam-se também textos de Raimon Panikkar e José Saramago. Pela mão deste interrogarei também a minha fé:  ...E eu respondi-lhe:« Sai da minha frente, Satanás. Impedes-me o caminho porque não entendes as coisas à maneira de Deus, mas à maneira dos homens». ...   ...E agora, Deus Pai, Senhor, uma última pergunta: Quem sou eu? Em verdade, em verdade, quem sou eu?

 

   Estas cartas, afinal, são apenas desabafos. Para nos ajudarem a pensarsentir, juntos, esta Páscoa em confinamento.

 

   Amanhã, voltarei ao que estava a dizer-te...

 

 Camilo Maria 

 

Camilo Martins de Oliveira