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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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EM REBUSCA DO JAPÃO X

 

   Shintoísmo é palavra japonesa datada do século VIII, já depois da introdução do budismo no Império do Sol Nascente, para designar o conjunto de crenças nativas que compunham e sustinham, nas mentes nipónicas, a visão do universo e do ser humano que o habitava e lhe pertencia.  Etimologicamente, formara-se das expressões sínicas shin (divino) e tao (via). Até então e desde tempos imemoriais,essa  popular conceção passara-se de qualquer designação, doutrina ou organização, tendo sido apenas registada pela tradição japonesa mais antiga que, no século VIII, foi fixada em escrita, quando esta entrou no Japão, vinda da China, pela Coreia. Refiro o Nihonji e o Kojiki, de que várias vezes falei noutros escritos. Por já tê-lo feito, não volto aqui à análise das duas coletâneas, e apenas ressalto o facto de ser, no momento do seu registo escrito, já imemorial a sua origem, e fabulosa a sua composição e tradição oral. Para o que agora nos interessa, é de realçar que o Kojiki (ou registo de coisas antigas) foi fixado de cor por uma tal Hiyeda no Are, à ordem do imperador Temmu, cuja sucessora, imperadora Gemmyo, por volta do ano 712, decretou que essas tradições orais fossem transcritas em caracteres chineses recentemente introduzidos no Japão, para estabelecimento da linhagem imperial. As Nihon Shoki (ou crónicas do Japão) contam as histórias da origem divina do Império do Sol Nascente.

 

   Recorde-se que a época destes escritos, além de corresponder  -  e se explicar  -  pelo aparecimento da escrita no Japão, coincide com a introdução do budismo e a imitação da filosofia e organização política chinesa no nascente império nipónico, onde vai surgir a primeira capital residencial fixa (Nara), logo seguida por Heyan (Kyoto). Ainda assim, a autoridade política e administrativa dos sucessivos imperadores nunca se terá tornado verdadeiramente incontestável no tempo e no espaço, aos antigos reinos tendo sucedido domínios feudais que, mesmo quando mais controlados pelo poder central, designadamente sob o shogunato Tokugawa foram configurando um mosaico social e regional de fidelidades. Será, pois, a chamada "Restauração Meiji", no último quartel do século XIX, a erguer (ou restaurar...) a efetiva instituição política do poder imperial no tempo real da vida japonesa. Assim, símbolo visível da origem divina da terra e da gente do Japão, a figura do Imperador se tornará também na incarnação do chefe político que é o Filho do Céu: o Tenno, como ainda hoje é designado. E pelos reinados de Meiji, Taisho e Showa (este mais conhecido por Hirohito), o shintoísmo será a religião oficial e protocolar do Império do Sol Nascente, até à derrota do Japão em 1945.

 

   Tal Shintoísmo de Estado é certamente um aproveitamento ideológico e político, militar e bélico, de crenças populares profundamente enraizadas na alma da gente nipónica, crenças que, aliás, sustentam também a própria expressão de uma identidade pessoal imersa no acontecimento do mundo como natureza naturada e naturante. Eis uma achega importante ao entendimento da impessoalidade que tanto impressionou Wenceslau no estudo da linguagem nipónica. E que, ainda mais dramaticamente, nos levarão a outra iluminação de fenómenos como o harakiri ou seppuku e a bravura sacrificial dos "kamikaze" que, ao autodestruirem-se em combate, gritavam  "Longa vida ao Imperador!"

 

   Voltaremos a estes temas e a outros, como o dos fantasmas que povoam o teatro NÔ. Na verdade, para se compreender o shintoísmo é imprescindível entender os Kami (termo que significa alto ou superior, até na nomenclatura topográfica, mas é, na esfera das religiões e crenças, traduzido por espírito ou espíritos. Contrariamente às religiões monoteístas (judaísmo, cristianismo, islamismo), por exemplo, o shintoísmo não tem um deus único, mas nem tampouco será propriamente uma religião politeísta, cujos deuses sejam transcendentes e habitem um qualquer olimpo. O shintoísmo não estabelece qualquer distinção entre a divindade e a natureza, os kami sendo simples espíritos que partilham com os humanos a habitação do universo. Este não foi criado, mas simplesmente sempre existiu. Seria inicialmente uma espécie de vasto oceano, imensa superfície ou massa líquida e oleosa. A partir daí se formou uma corrente contínua de criação, desde deuses em planaltos celestiais até às árvores e rochas e poeira na terra e abaixo dela. Os humanos tampouco foram especialmente criados, apenas são parte do universo, tal como todas as outras coisas.

 

   Assim, os kami estão em toda a parte, todas as coisas têm espírito e falam por elas: fenómenos naturais (rochas, árvores, montanhas, rios, quedas de água, animais, tempestades) tudo pode ser kami. Somos todos essencialmente idênticos, partes do mesmo, e o mais humilde calhau - como no belíssimo La Strada, de Fellini - em qualquer momento pode revestir-se de espírito. Daí serem os ritos de purificação, designadamente pela água, ou pelo sal, os gestos litúrgicos mais importantes do shintoísmo. E tudo isso nos diz muito sobre a alma japonesa.

  

Camilo Martins de Oliveira