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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A FORÇA DO ATO CRIADOR

 

Shirley Jaffe - Vitalidade, Complexidade e Dissonância.

 

'I hope that I too am able to express the same qualities of vitality in my own paintings, with my complexity and my dissonances.', Shirley Jaffe

 

A qualidade mais admirada, pela pintora Shirley Jaffe (1923-2016), em Matisse, é o otimismo - essa energia que através de formas e de cores emana vida.

 

As pinturas de Shaffe ao rejeitarem qualquer ato de desespero ou desânimo convocam a um imediato chamamento do vigor necessário à vida.

 

A combinação dos gestos solidificados, que advêm de um determinado movimento no espaço, reclamam constantemente pelo inesperado e pela interrupção. É no decorrer do processo que, iniciado por uma noção formal bastante simplificada, a pintura se deixa cruzar pelo imprevisto. E é esta mudança imprevisível que traz a energia capaz de vencer adversidades.

 

'I would like my paintings to give someone outside of me the feelings of the possibilities of life, that they awaken the energy to confront and face things. There are all these paths, all these open possibilities.', Shirley Jaffe

 

As formas das pinturas de Shirley Jaffe são acontecimentos únicos e irrepetíveis, manifestações precisas e de rejeição de qualquer dogma.

 

Cada forma e cada cor estão sempre em constante mudança, durante todo o processo ou ato de pintar. O inesperado, a modificação, a transformação, o começar de novo são determinantes para a construção das pinturas de Jaffe. As formas nascem e voltam a nascer. E talvez por isso sejam assim sempre momentos singulares mas heterogéneos. As pinturas de Jaffe surgem através de ordens contraditórias e diferentes justaposições. Mas estabelecem uma totalidade nunca vista, um conjunto de sinais que, apesar de diferentes entre si e por isso dissonantes, convivem dentro dos limites de uma tela. As coexistências nem sempre passíveis de serem justificadas, a não centralidade, o não pertencer, a deslocação, a disjunção, o desvio à norma são definições sempre possíveis às pinturas de Jaffe. Porém apesar das contrariedades estarem bem presentes, a exuberância e a riqueza visual das pinturas de Jaffe ensina-nos permanente a pujança do otimismo necessário para viver.

 

'I can't say that my pictures represent the world! I can only say that I want a cohabitation of events in my pictures so that, in looking, one is confronted with the 'manyness' we see relating to each other.', Shirley Jaffe

 

Ana Ruepp

A FORÇA DO ATO CRIADOR

 

Shirley Jaffe e a união na diversidade. (Parte II)

 

‘Some of my paintings begin with the memory of a movement or a dislocation of something but not all.’, Shirley Jaffe

 

Nas suas pinturas cada parte é importante, não há uma hierarquia. Verifica-se a existência de uma enorme diversidade não linear. Jaffe não acredita que uma forma se gera no seguimento de outra, porque a pintura não deve apresentar uma leitura lógica. Shirley Jaffe (1923-2016) não trabalha em séries mas por vezes explora certas ideias em várias pinturas. Existe espaço para a possibilidade de mudanças  imprevisíveis. Há o desejo de que cada elemento tenha uma coexistência. E as suas pinturas são iniciadas através uma determinada noção formal, para logo após procurar pelo momento em que se poderá modificar essa noção. E é nesse momento de mudança que o gesto é importante.

A precisão da aplicação das formas nas suas pinturas prova todo o trabalho meticuloso da pintora. Existe um equilíbrio exacto entre a ordem e o caos, entre o orgânico e o racional, entre o manual e o industrial. As formas pintadas parecem colagens, porque apresentam um recorte preciso no espaço. No entanto, Jaffe não se interessa pelo simples recortar e colar das formas – Jaffe assume-se como pintora e afirma o seu gosto pela marca do pincel.

É através de uma deliberada vontade em complexificar as formas que se evitam semelhanças e reconhecimento. O registo é sugestivo e intencionalmente instável e imprevisível. Evidencia-se a variedade e a diversidade de formas e de sinais quase caligráficos.
 

'I have never wanted to make a figurative painting. It doesn’t interest me, although I see a lot in figuration is very stimulating and gives me a lot of ideas. I don’t know whether a painting that is purely abstract in its content has a sustainable vitality.', Shirley Jaffe
 

De facto, conseguem-se encontrar afinidades com as colagens de Matisse, ou as pinturas de Mondrian, Arp, Malevitch, Kandinsky, ou Stuart Davis. No entanto, na verdade Jaffe menciona Sassetta como a sua principal influência, assim como Picasso, pela sua capacidade de constantemente quebrar a regra. De Matisse, Shaffe retira qualidades de vitalidade e de optimismo, através de complexidade e dissonâncias; 'I would like painting to make people feel alive, have a sense of stimulation, of possibility.'

Raphael Rubinstein no seu livro 'Shirley Jaffe. Forms of dislocation' explica que talvez as pinturas de Jaffe estejam relacionadas com a sua experiêcia de expatriada, ao estar longe do conhecido, do familiar e do aceitável. E talvez por isso as suas pinturas transportem intenções relacionadas com deslocação, desacordo, disjunção, dissonância, desvio à norma, autonomia formal, união através da diversidade e ligação na diferença.

 

‘I would like my paintings to give someone outside of me the feelings of the possibilities of life, that they awaken the energy to confront and face things. I would like to find another way to continue abstract expressionism. I believe the liberation of forms and gestures can express transformation of a general idea of exterior life.’, Shirley Jaffe

 

Nos nossos dias, é necessário abrir ainda espaço a uma cultura visual que diga tudo mas de forma subtil, que seja completa mas ambígua, liberta mas complexa, reconhecível mas cheia de vida. E as pinturas de Shirley Jaffe dizem tudo, contém tudo. São um desafio à nossa capacidade de descodificação. São como exuberantes registos cartográficos de sítios desconhecidos, são como textos escritos com uma linguagem totalmente nova.

 

Ana Ruepp

A FORÇA DO ATO CRIADOR

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Shirley Jaffe e a união na diversidade. (Parte I)

'I am interested in non-centrality, coexistence, constant invention-making movements that are not repetitious but function together as a whole. There is always an element of non-belonging that holds everything together in tension. I don’t want a lyrical beauty. One could say I want to capture an unborn reality.', Shirley Jaffe

Logo após a experiência geométrica, do final dos anos sessenta, Shirley Jaffe (1923-2016) começou a pouco e pouco a aproximar-se do registo que a caracterizou até ao final da sua vida.

Lê-se no livro 'Shirley Jaffe. Forms of dislocation', de Raphael Rubinstein que por volta de 1983, a artista começou a construir composições com fundo branco. E a partir de então, no campo da tela flutuam gestos solidificados que não se repetem.

Desde sempre Jaffe tenta manter as suas pinturas libertas do que denomina ‘formas secundárias’, isto é, formas que acidentalmente se referem aos objetos do mundo real. E o seu princípio da não repetição também a afasta da criação de padrões e do movimento Pattern and Decoration que surgiu em Nova Iorque, nos anos setenta, em reação aos movimentos minimalismo e conceptualismo.

Até então, nenhuma cor funcionava como fundo - existiam sim diversas e marcadas zonas de cor.

E a descoberta do branco acentuou a complexidade das formas e acentuou a diferença com o mundo real.

Apesar de parecer um fundo, muitas vezes as áreas a branco são decididas já no final da composição. O campo branco é, assim como um espaço positivo e negativo – funciona como ligação entre as formas e existe para ser uma forma intermediária. As formas coloridas não se tocam, muitas vezes por causa das áreas brancas aplicadas entre elas.

'That’s what’s quite exciting about continuing to live and paint. The element of chance, but also taking from experience. One has to constantly push some visual idea to unforeseen conclusions. It might start as an unconscious tendency but has to become a conscious force.', Shirley Jaffe

As formas, que Jaffe cria, são assim transportadas para um estado instável mas sugestivo, um estado em que a separação entre o figurativo e o abstrato é quase inexistente. As formas sugerem algo quase reconhecível e familiar mas apresentam um desafio ao observador - podem ser mãos, folhas, rabiscos, sombras, faces, ondas, signos caligráficos. Curiosamente nos guaches de Jaffe, estas formas quase reais, são muito menos evidentes - o registo é mais rápido, livre e solto, não há fundo branco e a pincelada é visível.

 

Ana Ruepp

A FORÇA DO ATO CRIADOR

 

Shirley Jaffe e a rutura com a pintura do gesto puro.

 

'I became aware that gesture as gesture was not sufficient for me. Something wasn’t working.', Shirley Jaffe.

 

Quase figura, quase gesto, quase geometria, quase símbolo. Shirley Jaffe (1923-2016) é uma pintora que se distingue dos da sua geração - veja-se Joan Mitchell (1925-1992), que também expatriada em França, nunca abandonou a pintura gestual. Em 1949, Shirley Jaffe trocou, para sempre, Nova Iorque por Paris.

 

A pouco e pouco o expressionismo abstrato de Jaffe, transformou-se numa pintura de gestos construídos e de contornos bem definidos.

 

Jaffe sempre desejou referir-se a uma experiência complexa e deslocada e em dar expressão a uma multiplicidade de acontecimentos visuais. No livro 'Shirley Jaffe. Forms of dialocation', de Raphael Rubinstein lê-se que deslocação é de facto um conceito que teve muito peso na vida de Jaffe. Durante a sua longa vida, Jaffe teve duas mudanças geográficas decisivas - mudou-se para França aos 26 anos e nos anos sessenta, em Berlim, passou um ano decisivo para a sua pintura.

 

Shirley Sternstein (só depois Jaffe) iniciou a sua educação artística em Nova Iorque. Graduou-as na Cooper Union em 1945 e até então desconhecia o trabalho de Pollock, De Kooning e Rothko. Os seus professores da Cooper Union e da Phillips Gallery School of Art (escola onde prosseguiu os seus estudos) trabalhavam sob influência cubista. Porém ao referir-se a estes anos Jaffe afirma: 'I preferred to draw in the subway and look for my own way somewhere else.' E as pinturas de Kandinsky que Jaffe visitava no Museum of Non-Objective Painting tiveram em si uma influência decisiva, por causa da intensidade do gesto.

 

Ao mudar-se para França, com o seu marido Irving, resultado de um impulso, possibilitou a existência de novas perspetivas, novas oportunidades e uma abertura ao mundo. Jaffe fazia parte do grupo de pintores, que incluía Sam Francis, Norman Bluhm, Jean-Paul Riopelle, Joan Mitchell e Kimber Smith. E sobretudo partilhavam ideias, porque desde cedo Jaffe pintava como que cada gesto fosse único. E este exercício, que evitava repetir a marca que a mão pinta, deu desde logo à pintura um desejado sentido de multiplicidade, justaposição, coexistência e complexidade - e que em grande medida antecipou o desenvolvimento da sua pintura.

 

'Intellectually, it seemed to me that it was stupid to continue making gestures to develop the painting when the gesture wasn't pure. I was reworking a gesture, which should be beautiful in itself, and in the process what I was doing was destroying the color because I overworked and repeated. You know, I was destroying the essence of what we would call gesture. It was like taking a beautiful Chinese line and constantly redoing it.', Jaffe, 2010.

 

Em 1963, Jaffe foi para Berlim, com uma bolsa concedida pela Ford Foundation. E foi a partir deste momento que Jaffe teve a oportunidade de iniciar um caminho que vai além da abstração simplesmente gestual.

 

'The real change in my work started when I came back from Berlin, in ‘68 or ’69. Prior to Berlin my paintings were gestural, with an all-over surface of strokes vaguely suggestive of relationships. In Berlin those gestures began to become more defined, often starting with compositional devices: criss-crosses, ovals, and so on.', Jaffe.

 

Em Berlim, ao viver 'uma nova adolescência', Jaffe começou a assistir a concertos de música contemporânea (ouvia Xenakis, Carter e Stockhausen) e retirava, destas experiências que achava estruturais, analogias para pensar a sua pintura: 'Composition appeared to me in a much more visible way. To listen to concerts was like visiting an exhibition.'

 

O anseio por uma pintura mais analítica, mais direta e mais construída fez com que Jaffe ao regressar a Paris, desejasse ter também um papel mais ativo na sociedade e a interessar-se pelo ambiente urbano que a rodeava.

 

'I wanted to give, in my paintings, a vision of the city as I was seeing it. That took me a long time.'

 

E foi finalmente a partir de 1968, que Shirley Jaffe definitivamente rompeu com o gesto puro e começou a pintar estruturas muito rígidas:'I started to paint in the most summary fashion, beginning to paint the way you learn the ABC, like learning a language. I knew that if I wanted to control my paintings, I would have to control the gesture.'

 

Ana Ruepp