Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Simone Weil sugere que para se poder aceitar o outro tal como é, é preciso que nunca se faça parte de circunstância alguma.
“Sinto que me é necessário, que me é prescrito, que me encontre só, estrangeira, exilada em qualquer meio humano, sem excepção.”, Simone Weil In Espera de Deus
Simone Weil revela que a capacidade de se fundir em todo o lugar e em todas as pessoas, implica que não se faça parte de meio nenhum. Viver separado, desanexado, descentrado, fora e nunca se sentir em casa deve fazer parte da nossa condição humana. Só assim, talvez, segundo Weil, possa existir a possibilidade da pessoa encontrar uma sólida posição no universo e de entender com mais claridade a realidade no mundo.
Ao não querer ser adotada por ninguém, nem fazer parte de um ‘nós’, Weil abre a eterna disponibilidade de o ser humano se sentir sempre fazer parte de qualquer lugar, todo o tempo. O querer pôr-se de lado, associa-se à vontade de querer desaparecer, para se poder “…fundir com que meio humano for, por onde passe”. Weil coloca-se, então, numa posição de total abertura, banalidade, e atenção em relação aos outros. A capacidade de mistura, conjugação e imersão implica não pertencer e assim se apagam as diferenças que existem entre o eu e o mundo.
Weil sugere que para se poder aceitar o outro tal como é, é preciso que nunca se faça parte de circunstância (condição, particularidade, lugar) alguma. Pertencer a um grupo, a uma comunidade pode afastar as outras vidas diferentes que se cruzam. Weil explica que fazer parte pode fabricar uma falsa imitação do divino e pode insinuar uma enganosa ideia de excecionalidade. As influências sociais, para Weil, têm a capacidade perversa de aproximar e confundir, sob as mesmas palavras, o mais puro com o mais horrível.
As vidas que estão para lá, ocultas, atrás do que se vê, só são acessíveis se a experiência do mundo for anónima, marginal e secundária - o eu transporta todas as histórias daqueles que o rodeiam, para sempre, mesmo que nunca mais se encontrem. Por isso, a busca de um sentido de verdade só talvez se dê nos contornos de uma superfície, distante de qualquer centro.
“Entendo o patriotismo como o sentimento que se concede a uma pátria terrestre.”, Simone Weil In Espera de Deus
Weil não deseja, por fraqueza e vulnerabilidade, colocar-se à mercê de uma vontade coletiva. Por ser extremamente influenciável nas coisas por contágio, receia ficar ao arbítrio da maior desumanidade.
Weil anseia, sim, estar exposta à constante mudança e à contínua falta de controlo. E colocar-se numa posição solitária, de perda de si, permanentemente sem-teto, desabrigada porque talvez só assim se possa ver quem realmente se é, e permitir-se em relação aos outros a possibilidade de uma aceitação.
Ana Ruepp
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A PALAVRA DE JOÃO BÉNARD DA COSTA
A GRAVIDADE E A GRAÇA.
1 - Antigamente, era lamúria de lavradores. Todos os anos eram maus, sobretudo todos eram piores do que o ano passado, que já tinha sido péssimo. Agora, continuam a ser os lavradores - ao que parece, espécie em vias de extinção - mas também todos os que não são lavradores. Por exemplo, e para me acercar do meu terreno de hoje, os editores e livreiros. Não há ninguém que não vos diga que "isto" é um "sítio" de analfabetos (até os analfabetos). Nunca se venderam menos livros, nunca se leram menos livros, etc, etc. À primeira vista, parece que têm carradas de razão. Basta entrar numa livraria (das raras sobreviventes, fora das muralhas dos "centros comerciais") à busca de um livro que não seja o último de Margarida Rebelo Pinto ou de Paulo Coelho. Ou nos respondem logo que não há ou está esgotado, ou nos fazem perder 20 minutos diante de um computador, em aparente e opaca pesquisa, para chegar à mesma conclusão. Sobretudo se o livro procurado for "velho" (por "velho" se entendendo tudo o que foi publicado há mais de seis meses). Pior ainda, se for um "clássico". Pois, pois. Mas é igualmente certo, por razões misteriosas e plurilaterais, que é raro o mês que não se editam obras obnóxias, que aparecem e desaparecem vertiginosamente, sobretudo para a banda das traduções. Para além da minha própria experiência (e quantas boas surpresas não tenho tido!), verifica-se, de cada vez que faço a asneira de escrever, por aqui ou por ali, que saiu a primeira tradução portuguesa do livro de A ou de B. O meu correio de leitores aumenta logo, com editores a corrigir-me certeiramente, lembrando que A ou B já foram publicados por eles, em 1979, em 1987, em 1993 ou em 2001. Envergonhado, peço desculpa e vou à procura. Inútil procura. Levaram sumiço. A única hipótese é a Feira do Livro, mas mesma dessa me dizem que nunca correu pior. Quando me tentam pacientemente explicar o que sucede, a explicação foi ainda mais misteriosa do que o facto. Mas hoje não venho para maledicências, antes para estimas. E estimei - estimei mesmo muito - quando o Jorge Silva Melo me disse que tinha acabado de sair na Relógio d'Água (numa coleção chamada Antropos) "A Gravidade e a Graça", tradução portuguesa de Dóris Graça Dias de "La Pesanteur et la Grâce" de Simone Weil. Simone Weil, finalmente em português (não ouso dizer que em vez primeira, mas é verdade que não me recordo doutras) neste ano de 2004? Bem verdade! Graças a Deus!
2 - Alguns portugueses conhecerão de nome Simone Veil, política francesa de certo destaque, que, sendo bem da direita, se celebrizou, enquanto ministra, por ter feito passar a lei que despenalizou o aborto em França e que é, "de certo modo, uma pessoa respeitável", como José Miguel Júdice disse que Álvaro Cunhal é. Muitos menos conhecerão Simone Weil (1909-1943) que, de comum com ela, só tem o primeiro nome, um apelido parecido e a origem judia. O livro da Relógio d'Água não ajuda muito. A um curto excerto, na contracapa, do texto de George Steiner "Simone Weil's Philosophy of Culture" se reduz a informação disponibilizada. Nem prefácio, nem mais nada. Como se abundassem em Portugal os leitores para os quais "La Pesanteur et la Grâce" faça parte dos "encontros primordiais" e se conte entre esses "raros livros que nos pode acompanhar ao longo da vida". Sucede - não desfazendo - que esse é o meu caso e que a descoberta de Simone Weil - lá volto eu aos anos 50 - marcou mesmo a minha vida. Por isso "aqui estou", como Jesus disse à criança, por isso fiquei feliz quando soube do caso e caso o é. E jorraram em catadupa muitas e antiquíssimas memórias. Nos bons tempos da Morais e do "Círculo do Humanismo Cristão", do António Alçada e do Pedro Tamen, Simone Weil, santa da casa, foi convocada, como não podia deixar de o ser. Como me pediram a mim um livro sobre Mounier, pediram ao M.S. Lourenço - de todos nós, quem a conhecia melhor - um livro sobre Simone Weil, introdução à obra dela, com ampla antologia de textos. O M.S. Lourenço fê-lo. Mas nem o António nem o Pedro gostaram do resultado. Se Simone Weil já não era muito ortodoxa - ela que se recusou a entrar na Igreja, permanecendo no limiar, imóvel, en "úpomoné" (na expectativa) "para assim ficar ao lado de todos os que não puderam entrar no recetáculo universal da Igreja" - M.S. Lourenço foi achado heterodoxíssimo. Já bastavam à Morais trapalhadas políticas com a Igreja. Trapalhadas teológicas (um famoso comentário ao Padre Nosso que "O Tempo e o Modo" publicou, oito anos depois, no caderno "Deus O Que É?") pareceram-lhes ultrapassar as marcas. O livro, chamado "O Possível e o Impossível", foi achado impossível. Ficou eternamente no prelo. Descobri agora, quando o pedi ao autor, para beber da fonte e para comparar a tradução dele com a de Dóris Graça Dias, que nem mesmo ele o tem. Eu, que julgava ter cópia do original, também não a achei. Quem sabe se existe traço desse primeiro coiso interrompido entre um português e Simone Weil? Talvez não. Perdemos tudo. É certo - lembro-me agora, recuperada a memória ao correr da pena - que uns anos depois (1967, salvo erro) a Morais publicou dela "Opressão e Liberdade", em tradução de Maria Velho da Costa (eu não vos dizia que há sempre um antes da primeira vez?). Mas se é admirável obra, não o é ao plano de "La Pesanteur et la Grâce". Ou de "Atteinte de Dieu". Ou da "Lettre à un religieux". Esses, sim, os cumes do que abusivamente chamo a "teologia negativa" de Simone Weil.
3 - Chegou a altura de vos dizer um pouco quem foi Simone Weil. Antes de se licenciar em Filosofia em 1925 (aos 16 anos) já a sua "excentricidade" e a sua cultura tinham dado que falar. Diz-se que, aos cinco anos, se recusava a comer açúcar porque os soldados de 1914 também o não comiam, como se diz que, aos seis, sabia Racine de cor. Não são só anedotas. O sofrimento do mundo e o mundo da cultura foram obsessões perenes dela. Professora de Filosofia, trocou uma carreira brilhante por um emprego humilhante numa fábrica de automóveis, para viver entre os operários. Teve um breve namoro marxista, mas, em 1932, já perdera as ilusões sobre o "paraíso soviético" e já achava que revolução era termo sem conteúdo algum. "O progresso, se se quiser falar em termos rigorosamente matemáticos, é uma regressão" e a classe operária não era portadora de salvação. Doentíssima, desde muito nova quase não comia, para saber, no corpo, o que era a fome. Em 1936, juntou-se em Espanha a um grupo anarquista, mas o seu pacifismo proibiu-lhe combater e depressa se desentendeu com os novos companheiros. Foi então que veio até Portugal. Escreveu: "O que eu sofri nessa ocasião marcou-me de uma forma muito particular e muito profunda, de tal modo que, ainda hoje, quando um ser humano qualquer, em quaisquer circunstâncias, me fala sem brutalidade, não consigo deixar de pensar que há um engano, engano que, infelizmente, vai acabar. Desde a minha vida como operária, recebi para sempre a marca da escravidão, como a marca de ferro em brasa que os romanos impunham aos escravos mais desprezados. Desde esse momento, considero-me, também, escrava. Foi nesse estado de espírito e num estado físico miserável, que cheguei, sozinha, numa noite de lua cheia, a uma aldeiazinha portuguesa muito miserável. As mulheres dos pescadores iam numa procissão, em torno dos barcos, com velas acesas, cantando cantigas certamente antiquíssimas e de uma tristeza lancinante. Nada pode servir para dar uma ideia. Nunca ouvi coisa alguma tão triste, exceto os cânticos dos barqueiros do Volga. Foi aí que tive, subitamente, a certeza de que o cristianismo é a religião dos escravos, a religião a que os escravos, ou eu ou os outros, se não podem recusar." Data desse período (entre 1938 e 1940) a sua aproximação ao catolicismo, como desses anos data a maior parte dos seus escritos místicos e filosóficos numa produção teórica quantitativa e qualitativamente inacreditável, que alguns aproximaram de espiritualidade cátara e outros da ascese da patrística grega ("La Source Grecqe" é outra das suas obras maiores). Mas, de uma obra com 18 títulos (só reunida em edição definitiva em 1999), nada publicou em vida. Fugiu de Paris quando os alemães chegaram, depois de escrever "Quelques reflections sur les origines de l'hitlerisme" e fixou-se em Marselha, onde dirigiu os "Cahiers du Sud". Recusou-se ao baptismo, para não se separar do povo judeu perseguido. Em 1942, fixou-se nos Estados Unidos, mas pouco se demorou, decidida a reunir-se à França livre em Inglaterra. Desentendeu-se também com os gaulistas. Tuberculosa, morreu aos 34 anos, num sanatório em Ashford. O seu primeiro livro - justamente este que acaba de sair em Portugal - publicou-se em 1947.
4 - Foi nos anos 50, simultaneamente em França e em Inglaterra (Simone Weil foi dos raros pensadores franceses do século XX a conhecer enorme projeção em Inglaterra), que começou a fama dela, para a qual Graham Greene contribuiu poderosamente. Heterodoxa politicamente, heterodoxa teologicamente, heterodoxa filosoficamente, creio que foi a confluência entre "a truer liberty" e a "silent question", a que se referiu Buber, que suscitaram a paixão de alguns em Portugal, nos idos de 50 ou desde os idos de 50 até hoje. Isso e aquilo a que ela chamou o "ateísmo purificador". Gosto de terminar, citando o primeiro parágrafo do capitulo de "A Gravidade e a Graça", que tem exatamente aquele título. Onde ela diz o que dela mais tenho citado ao longo da minha vida e que transcrevo, por fidelidade e por gosto, na tradução de M.S. Lourenço: "Estou certa de que não existe Deus no sentido em que estou certa de que nada de real se assemelha àquilo que eu concebo quando pronuncio esse nome. Mas aquilo que eu não posso conceber não é uma ilusão."
ENTRE SIMONE WEIL E O FADO por Camilo Martins de Oliveira
«Minha Princesa de mim:
Passar-se-ão anos, se Deus quiser - e já se passaram tantos! - sem que nem eu chegue a perceber porque sempre te chamo “minha Princesa de mim” ... Não fui eu que te fiz princesa, nem te fiz de mim. Princesa de... eras e és, de mim ficaste, por um encontro inesperado. Sem te ter procurado como Stanley a Livingstone, foi no dia em que me vi no teu olhar magoado que, no íntimo de mim, te disse: “Princess of mine, I presume...” Talvez, em teu segredo, me cantasses já, como Dalila a Sansão na ópera do meu homónimo Saint-Saens: Ah, réponds moi, réponds à ma tendresse... Talvez já não se use, mas dura muito e é bom esse encontro de ternuras que se fidelizam. Aqui, em Paris, além das reuniões que me obrigam a passar o dia no Château de la Muette, sabes bem o que faço: um salto às livrarias do "Quartier", um jantarinho no "Le Muniche" (onde conheci a Romy Schneider...) e o regresso pacato ao nosso Georges V, onde me recolho lendo banda desenhada e outros filósofos. Comprei e leio hoje, editadas pela Plon, as "Leçons de Philosophie" de Simone Weil. Sinto muito o nosso abraço ao ler este pensamento recolhido de "La Connaissance Surnaturelle": “A fé é acreditar que Deus é amor e nada mais. Esta expressão ainda não diz tudo. A fé é crer que a realidade é amor e nada mais...”. Direi eu, na esteira de Simone, que a fé é profética: como primeira virtude teologal, motiva a esperança, e a esperança empurra-nos para o amor. Gosto muito dessa expressão "a realidade é amor e nada mais". Afinal, tudo muda e parece, parece sempre. Mas só o amor permanece. Como a verdade. E a verdade que podemos atingir não é o que julgamos compreender e afirmamos. É o que soubermos comungar com o ser íntimo e permanente de tudo, para que tudo seja, com o pouco que somos, um pouco mais belo. Outro apontamento da Simone Weil, para uma das suas lições: “La Beauté, sentimento do belo, sentimento sensível à parte carnal da alma e mesmo ao corpo, essa necessidade que é constrangimento e também obediência a Deus”. É interessante comparar, nas lições de Weil, essa ideia do amor como existente fora da duração, pois que o seu tempo é a eternidade, com a servidão do tempo. Recordo este passo de "Attente de Dieu": "Os amantes, os amigos, têm dois desejos. Um, o de se amarem tanto que entrem um no outro e sejam só um. Outro, o de se amarem tanto que, tendo entre eles metade do globo terrestre, a sua união não seja por isso diminuida. Tudo o que o homem deseja em vão cá na terra é perfeito e real em Deus". O encontro e a separação (e não será a morte a mais radical?) são, assim, inseparáveis na amizade. A comunhão é eterna. Nos seus apontamentos para uma lição sobre o tempo, Simone Weil escreve: "O tempo é a preocupação mais profunda e mais trágica dos seres humanos; pode mesmo dizer-se que é a única trágica. Todas as tragédias que possamos imaginar vêm dar a uma única tragédia: o escoamento do tempo". Mas considera que "o homem tem uma tendência invisível para a eternidade"... "Tudo o que é belo tem um carácter de eternidade. Os sentimentos puros para com os seres humanos: amor, amizade, afeto... Esses sentimentos não só se consideram como eternos, mas consideram eterno o seu objeto. Portanto,não há nada em nós que não proteste contra o curso do tempo e, todavia, tudo em nós está submetido ao tempo". Agora penso eu: que força nos faz durar na precaridade, nos mantém vivos e atentos através do processo degenerativo da nossa biologia, até ao nosso esgotamento? Será que o tempo, no qual Pascal pressentia a origem do sentimento do nada ser da existência, é já parte da eternidade? Vivendo esta vida no tempo que conhecemos, será que, afinal, existimos antes e depois dele e habitamos as cavernas de Platão?". Deixo aqui esta carta de Camilo Maria, que ia agora entrar por Sto. Agostinho. Para lembrar uma glosa que fiz a cada uma das seis estrofes de um célebre fado do Alfredo Marceneiro. Dá outro fado e é do tempo em que com fados também me entretinha (para fugir ao tempo?): Amor é água que corre,/ tudo passa, tudo morre,/ só este amor vai viver!/ Ó minha pombinha mansa,/ nosso amor é uma criança/ que ensinamos a crescer! // Amor é sonho e é encanto/que mesmo lavado em pranto/ sempre a si mesmo recorre.../ Forte, fiel, crente e brando,/ persistente mesmo quando/ tudo passa, tudo morre! // Amor é triste lamento/se,levado pelo vento,/ao longe se vai perder.../Mas não falto à minha jura:/é minha a tua ventura/e este amor vai viver! // Tudo é vário neste mundo,/mesmo o amor mais profundo/ se tenta a entrar na dança/e a deixar-se morrer.../ Mas amar-te é meu querer,/ ó minha pombinha mansa! // Foi bem efémero o desejo/de tantos amores que vejo/em danças de contradança.../Mas se amar é desejar,/deixa-nos lá continuar:/o nosso amor é criança! // Hei-de esquecer o teu amor?/ E o teu corpo encantador,/ que a minha alma sempre quer?/ Dou-te a mão, fico contigo:/ o nosso abraço é o amigo/ que ensinámos a crescer!”. Até fadistando se filosofa. Não é necessário ir à Sorbonne. Basta um saltinho à Travessa dos Palpites. Há coisas que se entendem em todas as línguas.
Camilo Martins de Oliveira
Obs: Reposição de texto publicado em 22.03.13 neste blogue.
“A Pessoa e o Sagrado”, de Simone Weil, de 1943, acaba de ser publicada pela editora Guerra e Paz. A Moraes encomendou inicialmente a M.S. Lourenço esta tradução, que não se concretizaria, não por discordâncias internas, mas por cautelas teológicas…
ATRAÍDOS PELA HETERODOXIA João Bénard da Costa lembrava que foi nos anos 50, em França e Inglaterra que começou a fama de Simone Weil (1909-1943), graças essencialmente a Graham Greene. «Heterodoxa politicamente, heterodoxa teologicamente, heterodoxa filosoficamente, creio que foi a confluência entre "a truer liberty" e a "silent question", a que se referiu Martin Buber, que suscitaram a paixão de alguns em Portugal, nos idos de 50 ou desde os idos de 50 até hoje». E neste sentido convém lembrar o início de um importante capítulo de "A Gravidade e a Graça". Aí Weil diz o que dela foi mais citado por João Bénard ao longo da vida e que se transcreve, na tradução de M.S. Lourenço: "Estou certa de que não existe Deus no sentido em que estou certa de que nada de real se assemelha àquilo que eu concebo quando pronuncio esse nome. Mas aquilo que eu não posso conceber não é uma ilusão". Senão vejamos: «A palavra pessoa (…) é muitas vezes aplicada a Deus» - diz Simone Weil. «Mas na passagem em que Cristo propõe Deus mesmo, aos homens como modelo de uma perfeição que se lhes ordena que atinjam, não se junta apenas a imagem de uma pessoa, junta-se sobretudo a de uma ordem impessoal: “Amai os vossos inimigos, bendizei os que vos maldizem, fazei bem aos que vos odeiam, e orai pelos que vos maltratam e vos perseguem; para que sejais filhos do vosso Pai que está nos céus, porque faz que o seu sol se levante sobre maus e bons, e a chuva desça sobre justos e injustos (Mt., 5, 44-45). Esta ordem impessoal e divina do universo tem entre nós a justiça, a verdade, a beleza por imagem. Nada de inferior a estas coisas é digno de servir de inspiração para os homens que aceitam morrer. Acima das instituições destinadas a proteger o direito, as pessoas, as liberdades democráticas, é preciso inventar outras destinadas a discernir e a abolir tudo aquilo que, na vida contemporânea, esmaga as almas sob a injustiça, a mentira e a fealdade». Esta afirmação encontra-se na obra “A Pessoa e o Sagrado”, de 1943, que acaba de ser publicada pela editora Guerra e Paz. E o livro tem de ser motivo para uma séria reflexão. A noção de pessoa humana é aqui referida numa aceção complexa, algo diferente daquilo a que estamos habituados.
A PESSOA E O SAGRADO Se a palavra pessoa vem do grego “prosopon”, que significa a máscara do teatro que identifica as personagens, a verdade é que se trata de tomarmos consciência das diferenças e de compreendermos quem somos e o que nos distingue dos outros. A vida humana corresponde a duas facetas: a nossa inserção na realidade palpável que nos rodeia e a consideração do que está para além dos nossos limites. Mas somos gente de carne e osso, que compreende que nem tudo o que vemos tem explicação. Daí a importância de ligarmos a pessoa e o sagrado. E Simone Weil lembra um estranho episódio que a marcou profundamente, em 1935 de visita a Portugal. Na Póvoa de Varzim, em 1935, assistiu a uma procissão, a um cortejo de mulheres, viúvas de pescadores, vestidas de negro, em memória de seus maridos, mortos pela inclemência do mar. Os cânticos eram de uma tristeza lancinante, mas profundamente tocantes. “Foi aí que tive, subitamente, a certeza de que o cristianismo é a religião dos escravos, a religião a que os escravos, ou eu ou os outros, se não podem recusar”. E perante esta consideração Simone Weil, num assomo místico supremo, refere que “Cristo, ele mesmo, desceu e tomou-me”. E assim somos levados a recordar Santa Teresa de Ávila e S. João da Cruz – entendendo que, como ato místico, a bondade se revela como um ato de renúncia ao egoísmo e ao poder. E o caráter sagrado da pessoa humana é motivo de reflexão, porque o sagrado é aquilo que, num ser humano, é impessoal. Mas não se pense que a dignidade humana perde importância. Não, é da pobreza em espírito que falamos, de desprendimento, de disponibilidade plena, como na primeira bem-aventurança. Daí a citação de S. Mateus e a contraposição entre o pessoal e o impessoal. O impessoal liga-nos ao essencial, ao que permanece, ao que nos leva ao compromisso e ao encontro com o próximo. E eis que a pessoa humana se torna um ponto de encontro entre o quotidiano, o imediato e o fraterno e o reflexo que projeta a eternidade no dia a dia. Se Emmanuel Mounier fala do compromisso e do acontecimento como nosso mestre interior, aproxima-se quase paradoxalmente da preocupação de Simone Weil. E George Steiner recorda que “a atenção é a forma mais rara e mais pura de generosidade” – daí a importância da complementaridade entre as duas perspetivas aparentemente distantes, da pessoa espiritualmente comprometida e da pessoa lidando com a consciência dos limites e capaz de lidar com o sagrado na distância e na interrogação.
PEREGRINAÇÃO INTERIOR “As relações entre a coletividade e a pessoa devem ser estabelecidas com o único propósito de afastar o que é suscetível de impedir o crescimento e a germinação misteriosa da parte impessoal da alma. Por isso mesmo, é preciso, por um lado, que à volta de cada pessoa haja espaço, livre disposição do tempo, possibilidades para a passagem a níveis de atenção cada vez mais elevados, solidão, silêncio. É preciso, ao mesmo tempo, que essa pessoa se sinta abrigada, para que o desespero não a obrigue a fundir-se no coletivo”. O amor cristão obriga assim à compreensão da complementaridade entre o pessoal e o impessoal – entre o impulso para agir e a necessidade de refletir, de pensar e de ser. Eis porque a pessoa humana é permanente peregrina do sagrado.
Em 1943, ano em que viria a morrer, Simone Weil, então em Londres com a France Libre, escrevia o "Prelúdio à Declaração dos deveres para com o ser humano", que Albert Camus publicaria em 1949, na Paris do pós-guerra, quando dirigia, na Gallimard, a coleção "Espoir", pondo-lhe o título de "L´Enracinement": "O enraizamento é talvez a necessidade mais importante e mais desconhecida da alma humana. Uma das mais difíceis de definir. Um ser humano tem por raiz a sua participação real, ativa e natural na existência de uma coletividade que conserva vivos certos tesouros do passado e certos pressentimentos do porvir. Participação natural, quer dizer, trazida automaticamente pelo lugar, o nascimento, a profissão, o meio humano. Cada ser humano precisa de ter muitas raízes. Precisa de receber a quase totalidade da sua vida moral, intelectual, espiritual por intermédio dos meios de que naturalmente faz parte". É a este meio multiradical que chamo cultura: duma pessoa, duma sociedade, duma civilização. Já aqui o disse, que a consciência da nossa identidade própria, e o reconhecimento do outro e da diferença são condições necessárias do diálogo. O Estado, disse Bourdieu, lapidarmente, "é uma ideia"... Quiçá uma ideia abstrata e jacobina - já o afirmaram - que se institucionalizou e se tornou no centro soberano da atribuição de direitos e deveres, regalias e punições. O seu aparelho institucional vai tentando apropriar-se do sentimento patriótico para cimentar a sua hegemonia, com que pretende substituir a fidelidade à Pátria (que é uma qualidade do amor) - e a tradição que nos faz descobrir, no passado comum, as raízes da nossa comunhão presente - pela obediência às orientações e imposições dos interesses presentes. Na sombra da conspiração do Estado está sempre - aliado, manipulador, cúmplice, especulador ou simples eminência parda - o Dinheiro. Tal como o Estado, escreve ainda Simone Weil, "o Dinheiro destrói raízes em qualquer lado onde penetre, substituindo todas as motivações pelo desejo de ganhar". Ou, citando de memória Adriano Moreira, "substitui-se o valor pelo preço". Antes de recordar Zygmunt Bauman, numa reflexão sobre o que convencionalmente se vem chamando "crise de valores", esclareço que, ao referir-me à descoberta das raízes da nossa comunhão presente no passado comum, não penso em "purezas" étnicas, nem em qualquer "superioridade" de raça ou de valores. Penso sim, como já disse, na "nossa vida antes de nós", numa história de encontros e desencontros, que nos moldou uma identidade forte, cuja consciência nos faculta o poder de nos abrirmos ao mundo. O desenvolvimento atual da historiografia, a globalização da investigação histórica, ajudam-nos a aprofundar, a enraizar, a nossa identidade, a redescobri-la no contexto das outras e no olhar dos outros sobre nós. Esta consciência de que existimos em relação com o que fomos e com os outros é necessária como contraponto à tendência hodierna que Zygmunt Bauman chama "a privatização da vida em geral". Tenho refletido sobre o apagamento das fronteiras entre a intimidade e a publicidade, designadamente na chamada "comunicação (?) social": o despudor, o descaramento com que se atiram para o pasto das massas, quer episódios dolorosos das vidas, quer comportamentos que, decentes ou indecentes, só podem ser humanamente compreendidos pelos próprios intervenientes ou, quando muito, na solidariedade das comunidades a que pertencem. Chegamos assim ao ponto de, a partir da vida das pessoas, com o que necessariamente tem de prazenteiro e doloroso, de feio e de bonito, se fabricarem produtos de consumo mediático. Na sociedade de consumo, também as pessoas são objetos, são estimadas pelo preço, não pelo valor. Assim compreendi, finalmente, que a razão porque se consome a privacidade dos outros transformada em artigo para venda, é a necessidade de iludir a solidão a que conduz a privatização geral da vida: porque se rejeita o enraizamento na solidariedade, a responsabilidade pelo outro, sem a qual nenhuma relação humanamente digna é possível. A redução da pessoa ao indivíduo, da moral ao "chacun governa-se" é diametralmente oposta à moral que Lévinas tão bem define como "existir para o outro". Na nossa cultura, diz-se mandamento novo: amai-vos uns aos outros... Recorro a uma citação de Bauman: "Isolados dos que estão ao seu lado. Privatizados. Compartilhando o espaço, mas não os pensamentos ou os sentimentos - e agudamente conscientes de que, com toda a probabilidade, tampouco partilharão o mesmo destino. Esta consciência não alimenta necessariamente ressentimento ou ódio, mas traduz indiferença e reserva. ´Não quero envolver-me´, diz-se, para calar emoções que nascem ou asfixiar no ovo qualquer relação humana, íntima e profunda, do género ´para o melhor e o pior, até que a morte nos separe´. Estão na moda fechaduras, cadeados e alarmes cada vez mais engenhosos. Não em virtude da sua utilização prática, eficaz ou conjetural, mas pelo seu simbolismo, pois servem para delimitar a fronteira do eremitério onde não queremos que nos incomodem e significar a decisão de que ´Por mim, o que está lá fora bem pode ser um deserto." Este encerramento de si, o receio dos outros, o medo do compromisso resultam de uma incerteza crónica, dum andar em perdição pela floresta sempre mutante das novidades noticiosas e publicitárias que nos bombardeiam. Assim se vai perdendo a densidade interior, a consistência dos valores e das crenças, a esperança no futuro ou na eternidade, tudo se reduz ao desejo imediato. À durabilidade vem sucedendo a precaridade. O Estado tentacular e controlador, a "comunicação social" e a publicidade, condicionantes da opinião, do gosto, da cultura em que vivemos, a grande indústria e distribuição, impondo sistematicamente produtos e "gadgets" sempre novos e, desde logo, já obsoletos... Onde e como poderemos ser livres e como poderá a nossa consciência respirar? Tudo parece cada vez mais precário: o emprego e as relações humanas em geral, a conjugalidade e o amor, os valores mobiliários e imobiliários, a arte que se faz e desfaz em função de um espaço ou de uma ocasião, a segurança social, as dietas de emagrecimento, as receitas para um coração saudável, sei lá, as modas todas, pois que em modas nos movemos... Não podemos, todavia, voltar ao passado, não é possível encarar o futuro, nem o presente, com saudosismos. Será pela atenção aos sinais do tempo - alarmes - que teremos de despertar a consciência para o tempo e procurar o modo. Para não cairmos no barranco de cegos.
Camilo Martins de Oliveira
Obs: Reposição de texto publicado em 31.08.12 neste blogue.
Escreve Sylvie Courtine-Denamy em Trois femmes dans de sombres temps (Edith Stein, Hannah Arendt, Simone Weil): Para Arendt, o perdão é um conceito com função importante: «Se não fôssemos perdoados, libertados das consequências do que fizemos, a nossa capacidade de agir seria como que encerrada num ato único do qual nunca mais nos poderíamos levantar; ficaríamos para sempre vítimas dessas consequências, tal como um aprendiz de feiticeiro que, à falta de fórmula mágica, não poderia quebrar o encanto». O perdão surge assim como libertação possível da irreversibilidade da ação, «quando não sabíamos, não podíamos saber o que fazíamos». É a Jesus de Nazaré que ela aqui se refere, a Ele ter sabido suster que o poder de perdoar «não vem de Deus [...] mas deve, pelo contrário, trocar-se entre os homens que, só depois disso, poderão esperar ser também perdoados por Deus». As citações de Arendt aqui feitas por Courtine-Denamy são todas respigadas da versão francesa de "The Condition of Modern Man", publicada em 1961 e 1983, pela Calmann-Lévy (La Condition de l´homme moderne, tradução de G. Fradier, com prefácio de Paul Ricoeur). Mais adiante, observa: Por outras palavras, o perdão é libertador. Na verdade, só o amor pode perdoar, na medida em que «se desinteressa, a ponto de ser totalmente ausente do mundo, daquilo que possa ser a pessoa amada, das suas qualidades e dos seus defeitos, como dos seus êxitos, omissões ou transgressões». Eis porque é que o amor, sendo «estranho ao mundo» é, não só «a-político», mas «antipolítico». Temos, pois, de concluir que se Hannah Arendt muito perdoou a Heidegger, foi também por tê-lo amado muito. Está assim aqui resumido tudo o que, mutatis mutandis, eu te irei dizendo a seguir.
Comove-me aquela evocação do dito de Jesus Cristo sobre a origem do poder de perdoar, que reside no coração das pessoas humanas quando estas se deixam habitar pelo amor de Deus que, no cristianismo, não pode existir marginalizado do amor dos outros, nossos próximos. Será que, cultivados por gerações sucessivas de "mestres" (alguns deles lembrando a contrario o dito de Jesus : o mais pequeno entre todos vós, esse é o grande) - "mestres" esses mais inspirados pelo formalismo do rigor canónico, pelo resguardo da sua autoridade, ou pelo policiamento de adventícias "heresias", do que pela mensagem fulcral do cristianismo que é o mandamento do amor com toda a misericórdia de que ele é capaz - , já não nos conseguimos libertar o infinito que desafia cada extensão do nosso coração, isto é, a primazia ética de saber "perdoar não apenas sete vezes, nem sete vezes sete, mas setenta e sete vezes sete"? O perdão não pode ostracizar, ele é, como tão bem nos conta a parábola do Filho Pródigo, cujo Pai sai ao seu encontro para lhe abençoar o regresso, acolhimento por excelência. Quando refletirmos sobre casos de divorciados recasados e muitos outros, é bom que o nosso pensarsentir seja, primeiro, acolhimento e reconciliação. Quiçá essa reflexão também nos leve a reconsiderar a qualificação, como pecado, de divórcios e segundos casamentos. Até haverá casos em que sejam inevitáveis ou, mesmo, sejam a melhor solução para pais e crianças envolvidos. Parafraseando: "a instituição matrimonial é feita para o homem, não o homem para a instituição". E, ao interrogarmo-nos sobre qualquer repúdio de homossexuais (que, ainda por cima, para quem esteja ao corrente das ciências de hoje, de modo algum podem ser considerados deficientes, diminuídos, psicopatas ou, menos ainda, pecadores por natureza), deveremos lembrar-nos do ser humano, nosso igual irmão em Cristo, e esquecer preconceitos culturais insustentáveis. E ninguém se esqueça de que nenhum de nós é juiz do outro, verdade que o Papa Francisco tem lembrado: Quem sou eu para julgar? Entristece-me muito deparar com tantas situações em que ministros ao serviço da Igreja de todos, se atêm à ideia de que o poder de perdoar lhes vem de Deus - que lhes entregou não só códigos ou regras definidoras dos pecados, como ainda tabelas de classificação destes e das respetivas penas aplicáveis, para que eles, e só eles, possam exercer, por delegação do Altíssimo Juiz, o poder de absolver ou condenar - e se esquecem de que perdoar, reconciliar, é o dever fundamental da nova lei de Cristo, de cumprimento a todos exigível, ao ponto de ser inaceitável uma oferta presente no altar, enquanto não me reconciliar com meu irmão. Na Igreja Apostólica, a confissão dos pecados e a determinação da pertinente penitência era comunitária, como ainda hoje se pratica nos capítulos das antigas ordens monásticas e religiosas. E o pecado que cada um anunciava ao perdão dos seus irmãos não era uma acusação escrupulosa, ou mais ou menos narcísica de um ato individual, mas a apresentação, à correção fraterna de cada igreja ou comunidade, de intenções consentidas, atos praticados ou omissos que, de um ou outro modo, pudessem ser ou tivessem sido atentatórios da caridade comunitária, isto é, da justiça como direito de todos e de cada um. Donde o lema: "Deus habita a caridade".
E porque o acolhimento é desígnio de Deus, a igreja não se fecha à chave [conclave, só cardeais para eleição do papa, o que diz muito sobre o clima de conspirações e intrigas, e as movimentações de influências que tiverem de ser controladas], mas é bom pastor aquele que deixa o rebanho no redil para ir lá longe buscar a ovelha transviada. Ou que, a exemplo de Jesus, acolhe La Traviata, a transviada. Conta-nos o Evangelho de Lucas (8, 36-50), em tradução de Frederico Lourenço:
Convidou-o um dos fariseus para comer consigo e, entrando em casa do fariseu, tomou o seu lugar à mesa. E eis que certa mulher, conhecida naquela cidade como pecadora, ao saber que ele estava à mesa em casa do fariseu, trouxe um frasco de alabastro com perfume. E colocando-se por detrás dele e chorando, começou a banhar-lhe os pés com lágrimas; secava-os com os cabelos e beijava os pés dele e ungia-os com perfume.
Vendo isto, o fariseu que o convidara disse para consigo: «Se este homem fosse profeta, saberia quem e que tipo de mulher é esta que lhe está a tocar, porque é uma pecadora.»
Então Jesus disse-lhe em resposta: «Simão, tenho uma coisa para te dizer.» Ele disse: «Fala, Mestre.» «Dois devedores tinham um prestamista: um deles devia-lhe quinhentos denários e o outro cinquenta. Não tendo eles com que pagar, perdoou aos dois. Qual deles o amará mais?» Simão disse em resposta: «Aquele a quem perdoou mais dívida, creio eu.» Jesus disse-lhe: «Julgaste bem.» E, voltando-se para a mulher, disse a Simão: «Vês esta mulher? Entrei em tua casa e não me deste água para os pés; ela, porém, banhou-me os pés com as suas lágrimas e secou-os com os seus cabelos. Não me deste um beijo; mas ela, desde que entrou, não deixou de beijar-me os pés. Não me ungiste a cabeça com azeite, e ela ungiu-me os pés com perfume. Por isso, digo-te que lhe estão perdoados os seus muitos pecados, porque muito amou; mas aquele, a quem pouco se perdoa, pouco ama.» Depois, disse à mulher: «Os teus pecados estão perdoados.»
Começaram então os convivas a dizer entre si: «Quem é este que até perdoa os pecados?» E Jesus disse à mulher:
«A tua fé te salvou. Vai em paz.»
À atenção e ao cuidado de qualquer pecador e de qualquer "mestre", entre os muitos que todos nós somos, deixo a nota observadora do professor Frederico Lourenço: «estão perdoados os seus muitos pecados, porque muito amou; mas aquele a quem pouco se perdoa, pouco ama» -a formulação da frase em grego (hai hamartíai hai pollaí) sustém a interpretação de que foram perdoados todos os pecados da mulher. O amor, como circunstância mitigadora do pecado («porque muito amou») -faz pensar em I Pedro, 4, 8: «acima de tudo mantende entre vós um amor intenso, porque o amorcobre a multidão dos pecados. Curiosa é a ideia de que aqueles que têm poucos pecados por perdoar são pessoas que pouco amam. Nesta última frase, o tempo verbal é o presente; no caso do amor da pecadora, é o aoristo (égapêsen: amou pontualmente no passado); e no caso dos pecados perdoados, temos o perfeito, permitindo a tradução «os teus pecados foram e continuam perdoados», em virtude da força semântica do perfeito grego como resultado presente de uma ação passada.
Esta afirmação de que «os teus pecados foram e continuam perdoados» parece apontar para um amor misericordioso sempre ativo e sem repouso, uma vocação à conversão que, como diria Hannah Arendt, nos liberta das consequências do que fizemos e restaura a nossa capacidade de agir. O repúdio da pena de morte fundamenta-se no respeito da vida até às suas próprias capacidades de renovação, a misericórdia do Deus dos vivos não se seca, não é juíza impositora de sentenças e penas, é, sempre e só, um apelo à metanoia... Escrevo-te a 21 de setembro, dia de festejar São Mateus, o cobrador de impostos e a sua pessoa nova que seguirá Jesus como seu apóstolo. E leio um passo do Evangelho do seu homónimo (nada, em verdade, nos permite identificar o apóstolo com o evangelista), trecho que está em Mateus, 9, 11-13:
E os fariseus disseram aos discípulos dele: «Porque razão come o vosso mestre com cobradores de impostos e com pecadores?» Jesus, porém, ouviu e disse: «Os saudáveis não têm necessidade de um médico, mas sim os doentes. Mas ide e aprendei o que é isto: quero misericórdia e não sacrifício. Não vim chamar os justos, mas sim os pecadores».
Aqui chegada esta carta, sei que deixarei para outras o quase tudo que tenho ainda para te dizer. Porque, na verdade, não é fácil agir com justiça, nem superar a nossa perplexidade, sempre que nos deparamos com o dilema que contrapõe o rigor do juízo à misericórdia do pensarsentir. E bem sabemos que não há vida social possível sem ordenamento jurídico, nem direitos de todos e cada um sem justiça.
Nunca entendi bem como funciona esta minha teimosia em procurar salvar-me de sentidos pensamentos que me afligem, partindo em busca das respetivas raízes, ou do solo em que medram. Como se o antídoto de qualquer mal fosse ir ao seu encontro, ao fundo do seu porquê. Mas tampouco é vício masoquista, quem como tu me conhece bem sabe que je suis plutôt bon vivant ou, como tantas vezes me disse, rindo muito, a nossa tia Bertha Eugenia: Camilo, tu es un jouisseur! Vejo-a agora, quase trinta anos depois, a vir comigo a uns five o´clock tea, no Plaza, em Manhattan, ao som de violinos que ressuscitavam música vienense que lhe encantara a mocidade. Viera visitar-nos, ao nosso posto estadunidense, airosa e contente, elegante e esperta, flor de oitenta e dois anos, viajando, viúva sozinha, desde Bruxelas. Viria a morrer dez anos mais tarde, aos noventa e dois, em Gerardsbergen, onde ainda a visitei muitas vezes, quando fazia escala em Bruxelas em viagens do Japão a Portugal. Apesar do ou por causa do seu fervoroso catolicismo, aquela Senhora tinha, como sua irmã mais velha, minha Mãe, uma alegria contagiosa e um otimismo que inspirava confiança... era de boa companhia.
Voltando às minhas interrogações, aquela citação final da Hannah Arendt na minha carta anterior (Sempre acreditei que somos o que vivemos) foi-me soprada pela leitura de um livro que te recomendo: Trois femmes dans de sombres temps (Edith Stein, Hannah Arendt, Simone Weil), três filósofas judias, duas alemãs e uma francesa de origem alsaciana, meditadas por outra filósofa (francesa), Sylvie Courtine-Denamy, na Bibliothèque de l´Évolution de l´Humanité (Albin Michel, Paris, 1997). Logo no prólogo, a autora, além da citada frase da carta de Arendt a Mary McCarthy, lembra-nos que a designação "os tempos sombrios" (1933-1943) se deve a Bertold Brecht, num poema onde, dirigindo-se «aos que nascerão depois de nós», lhes implorava indulgência para com esta geração que não tinha sabido «preparar o terreno para um mundo de amizade». Têm-me surgido, como fantasmas, tentações de referência, de factos e acontecimentos hodiernos, a situações de tensão, afrontamentos e reviravoltas, daqueles tempos, nesses anos em que a confusão dos espíritos foi levando a melhor sobre o amor do próximo... Desde a Guerra de Espanha, em que até padres católicos se odiaram uns aos outros, até à França de Vichy que, vencida pelo invasor nazi, se defendia dizendo "Hitler plutôt que le Front Populaire!", ou do pacto germano-soviético à conferência de Yalta... Traduzo um trecho de Les Grands Cimetières sous la lune, de Georges Bernanos:
Parece-vos natural que Deus não tenha abençoado a sageza do mundo, a tal que confere honras, fortuna, riquezas. Esqueceis que, no decurso dos séculos, os homens consideraram a conquista desses bens, fosse pela força, pela injustiça ou pela manha, como legítima, sendo a posse assim obtida um favor do Altíssimo. A maioria dos grandes reis de Israel, a começar por Salomão, tinham do poder uma ideia comparável à que presentemente tem o Dr. Rosenberg. Será, aliás, precisamente por isso que os povos totalitários eliminarão fatalmente os seus judeus, já que cada um deles acredita que é eleito, e não há, no mundo, lugar para dois povos eleitos. Um facto, um simples facto, deveria abrir-vos os olhos: o sacrifício do fraco, do inocente, por muito tempo foi tido como o mais agradável a Deus. Por toda a parte, em qualquer idade, por milhares de séculos, a ideia de oração, de graça, de purificação, de perdão, esteve ligada à imagem repugnante de animais degolados por padres fumegando sangue lustral...
[O Dr. Alfredo Rosenberg (1893-1946), autor de O Mito do século XX, foi um dos principais teorizadores do nazismo, ficando ainda famoso por ter organizado, durante a 2ª Grande Guerra, o saque de museus, bibliotecas e coleções privadas nos países ocupados. Mas talvez tenha escrito a sua mais negra folha de serviços enquanto Ministro dos Territórios de Leste, em 1941, ordenando execuções e deportações em massa, com o fito de germanizar a Ucrânia. Aprisionado em 1945, foi julgado em Nuremberga e executado em 1946.]
Seguindo o fio duma meada que, desde há algum tempo, trago na cabeça (terei começado pelo conceito de Tianxiá, e talvez lá regresse), retomo reflexões de Trois femmes dans de sombres temps, em que a autora vai analisando pensamentos de Hannah Arendt : Do carácter decididamente planetário e sem precedentes dos acontecimentos contemporâneos, Étienne Gilson [que foi meu professor], no seu Les Métamorphoses de la Cité de Dieu [Lovaina, 1952], conclui pelo necessário estabelecimento duma «sociedade universal», o que pressupõe a adesão de todas as nações a um princípio que a todas transcenderia. Não estaremos, assim, pergunta Hannah Arendt, a condenar-nos à alternativa do domínio global do totalitarismo ou à sociedade universal promovida pelo cristianismo? Em ambos os casos se ameaça a liberdade política, que só é possível no exercício de uma pluralidade de «princípios de vida e de pensamento» [Cahiers de Philosophie]. Não estaremos confrontados com a hipótese que ela encara em O que é a política? para demonstrar a perda irreparável de mundo que uma guerra total determinaria : «Se tivesse de acontecer que, na sequência de uma enorme catástrofe, só um povo sobrevivesse no mundo, e se tivesse de acontecer que todos os seus membros percebessem e compreendessem o mundo a partir duma única perspetiva, vivendo em consenso pleno, o mundo, no sentido histórico-político, caminharia para a sua perda, e esses homens privados de mundo, e que seriam os únicos sobreviventes sobre a terra , não teriam mais afinidades connosco do que essas tribos privadas de mundo e de relações que a humanidade europeia encontrou quando descobriu novos continentes, e que foram reconquistadas pelo mundo dos homens ou exterminadas sem que se desse conta de que pertenciam igualmente à humanidade».
Certo é que, em tempo de invasiva globalização (pensei esta expressão e dou-me bem com ela), ninguém escapa à interrogação do destino do mundo, caminho de todos e de cada um, e acerca de se isso poderá ter governo e como. Esse epifenómeno da egocultura americana, vulgarmente chamada "american dream", que dá pelo nome de Donald Trump, poderá julgar que a grandeza dos EUA, como potência superior, quiçá hegemónica, será a chave do fado e da ordem mundial. Mas, não só a confusão das gentes que compõem o seu eleitorado, e cujo único denominador comum é uma pungente debilidade das respetivas visões do mundo, é incapaz de ultrapassar critérios sectários desfasados do tempo hodierno, como tampouco saberá produzir um discurso compreensível, racional e sentidamente aceitável pelos restantes cidadãos estadunidenses e outras muitas e variegadas gentes. E não será assim tão só em resultado de pouca instrução e fraca cultura do espírito, nem apenas pela exposição quotidiana de mentes sem educação do espírito crítico às ilusões mediáticas de notícias ou anúncios falsos, sejam esses de motivação política, publicitária ou outra. Pois também a falta de mais propostas livres e promotoras de consciência humanista é fruto do "quero, posso e mando" dos grandes interesses político-económicos, da omnipresença quase omnipotente do seu "marketing" nas orientações dos comportamentos dos indivíduos. Mesmo aqueles que se tomam por independentes, modernos, informados e cultos, são certamente enformados nas suas opções de dietas, passeios, leituras e lazeres, para já não entrarmos por questões políticas e outras de fora da sua vida estritamente privada. Basta falar com qualquer quarentão ou cinquentão (a média idade nas sociedades de "afluência"), para encontrar gente bem convencida de si e suas artes, mas que, afinal, tal como logo recorre à informação imediatamente disponível no computador ou no iphone, também não tem tempo nem esforço para refletir e exercitar espírito crítico. Menos ainda para sequer entender a força humanizante da contemplação. Seja de que lado estiverem quanto ao aquecimento global, às fontes de energia ou à alimentação sadia. Uns e outros vão beber às respetivas fontes, ou seja, ali onde se acham intelectualmente corretos. Eça de Queiroz dizia que a cultura, em Portugal, se importava de França, pelo paquete. No mercado contemporâneo, além do pronto a vestir e do take away, compra-se, na tv ou na net, o pronto a pensar, a opinar, a ter razão, a nos orientarmos pelo melhor, desde a ideia política ao passeio de domingo... mas o individualista sentimento de si é tão marcante que cada qual vê o mundo e os outros a girar à sua volta - por vezes quase como automobilista a identificar-se com a potência do seu carro - e se perde íntima comunhão com o mistério ontológico de tudo, essa oração essencial, tal como, infelizmente, se vai fugindo dessoutra força centrípeta que é a solidariedade humana.
Voltando atrás, Princesa de mim, reencontro essa ideia de povo eleito ou, mais simples e assustadoramente (evocando o conceito "arendtiano" de banalidade do mal), esse sentimento de superioridade atribuível à raça, à religião, à linhagem, à instrução, etc... Quem assim se reclama de direitos especiais, incluindo o de governar os outros, até se esquece dessa profecia de Pablo Neruda (cito de cor, a ideia está certa, a fórmula, creio, próxima) de que "podemos ser livres nas escolhas, mas seremos sempre escravos das consequências delas"... Mas, pergunto, não estaremos nós a enveredar, cada vez mais, pela senda da liberdade condicionada? [ou, desde já, da robotização?]
Aliás, esse dito do Neruda (que, mais do que comunista, foi poeta), também qualquer filósofo o poderá relembrar ao debater a crise atual da democracia nas sociedades em regime liberal-capitalista. Na verdade, a justíssima opção da livre concorrência como garantia da igualdade das oportunidades, da melhoria da qualidade dos bens e dos serviços, da distribuição da riqueza criada por critérios de justiça e mérito, acabou por ser geradora da sua própria Némesis : o esquecimento ou laxismo da responsabilidade política de devidamente assegurar as condições necessárias a uma economia humanista (quem se lembra ainda do movimento Économie et Humanisme do padre Lebret, dominicano francês, que em Portugal só teve algum acolhimento pela geração hoje conhecida como "os vencidos do catolicismo", na roda da Moraes Editores do António Alçada Baptista?). Para resguardarmos a nossa humanidade, não será necessário aprendermos a limitar os excessos de acumulação, anonimização e intervenção política e social do capital (designadamente nos meios de informação) , tal como a submeter a promoção e publicidade das ofertas de bens, serviços e lucros financeiros a critérios de transparência e de responsabilização ativa, célere e rigorosíssima dos infratores? Infelizmente, desembocamos em praças onde inconfidências e desastres podem trazer a público enganos magoados e fados mais tristes de famílias espoliadas pela ganância de "empresários" e "financeiros", estes mesmos continuando a safar-se. Mais e pior: sem pejo, por aí continuam a acenar com ilusões.
Quanto ao concerto das nações, nesta etapa da globalização, também vai espreitando, em busca da recuperação do sonho russo (tzarista e soviético) de ser primeiro entre os seus pares, Vladimir Putin. Aposta, como o colega Trump, no reforço de um poderio financeiro assente em empreendimentos só viáveis pela acumulação de capital, pela concentração de poucos comandantes dos demais agentes económicos. E, externamente, vai fazendo apostas... Muitas vezes me mói o toutiço a questão de como Hannah Arendt tão bem percebeu a essência totalitária partilhada pelo nazismo e pelo estalinismo - que tanto escândalo bem pensante provocou - sem que outros tivessem depois entendido como, mutatis mutandis, o sonho capitalista americano e o economicismo estatal soviético, no campo do exercício político, respondiam à mesma vontade de poder... hoje tão aproveitada pela nova velha China que, não só mas também, por via de um prosseguido vanguardismo tecnológico, se vai aproximando da meta de maior potência económica e financeira. É assim compreensível a reserva de muitos analistas políticos e filósofos relativamente à reactualização do conceito de Tianxiá: harmonia de todos os que estão debaixo do mesmo Céu, ou - além disso, mas também, parafraseando Orwell e evocando a antiga designação de Celeste Império - sendo uns mais celestes do que os outros?
Pois, na verdade, tal como o sonho americano desenhou o direito universal ao enriquecimento dos indivíduos, também a dado passo acordou para a necessidade (como fator e como fatalidade) de assegurar externamente as condições políticas e militares da sua prepotência económica. Os poderosos regimes ditos comunistas, inversamente, concluíram que um possível proeminente lugar no mundo não poderia ser-lhes garantido apenas por forças armadas, repressão de povos, controlo das vidas, desde a natalidade até ao usufruto de bens e ao livre exercício do pensarsentir. Pareceu-lhes, assim, imprescindível a criação de músculo económico e financeiro e a procura de novos modos de imposição do poder estatal, incluindo as formas mais subtis, por via, privilegiadamente, da informática... estaremos todos destinados a ser robôs?
Se releres passadas cartas minhas, Princesa, perceberás porque me comoveu profundamente a notícia de recentes reencontros de membros sulistas e nortenhos de famílias coreanas, e me valeu o recolhimento de umas horas a da morte do israelita Uri Avnery, num hospital de Telavive, aos 94 anos. Quando só contava 10 de vida, refugiara-se na Palestina sob administração britânica, acompanhando seus pais, escapando à perseguição nazi. Era então alemão, chamava-se Helmut Ostermann, e aos 15 já era membro do movimento sionista Irgun, que mais tarde abandonaria, para se tornar num defensor intransigente da paz, do reconhecimento de dois estados palestinos (um dos quais judeu). Até hoje, lutou sempre contra a ocupação ilegítima de territórios por Israel e, pouco antes de morrer, ainda se pronunciava contra a lei que quer impor o conceito de Israel como pátria histórica do povo judeu.
E, neste último domingo de agosto, é de coração sentido que dizemos a Deus a John McCain, herói de guerra, ferido e feito prisioneiro no Vietnam, político humanista, defensor da dignidade humana, que não se cansava de lembrar que, apesar das torturas sofridas, a guerra lhe tinha ensinado a amar e procurar a paz... Serão pois bem sinceras as condolências do seu guarda de cárcere vietnamita, ao dizer hoje como chora a sua morte.
A dedicação de tanta outra gente a causas e serviços de solidariedade humana, a causas de justiça e de paz, de proteção e exaltação da natureza e da vida, de recuperação de doentes, de superação de desvantagens físicas ou mentais, de reinserção social e consciencialização da sua própria dignidade humana de presos e marginalizados, é o espelho maior em que a nossa humanidade se deveria rever... Então, porque será que, a toda a hora e momento, nos envolvem em notícias torpes, acusações e ataques ad hominem, ou ilusões de luxo e de luxúria?
Talvez se ganhe mais esperança em comungar no batimento incessante do coração de gente sempre viva. Sobretudo se, nos sinais dos tempos, além de maus agouros, soubermos encontrar, e amar mais, sinais das promessas de Deus.
Muitas vezes me perguntam porque faço sempre votos de Feliz Páscoa e nunca digo Santa Páscoa. Pela simples razão de desejar a todos e cada um a feliz viagem a partir da porta que Jesus abriu para que, passando por ela, caminhemos à descoberta da boa nova que Cristo assim anuncia na narrativa de S. Lucas lida na missa crismal de 5ª feira santa: Entregaram-lhe o livro do profeta Isaías e, ao abri-lo, encontrou o trecho em que estava escrito «O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me ungiu para anunciar a boa nova aos pobres. Enviou-me a proclamar a redenção aos cativos e a vista aos cegos, a restituir a liberdade aos oprimidos, a proclamar o ano da graça do Senhor». Depois, enrolou o livro, entregou-o ao ajudante e sentou-se. Estavam fixos em Jesus os olhos de toda a sinagoga. Disse-lhes então: «Cumpriu-se hoje mesmo este trecho da Escritura que acabais de ouvir».
O caminho da Páscoa é a libertação. E toda a liberdade implica uma conversão interior, porque quem deixou de ser servo, jamais agirá por ser mandado, mas terá de agir por amor.
No tríduo pascal, entre a celebração do drama da Paixão e a festa da Ressurreição, há um dia mais silencioso do que litúrgico, em que nos retiramos para uma comunhão da humanidade inteira com a morte e a vida, talvez o momento em que mais sentimos esse rasgão que é a condição humana na sua própria consciência de si. Aspiramos a saber tudo e nada afinal sabemos, estamos às escuras, e mesmo a fé só vê o invisível. No sábado santo, também os familiares e discípulos de Jesus, e todos aqueles que o seguiam e aguardavam, se sentem profundamente desamparados. Como quem empreendeu uma longa viagem e chega à beira de um rio torrencial, fundo e largo, sem ponte nem barca. Todos eles se lembram certamente do Cristo crucificado que grita: «Meu Deus, Deus meu, porque me abandonaste?».Chegam-nos então ao coração todos os que sofrem, mais do que tentação, uma experiência do mal, uma vertigem de negação, desespero, incompreensão.
Tenho aqui comigo um exemplar velhinho (de 1950) da Attente de Dieu, pequena colectânea de cartas e outros textos de Simone Weil, que o padre J.-M. Perrin reuniu em 1949. Simone, judia francesa de educação agnóstica, morreu em 23 de Agosto de 1943, aos 34 anos, no sanatório de Ashford, sem ter sido baptizada, ainda que prosseguindo o seu caminho de busca da fé. Diz o padre Perrin, seu confidente e correspondente, que, através dos textos precedendo a sua morte nota-se que ela estaria ainda, em muitos pontos, longe da fé católica na sua plenitude, e que sentia perfeitamente que só a morte a transportaria a essa verdade de que se sabia ainda afastada. Traduzo seguidamente um texto de Simone Weil, que pertence a uma meditação sobre a oração ao Pai Nosso. O trecho respigado é um comentário aos versículos finais (e não nos deixeis cair em tentação, mas livrai-nos do mal) daquela prece. Para melhor entendimento da inspiração de Simone transcrevo aqui a versão francesa desse passo, que ela traduziu diretamente do grego: Et nous ne jette pas dans l´épreuve, mais protège nous du mal. Termino com a tradução do comentário da filósofa judia francesa, que aqui deixo com votos muito amigos de santa e feliz viagem de Páscoa!
A única provação do homem é ser abandonado a si mesmo ao contacto do mal. O nada do homem é então experimentalmente verificado. Apesar da alma ter recebido o pão sobrenatural no momento em que o pediu, a sua alegria mistura-se com receio, porque apenas para o presente o pôde pedir. O porvir permanece temível. Ela não tem o direito de pedir pão para amanhã, mas exprime o seu receio em forma de súplica. Assim acaba. A palavra "Pai" começou a oração, a palavra "mal" termina-a. É necessário ir da confiança ao receio. Só a confiança traz a força necessária a que o receio não seja causa de queda. Depois de ter contemplado o nome, o reino e a vontade de Deus [recitemos o Pai Nosso], depois de ter recebido o pão sobrenatural e ter sido purificada do mal, a alma está pronta para a verdadeira humildade que coroa todas as virtudes. A humildade consiste em saber que, neste mundo, a alma toda, e não somente o que chamamos eu, a alma na sua totalidade, i. e., também na parte sobrenatural da alma que é Deus presente nela, está sujeita ao tempo e às vicissitudes da mudança. É preciso aceitar absolutamente a possibilidade de que seja destruído tudo o que em nós mesmos é natural. Mas é simultaneamente necessário aceitar e rejeitar a possibilidade de que desapareça a parte sobrenatural da alma. Aceitá-lo como acontecimento que só em conformidade com a vontade de Deus se produziria. Rejeitá-lo como sendo algo horrível. É preciso ter medo disso. Mas que o medo seja como que o acabamento da confiança.
Gosto, eu, de dizer que o percurso da Páscoa é um caminho de confiança.
Os investigadores interrogam-se sobre como interpretar os efeitos da globalização no tecido social que vota o Brexit no culminar de uma década de severa crise financeira. É o fim do liberalismo?
Está o conservadorismo social em marcha? Os resultados do 2017 British Survey Attitudes revelam as recentes macrotendências políticas no reino, esculpindo a recusa do austeritarismo e da tolerância quanto à fuga fiscal, a desintonia em torno da emigração e a exigência de um estado mais protetor. Dado interessante é que uma maioria de 48% está disponível para pagar altos impostos, a fim de alavancar uma justa distribuição da riqueza e financiar maior investimento público nas áreas da saúde, educação e segurança social. — Chérie. Autres temps, autres mœurs. A guerra civil no Labour Party regressa em força após a trégua eleitoral. Entre a murmuração de uma purga dos moderados, RH Jeremy Corbyn despede sumariamente três dos Shadow Cabinet Members por desobediência em voto favorável à manutenção do UK no mercado comum. — Hmm.A chain is only as strong as its weakest link. North Korea testa com sucesso um míssil intercontinental, capaz de atingir as costas do Alaska. O French President Emmanuel Macron convida o POUS Donald J Trump para as comemorações do Bastille Day, quando o seu governo de dias perde quatro ministros no altar da moralização da república. Madame Simone Weil parte aos 90 anos, testando uma notável história de coragem e de causas.
Light clouds at Central London. A atmosfera política em Westminster parece estabilizar sob os chuviscos refrescantes do veraneio, mas ainda reverberam as ondas de choque geradas no incêndio da Grenfell Tower ― entre o apoio às vítimas e os primeiros passos do inquérito oficial à tragédia. A Prime Minister RH Theresa May passa tranquilamente os primeiros testes ao poder do seu segundo governo, um ano depois do euroreferendo, da resignação de RH David Cameron do No. 10 e da entrada em Downing Street. Nas votações da House of Commons em torno do programa legislativo, enunciado no Queen’s Speech, apresenta confortável maioria de 15 votos, mais ampla, portanto, que os dez acordados com os unionistas irlandeses do DUP. Curiosa é ainda a fixação do eleitorado captada nas sondagens conduzidas após o desastre eleitoral de June 8 e as sequentes demissões nas lideranças partidárias, do imediato afastamento do MEP Paul Nuttall no Ukip ao ulterior abandono do MP Tim Farron nos Liberal Democrats. Com o já habitual ruído mediático a propósito ou a pretexto do Brexit divide no seio do Cabinet, eis reiterada confirmação em três sucessivos retratos à opinião pública do colapso dos pequenos partidos a par do crescendo do Labour Party. Com RH Jeremy Corbyn em alta de popularidade, contrastando com a inimitigável oposição no seio da respetiva bancada parlamentar, os trabalhistas recolhem entre 44 a 46% das preferências contra 39-41% dos Tories (face a 6-7% dos Lib Dems e 2-3% dos Ukippers).
A descolagem do Lab ancora-se nos jovens eleitores e relembra as dificuldades demográficas observadas por RH Margaret Thatcher no balanço da vitória na 1979 General Election (então com uma maioria de 43 MPs). Neste state of affairs, porém, os ministros do Mayism dedicam-se a esgrimir em público as red lines traçadas pela PM no eurodiscurso de Lancaster House (“no deal is better than a bad deal”) em paralelo com a necessidade de esquecer o défice & a dívida e doar nova prioridade a aumentos salariais no funcionalismo e a propinas gratuitas no ensino superior. Por outras palavras, e a fim de aplacar o surfar da vaga popular por Red Jezza, debate-se por cá o fim próximo das políticas austeritárias. Daí a interessante moldura do euroceticismo que à querela dá o Brit Survey Attitudes, apresentado em Westminster pelo National Centre for Social Research. Sob o título "Britain wants less nanny state, more attentive parents," o 34th NatCen Report revela "a kind-hearted but not soft-hearted country" enquanto examina o atual posicionamento cívico em torno de grandes temas como a erosão fiscal e a fraude nos benefícios sociais, a emigração massiva, o papel do governo, as liberdades e as moralidades públicas, desta feita auscultados na senda da agendada saída do UK da European Union. A síntese que soa na Atlee Suite de Portcullis House é claríssima: “Britain wants the state to open its wallet, keep a watchful eye to keep us safe, but let us live our private lives how we wish.”
Mas a quinzena está fortemente marcada pelos 2017 Tennis Championships. Wimbledon is back, com o wonderful sport a somar no encanto das cercanias. As atenções e as aspirações centram-se na defesa do título por Sir Andy Murray, em pleno Central Court, contando o escocês com fervor unânime do reino unido. No primeiro dia dos jogos no sudoeste londrino, Andy leva a audiência ao rubro ao vencer Mr Alexander Bublik em straight sets com convincente trio 6-1, 6-4, 6-2. Seguem-se mais difíceis oponentes e é de esperar renhida disputa quer pelo Open Grand Slam, quer também pelo pódio mundial entre o fantástico quarteto que compõe com Novak Djokovic, Roger Federer e Rafael Nadal. — Well. By turns fervent and witty, so Master Will presents us with the subtleties of the old game in Henry V, at the first lights of Agincourt, when the king receives a odd gift of tennis balls from the hands of the French Ambassador: — “We are glad the Dauphin is so pleasant with us; / His present … we thank you for: / When we have match’d our rackets to these balls. / We will, in France, by God’s grace, play a set / Shall strike his father’s crown into the hazard. / Tell him, he hath made a match with such a wrangler / That all the courts of France will be disturb’d / With chases."
‘A beleza é a única finalidade neste mundo.’, Simone Weil
Em ‘A Espera de Deus’, Simone Weil (1909-1943) escreve que uma coisa bela não contém qualquer fim, não contém qualquer bem. É somente ela mesma na sua totalidade, tal como nos surge. Uma coisa bela oferece-nos a sua própria existência – possuímo-la e contudo desejamos ainda, não sabemos o quê. Para Weil, gostaríamos, no fundo, de ter o que se encontra por detrás da beleza (mas ela é somente superfície). Talvez, na verdade, gostaríamos de nos alimentar dela, de modo a incorporá-la em nós, na totalidade.
Ao não ter qualquer fim, a beleza constitui a única finalidade neste mundo. A beleza não é um meio para outra coisa. Está presente em todas as buscas humanas – todas as coisas que tomamos como fins são na realidade meios e a beleza confere-lhes um brilho que as reveste de finalidade (de outro modo, não poderia existir desejo nem consequente energia na busca).
Para Weil, a pobreza possui o privilégio de nos aproximar mais do amor à ordem e à beleza do mundo, como complemento do amor ao próximo. Renunciar à nossa situação imaginária de centro do mundo, é acordar para o real, para o eterno, ver a verdadeira luz, escutar o verdadeiro silêncio. Só então se opera uma transformação na própria raiz da sensibilidade, na maneira imediata de receber as impressões sensíveis e as impressões psicológicas.
Weil diz ainda que o homem ao esvaziar-se da sua falsa divindade, ao negar-se a si mesmo, consente caridade para com o próximo, consente um amor total à ordem do mundo.
A arte é, para Simone Weil, uma tentativa de reproduzir, através de uma quantidade finita de matéria modelada pelo homem, uma imagem da beleza infinita de todo o universo. Essa porção de matéria deve revelar toda a realidade que nos cerca. As obras de arte devem assim ser aberturas diretas, reflexos justos e puros sobre a beleza do mundo. Para Weil, Deus inspira toda a obra, por mais profano que seja o assunto. A obra de arte reconstrói a ordem do mundo como uma imagem, a partir de dados limitados, inventariáveis e rigorosamente definidos. A contemplação dessa imagem da ordem do mundo constitui um certo contacto com a beleza do mundo.
‘O artista, o sábio, o pensador, o contemplativo devem, para admirar realmente o universo, perfurar essa película de irrealidade que o oculta, e que cria para quase todos os homens, em quase todos os momentos das suas vidas, um sonho ou um cenário de teatro.’, S. Weil
Weil revela que as realizações puras e autênticas da arte revestem-se da verdadeira poesia da vida humana, sendo reflexo da luz celeste: ‘A conveniência das coisas, dos seres, dos acontecimentos consiste apenas nisto, que eles existem e que não devemos desejar que não existam ou que tivessem sido outros. Nós somos constituídos de forma tal que este amor é realmente possível; e é esta possibilidade que tem por nome beleza do mundo.’
A ausência de finalidade, a ausência de intenção, e a ausência de pensamentos que alterem a verdade tal como ela é – essa sim é, para Simone Weil, a essência da beleza do mundo.