Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
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195. DE TUDO QUANTO MUDA, O QUE MENOS MUDA É O SER HUMANO
Quem acreditou e acredita que o progresso material e tecnológico traria e traz consigo toda a panóplia de progressos, entre os quais o moral e ético, e que quanto mais se avançar no futuro as ideias pacíficas progredirão, facilmente conclui que não, se fizer uma viagem minuciosa pelo passado de todas as civilizações.
A condição, o conteúdo e a natureza intrínseca do ser humano permanecem, nem é previsível que se alterem enquanto existirmos, uma vez que os nossos instintos ou sentimentos de ambição, poder, ódio, amor, posse, propriedade, sobrevivência, de defesa, entre outros, sempre existiram e permanecerão.
Podem modificar-se os modos exteriores da sua expressão, os motivos imediatos e métodos usados, adaptando-os e flexibilizando-os consoante as circunstâncias, mas a dimensão específica e essencial do ser humano permanece.
Enquanto o progresso científico e técnico é portador de uma evolução gradativa, progressiva e sucessiva de avanço e inovação, o mesmo não sucede com o tempo cumulativo do desenvolvimento das relações humanas, podendo ser progressivo, regressivo ou repetitivo.
O sermos mais avançados científica e tecnologicamente não nos garante sermos humanamente mais pacíficos e “civilizados”, sendo mais um culto prestado à ciência e à nossa capacidade de invenção e inovação, que não se compadece com realidades permanentes como a guerra, instintos como o ódio, o fanatismo e a luta pelo poder a qualquer preço, a mando de psicopatas, narcisistas, megalomaníacos e maquiavélicos. Que fazer? Desistir? A resposta, por nós, deve ser negativa.
Aceitando que o género humano é imperfeito por natureza, com caraterísticas boas e más (invariáveis ao longo do tempo), há que priorizar as suas qualidades, cultivando-as em prol do bem comum e da dignidade da pessoa humana, dado sermos perfectíveis, apesar da nossa imperfeição, mesmo que cientes de que de tudo quanto muda, somos nós o que menos muda.
Quando olhamos para os horrores do mundo hoje, concretamente para a Ucrânia e o Médio Oriente, é o horror pura e simplesmente, pensando concretamente nas vítimas inocentes. Mas não foi sempre assim? Veja-se Auschwitz. A gente vai lá e fica estarrecido. Bento XVI foi lá também e deixou estas palavras: Há “um silêncio que é um grito interior para Deus: Porque te calaste? Porque quiseste tolerar tudo isto? Onde estava Deus nesses dias? Porque se calou?”
Ele deixou uma encíclica sobre a esperança — Spe salvi —, e nela debruça-se sobre uma pergunta decisiva, “a pergunta fundamental da Filosofia” (Max Horkheimer) : o que podem esperar as incontáveis vítimas inocentes da História? Quem lhes fará justiça? Elas clamam, um grito ensurdecedor percorre a História.
E ergue-se um ateísmo moral precisamente por causa das injustiças do mundo e da História . “Um mundo no qual há tanta injustiça, tanto sofrimento dos inocentes e tanto cinismo do poder, não pode ser obra de um Deus bom”. Quase se poderia dizer que se é ateu ad majorem Dei gloriam, para a maior glória de Deus, como se, perante o horror do mundo, a justificação de Deus fosse não existir. É-se ateu por causa de Deus.
Afastado Deus, deve ser o Homem a estabelecer a justiça no mundo. Mas não será esta uma pretensão arrogante e intrinsecamente falsa? Quem não ouve o eco das palavras de Sófocles: Na terra “há muita coisa terrível, mas nada existe mais terrível do que o Homem.”. Tem, pois, razão Bento XVI, ao acrescentar: “Um mundo que tem de criar a sua justiça por si mesmo é um mundo sem esperança. Ninguém nem nada responde pelo sofrimento dos séculos”.
Aqui, ele lembra a Escola de Frankfurt, nomeadamente Max Horkheimer e Theodor Adorno, que viveram filosoficamente a inconsolável “tristeza metafísica” da impossibilidade de fazer justiça às vítimas da História. De facto, mesmo supondo, no quadro do marxismo e da ideia do progresso moderno, que algum dia fosse possível erguer uma sociedade finalmente justa, transparente e reconciliada, ela não poderia ser feliz, já que ou essa sociedade se lembrava de todas as vítimas do passado, que não participam dela, e seria atravessada pela infelicidade, ou não se interessava por elas e então não era humana, porque insolidária.
Horkheimer e Adorno exprimiram uma filosofia em tenaz: por um lado, não podiam acreditar num Deus justo e bom; por outro, há uma verdade da religião, apesar de todas as suas traições no conluio com o poder e os vencedores: a religião “no bom sentido” é, segundo Horkheimer, “o anelo inesgotável, sustentado contra a realidade fáctica, de que esta mude, que acabe o desterro e chegue a justiça”. Não se trata de um desejo egoísta, mas da esperança contrafáctica de que a realidade dominante da injustiça não tenha a última palavra. Daí, o “anelo do totalmente Outro”, o “anelo da justiça universal cumprida”, “a esperança de que a injustiça que atravessa a História não permaneça, não tenha a última palavra”. E Adorno também escreveu que, frente às aporias da razão, neste domínio, a única filosofia legítima seria “o intento de contemplar todas as coisas como aparecem à luz da redenção”. Embora se não possa afirmar nada para lá da imanência, a pergunta pela esperança truncada das vítimas, que acusam o mundo da história dos vencedores, obriga a pensar para lá dos limites da imanência, colocando a pergunta pelo Absoluto enquanto pergunta pela justiça universal.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 24 de novembro de 2024
Ernst Bloch em 1969. Foto: Brigitte Friedrich/Süddeutsche Zeitung Photo
15. Pensar significa transcender
Houve tempos em que o mês de Novembro era dedicado aos mortos e à meditação sobre a morte. Isso hoje não acontece nem se permite que aconteça. Vivemos realmente em sociedades que fizeram da morte tabu, o último tabu. Na realidade, se tradicionalmente tabu era o sexo, hoje o sexo está às escâncaras por toda a parte. E vivemos em sociedades do ter, do consumir, da corrupção, do imediatismo, submersos a dedar na alienação das redes sociais, numa correria louca não se sabe para onde, enfim, no niilismo... E aí estão as depressões, os suicídios, o vazio ameaçador da falta de sentido...
Nunca fui de modo nenhum favorável ao pensamento mórbido da morte, que envenena a vida com o medo e o terror, usados também muitas vezes pela Igreja para aterrorizar as consciências e exercer o poder.
Quero um pensamento sadio da morte por causa da vida. Conscientes do limite, viver intensamente. Quando? Agora. E com dignidade e fazendo de nós e da sociedade o que verdadeiramente queremos. Com tempo e a tempo... Ai!, como o pensamento sadio da morte acabaria com tanta vaidade oca e toda a procissão de ilusões, boçalidades, malquerenças...
Aqui, na perplexidade, lembro sempre o filósofo ateu religioso, Ernst Bloch, o filósofo da esperança com quem tive o privilégio de conversar. O núcleo do seu pensamento encontra-se na obra O princípio esperança, com a enciclopédia de todas as esperanças. Para ele, “o importante é aprender a esperar”, mas sem ilusões. De facto, por mais longe que se vá na erradicação dos males que nos afligem, ficará sempre a morte.
Não acreditava em Deus, mas, “onde há esperança, há religião”. Na juventude, admitiu a reencarnação. Na maturidade, teorizou sobre “o núcleo do Humanum extraterritorial à morte”. Lá está: “por dignidade pessoal nego-me a que o Homem acabe como o gado”; “a desesperança é em si, tanto em sentido temporal como objectivo, o insustentável, o insuportável em todos os sentidos” e “não me resigno a que a última melodia que escutarei sejam as pazadas de terra despejadas sobre os meus despojos”.
O teólogo J. Moltmann contou-me que, poucos dias antes da morte, lhe perguntou como reagia a este desafio, tendo ele respondido: “estou curioso” – note-se, porém, a força da palavra alemã “neugierig”, com o sentido de ansioso por novidades. Moltmann também escreveu que “na véspera de morrer, ao entardecer, ele escutou mais uma vez a sua música mais querida, a abertura de Fidelio, de Beethoven, com o sinal das trombetas para a libertação dos cativos no final”. Essa passagem, que associava à Primeira Carta de São Paulo aos Tessalonicenses, 13, 16: “quando for dado o sinal, à voz do arcanjo e ao som da trombeta de Deus, o mesmo Senhor descerá dos céus e os que morreram em Cristo ressuscitarão primeiro”, sempre o comovera. É que, como escreveu, “em Beethoven, pré-anuncia-se a chegada de um Messias. Erguem-se desde as masmorras sons de liberdade e de recordação utópica. O grande momento chegou, a estrela da esperança cumprida no aqui e agora.” A mim também me confessou o que também escreveu: “o cristianismo venceu em grande parte graças à proclamação de Cristo: ‘Eu sou a Ressurreição e a Vida’”.
A última vez que fui a Tubinga, passei pelo cemitério para uma homenagem. O que estava escrito na lápide tumular: “Denken heisst Überschreiten” (Pensar significa transcender).
Aí está o que mais faz falta nas nossas sociedades: Pensar.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 17 de novembro de 2024
Conta-se que um dia um padre entrou na igreja e viu Deus a rezar. Terrivelmente perplexo, perguntava a si mesmo a quem é que Deus poderia rezar. Aproximou-se, e constatou, com espanto, que, Deus rezava ao homem: "Homem, se existes, mostra-te, aparece!" Mas Deus, o criador, devia saber que o homem existe -- como é que perguntava por ele?! De qualquer modo, daí para diante, o padre anunciava por toda a parte que Deus existe: ele próprio tinha-o visto a rezar ao homem, a perguntar por ele...
Nesta história — ingénua? —, está presente aquela urgência em que consiste a questão de Deus, que Eduardo Lourenço traduziu assim: "Deus? O problema é saber se nós existimos para Deus."
Afinal, porque é que perguntaríamos por Deus, se ele não estivesse presente em nós? Como é que o procuraríamos, se, como explicitaram concretamente Santo Agostinho e Pascal, o não tivéssemos já encontrado?
Deus está presente, pelo menos como questão aberta, essencialmente na pergunta irrecusável pelo sentido último. A existência humana é uma caminhada de sentido em sentido: tem sentido crescer e aumentar os conhecimentos, tem sentido casar, formar família, ter filhos, educá-los, procurar uma realização profissional, tem sentido bater-se pela justiça, festejar, fazer investigação para aprofundar a compreensão do mundo e transformá-lo, sacrificar-se pela edificação de uma sociedade mais justa e feliz... Mas, se, no fim, pela morte, tudo desembocasse no nada, então, em última análise, tudo apareceria sem sentido, precisamente porque a vida é essa caminhada de sentido em sentido, à procura do Sentido último, e, no final, era o nada. Precisamente esse nada é intolerável.
O carácter insuportável desse nada, do acabar no nada, do nunca mais ser para todo o sempre, adquire intensidade dramaticamente maciça na morte do amigo. Por um lado, olha-se para aquele resto cadavérico e tem-se consciência de que o amigo está real e totalmente morto — é uma naturalidade evidente morrer e estar morto. Por outro, o amigo não é, não pode ser, aquele resto. Mas então onde está, para onde foi? Como é que partiu sem deixar endereço? E fica-se atordoado, é como se o mundo nos caísse em cima ou caíssemos nós num abismo — o pensamento desfaz-se de parede contra parede, a fonte das palavras fica absolutamente seca, e é um vazio sem fim...
A morte de alguém é sempre o fim de um mundo, a morte de um amigo é irreparável. Com a morte do amigo, a nossa própria morte faz a sua entrada no mais profundo de nós mesmos. Como escreveu Santo Agostinho, "admirava-me de viverem os outros mortais, quando tinha morrido aquele que eu amava, como se ele não houvesse de morrer! E, sendo eu outro ele, mais me admirava de eu viver, estando ele morto." E aí ergueu-se gigantesca, assombrosa e inevitável a pergunta essencial: "factus eram ipse mihi magna quaestio — tinha-me tornado para mim próprio uma questão enorme."
Decisivo é não abandonar a pergunta até ao fim e ao fundo. É que, como escreveu Theodor Adorno, fundador da Escola Crítica de Frankfurt, agnóstico, “o pensamento que não se decapita desemboca na Transcendência”. E como escreveu Max Horkheimer, outro fundador da Escola de Frankfurt, "é impossível salvar um sentido absoluto sem Deus" e, por isso, a religião está em conexão com "o anelo de que esta existência terrena não seja absoluta", de que o sofrimento e a morte "não sejam o último."
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 10 de novembro de 2024
Apesar de a morte hoje se ter tornado tabu, muitos nestes dias passaram pelos cemitérios. E a pergunta é: Que foram lá fazer? Quando alguém está concentrado num cemitério perante a campa de um familiar, de um amigo, está a olhar para onde?, e o que é que vê realmente?
Há talvez algumas imagens entrecortadas que lhe passam de modo fugaz pela mente. Mas, quando olha, verdadeiramente absorto, embora talvez com os olhos muito abertos para ver, o que realmente lhe aparece é simplesmente e só um abismo sem fundo e sem fim, um vazio ilimitadamente aberto...
Mas olhar e ver um abismo sem fundo e sem fim e um vazio ilimitadamente aberto, isto é, não ver nada, é o que propriamente se chama ver o Mistério.
Quando se vai ao cemitério visitar a campa de um familiar, de um amigo, presta-se uma homenagem, faz-se uma romagem de saudade... É isso: de saudade, no sentido mais fundo da palavra, dito na própria etimologia: a saudade refere-se a uma ausência sem nome e sem fim, que nos faz sentir a solidão (solitate) que nos dói; se o étimo for salutem dare (saudar), então trata-se de uma saudação, com o desejo de que quem partiu esteja bem. Aí, no recolhimento mais intenso, pode erguer-se, sem palavras, uma súplica, um soluço, como forma de tentar balbuciar o Mistério indizível...
A morte é o mistério pura e simplesmente... Perante ela e tudo o que se lhe refere, é como se caíssemos num precipício, onde se estilhaça a capacidade de pensar... Ninguém sabe o que é morrer. Que instante é esse o da morte, mediante o qual se deixa de pertencer ao mundo e ao tempo? Mesmo que assistamos à morte de alguém é de fora que o fazemos... Ninguém sabe o que é estar morto. Diante do cadáver do pai, da mãe, do filho, do amigo, do marido, da mulher, não tem sentido dizer: o meu pai está aqui morto, a minha mãe está aqui morta, o meu amigo está aqui morto, o meu marido está aqui morto, a minha mulher está aqui morta... De facto, eles não estão ali... Também é por pura ilusão de linguagem que dizemos que levamos o pai ou a mãe ou o filho ou o amigo ou a mulher ou o marido à sua última morada... Como não podemos dizer, quando vamos ao cemitério, que os vamos visitar... Nos cemitérios, com excepção dos vivos que lá vão, não há ninguém.
Pergunta-se então: Porque é que é um crime nefando em todas as culturas e sociedades a violação de um cemitério, se lá não há ninguém? Afinal o que é que está nos cemitérios?
Nos cemitérios, o que há é uma incontível e inapagável interrogação: o que é o Homem, o que é ser ser humano? O que há nos cemitérios é a afirmação de que, seja como for, a antropologia não é redutível a um simples capítulo da zoologia...
Afinal, para onde foram os mortos? Não será que, como acontece nas guerras, andam perdidos, mas um dia havemos de encontrá-los e encontrar-nos? Para onde vão os mortos? Para o nada? Mas, como perguntava o filósofo Bernhard Welte, que nada é esse? O nada vazio e nulo ou o nada enquanto véu que oculta a realidade verdadeira, como quando entramos num espaço de breu e dizemos: aqui, não vejo nada, o que não significa que lá não haja nada, pois pode até acontecer que lá se encontre o tesouro maior?... Para onde vão os mortos? Para a noite total ou, pelo contrário, para a luz plena, de tal modo luz que para nós é noite, como quando, olhando para o sol de frente, ficamos cegos pelo excesso de luz? No final, está a esperança.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 3 de novembro de 2024
É soberanamente estranho e enigmático o significado de dizer "eu". Só cada um, cada uma, o pode dizer de si mesmo, de si mesma, com sentido único e irrepetível. Ninguém pode dizer "eu" na vez de outro. Precisamente por isso, ninguém sabe o que é exactamente ser outro, outro eu, ninguém pode viver-se plenamente a partir de dentro de outro, ninguém pode conceber o mundo visto pelo outro, por outro eu. O outro - outro eu, mas sobretudo e sempre um eu outro - é irredutível. É absolutamente fascinante perguntar-se a si próprio: como será o mundo a partir dali, daquele olhar, daquele olhar do outro - olhar não apenas externo, mas interior? Como é que ele, ela, me vê? O que se passará nele, nela, dentro dele, dela, quando me vê, quando me observa, quando pensa em mim, quando diz que me ama? Se nos fosse possível ir lá dentro!... O que é que aconteceu para que o bebé, que começa por parecer um "embrulhinho" (perdoe-se a expressão terna), inicie um processo de dizer-se, que vai do neutro - o menino, a menina, o Kico, a Rita... - até ao soberano eu, donde tudo parece partir para tudo dominar?
Mas não é apenas o eu do outro que é enigmático. O meu próprio eu é enigma para mim. Quando tentamos ver-nos a nós próprios à distância, em miúdos, quando andávamos na escola, por exemplo, ao dar connosco, sabemos que somos nós, mas ao mesmo tempo vemo-nos de fora: somos os mesmos, mas de outro modo. Até no presente, por mais que objective de mim, há sempre um reduto último - parte da subjectividade - que resiste à objectivação, não havendo nunca coincidência entre o eu objectivo e o eu subjectivo. Vejo-me, sem ver-me adequadamente, de tal maneira que, na medida em que procuro mergulhar até à ultimidade de mim, é como se desaparecesse no nada. Também por isso, David Hume negou a existência do eu: quando me vejo por dentro, o que encontro é apenas uma série de vivências, mas nunca o eu, que não passa precisamente de um feixe de vivências. Não perguntava Pascal em que parte do corpo é que se encontraria o eu? Aliás, já certas correntes do budismo se tinham referido ao eu como ilusão, e o exemplo que se dá é o de uma cebola a que se vai tirando as camadas sucessivas, sem que reste um núcleo duro: da desconstrução da unidade pessoal não permanece um sujeito.
Mas a interpretação também pode seguir outro caminho. Descendo até ao abismo de mim, aquele aparente nada com que deparo é o véu de mim enquanto inobjectivável, isto é, enquanto pessoa e não coisa. Precisamente aí - no eu irredutível - posso encontrar-me com o mistério do Deus criador. É com esse milagre do eu enquanto pessoa, fim e não meio para nada nem para ninguém, que se defrontam, por exemplo, os pais, no encontro com o filho, como escreveu o filósofo Julián Marías: "A realidade psicofísica do filho - corpo, funções biológicas, psiquismo, carácter, etc. - 'deriva' da dos pais, e neste sentido é 'redutível' a ela. Mas o filho que é e diz 'eu' é absolutamente irredutível ao eu do pai bem como ao da mãe, igualmente irredutíveis, é claro, entre si. Não tem o menor sentido controlável dizer que 'vem' deles, pois eu não posso vir de outro eu, já que este é um 'tu' irredutível. Neste sentido, a criação pessoal é evidente. Isto é, o aparecimento da pessoa - de uma pessoa - enquanto tal é o modelo daquilo que realmente entendemos por criação: a iluminação de uma realidade nova e intrinsecamente irredutível".
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 26 de outubro de 2024
Mas afinal quem é o autor das minhas acções? "Nestes tempos de debates fundamentais à volta da Inteligência Artificial, a questão decisiva é se algum dia teremos uma explicação científica da consciência. Mais: se haverá máquinas com consciência." Foto: Igor Martins / Global Imagens
11. Máquinas com consciência?
O que diz alguém, quando diz “eu”? Afirma-se a si mesmo como sujeito, autor das suas acções conscientes, centro pessoal responsável por elas, alguém referido a si mesmo, na abertura e em contraposição a tudo.
Mas há observações perturbadoras. Por exemplo, pode acontecer que alguém adulto, ao olhar para si em miúdo, se veja de fora, apontando como que para um outro: aquele era eu, sou eu?
Há filósofos que se referem à ilusão do eu. Certas interpretações do budismo caminham nesta direcção. No quadro da impermanência e da interdependência de todas as coisas, fala-se da inexistência do eu, do não-eu. Matthieu Ricard, investigador em genética celular e monge budista, deu-me, há anos, num congresso no Porto, um exemplo: veja ali o rio Douro. O que é o rio Douro? Onde está o rio Douro? Ele não existe como substância, pois não há senão uma corrente de água. Está a ver a consciência? O que é ela senão um fluxo permanente de pensamentos fugazes, de vivências? O eu não passa de um nome para designar um continuum, como nomeamos um rio.
Mas há a experiência vivida e inexpugnável do eu, ainda que numa identidade em transformação, que continuamente se faz, desfaz e refaz. O que se passa é que, não se tratando de uma realidade coisista, é inobjectivável e inapreensível.
É e será sempre enigmático como aparecem no mundo corpóreo o eu e a consciência. É claro que o eu não pode ser pensado à maneira de uma alma, um homunculus, um observador dentro do corpo – o fantasma dentro da máquina. Há, portanto, uma correlação entre a consciência e os processos cerebrais. Mas significa isto que essa correlação é de causalidade, de tal modo que haverá um dia uma explicação neuronal adequada para os estados espirituais? Ou, como já viu Leibniz e é acentuado pelo filósofo Th. Nagel, mesmo que, por exemplo, tivéssemos todos os conhecimentos científicos sobre os processos neuronais de um morcego, não saberíamos o que é o mundo a partir do seu ponto de vista? A questão é: como se passa de acontecimentos eléctricos e químicos no cérebro – processos neuronais da ordem da terceira pessoa – para a experiência subjectiva na primeira pessoa?
Apesar de se não afastar por princípio a possibilidade de se poder vir a dar essa compreensão, o filósofo Colin McGinn pensa que talvez nunca venhamos a entender como é que a consciência surge num mundo corporal, a partir de processos físicos. Também o neurocientista W. Prinz disse numa entrevista: “Os biólogos podem explicar como funcionam a química e a física do cérebro. Mas até agora ninguém sabe como se chega à experiência do eu nem como é que o cérebro é capaz de gerar significados.”
E sou livre ou não? É claro que, como escreve o filósofo M. Pauen, se as nossas actividades espirituais se identificassem com processos cerebrais, segundo leis naturais, já se não poderia falar em liberdade – “as nossas acções seriam determinadas não por nós, mas por aquelas leis.”
Mas, afinal, quem age, quem é o autor das minhas acções: o meu cérebro ou eu? “Como não é a minha mão, mas eu, quem esbofeteia esta ou aquela pessoa, não é o meu cérebro, mas eu, quem decide. O facto de eu pensar com o cérebro não significa que seja o cérebro, e não eu, quem pensa”, escreveu o filósofo Th. Buchheim.
Neste domínio, nestes tempos de debates fundamentais à volta da Inteligência Artificial, a questão decisiva é se algum dia teremos uma explicação científica da consciência. Mais: se haverá máquinas com consciência. O físico Carlos Fiolhais, apresentou recentemente num dos seus escritos semanais no Correio da Manhã precisamente à volta da Inteligência Artificial uma famosa aposta precisamente sobre a consciência:
“Em 1994, em Tucson, nos Estados Unidos, realizou-se uma conferência intitulada “Em direcção a uma base científica da consciência.” O neurocientista Christof Koch defendeu aí que a consciência tinha uma base física: dar-se-iam disparos síncronos de neurónios 40 vezes por segundo. O filósofo David Chalmers retorquiu, dizendo que era impossível descrever a consciência por um fenómeno físico. Chamou ao entendimento da consciência “o problema difícil”.
Passados quatro anos, os dois reencontraram-se e, mantendo as suas posições, fizeram uma aposta: o primeiro apostou com o segundo uma caixa de garrafas de vinho que, nos próximos 25 anos, os cientistas iam descobrir um comportamento neuronal claramente responsável pela noção do “eu”.
Numa reunião da Associação para o Estudo Científico da Consciência realizada em Nova Iorque em fins de Junho passado, os dois voltaram a encontrar-se. O antigo modelo de Koch estava ultrapassado, havendo outros em contenda. Mas nenhum deles era claro, dando uma resposta inequívoca, disse Chalmers.
O neurologista teve de admitir: “É claro que as coisas não são claras.” E foi buscar uma caixa de garrafas de vinho português, no qual se destacava uma de Madeira antigo.
O perdedor, pretendendo desforrar-se, propôs que repetissem a aposta: apostou que daqui a mais 25 anos o assunto estará finalmente claro. Chalmers aceitou com um sorriso.”
E Carlos Fiolhais, com o seu humor: “Os cientistas gostam de fazer apostas. Mas é por saber que os cientistas perdem apostas que sigo um precioso conselho da minha avó: “teima, teima, mas nunca apostes.” E acrescenta: “Estou em crer que as máquinas só terão consciência no Dia de São Nunca.”
Tenho a mesma opinião.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 19 de outubro de 2024
O senhor Elliot fora operado a um tumor. Embora a operação tenha sido considerada um êxito, depois dela as pessoas começaram a dizer que o senhor Elliot já não era o mesmo -- sofrera uma mudança de personalidade drástica. Outrora um advogado de sucesso, o senhor Elliot tornou-se incapaz de manter um emprego. A mulher deixou-o. Tendo desbaratado as suas poupanças, viu-se forçado a viver no quarto de hóspedes em casa de um irmão. Havia algo de estranho em todo este caso. De facto, intelectualmente continuava tão brilhante como antes, mas fazia um péssimo uso do seu tempo. As censuras não produziam o mínimo efeito. Foi despedido de uma série de empregos. Embora aturados testes intelectuais nada tivessem encontrado de errado com as suas faculdades mentais, mesmo assim foi procurar um neurologista. António Damásio, o neurologista que Elliot consultou, notou a falta de um elemento no reportório mental de Elliot: ainda que tudo estivesse certo com a sua lógica, memória, atenção e outras faculdades cognitivas, Elliot parecia não ter praticamente sentimentos em relação a tudo o que lhe acontecera. Sobretudo era capaz de narrar os trágicos acontecimentos da sua vida de uma forma perfeitamente desapaixonada. Damásio ficou mais impressionado do que o próprio Elliot. – A origem desta inconsciência emocional, concluiu Damásio, fora que a cirurgia da remoção do tumor cortara as ligações entre os centros inferiores do cérebro emocional e as capacidades de pensamento do neocórtex. O pensamento de Elliot tornara-se igual ao de um computador: totalmente desapaixonado.
Citei livremente Daniel Goleman em Inteligência Emocional. Afinal, o ser humano não é redutível à lógica.
No que se refere à moral, Max Horkheimer, um dos fundadores da Escola Crítica de Frankfurt, deixou escrito que não é possível fundamentar a moral de um modo exclusivamente lógico. Isso foi visto também por Herbert Marcuse. Já no hospital, confessou ao seu amigo Jürgen Habermas: "Vês? Agora sei em que é que se fundamentam os nossos juízos de valor mais elementares: na compaixão".
Juntamente com Espinosa, terá sido Hegel que levou mais longe o racionalismo: "o que é racional é real; e o que é real é racional", escreveu. Mas Ernst Bloch objectou que o processo do mundo não pode desenrolar-se a partir do logos puro. Na raiz do mundo tem de estar um intensivo da ordem do querer. Bloch, como também Nietzsche e Freud, foi beber a Schopenhauer. Este foi um filósofo que sublinhou do modo mais intenso que, na sua ultimidade, a realidade não é racional, pois há uma força que tem o predomínio sobre os planos e juízos da razão: a vontade.
Aí está um dos motivos fundamentais por que, na tentativa da explicação dos fenómenos humanos, a nível individual e social, temos sempre a sensação de que há uma falha no encadeamento das razões. No ser humano, há a pulsão e o lógico, o afecto e o pensamento, a emoção e o cálculo, o impulso e a razão. O próprio cérebro, que forma certamente um todo holístico, tem três níveis; Paul D. Mac Lean fala dos três cérebros integrados num, mas também em conflito: o paleocéfalo, o cérebro arcaico, reptiliano, o mesocéfalo, o cérebro da afectividade, e o córtex com o neo-córtex, em conexão com as capacidades lógicas. A luz racional é afinal apenas uma ponta num imenso oceano. Por isso, não só não conseguimos uma harmonia permanente como é necessário estar constantemente de sobreaviso contra a ameaça de descalabros e catástrofes mortais.
Por outro lado, porque o ser humano não é redutível à lógica computacional, é capaz de criações artísticas divinas, do amor gratuito, do luxo generoso, da música — a música, “arte ‘pura’ por excelência”, “a mais ‘mística’, a mais ‘espiritual’ das artes é talvez simplesmente a mais corporal”, como escreveu Pierre Bourdieu, e que não é preciso compreender para ficar emocionado e extasiado. Perante uma orquestra, com instrumentos de sopro, de percussão, de corda..., assistimos a uma sinfonia que nos atira para um lugar onde nunca estivemos, mas onde quereríamos ficar sempre e um tempo sem tempo numa experiência de êxtase de eternidade...
Neste contexto, vem-me à memória uma história de há muitos anos. Naquela manhã, estacionei o carro. Um jovem encostou-se imediatamente para a moedinha da praxe. À noite, de regresso, saí do comboio e dirigi-me ao carro. O jovem da manhã apressou-se. Saudei-o: - Como foi o dia, senhor João? - Sabe o meu nome? Como é que sabe o meu nome? - Foi o senhor que mo disse esta manhã. - E não se esqueceu do meu nome? Ainda se lembra do meu nome? - Como vê, senhor João. - Nunca vou deixar que algum filho da p... lhe faça mal ao carro.
Aquele jovem já trôpego e caído teve um assomo de alegria e de quase redenção. Pela razão simples de ser tratado como gente, de alguém se lembrar dele e o tratar pelo nome.
Mas também, mais uma vez, concluí: Não basta a bondade, uma bondade cega, o sentimento em bruto. A bondade tem de ser inteligente. Viemos ao mundo por fazer e, livres, a única tarefa que temos é fazermo-nos: fazendo o que fazemos, uns com os outros, estamos a fazer-nos. E isso exige a bondade e a inteligência entrecruzadas. De facto, a bondade sem a inteligência não abre caminhos novos e pode até causar imensos estragos; a inteligência sem a bondade pode tornar-se cruel e fazer um sem-número de vítimas. Como está à vista.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 12 de outubro de 2024
Do pior que há são os repetidores, os que não ousam pensar o novo e o diferente, os que, no fundo, não passam de ruminantes na vida intelectual.
Pedro Laín Entralgo, com quem tive o privilégio de falar várias vezes e que morreu em 2001, considerado um dos pensadores maiores da Espanha do século XX, cientista, filósofo, humanista cristão, não teve medo de pensar de modo novo, ir mais longe, confrontar-se com as dúvidas, questionar. Fê-lo concretamente no domínio da antropologia. Depois de rejeitar tanto o monismo materialista como o dualismo corpo-alma, para pensar o Homem na sua singularidade procurou um terceiro caminho, que deu lugar ao que chamou uma "antropologia integradora", "cosmológica, dinâmica e evolutiva", que viu a sua expressão brilhante, intensamente original e acessível no livro que escreveu aos 90 anos, dois anos antes da morte, síntese madura de uma extensa obra e aturada e longa reflexão, traduzido para português: O que é o Homem. Evolução e sentido da vida. Como crente sincero e intelectual honesto e exigente, quer, sem precisar de uma alma espiritual nem de uma intervenção divina especial, mostrar a compatibilidade entre as duas afirmações cristãs essenciais sobre o Homem -- criado à imagem e semelhança de Deus e titular de uma vida que não morre com a morte -- e a concepção actual das ciências: o Homem como resultado da evolução do cosmos.
Recusa o dualismo. De facto, se o Homem fosse um composto de corpo e alma, seria preciso perguntar, por exemplo, se os pais, que apenas teriam dado origem ao corpo -- a alma viria "de fora" --, ainda são verdadeiramente pais dos seus filhos. Dada a realidade dos gémeos monozigóticos, que se formam pela divisão de um embrião, seria preciso perguntar se uma "alma" se divide em duas. Há ainda uma pergunta fundamental e decisiva: como é que um espírito finito pode agir sobre a matéria e vice-versa?
A recusa do dualismo não significa, porém, queda no materialismo vulgar. De facto, o monismo materialista, concretamente tal como foi entendido no século XIX, não dá conta da dignidade humana. Quem reduz o espírito humano e o eu a processos físicos e químicos no cérebro terá de responder à seguinte pergunta: como é que processos objectivos na terceira pessoa se transformam numa experiência subjectiva de um eu pessoal que se vive interiormente como único, como pessoa e não como coisa? Se a vida espiritual se identificasse com processos físicos e químicos, então seriam eles a decidir as minhas acções, de tal modo que se deveria concluir que não sou responsável pelo que faço. Isto significa que, apesar do valor das investigações neurobiológicas e dos avanços progressivos neste domínio, não será exagerado afirmar que a autoconsciência e o eu manterão uma reserva de insondável e incompreensível para a ciência objectivante.
Segundo Pedro Laín Entralgo, Deus cria através do dinamismo cósmico evolutivo. O dinamismo radical evolutivo em que o Cosmos consiste vai-se actualizando e configurando progressivamente em estruturas materiais cada vez mais complexas, de tal modo que surgem propriedades estruturais ou sistemáticas emergentes autenticamente novas, inéditas, que não eram previsíveis e que são irredutíveis. O Homem na sua singularidade é dinamismo cósmico humanamente estruturado, e nele o Todo do Cosmos enquanto natura naturans (natureza naturante) toma consciência de si, nada impedindo pensar que haja noutras paragens do Universo outros seres pensantes e conscientes e que o próprio homem actual possa ser o predecessor do Homo supersapiens.
Característica constitutiva do ser humano no processo de realizar-se é a esperança. Segundo Laín Entralgo, a esperança tem dois modos complementares: a esperança do concreto (o hábito de confiar que os projectos parciais se irão realizando bem) e a esperança do fundamental (o hábito de confiar — a confiança não é certeza — que a realização da existência pessoal será exitosa). Por sua vez, esta esperança do fundamental, que é a “esperança genuína”, assume dois modos, que não se excluem: a esperança terrena e histórica e a esperança meta-terrena e trans-histórica. Esta é própria dos crentes numa religião que afirma confiadamente a vida em Deus. Aí encontrará finalmente, como viu Santo Agostinho, aquela plenitude por que aspira na tensão constitutiva entre a sua radical finitude — não esquecer a constatação que já aqui transcrevi: “inter faeces et urinam nascimur”: nascemos entre as fezes e a urina — e a ânsia de Infinito: “o nosso coração está inquieto enquanto não repousar em ti, ó Deus”.
É claro que, na concepção do Homem segundo Laín, torna-se mais enigmática a imortalidade pessoal, pois a estrutura pessoal humana não pode sobreviver naturalmente à desagregação das subestruturas nela incorporadas. Por isso, alguns crêem que na morte o Homem se desfaz na aniquilação. A fé cristã, ao contrário — e Laín acreditava — , convida a esperar, num acto de confiança radical racional, que a morte é a passagem, por dom misterioso e gratuito de Deus, a um modo de existência absolutamente inimaginável e insondável, para lá do espaço e do tempo cósmicos. O grande filósofo jesuíta José Gómez Caffarena perguntava com honradez intelectual: "em qualquer concepção, não terá que ser inimaginável e misteriosa a resposta com que o crente, na peculiar certeza da sua fé, se atreve a ir para lá do Cosmos?"
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 5 de outubro de 2024
A antropologia, o estudo do Homem, é uma tarefa sem fim. De facto, o ser humano não pode definir-se de uma vez por todas. Nem sequer há definição possível, pois ele é uma abertura ilimitada: por mais que diga de si nunca se diz plena e adequadamente.
A pergunta pelo Homem convoca todas as disciplinas. Não é ele, de facto, como bem viram Aristóteles e São Tomás de Aquino, de algum modo todas as coisas? Quando questionamos: "O que é que eu sou?, quem sou eu?", é necessário apelar para o concurso das ciências da natureza, da cosmologia, da física, da química, da paleontologia, da embriologia, da neurologia, da etologia, da medicina, da linguística, da sociologia, da sociobiologia, da história, das artes, da economia, das ciências políticas e jurídicas, da filosofia, da teologia...
O meu ilustre amigo, Juan Masiá, professor na Universidade Sophia, em Tóquio, apresentou a questão numa bela síntese. Pode-se tentar uma Antropologia Filosófica partindo de algumas afirmações de base. Assim:
Eu sou eu a partir da natureza, mas precisamente deste modo: provenho da natureza, mas transcendo a natureza: em mim, a natureza e a sua história sabem de si. Impõe-se, pois, o diálogo com as ciências da natureza e as filosofias personalistas.
Eu sou eu na minha circunstância (Ortega y Gasset). Portanto, eu sou no mundo, eu sou espácio-temporalmente, ao mesmo tempo que transcendo e tento sempre transcender o espaço e o tempo. Neste âmbito, são imprescindíveis os contributos das antropologias culturais, da sociologia, das psicologias evolutivas, da história, da linguística.
Eu sou eu a partir do meu corpo, mas de tal modo que nunca sei adequadamente quem sou. Como é que de um corpo acabado de nascer vai emergindo um eu, como é que o corpo se faz um sujeito que vai lentamente tomando consciência de si? Neste quadro, dialoga-se com as antropologias biológicas, com as fenomenologias existenciais.
Eu sou eu a partir de mim e perante a realidade. Eu sou eu, mas de tal modo que o segundo eu exprime a possibilidade que uma pessoa tem de auto-objectivar-se e reconhecer-se. O ser humano afirma-se a si mesmo na reflexão. E não é um mero animal de instintos, pois vive na realidade: é um animal de realidades, como sublinhava o filósofo Xavier Zubiri, distinguindo entre o imaginário, o que é objecto de desejo e o real. Apesar dos seus limites, encontraremos aqui concretamente as antropologias racionais e reflexivas.
Eu não sou eu de modo fixo, dado de uma vez para sempre, pois eu vou sendo eu, ao sair de mim. A partir do material genético que recebi dos meus pais e sempre condicionado por ele, eu, se fosse educado noutro lugar e em circunstâncias diferentes, noutro ambiente, se fosse encontrando outras pessoas ao longo da vida, seria o mesmo? A resposta é: sim e não, pois seria eu, mas de outro modo. A identidade pessoal constrói-se e afirma-se na liberdade, mas a partir de uma herança tanto genética como cultural, e isto num processo histórico sempre aberto: cada um de nós é uma estrutura em permanente desestruturação para uma nova configuração: faço-me, desfaço-me, refaço-me... A pessoa não é encerrando-se em si mesma; pelo contrário, é saindo de si que vem a si e se encontra. O ser humano só é na relação, vivendo mesmo este paradoxo: só porque é abertura a tudo é que é intimidade pessoal e única, e experiencia-se enquanto liberdade, ainda que sempre liberdade em situação. Aqui, entram os contributos das psicologias evolutivas e sociais, das filosofias do conhecimento, do amor, da práxis, da história.
Eu não sei se sou eu. Serei eu? Acontece por vezes o ser humano olhar para o que fez e perguntar: fui eu que fiz isto?, como foi possível?, aí não era eu. É, pois, inevitável o confronto com os desafios da psicanálise, dos estruturalismos, das neurociências, da sociobiologia.
Eu ainda não sou eu, mas vou-me tornando eu e sou mais do que eu, eu sou o que serei para lá de mim. O Homem é um ser temporal, vai-se fazendo historicamente. O ser humano é simultaneamente um ser que sabe da sua morte inexorável e que constitutivamente espera para lá da morte. Ele não é ainda, vai sendo e quer ser em plenitude: espera assim a sua realização para lá da história intramundana. A antropologia desemboca assim em perguntas pela ultimidade, que são questões da constituição metafísica do real e da conexão entre ética, esperança e religião.
Aqui chegados, é ainda necessário reconhecer que estas afirmações-perguntas formuladas na primeira pessoa do singular têm de apresentar-se no plural, pois o Homem só é real e autenticamente na relação, a identidade individual implica a identidade social e histórica e planetária e cósmica. Afinal, em cada ser humano está presente a realidade toda. Da identidade de cada ser humano faz parte a humanidade inteira - lá estão, de novo, Aristóteles e São Tomás: anima est quodammodo omnia (a alma, o ser humano, é de algum modo tudo).
Por todas estas razões, o Homem é sobretudo, para lá de tudo, o ser da pergunta, no sentido radical, dito no étimo da palavra - perguntar vem do latim: percontare, que contém contus, um pau comprido com o qual se remexe um tanque até ao fundo (o que há lá no mais fundo?) De pergunta em pergunta, o Homem vai até ao infinito e pergunta ao infinito pelo infinito, ou seja, por Deus. já que a pergunta pelo sentido global da existência é constitutiva e inevitável.
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 28 de setembro de 2024