Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
1. A morte é o choque mortal com o sentido. Ela é a barreira inultrapassável, definitiva. Significativamente, os antropólogos são unânimes em reconhecer na sepultura, portanto, na consciência da morte e na procura de transcendê-la, o sinal decisivo, indesmentível, de que, na história gigantesca da evolução, estamos em presença do ser humano, de alguém, da pessoa. Essa consciência é sempre acompanhada da religião e, de um modo ou outro, da filosofia, como reconhece a história, de Platão — a filosofia é “o exercício de morrer e estar morto” — a Schopenhauer, que via na morte a “musa da filosofia”, ou Martin Heidegger.
Perante a morte, quando tudo desaba e se afunda, erguem-se, mais dramáticas, esmagadoras, as perguntas essenciais: Donde vimos?, Para onde vamos? Qual o sentido de tudo? O que vale a existência? Perguntas inevitáveis para todos, pois, como dizia Ernst Bloch, no regresso a casa após o funeral de um amigo, nem mesmo o maior capitalista pensa apenas na sua conta no Banco. Aí está a razão por que, para conhecer uma sociedade, talvez mais importante do que saber como é que nela se vive, é saber como é que nela se morre e se trata os mortos. A maior prova do profundo mal-estar da nossa sociedade é que teve de fazer da morte um tabu. As nossas sociedades tecnocientíficas, da competição, do hedonismo, da ausência da religião, para serem o que são, foram as primeiras na História a colocar o seu fundamento sobre a negação da morte. E não se pense que isso acontece porque ela já não é problema. É o contrário: de tal modo é problema, o único problema para o qual uma sociedade que se julgava omnipotente não tem solução que a solução que resta é: Disso não se fala. Mas de uma sociedade que é incapaz de integrar a morte não se pode dizer que está sã. Evidentemente, não se trata de lidar com a morte de forma paralisante — não se pode esquecer que a morte foi muitas vezes utilizada de modo terrífico até pela Igreja, para dominar as consciências —, mas de modo sadio. Para se viver melhor, intensamente, com dignidade, livres, apreciar o milagre estonteante do ser e de ser, um rosto, o mistério do seu olhar... Sem a morte, não haveria ética, pois nunca seríamos obrigados à urgência da decisão: é a tomada de consciência da morte que nos revela o milagre da existência e o valor de cada instante da vida e a sua densidade íntima e definitiva, é ela que nos coloca perante a exigência da “existência autêntica” por oposição à “existência inautêntica”, como reflectiu Martin Heidegger. Em presença da morte, conquistamos a liberdade sem mentira... E é numa existência autêntica, que é uma vida amada e amante, que pode nascer a esperança fundada da Vida que não morre. Nas situações-limite, o Homem é posto em confronto com o apelo e a fé possível no Sentido último, que os crentes invocam como Deus.
2. Andamos frequentemente, talvez a maior parte do tempo, distraídos em relação ao essencial. Mas um dia chega a morte e é o confronto com o abismo sem fundo. “Ai que me roubam o meu eu!”, gritava Unamuno perante a morte. Frente àquele “nunca mais para sempre” neste mundo (Vladimir Jankélévitch), ninguém fica indiferente, tudo estremece. E agora?, e depois?
Se na morte formos engolidos pelo nada, onde está o Sentido último da existência?, que valor tem a distinção entre bem e mal, justo e injusto, digno e indigno?, onde assenta a dignidade do Homem, que é pessoa e não coisa? Se tudo se afunda no nada, já tudo é nada. Que valeram todos os combates, todas as lutas, toda a generosidade, toda a abnegação, todo o amor? O grande filósofo J. G. Fichte perguntava, voltando atrás no tempo: ... os meus tetravós nasceram, cresceram, amaram, tiveram filhos, morreram; os meus trisavós nasceram, cresceram, amaram, tiveram filhos, morreram; os meus bisavós nasceram, cresceram, amaram, tiveram filhos, morreram; os meus avós nasceram, cresceram, amaram, tiveram filhos, morreram... A vida é isto?
O Homem é por natureza o ser do transcendimento: nunca se contenta com o dado e está sempre para lá de si e de toda a meta alcançada. Vive um desnível insuperável entre o que realiza e a aspiração inesgotável a realizar-se sempre mais. Por isso, vai caminhando de sentido em sentido, mas só encontrará satisfação total no Bem Sumo enquanto Sentido de todos os sentidos, isto é, o Sentido definitivo e plenificante. Mas ele não pode realizar por si esse Sentido, que só por graça lhe pode ser dado. A História lê-se do fim para o princípio, de tal modo que só no fim, na morte, poderíamos saber quem somos, mas já lá não estamos. Assim, só Deus, no final, pela graça da plenitude da Vida, nos dirá quem somos e o que somos para Ele e Ele para nós. Esta é a promessa da Vida eterna. “Eu sou a Ressurreição e a Vida”, disse Jesus. “Santa esperança!”, dizia Péguy.
Ludwig Wittgenstein escreveu que “acreditar em Deus significa ver que a vida tem um sentido”. Lá no mais íntimo, os crentes sabem que é assim. E se na hora da morte nos fosse revelado que não há Deus? Não me arrependeria por ter acreditado. Porque, como disse o filósofo A. Valensin, o mal não estaria em nós por termos acreditado, mas em Deus, que, devendo existir, não existe. É uma espécie de argumento ontológico moral, à maneira de Simone Weil, a filósofa mística: não se arrependeria, pois “Deus é o Bem”, que não nos será tirado. E há uma dívida da História para com as vítimas inocentes; sem Deus, quem pagaria essa dívida?
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 6 FEV 2021
Há uma vivência radical que põe o pensamento em sobressalto. Cada um de nós sabe que não esteve sempre no mundo, isto é, que nem sempre existiu e que não existirá sempre. Houve um tempo em que ainda não existíamos, ainda não vivíamos, e haverá um tempo em que já não existiremos, já não viveremos cá, deixaremos de viver neste mundo. Nesta constatação, experienciamos que somos de nós, somos donos de nós — essa é a experiência da liberdade —, mas não nos pertencemos totalmente, não somos a nossa origem nem temos poder pleno sobre o nosso fim. Viemos ao mundo sem nós — ninguém nos perguntou se queríamos vir — e um dia a morte chega e leva-nos pura e simplesmente. Não nos colocámos a nós próprios na existência nem dispomos totalmente do nosso futuro, não somos o nosso fundamento. Aqui, perante a certeza de que nem sempre estive cá e de que não estarei cá para sempre, pois morrerei, ergue-se, enorme, irrecusável, a pergunta: donde vim?, para onde vou?, qual é o sentido da minha existência?, que valor tem a minha vida?
Esta pergunta formula-se em relação a todos os seres humanos, à vida em geral, a toda a realidade.: Porque é que há algo e não nada?, perguntaram Leibniz e Heidegger, entre outros, mas ela diz respeito concretamente a cada um, a cada uma, de modo existencial e tem carácter ao mesmo tempo teórico e prático, uma vez que implica a liberdade. Ela é a pergunta mais originária e fundamental, como bem viu Albert Camus: “Se a vida tem ou não tem sentido, essa é a questão metafísica”. De facto, o ser humano não pode viver sem sentido. Aliás, a existência humana está baseada na convicção do sentido. Há um pré-saber do sentido, de tal modo que a sua própria negação ainda o afirma. No limite, não é possível o “suicídio lógico”, pois quem pegasse numa arma para suicidar-se, porque tudo é absurdo, estava a negar o absurdo e a afirmar o sentido: pelo menos esse gesto tinha sentido...
Assim, quando se fala em sentido da vida, é preciso referir o “ter sentido” — há inteligibilidade e valor no ser —, e o “dar sentido”: comprometer a liberdade na tarefa de realização da existência própria. Dar sentido pressupõe encontrá-lo antes. E fundamentalmente sente a vida como tendo sentido quem vê a sua existência reconhecida.
A nossa vida não tem sentido, quando não vale para ninguém. No entanto, suportamos e superamos sofrimentos e fracassos, se alguém nos reconhece; erguemo-nos outra vez, apesar de tudo, se a nossa vida continua a ter valor para alguém, se alguém nos ama. Então, reciprocamente, a vida tem sentido, quando saímos de nós e nos dedicamos a alguém ou a uma causa. Quem não ama nem é amado sente a vida vazia de sentido, isto é, sem valor, como não valendo a pena. E como pode encontrar sentido quem não tem uma causa que o transcende e pela qual se bate?
O famoso psiquiatra e psicoterapeuta, Viktor Frankl, fundador da logoterapia, mostrou — ele sabia-o por experiência, pois esteve prisioneiro nos campos de concentração nazis — que a experiência mais radical do ser humano é o sentido, razões para viver. Ao contrário do que afirmaram Freud e Adler, no mais fundo de nós não se encontra a exigência de prazer e de poder, respectivamente, mas a vontade de sentido. Claro que o prazer é importante na vida, mas o prazer não garante a felicidade, um dos maiores enganos e ilusões consiste mesmo em confundir a felicidade com a soma de prazeres; concretamente, o prazer erótico, sem amor, sem encontro pessoal de liberdades em corpo, vai definhando e morrendo em frustração pornográfica. O poder pelo poder passeia-se pela vaidade oca de estrelas cadentes e na dominação político-económica arrogante e totalitária, e, depois... o que resta senão a ilusão de grandezas que murcham e se apagam? Ah!, “vaidade das vaidades, tudo é vaidade!”, constata o Eclesiastes.
O paradoxo é este: a felicidade não pode ser buscada por si mesma, pois surge como consequência da realização dos valores e do sentido: é esquecendo-se de si e entregando-se a alguém, no serviço de grandes causas, que os seres humanos verdadeiramente se encontram a si mesmos. Investigadores sociais e psiquiatras não têm dúvida de que o vazio e a frustração existencial são uma das causas maiores dos desequilíbrios psicológicos do Homem contemporâneo. E mostram que a carência de sentido está frequentemente na base da dependência da droga, do alcoolismo, da criminalidade, do suicídio.
E a prova do sofrimento? Em primeiro lugar, até porque muitas vezes a religião sacralizou o sofrimento, como se Deus precisasse do sacrifício dos seres humanos para aplacar a sua ira, é preciso dizer que o sofrimento pelo sofrimento não só não vale nada como deve ser evitado como um mal. Mas é preciso acrescentar com igual veemência, concretamente neste tempo de hedonismo selvagem, que nada de grande, bom e valioso se consegue sem sacrifício. Quem, por exemplo, não está disposto a sofrer pela pessoa amada não ama verdadeiramente. É necessário aprender a alegria de superar obstáculos para atingir objectivos valiosos: já os Gregos associaram sofrer e aprender. Viktor Frankl verificou, concretametnte nos campos de concentração, que sobreviviam aqueles que ainda tinham um sentido para a sua existência: reencontrar a família, realizar uma obra, bater-se por uma causa, lutar por um ideal, proclamar ao mundo: “Nunca mais este horror!” “Dos que pudemos sobreviver só sobriveram os que encontraram sentido para o sofrimento.”
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 30 JAN 2021
1. Quando demos por nós, já lá estávamos, claro, mas ainda sem consciência de estarmos. Foi um tomar consciência lento, gradual. Mas houve um dia, dias, em que se nos impôs ou foi impondo claramente que nos pertencemos, que somos livres, que somos donos e senhores de nós próprios e das nossas acções, com a responsabilidade de nos fazermos a nós mesmos no mundo com os outros. De qualquer forma, percebemos que já somos, mas ainda não somos e temos de escolher o que queremos ser. Abateu-se sobre nós, gigantesca, decisiva, a única tarefa que temos: fazendo o que fazemos ou não fazemos, por acção, por omissão, estamos a fazer-nos e, no fim, resultará uma obra de arte ou uma vergonha...
Assim, torna-se claro que a nossa vida, para se erguer num projecto digno, tem de se ir vendo do presente para o futuro e do futuro para o presente continuado, se se quiser, numa imagem mais visual, tem de ver-se de cá para lá e, por antecipação, de lá para cá. Para que lá, no fim, olhando para trás, não nos arrependamos do que fizemos ou não fizemos, não tenhamos vergonha, não tenhamos pena de não termos feito o que poderíamos fazer e não fizemos. É que — isto é abissal — só vivemos uma vez.
Não se trata de viver apenas em função do futuro, pois é preciso viver intensamente, em todas as dimensões, agora, pois é sempre no presente que vivemos. Mas sem esquecer o futuro. Um dia perguntaram-me qual seria a minha resposta se um jovem me pedisse uma sugestão que o ajudasse a encontrar um sentido para a sua vida. Respondi: “Depende do jovem concreto que me formulasse a pergunta. Mas, de modo genérico, diria: procura responder com dignidade às perguntas e aos desafios que a vida te faz. Mais concretamente: estuda, ama, abre-te generosamente ao mundo e aos outros, alegra-te com o facto de seres jovem e com as possibilidades que te são dadas, não penses exigir colher na vida adulta e na velhice o que não semeaste na juventude.”
2. Evidentemente, não somos totalmente livres. A nossa liberdade é finita, pois estamos enraizados no tempo, em circunstâncias que não dominamos completamente, somos também fruto de uma herança genética, de uma determinada educação, de oportunidades mais favoráveis, menos favoráveis. De qualquer modo, erguemo-nos sempre acima de todas essas circunstâncias e podemos e devemos perguntar: o que é que eu posso e devo fazer com tudo aquilo que me foi dado e com o que a vida fez de mim? Que sentido quero dar à minha existência?
Numa sociedade como a nossa, que põe o acento no prazer, na imagem, no parecer e no aparecer, no consumo voraz, no culto do individualismo, na imediatidade, na sociedade-espectáculo, no “divertir-se até à morte”, a pergunta já não se coloca com a intensidade que exige, e o que então se experiencia é o vazio existencial. Se o sentido é da ordem do ser, é natural que numa sociedade baseada no ter, na corrida vertiginosa por isto e por aquilo, haja dificuldade em encontrá-lo. A nossa sociedade vive essencialmente de sensações e da racionalidade instrumental, de meios para outros meios, faltando, por isso, os verdadeiros fins humanos.
A nossa sociedade vive uma tensão. Por um lado, a competição sem freio, o hedonismo, a agitação do imediato, a ruptura com a tradição, a incapacidade de gerir torrentes de informações e a confluência caótica e contraditória de opiniões e cosmovisões, o relativismo dos valores e das crenças conduzem a uma experiência de vazio, que se exprime no sentimento de cansaço, de abandono, de decadência, na proliferação do tédio, da descrença e da agressividade, na anomia do consumo de drogas e de álcool, no aumento crescente das depressões e dos tranquilizantes, na desorientação, uma situação dramática que clama por outra sociedade e uma atitude diferente face à existência. Por outro lado, parece nem haver tempo para parar e perguntar pelo sentido. Evidentemente, a pandemia agravou a situação, mas obrigou a parar e a pensar.
E quem sabe? Numa sociedade da agitação, do ruído, incapaz de silêncio, na voragem do tempo e da vivência à superfície, sem fundura, longe, muito longe da espiritualidade, de Deus e do essencial, pode acontecer que este retiro forçado, obrigando-nos a parar, nos traga a alegria do reencontro com o melhor: a família, o mistério do Ser e de ser, o milagre de existir e estar vivo. Oxalá: um despertar!
E, para verdadeiramente sermos, o apelo ao regresso à ética. Decisivo é perceber que só encontra sentido quem não se encerra em si mesmo, mas se abre ao mundo e aos outros, corresponsabilizando-se pela configuração da sociedade na justiça, na fraternidade e na paz.
Hoje, tomamos consciência mais clara de que a Humanidade habita numa “pequena aldeia” (Mc Luhan) e de que vimos da natureza por evolução e que ou nos salvamos todos ou ninguém se salva. A nossa solidariedade já não pode, portanto, limitar-se aos mais próximos, somos responsáveis pela Humanidade toda no presente e também pelas gerações futuras e, nessa responsabilidade, tem de estar incluída a Natureza. O actual modelo de desenvolvimento gera simultaneamente a crise ecológica e a injustiça social. Assim, a construção da casa comum da Humanidade exige uma consciência ética — veja-se o elo entre ethos (habitação) e oikos (casa), ligando ética, economia e ecologia —, aliada a um nova proposta político-cultural global, para uma nova ordem económico-ecológica global justa e sustentável, a favor do homem todo e da Humanidade inteira.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 12 DEZ 2020
A presente crise, gigantesca, deveria ser uma oportunidade para pôr de modo mais profundo a questão decisiva do sentido da vida.
Sentido tem a ver com viagem, direcção, meta. Nas estradas, encontramos placas em seta a indicar o caminho para alcançar um destino. Agora, até programamos o GPS que nos levará lá.
Qual é o sentido da vida e a sua meta? Num primeiro momento, a resposta parece clara: a vida é um milagre e o seu sentido é ela mesma. O sentido está nela, no viver plenamente, na criatividade do dar e receber, em plena e total inter-relação.
Mas em nós a vida torna-se consciente. O ser humano é autoconsciente, consciente de si mesmo e, por causa da neotenia — ao contrário dos outros animais, não vimos já feitos ao mundo, mas por fazer, sendo a nossa missão fazermo-nos a nós mesmos, uns com os outros —, a questão do sentido da vida torna-se uma questão pessoal, essencial e inevitável. Não é uma questão adjacente, que possa colocar-se ou não. Ela é constitutiva: ser ser humano é levar consigo esta questão: quem somos?, donde vimos?, para onde vamos?, que devemos fazer?, que sentido dar à existência?
Somos uns com os outros e frente aos outros, mas cada um de nós vive-se a si mesmo como presença de si a si mesmo como um eu único: eu sou eu e não outro. Coincidimos, portanto, connosco, mas, por outro lado, experienciamo-nos como ainda não plenamente idênticos: somos nós mesmos e somos chamados a ser nós mesmos; num apelo constante a fazermo-nos, estamos ainda a caminho de nos tornarmos nós mesmos. Lá está a tarefa paradoxal que nos pertence, segundo Píndaro: “Torna-te no que és.” Precisamente deste paradoxo de sermos e ainda não sermos adequada e plenamente surge a nossa inquietação radical e a pergunta que nos constitui: afinal, o que somos?, quem somos? Uma vez que estamos essencialmente voltados para o futuro, temos de dizer: eu venho de um passado e sou também resultado desse passado, vivo-me no presente, mas eu ainda não sou plenamente, eu ainda não sou o que serei. Cá está, portanto, a pergunta — e o ser humano é radicalmente perguntante, porque é perguntado —, a pergunta radical e ineliminável: então o que é que eu sou e quem sou? E esta pergunta não pode deixar de colocar a pergunta pelo sentido da vida, pois está em conexão com ela: só no processo do viver e do ir-me fazendo poderei ir sabendo quem sou. Mas fazer-me a caminho de quê? Qual é o sentido? Lá estão as inapagáveis perguntas de I. Kant: “Que posso saber? Que devo fazer? O que é que me é permitido esperar?”. E continua: se pudéssemos responder a estas três perguntas, encontraríamos resposta para a quarta, a decisiva: “O que é o Homem?” Afinal, o que somos e quem somos?
O animal, cuja vida é assegurada por instintos, não faz perguntas. O Homem, porque é autoconsciente, inacabado e livre, precisa de saber em que sentido deve orientar a sua existência e quer saber quem é.
Entre todos os seres da Terra, só o Homem é livre — Kant sugeriu que a liberdade é o divino em nós — e, assim, moral e responsável, só ele tem capacidade de racionalidade abstracta, de autoposse, de opção, só ele se sabe sujeito de obrigações morais para lá dos instintos, só ele pode rir e sorrir, só ele é animal simbólico e simbolizante, só ele pode amar, saber e saber que sabe, só ele é capaz de autoconsciência, de linguagem duplamente articulada, de sentido do passado e do futuro, de promessas, de criação e contemplação da beleza, de descida à sua intimidade e subjectividade pessoal, só ele sabe que é mortal e gasta tempo com os mortos e rituais funerários e espera para lá da morte, só ele pergunta e fá-lo ilimitadamente, só ele cria instituições jurídicas, só ele tem de confrontar-se com a questão da transcendência e do Infinito... Precisamente este conjunto de notas mostra que o ser humano é qualitativa e essencialmente distinto dos outros animais, a diferença não é apenas de grau, mas essencial.
Impõe-se agora perguntar: para que tenha as capacidades que tem e faça tudo o que faz, qual é a sua constituição metafísica? Tem de haver um factor X que está na base de todas estas capacidades. Tradicionalmente, chamou-se-lhe alma. Dada a dificuldade, se não impossibilidade, de pensar hoje o dualismo corpo-alma, compreender o Homem para lá desse dualismo, sem cair no monismo idealista nem no reducionismo materialista mecanicista ou biologista, constitui tarefa ingente para a Filosofia. As investigações etológicas, bioquímicas, da genética, das neurociências constituem hoje talvez o maior desafio alguma vez lançado a uma concepção verdadeiramente humanista e espiritualista do Homem, por causa da tentação de reduzir o humano a uma explicação no quadro exclusivo do zoológico e bioquímico. De qualquer forma, ao Homem reflexivo impor-se-á sempre a subjectividade própria: por mais que objective de si, o sujeito humano deparará sempre com o inobjectivável, já que a condição de possibilidade de se conhecer objectivando-se é ele mesmo enquanto sujeito irredutível. Na reflexão, o Homem é o sujeito e o objecto do conhecimento: sujeito que se conhece como objecto, mas sem se reduzir a objecto. Enquanto sujeito transcenderá, portanto, continuamente a explicação das ciências objectivantes. Para aclarar um pouco a dificuldade do tema, costumo dizer: eu não posso ir à janela ver-me a passar na rua.
Quem sou eu? Não sou coisa. O Homem não é mero objecto. Aí está o enigma, o mistério e a dignidade de um eu a caminho.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 28 NOV 2020