Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
“Germa não reparava no que (Bernardo) dizia. Pensava em Quina. Daquela casa onde nada tinha mudado ou quase nada, onde os tetos mantinham a mesma pintura azul-cinzento de quando, depois do incêndio, fora reedificada, ela ria ficando cada vez mais ausente, pois os mortos só dos vivos se alimentam, e dependem apenas das suas recordações”. Agustina Bessa-Luís retratou em A Sibila com mestria, num cenário minhoto, uma mulher e cem anos da história portuguesa, desde 1850, quando o país encontrou forma de querer modernizar-se e um novo tempo simbolizado na consideração da herança de Quina. Eduardo Brito, dirigiu A Sibila para o cinema e tem razão quando diz que um romance tem muitos filmes lá dentro. Formalmente, trata-se do encerramento das celebrações centenárias de Agustina. Mas, pela riqueza da criação literária, fica pano para mangas, para descobrirmos um extraordinário universo de temas e de personagens, mas também de literatura de primeira água, numa obra que tem neste romance o seu paradigma. O filme respeita por inteiro o lugar sagrado da literatura e faz seguir as personagens como protagonistas vivos, que ajudam a compreender o país histórico, rico de exemplos diferentes e contraditórios, bem ilustrados no germinar das vontades.
Pouco importaria que Bernardo expusesse a sua tese preconceituosa, romântica, banal, contra o burguês. A verdade é que o tempo revelou Quina, a sibila, como um ser raro e apaixonante. Não é por acaso que se é “possuidora de todo o puro enigma do ser humano, vórtice de paixões onde subsiste, oculta, nem sempre declarada, às vezes triunfante, uma aspiração de superação, alento sobre-humano que redime e que transfigura”. Com um pano de fundo de história atribulada, depois de terem assentado as paixões mais violentas das guerras civis, é o país de Camilo que encontramos no que se segue, desde a Patuleia e da Maria da Fonte até ao José do Telhado, José Teixeira da Silva, de estranha aura, companheiro do autor de Memórias do Cárcere, na cadeia da Relação do Porto. Desde a Casa do Freixo até à Vessada, sente-se o Tâmega, Vila Meã e a vitalidade de Amarante. Quina admirava a doce evocação do pai, Francisco Teixeira, com “voz quente e cheia de paciente expressão”, apesar de uma vida pródiga e desinteressada. “Convém obedecer em particular, mas ser rebelde em geral”. E o certo é que “apenas restava a casa, que ele reconstruíra e também arruinara”. Por isso, impelia-a uma tentação “de se arrojar do leito e ir olhar o quinteiro, na madrugada cinzenta, porque sabia que o pai estava lá, aparelhando o carro que devia partir para o mato, enleando a corda nos fueiros e jungindo os bois que tinha descido das cortes, húmidas do vapor das suas respirações”. Contudo as “mulheres viam-se a braços com toda a responsabilidade, o que não era novo para elas”.
“Aos poucos, a casa da Vessada ficou entregue nas mãos de Quina, e ela foi considerada senhora absoluta dentro daquele pequeno reino de campos, moinhos, bandos de galinhas minorcas, cachorros que alguém salvou de morrer afogados nos ribeiros e que ladram, recuando, aos estranhos que têm, pelo meio da quinta, direito de passagem” … Simbolicamente, Germa lê o primeiro volume da obra de Pascoaes – Sempre e Terra Proibida. Com o testamento, ela mesma viria a ser proclamada principal herdeira, enquanto Custódio, provindo da casa da condessa de Monteros, não viu realizada a sua ambição, de ficar com a Vessada, abrindo-se aí uma história muito macabra de puro desvario. Enquanto Quina fora exemplo implacável de energias humanas que se digladiavam e se deram vida, Germa era o relicário atual de um extenuante legado de aspiração humana. “Nas suas veias, estão todos os infinitos estados do passado…”. E quem é ela, literata, “para ser um pouco mais que Quina e esperar que os tempos novos sejam mais aptos a esclarecer o homem e a trazer-lhe a solução de si próprio?”
Temo, sinceramente, que, aquando do falecimento de Agustina Bessa-Luís, muitos, que nunca leram nada dela, se tenham servido do seu nome apenas como escada para subir e se mostrarem e serem vistos.
De qualquer modo, o que é que ainda se poderá dizer de novo sobre A Sibila, algo que ainda não tenha sido dito e reflectido? Mesmo assim, voltei lá, a A Sibila, de Agustina Bessa-Luís, e ouso pensar que do que trata, em última análise e lá mais no fundo, é da condição humana, do mistério do que somos e de quem somos — mas não é disso que tratam todos os grandes romances? Não será por acaso que termina assim: “porque... porque...”.
Sirvo-me hoje dessa releitura, para uma homenagem a Agustina, mas sobretudo porque me parece uma preciosa ajuda para meditar nestes dias primeiros de Novembro. Numa sociedade que fez da morte tabu, ainda se permite que ela nos visite e dela se fale dois dias por ano: 1 e 2 de Novembro. Também a morte é, evidentemente, tema atento em A Sibilia. Porque a morte nos obriga a pensar e a distinguir bem entre o que verdadeiramente vale e o que não vale e, assim, abrir a uma consciência mais funda da liberdade e da ética. Cito A Sibila: No dia dos fiéis, no cemitério, “Quina orava, as mãos cruzadas sobre o ventre, diante da modesta morada de seu pai e de seu irmão Abílio. Uma lousa, os nomes gravados a branco já indistintos, um pedaço de terra mole onde a chuva empoçava, e era aquilo o maior agente moral do homem, do mundo — a morte. Maria debruçou-se para endireitar uma flor numa velha jarra esbeiçada que só servia na ocasião.” “O maior agente moral do homem, do mundo — a morte.”
E aquela oração, quando o velho morreu! “Quina aproximou-lhe a candeia do rosto, e viu, sob as suas pálpebras imóveis, duas lágrimas que escorriam como gotas de glicerina, vagarosas e desfeitas, no encalhe das rugas. Quando se chegaram para o amortalhar, Quina rezava diligentemente uma melopeia improvisada. Elevou a voz, que se tornou surda e pesada, com uma retumbância trágica e cheia de calor. “Aceita-o nos teus braços, ó meu Senhor, e que ele encontre tudo o que procurou aqui e não pôde achar; todo o tempo que já tinha vivido, com todas as coisas boas que ele, para tua glória, contém; todas as coisas que por teu amor nascem e por teu amor morrem; tudo que por tua inspiração desejamos, e não tivemos forças para conseguir. Agora, ele está pobre e nu diante dos teus olhos divinos. Recebe-o. Esclarece-o agora, para que ele te diga por que pecou, e possa ser perdoado. Porque nós não sabemos por que erramos, só tu o sabes, Senhor, e é por isso que tu perdoas. Nós não compreendemos essa piedade, nós não compreendemos nada de nós, nem temos voz para explicar, nem olhos para ver no escuro, nem ouvidos para ouvir quando tudo parece calado. Mas tu estás do outro lado da noite. Agora, este que foi homem sabe porque veio de ti e voltou para ti, e já não nos pertence. Ajuda-o, porque agora deves guardá-lo — ele não está mais à nossa guarda. Na morte não há irmãos, ele já não é mais nosso...” Assim rezava Quina.
Lá vem também, sadio, aquele humor ácido anticlerical. O abade a Maria: “Reze três Ave-Marias como penitência. — Reze-as o senhor abade, que tem mais vagar do que eu. Era, aos noventa e quatro anos, um lucilar ainda do seu humor impávido e irreverente.” É também certo que, por vezes, a oração de Quina é interesseira, mas nunca abandona a elevação da beleza, a dimensão evangélica e mística, a fé cheia de espiritualidade. “Abençoai os nossos campos, para que eles tenham água e nos dêem pão. Abençoai a nossa casa, o nosso gado, os nossos criados. Abençoai os nossos homens, os nossos frutos, que tudo aconteça para bem. Levai para longe a fome, a peste, a guerra e os amigos que mentem. Fazei-nos humildes na riqueza, orgulhosos na desgraça, sábios em desejar, corajosos em receber a ofensa, valentes em cumprir a vida e a morte. Abençoai também os nossos moinhos e os caseiros deles, que não pagam a renda há tanto tempo... Abençoai os nossos gostos, para que sejam nossos brinquedos e não cadeias. Abençoai as nossas dores, para que elas sejam experiência e não castigo...”
Seja como for, e sobretudo, é este o comentário de Germa, que a conheceu bem: “Quina escondia as mãos sob o avental, e rezava. Quem poderia rir, quem a acharia grotesca, ou quem encontraria motivo de escândalo? Ela não dizia: “Eu estou a cumprir um momento excepcional e supremo da minha vida: cuido a minha alma, expurgo dela o que é terra, alimento-a na oração.” Não. Acontecia-lhe rezar, porque isso era uma inevitável função humana.”
A Sibila é, sem dúvida, uma obra profundamente marcada pela pergunta religiosa e metafísica. O seu fio condutor é um impulso inconformado de aspirações que arrasta a Humanidade na sua História. Há a mesquinhez nas relações humanas, a vaidade do poder e a sua busca ridícula, a pequenez estúpida, mas o que a todos une é querer compreender o que somos, e o que nos move, numa existência sempre ambígua, de grandezas e de cobardias, é uma transcendência inalcançada, mas sempre esperada.
“Sim, Quina foi apenas mais um punhado obscuro de aspirações que só despontaram ou mal floriram. É esta a mais grandiosa história dos homens (...). Tudo o que vivemos nos faz inimigos, estranhos, incapazes de fraternidade. Mas o que fica irrealizado, sombrio, vencido, dentro da alma mais mesquinha e apagada, é o bastante para irmanar esta semente humana cujos triunfos mais maravilhosos jamais se igualam com o que, em nós mesmos, ficará para sempre renúncia, desespero e vaga vibração. O mais veemente dos vencedores e o mendigo que se apoia num raio de sol, para viver um dia mais, equivalem-se, não como valores de aptidões ou de razão, não talvez como sentido metafísico ou direito abstracto, mas pelo que em si é a atormentada continuidade do homem, o que, sem impulso, fica sob o coração, quase esperança sem nome.”
“Eis Quina, exemplo de energias humanas que entre si se devoraram e se deram a vida. Vaidade e magnífico conteúdo espiritual foram os seus pólos; equilibrando-se entre eles, percorreu um extremo e outro da terra, venceu e foi vencida, sem que, porém, as suas aspirações mais inquietantes deixassem de ser, no seu íntimo, as mesmas formas incompletas, chave da transfiguração que os homens eternamente tentam moldar e se legam de mão em mão, como um segredo e como uma dúvida.”
E agora é Germa, que continua o esforço para realizar e compreender o ser humano e nos representa a todos. “Eis Germa, eis a sua vez agora e o tempo de traduzir a voz da sua sibila. Talvez, porém, o seu tempo seja improdutivo e nefasto, e ela fique de facto silenciosa, porque — quem é ela para ser um pouco mais do que Quina e esperar que os tempos novos sejam mais aptos a esclarecer o homem e a trazer-lhe a solução de si próprio? Talvez a sua história fique hermeticamente fechada no círculo de aspirações que não conseguiu detalhar e cumprir, porque aconteceu ser cedo ou ser tarde, porque não se compreende ou não se crê o bastante, porque se deseja demasiado, e isto é todo o destino, porque... porque...”
Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia Escreve de acordo com a antiga ortografia Artigo publicado no DN | 3 NOV 2019